quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

As flores do mal - Charles Baudelaire

Editora: Nova Fronteira
ISBN: 978-85-2091-853-1
Tradução: Ivan Junqueira
Apresentação: Marcelo Jacques
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 656
Sinopse: “Neste livro atroz, pus todo o meu pensamento, todo o meu coração, toda a minha religião (travestida), todo o meu ódio”, escreveu Charles Baudelaire sobre este livro numa carta.
Considerada o marco da poesia moderna, As flores do mal reúne de modo exemplar uma série de motivos obra do poeta: a queda; a expulsão do paraíso; o amor; a morte; o tempo; o exílio e o tédio.



Um fantasma

I – As trevas

Nos porões de tristeza impenetrável
Onde o Destino um dia me esqueceu;
Onde jamais um róseo raio ardeu,
Só com a noite, hospedeira intratável,

Sou qual pintor que um deus, por diversão,
Na treva faz mover os seus pincéis,
Ou o cozinheiro de apetites cruéis
Que assa e devora o próprio coração.

Súbito brilha e faz ali presente
Fantasma esplêndido e de graça extrema
Em oriental postura evanescente.

Ao atingir a perfeição suprema,
Nele percebo a bela visitante:
Ei-la! Negra e contudo fulgurante.



Reversibilidade

Ó anjo de alegria, já viste a desgraça,
Os soluços, o tédio, o remorso, as vergonhas,
E o difuso terror dessas noites medonhas
Que o peito oprimem como um papel que se amassa?
Ó anjo de alegria, já viste a desgraça?

Ó anjo de bondade, já viste o rancor,
As mãos em gesto aflito e as lágrimas de fel,
Quando brande a Vingança o seu apelo cruel
E de nossas virtudes torna-se o senhor?
Ó anjo de bondade, já viste o rancor?

Ó anjo de saúde, já viste os Delírios,
Que, ao longo das paredes do asilo alvadio,
Como exilados vão em seu passo tardio,
Movendo os lábios e buscando a luz dos círios?
Ó anjo de saúde, já viste os Delírios?

Ó anjo de beleza, as rugas já não viste,
Não viste o medo da velhice e este suplício
De ler o esfíngico pavor do sacrifício
No olhar que outrora nos saciou a gula triste?
Ó anjo de beleza, as rugas já não viste?

Ó anjo de ventura e júbilo e clarões,
Davi da morte se teria levantado
Sob os eflúvios de teu corpo enfeitiçado;
Mas a ti só imploro as tuas orações,
Ó anjo de ventura e júbilo e clarões!



O veneno

Sabe o vinho vestir o ambiente mais espúrio
   Com seu luxo prodigioso,
E engendra mais de um pórtico miraculoso
   No ouro de um vapor purpúreo,
Como um sol que se põe no ocaso nebuloso.

O ópio dilata o que contornos não tem mais,
   Aprofunda o ilimitado,
Alonga o tempo, escava a volúpia e o pecado,
   E de prazeres sensuais
Enche a alma para além do que conter lhe é dado.

Mas nada disso vale o veneno que escorre
   De teu verde olhar perverso,
Laguna onde minha alma se mira ao inverso...
   E meu sonho logo acorre
Para saciar-se nesse abismo em fel imerso.

Nada disso se iguala ao prodígio sombrio
   Da tua saliva forte,
Que a alma me impele ao esquecimento num transporte,
   E, carreando o desvario,
Desfalecida a arrasta até os umbrais da morte!



O Irreparável

I

Como abafar este Remorso interminável,
   Que vive, se enrosca e se agita,
E se nutre de nós como um verme insaciável,
   Qual do carvalho o parasita?
Como abafar este Remorso inexorável?

Em que filtro, em que vinho, em que amarga tisana
   Afogar tal praga inimiga,
Gulosa e predatória como uma mundana,
   Paciente como uma formiga?
Em que filtro? – em que vinho? – em que amarga tisana?

Ah, dize, ó feiticeira! dize, se és capaz,
   A esta alma que o tormento assola,
Como a de quem, em meio aos que agonizam, jaz
   E o casco do cavalo esfola,
Ó bela feiticeira! Ah, dize, se és capaz,

Ao moribundo a quem o lobo já fareja
   E a gula do corvo amortalha,
A este soldado que, batido, ainda peleja
   Por uma tumba e uma medalha;
O moribundo a quem o lobo já fareja!

Como clarear um céu ao sol indiferente,
   Rasga-lhe as trevas em cortejo,
Mais densas do que o breu, sem aurora e sem poente,
   Sem astro ou fúnebre lampejo?
Como clarear um céu ao sol indiferente?

A esperança que luz nos vidros da Estalagem
   Desfez-se em meio ao torvelinho!
Sem raios nem luar, onde achar-se hospedagem
   Aos mártires de um mau caminho?
Satã tudo extinguiu nos vidros da Estalagem!

Amável feiticeira, adoras os danados?
   Conhece o que nunca é salvo?
Conheces do Remorso os dardos aguçados?
   Que o coração nos fazem de alvo?
Amável feiticeira, adora os danados?

O Irreparável rói com a presa maldita
   Nossa lama, indigno monumento,
E muita vez ataca, assim como a térmita,
   O prédio por seu fundamento.
O irreparável rói com a presa maldita;


II

– Por vezes vi, ao fundo de um teatro banal
   Que inflamava a orquestra sonora,
Uma fada acender no horizonte infernal
   Uma miraculosa aurora;
Por vezes vi, ao fundo de um teatro banal,

Um Ser feito somente de ouro, gaze e luz
   Vencer a Satã, que imenso era;
Porém meu coração, que êxtase algum seduz,
   É como um teatro onde se espera,
Em vão e para sempre, o Ser de asas de luz!



Spleen (LXXVI)

Eu tenho mais recordações do que há em mil anos.
Uma cômoda imensa atulhada de planos,
Versos, cartas de amor, romances, escrituras,
Com grossos cachos de cabelo entre as faturas,
Guarda menos segredos que o meu coração.
É uma pirâmide, um fantástico porão,
E jazigo não há que mais mortos possua.
– Eu sou um cemitério odiado pela lua,
Onde, como remorsos, vermes atrevidos
Andam sempre a irritar meus mortos mais queridos.
Sou como um camarim onde há rosas fanadas,
Em meio a um turbilhão de modas já passadas,
Onde os tristes pastéis de um Boucher* desbotado
Ainda aspiram o odor de um frasco destampado.

Nada iguala o arrastar-se dos trôpegos dias,
Quando, sob o rigor das brancas invernias,
O tédio, taciturno exílio da vontade,
Assume as proporções da própria eternidade.
– Doravante hás de ser, ó pobre e humano escombro!
Um granito açoitado por ondas de assombro,
A dormir nos confins de um Saara brumoso;
Uma esfinge que o mundo ignora, descuidoso,
Esquecida no mapa, e cujo áspero humor
Canta apenas aos raios do sol a se pôr.

François Boucher (1703-1770): pintor e gravador francês. Autor de cenas pastoris, religiosas, mitológicas e alegóricas, cujas cores desmaiadas lembram pastéis. (N.T.)



Spleen (LXXVII)

Sou como o rei sombrio de um país chuvoso,
Rico, mas incapaz, moço e no entanto idoso,
Que, desprezando do vassalo a cortesia,
Entre seus cães e os outros bichos se entedia.
Nada o pode alegrar, nem caça, nem falcão,
Nem seu povo a morrer defronte do balcão.
Do jogral favorito a estrofe irreverente
Não mais desfranze o cenho deste cruel doente.
Em tumba se transforma o seu florido leito,
E as aias, que acham todo príncipe perfeito,
Não sabem mais que traje erótico vestir
Para fazer este esqueleto enfim sorrir.
O sábio que ouro lhe fabrica desconhece
Como extirpar-lhe ao ser a parte que apodrece,
E nem nos tais banhos de sangue dos romanos,
De que se lembram na velhice os soberanos,
Pôde dar vida a esta carcaça, onde, em filetes,
Em vez de sangue flui a verde água do Letes*.

Letes: Em gr. Léthe, um dos rios do inferno. Sua água fazia esquecer o passado àqueles que dela bebessem.


Spleen (LXXVIII)

Quando o céu plúmbeo e baixo pesa como tampa
Sobre o espírito exposto aos tédios e aos açoites,
E, ungindo toda a curva do horizonte, estampa
Um dia mais escuro e triste do que as noites;

Quando a terra se torna em calabouço horrendo,
Onde a Esperança, qual morcego espavorido,
Sua asa tímida nos muros vai batendo
E a cabeça roçando o teto apodrecido;

Quando a chuva, a escorrer as tranças fugidias
Imita as grades de uma lúgubre cadeia,
E a muda multidão das aranhas sombrias
Estende em nosso cérebro uma espessa teia,

Os sinos dobram, de repente, furibundos
E lançam contra o céu um uivo horripilante,
Como os espíritos sem pátria e vagabundos
Que se põem a gemer com vez recalcitrante.

– Sem música ou tambor, desfila lentamente
Em minha alma uma esguia e fúnebre carreta;
Chora a Esperança, e a Angústia, atroz e prepotente,
Enterra-me no crânio uma bandeira preta.


“– Já não viste que o esquife onde dorme uma velha
É quase tão pequeno quanto o de um infante?”



O crepúsculo vespertino

Eis a noite sutil, amiga do assassino;
Ela vem como um cúmplice, a passo lupino;
Qual grande alcova o céu se fecha lentamente,
E em besta fera torna-se o homem impaciente.
Ó noite, amável noite, almejada por quem
Cujas mãos, sem mentir, podem dizer: Amém,
Galgamos nosso pão! – É a noite que alivia
As almas que uma dor selvagem suplicia,
O sábio cuja fronte pesa sem proveito,
E o recurso operário que regressa ao leito.
Entretanto, demônios insepultos no ócio
Acordam do estupor, como homens de negócio,
E estremecem a voar o postigo e a janela.
Através dos clarões que o vendaval flagela
O Meretrício brilha ao longo das calçadas;
Qual formigueiro ele franqueia mil entradas;
Por toda parte engendra uma invisível trilha,
Assim como inimigo apronta uma armadilha;
Pela cidade imunda e hostil se movimenta
Como um verme que ao Homem furta o que o sustenta.
Ouvem-se aqui e ali as cozinhas a chiar,
Os teatros a ganir, as orquestras a ecoar;
Sobre as roletas em que o jogo encena farsas,
Curvam-se escroques e rameiras, seus comparsas,
E os ladrões, que perdão ou trégua alguma têm
Começam cedo a trabalhar, eles também,
Forçando docemente o trinco e a fechadura
Para que a vida não lhes seja assim tão dura.

Recolhe-te, minha alma, neste grave instante,
E tapa teus ouvidos a este som uivante.
É o momento em que as dores dos doentes culminam!
A Noite escura os estrangula; eles terminam
Seus destinos no horror de um abismo comum;
Seus suspiros inundam o hospital; mais de um
Não mais virá buscar a sopa perfumada,
Junto ao fogão, à tarde, ao pé da bem-amada.

E entre eles muitos há que nunca conheceram
A doçura do lar e que jamais viveram!



O crepúsculo matinal

Cantava a diana pelos pátios das casernas,
E o vento da manhã soprava nas lanternas.

Era a hora em que o tropel dos sonhos malfazejos
Retorce entre os lençóis impúberes desejos;
Em que, como olho que palpita e olha de esguelha,
A luz deixa no espaço uma nódoa vermelha;
Em que o espírito, ao peso da matéria bruta,
Imita o afã da lâmpada e do dia em luta.
Qual uma face cujo pranto a brisa enxuga,
O ar incorpora as pulsações da noite em fuga,
Cansa o homem de escrever e a mulher já não ama.
Nas casas via-se a primeira e tíbia chama.
As prostitutas, sob as pálpebras sem viço,
Boca aberta, dormiam seu sono maciço;
As mendigas, os seios magros e doentios,
Sopravam os tições e os hirtos dedos frios.
Era a hora em que, ao fundo de um mísero quarto,
Mais padece a mulher entre as dores do parto;
Como um soluço à tona de sanguínea espuma,
A voz do galo ao longe espedaçava a bruma;
Um mar de névoas engolfava os edifícios,
E os moribundos, esquecidos nos hospícios,
Entre estertores desiguais se contorciam.
Exaustos, os rufiões enfim se recolhiam.

Em traje verde e róseo, a enregelada aurora
Fluía devagar pelo ermo Sena afora,
E Paris, os sombrios olhos entreabrindo,
Rumo ao trabalho, velho obreiro, ia seguindo.



Alegoria

É uma bela mulher, de aparência altaneira,
Que deixa mergulhar no vinho a cabeleira.
As tenazes do amor, os venenos da intriga,
Nada a epiderme de granito lhe fustiga.
Da Morte ela se ri e escarnece da Orgia,
Espectros cuja mão, que ceifa e suplicia,
Respeitaram, contudo, em seus jogos de horror,
Neste corpo elegante o rústico esplendor.
Caminha como deusa e dorme qual sultana,
E mantém no prazer uma fé maometana,
Braços em cruz, inflando os seios soberanos,
Com seu olhar convoca a raça dos humanos.
Ela sabe, ela crê, em seu ventre infecundo,
E no entanto essencial ao avanço do mundo,
Que a beleza do corpo é sempre um dom sublime
Que perdoa a sorrir qualquer infâmia ou crime.
O Inferno desconhece e o Purgatório ignora,
E quando a negra Noite anunciar sua hora,
Da Morte ela há de olhar o rosto apodrecido
– Sem remorso ou rancor, como um recém-nascido.



A viagem

I

Para a criança, que adora olhar mapas e telas,
O universo se iguala ao seu vasto apetite.
Ah, como é grande o mundo à tíbia luz das velas!
E na saudade quão pequeno é o seu limite!

Partimos de manhã, a alma em chamas pressagas,
O coração cheio de fel e de acres mágoas;
Seguíamos assim, sempre ao sabor das vagas,
O infinito a embalar no finito das águas;

Uns, gratos por fugir a uma infâmia qualquer;
Outros, ao pânico dos lares, e alguns mais,
Astrólogos fitando o olhar de uma mulher,
Circe* tirânica entre bálsamos fatais.


Para que em bestas não se tornem, se inebriam
À luz que arde no céu em ásperos lampejos;
O gelo que os ulcera, os sóis que os supliciam,
Apagam pouco a pouco a cicatriz dos beijos.

Mas viajantes de fato apenas são aqueles
Que partem por partir; o coração flutuante,
Jamais hão de aceitar ser outros senão eles
E, sem saber por quê, ordenam sempre: Adiante!

Os que ao prazer dão a fugaz forma das nuvens
E sonham, como sonha o canhão um recruta,
Volúpias sem limite, ignotas e volúveis,
Cujo nome jamais o ouvido humano escuta!

Circe: em Gr. Kírke, feiticeira que transformou em porcos os companheiros de Ulisses quando este aportou à sua ilha, a fim de que o herói permanecesse por mais tempo ao seu lado. Assim nos relata Homero na Odisseia, canto X (N.T.)


II

Imitando, que horror, a carrapeta e a bola
Em sua valsa, mesmo em sonhos, a nefasta
Curiosidade sempre nos aflige e rola
Tal como um Anjo cruel que o próprio sol vergasta.

Fortuna singular cujo alvo não se alcança
E que, além não estando, onde está não importa!
Em que o homem, que jamais renuncia à esperança,
Repouso implora como um louco em cada porta!

Nossa alma é uma trirreme em busca dessa Içaria*;
Sobre a ponte uma voz no ar ecoa: “Abre os olhos!”
E na gávea outra vez se alteia solitária:
“Ventura... glória... amor!” Mas há somente escolhos!

Cada ilhota que avista esse homem da vigia
É um paraíso, uma promessa do Destino;
E o devaneio, que ora ostenta a sua orgia,
Um só recife encontra à luz do ar matutino.

Amoroso infeliz de ermas regiões quiméricas!
Preciso é submetê-lo e ao mar lançá-lo após,
Esse ébrio marinheiro, esse inventor de Américas
Cuja miragem torna o abismo mais atroz?

Tal como o velho vagabundo, os pés na lama,
Nariz para o ar, édens de luz, eis que imagina;
Uma Cápua* vislumbra o seu olhar em chama
Toda vez que a candeia um casebre ilumina.

Içaria: Em gr., Ikaría, ilha grega do mar Egeu. Baudelaire alude aqui à Voyage em Icarie (1842), romance fantasioso em que Étienne Cabet, teórico do comunismo, expõe um sistema de felicidade imaginária. (N.T.)
Cápua: Cidade da Itália, ant. Casilimun. Sua fundação remonta aos etruscos. Uniu-se a Roma no séc. IV a.C. e foi tomada por Aníbal em 215 a.C., tendo seus soldados passado ali o inverno. A expressão ‘as delícias de Cápua’, faz alusão a esse inverno, durante o qual o exército se debilitou, em lugar de consolidar a vitória. (N.T.)


III

Viajantes sem temor, quantas nobres histórias
Lemos em vosso olhar profundo como os lastros!
Mostrai em vosso escrínio essas ricas memórias,
Joias mais raras do que a etérea luz dos astros.

Queremos navegar sem bússola e sem vela!
Fazei, para que o tédio o ser não nos afronte,
Passar em nossos corações, qual numa tela,
Vossas lembranças com seus quadros de horizonte.

E que vistes? Dizei.


IV

“Vimos estrelas e ondas,
E enfim vimos também alvíssimas areias;
E, apesar do naufrágio em borrascas hediondas,
O tédio, como aqui, nos cinge em suas teias.

A glória ébria do sol por sobre um mar violeta,
As cidades em glória ante o sol a se pôr,
Nos acendiam na alma uma vontade inquieta
De mergulhar num céu de aliciante esplendor.

As maiores regiões, a mais pujante aldeia,
Não continham jamais os encantos secretos
Dessas que o acaso com as nuvens delineia.
E eis que o desejo nos fazia mais inquietos!

– Ao desejo o prazer alguma força acresce.
Desejo, árvore à qual o gozo é adubo certo,
E enquanto a casca engrossa e aos poucos enrijece,
Teus ramos querem ver o sol ainda mais perto!

Crescerás sempre, ó tronco imenso e mais vivaz
Que o cipreste? – Com zelo arrancamos, porém,
Alguns botões que ao vosso álbum ávido apraz,
Irmãos que achais ser belo o que de longe vem!

Celebramos até uns ídolos com trompa;
Tronos que a luz das joias deixa constelados,
Palácios de cristal cuja ofuscante pompa
Seria um pesadelo aos vossos potentados;

Ritos que aos olhos mais parecem uma orgia;
Mulheres cujos dentes e unhas são rubis,
E hábeis jograis que uma serpente acaricia.”


V

E após, e após enfim?


VI

“O cérebro pueris!

E para não fugir à coisa capital,
Vimos em toda parte, e sem o haver buscado,
Desde cima até embaixo da escada fatal,
A encenação tediosa do imortal pecado:

A mulher, serva infame, estúpida e orgulhosa,
Adorando-se a sério e amando-se em sossego;
O homem, tirano, a alma feroz e voluptuosa,
Da escrava o escravo e de um esgoto o imundo rego;

O algoz que se diverte, o mártir que padece;
A festa que perfuma o sangue e que o tempera;
O vinho do poder que ao déspota enraivece,
E o povo em êxtase ante o látego que o espera;

Diversas religiões em tudo iguais à nossa,
Todas galgando o céu; a vocação divina,
Como um donzel que em meio às plumas se alvoroça,
Em busca da volúpia entre os pregos e a crina;

A Humanidade, ébria da própria fantasia,
E hoje tão louca quanto o foi no tempo antigo,
Clamando a Deus em sua ríspida agonia:
Ó mestre, ó semelhante a mim, eu te maldigo!

E os menos tolos, mas amantes da Demência,
Fugindo ao que o Destino uniu, rebanho inglório,
E no ópio adormecendo os restos da consciência!
– Tal é do mundo inteiro o eterno relatório!"


VII

Saber amargo, o que se tira de uma viagem!
Monótono e pequeno, o mundo, sem remédio,
Hoje, ontem, amanhã, nos faz ver nossa imagem,
Um oásis de horror num deserto de tédio!

Urge partir? ficar? Pois fica, se te apraz;
Ou parte, se é preciso. Um corre, o outro se esconde
Para enganar o Tempo, o inimigo tenaz
E funesto! Há quem corra alheio ao quando e ao onde,

Como o Judeu errante e os fiéis de Nazaré,
Aos quais nada valeu, nem barco nem vagão,
Para fugir ao gladiador; e há quem até
Saiba matá-lo sem deixar o seu torrão.

Quando ele nos pisar o dorso que se inclina,
Poderemos enfim gritar bem alto: “Avante!”
Assim como íamos outrora para a China,
Os cabelos ao vento e os olhos sempre adiante,

Navegaremos sobre a espuma tenebrosa,
Jovens viajantes ébrios de ânsia e de prazer.
Escutai essa voz, taciturna e graciosa,
Que canta: “Por aqui, vós que quereis comer

O Lótus perfumado! Eis que a vindima
Dos frutos pelos quais vossa alma anda sedenta;
Não viestes pois vos embriagar ao doce clima
Dessa tarde que flui infinda e sonolenta?”

A uma voz familiar se adivinha a visão;
Os Pílades* ao longe acolhem-nos agora.
“Vai refrescar-te em tua Electra*, coração!”
Diz essa cujos pés beijávamos outrora.

Pílades: herói mitológico da Fócida, primo e amigo inseparável de Orestes. (N.T.)
Electra: Filha de Agamêmnon, e de Cliemnestra, irmã de Orestes e de Ifigênia. Ajudou Orestes a vingar o assassínio do pai e casou-se com Pílades, filho do rei da Fócida. A lenda de Electra exerceu imenso fascínio sobre diversos dramaturgos antigos e modernos, tendo nela se inspirado, além de numerosos autores da Renascença e do Barroco, Ésquilo (Coéforas), Sófocles (Electra, c.425 a.C.), Eurípedes (Electra 413 a.C.), Hugo Von Hofsmannshtal (Elektra, 1904-1906, que serviu de base a uma ópera de Richard Strauss). Eugene O’Neil (Mourning becomes Electra, 1931) e Jean Giraudoux (iEléctre, 1937). É nessa lenda que se apoia também a doutrina psicanalítica segundo a qual a trama neurótica de determinados conflitos femininos remonta à fixação libidinosa da menina em relação ao pai. (N.T.)


VIII

Ó Morte, velho capitão, é tempo! Às velas!
Este país enfara, ó Morte! Para frente!
Se o mar e o céu recobre o luto das procelas,
Em nossos corações brilha uma chama ardente!

Verte-nos teu veneno, ele é que nos conforta!
Queremos, tal o cérebro nos arde em fogo,
Ir ao fundo do abismo, Inferno ou Céu, que importa?
Para encontrar no Ignoto o que ele tem de novo!



Mulheres malditas

Delfina e Hipólita

À tíbia luz das lamparinas voluptuosas,
Sobre sensuais coxins impregnados de essência,
Sonhava Hipólita* as carícias poderosas
Que lhe erguiam o véu da púbere inocência.

Ela buscava, o olhar na tempestade posto,
De sua ingenuidade o céu distante agora,
Como um viajante para trás volve o seu rosto
Em busca da manhã que já se foi embora.

Os olhos já sem viço, o preguiçoso pranto,
O ar exausto, o estupor, a lúbrica moleza.
Os braços sem ação, como armas vãs a um canto,
Tudo afinal lhe ungia a tímida beleza.

Posta a seus pés, serena e cheia de alegria,
Delfina* lhe lançava à carne olhos ardentes,
Como o animal feroz que a vítima vigia,
Após havê-la antes marcado com seus dentes.

Bela e viril de joelhos ante a frágil bela,
Soberba, ela sorvia com volúpia intensa
O vinho da vitória e, acercando-se dela,
Punha-se à espera de uma doce recompensa.

No pasmo olhar da presa ela buscava aflita
Ouvir o canto que o prazer sem voz entoa,
E essa sublime gratidão que arde infinita
E, qual suspiro, sob as pálpebras escoa.

– “Hipólita, amor meu, que me dizes então?
Compreendes quão pueril é oferecer agora
Em holocausto as tuas rosas em botão
A um sopro que as pudesse espedaçar lá fora?

Meus beijos são sutis como asas erradias
Que afagam pela tarde os lagos transparentes,
Mas os de teu amante hão de escavar estrias
Como as carroças e os arados inclementes;

Sobre ti passarão qual sobre alguém pisasse
Uma junta de bois os cascos sem piedade...
Hipólita, meu bem! volve pois tua face,
Tu, coração, que és o meu todo e és a metade,

Volve teus olhos cheios de astros como os céus!
Dá-me esse olhar que é como um bálsamo bem-vindo;
Do prazer mais sombrio eu erguerei os véus
E hei de fazer-te adormecer num sonho infindo!”

Mas Hipólita então a fronte levantando:
– “Não sou ingrata e do que fiz não me arrependo,
Minha Delfina, eu sofro e à dor vou definhando,
Como após um festim crepuscular e horrendo.

Sinto pesarem sobre mim graves terrores
E negros batalhões de fantasmas dispersos,
Que querem conduzir-me a fluidos corredores
Num sanguíneo horizonte em toda parte imersos.

Teremos cometido algum pecado extremo?
Explica, se és capaz, o medo que me acua:
Se me dizes: Meu anjo! eu de alto a baixo tremo
E sinto a minha boca ir em busca da tua.

Não me olhes mais assim, ó tu, meu pensamento!
Tu que eu adoro e que és enfim minha eleição,
Mesmo que fosse um fantoche fraudulento
E a própria origem dessa estranha perdição!”

Delfina, a sacudir nervosa a crina ondeante,
E como a tripudiar sobre um tripé superno,
O olhar fatal, gritou, despótica e arrogante:
– “E quem diante do amor ousa falar do inferno?

Maldito para sempre o sonhador inútil
Que por primeiro quis, em sua insanidade,
Entretanto um problema insolúvel e fútil,
As delícias do amor juntar à honestidade!

O que deseja unir, em místico projeto,
O dia com a noite, o frio como a flama,
Jamais aquecerá seu trôpego esqueleto
Àquele rubro sol que amor também se chama!

Vai, se queres, de um noivo estúpido à procura;
Abre teu peito em flor a seus beijos em fúria;
E como quem o horror ao remorso mistura,
No seio hás de exibir-me o estigma da luxúria...

Aqui somente a uma mestre é lícito servir-se!”
Mas Hipólita, em meio a uma enorme aflição,
De súbito gritou: – “Sinto em meu ser abrir-se
Um abismo, e este abismo é enfim meu coração!

Ardente qual vulcão, mais fundo que a tormenta,
Nada este monstro aplacará dentro de mim
E nunca há de saciar a Eumênide* sedenta
Que a queimará, archote em punho, até o fim.

Que os véus de nossa alcova ocultem-nos do mundo,
E que o cansaço dê repouso a tais agruras!
Quero extinguir-me no teu vórtice profundo
E no teu seio achar à paz das sepulturas!”

– Descei, descei, ó tristes vítimas sublimes,
Descei por onde o fogo arde em clarões eternos!
Mergulhai neste abismo em que todos os crimes,
Tangidos por um vento oriundo dos infernos,

Fervilham de mistura aos ásperos trovões.
Sombras dementes, ide ao fim de vosso vício;
Não podereis o ódio expulsar dos corações,
E é do prazer que há de surgir vosso suplício.

Jamais um raio há de clarear vossas cavernas;
Pelas fendas da pedra os miasmas delirantes
Infiltram-se a brilhar, assim como lanternas,
E os corpos vos penetram de odores nauseantes.

O acre prazer que vos alegra a erma existência
A sede vos aumenta e a vossa pele engelha;
E ao vento furibundo da concupiscência
Vossa carne se esgarça qual bandeira velha.

Longe dos vivos, erradias, condenadas,
Correi rumo ao deserto e ali uivai a sós;
Cumpri vosso destino, almas desordenadas,
E fugi do infinito que trazeis em vós!

Hipólita: Rainha das amazonas, filha de Ares. Hércules venceu as amazonas e capturou ou matou a rainha para roubar-lhe o cinto miraculoso. (N.T.)
Delfina: na antiguidade grega, uma das pítias, sacerdotisas encarregadas de pronunciar oráculos em nome de Apolo, em Delfos. Sentadas numa trípode, entre emanações sulfurosas no interior da caverna sagrada, as pítias eram tomadas de ‘delírio divino’, articulando palavras incoerentes que os sacerdotes interpretavam como a resposta de deus. (N.T.)
Eumênide: Na mitologia grega, cada uma das três Fúrias. (O mesmo nome é dado por antífrase, sobretudo na Ática, as Erínias.) Em sentido figurado, equivale ao remorso, ao rebate de consciência.

2 comentários:

Doney disse...

A editora Nova Fronteira caprichou na edição (que é bilíngue, daí o apoio em postar na língua original), que consta não só com a bela tradução de Ivan Junqueira, mas também com muitas informações acerca do autor e da obra. Minhas congratulações pelo belo trabalho realizado.

Outra coisa: se minha opinião sobre o livro não foi melhor do que a que atribuí, talvez isto decorra da minha dificuldade em ler poesia com rimas e não da qualidade da obra em si.

klaudiakremp@yahoo.com.br disse...

Obrigada por dar crédito ao tradutor, pq foi a primeira coisa q me passou pela cabeça enquanto lia.