Editora: Record
ISBN: 978-85-0100-530-4
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 272
Sinopse: Publicado
em 1937, pouco depois de implantado o Estado Novo, este livro teve a primeira
edição apreendida e exemplares queimados em praça pública de Salvador por
autoridades da ditadura. Em 1940, marcou época na vida literária brasileira,
com nova edição, e a partir daí, sucederam-se as edições nacionais e em idiomas
estrangeiros. A obra teve também adaptações para o rádio, teatro e cinema.
Documento sobre a vida dos meninos abandonados nas ruas de Salvador, Jorge
Amado a descreve em páginas carregadas de beleza, dramaticidade e lirismo.
“O Sem-Pernas ficou parado, olhando. Pirulito
não se movia. Apenas seus lábios tinham um lento movimento. O Sem-Pernas
costumava burlar dele, como de todos os demais do grupo, mesmo de Professor, de
quem gostava, mesmo de Pedro Bala, a quem respeitava. Logo que um novato
entrava para os Capitães da Areia formava uma ideia ruim de Sem-Pernas. Porque
ele logo botava um apelido, ria de um gesto, de uma frase do novato.
Ridicularizava tudo, era dos que mais brigavam. Tinha mesmo fama de malvado.
Uma vez fez tremendas crueldades com um gato que entrara no trapiche. E um dia
cortara de navalha um garçom de restaurante para furtar apenas um frango
assado. Um dia em que teve um abscesso na perna o rasgou friamente a canivete e
na vista de todos o espremeu rindo. Muitos do grupo não gostavam dele, mas
aqueles que passavam por cima de tudo e se faziam seus amigos diziam que ele
era um sujeito bom. No mais fundo do
seu coração ele tinha pena da desgraça de todos. E rindo, e ridicularizando,
era que fugia da sua desgraça. Era como um remédio. Ficou parado olhando
Pirulito, que rezava concentrado. No rosto do que rezava ia uma exaltação,
qualquer coisa que ao primeiro momento o Sem-Pernas pensou que fosse alegria ou
felicidade. Mas fitou o rosto do outro e achou que era uma expressão que ele
não sabia definir. E pensou, contraindo o seu rosto pequeno, que talvez por
isso ele nunca tivesse pensado em rezar, em se voltar para o céu de que tanto
falava o padre José Pedro quando vinha vê-los. O que ele queria era felicidade,
era alegria, era fugir de toda aquela miséria, de toda aquela desgraça que os
cercava e os estrangulava. Havia, é verdade, a grande liberdade das ruas. Mas havia
também o abandono de qualquer carinho, a falta de todas as palavras boas.
Pirulito buscava isso no céu, nos quadros de santo, nas flores murchas que
trazia para Nossa Senhora das Sete Dores, como um namorado romântico dos
bairros chiques da cidade traz para aquela a quem ama com intenção de
casamento. Mas o Sem-Pernas não compreendia que aquilo pudesse bastar. Ele
queria uma coisa imediata, uma coisa que pusesse seu rosto sorridente e alegre,
que o livrasse da necessidade de rir de todos e de rir de tudo. Que o livrasse
também daquela angústia, daquela vontade de chorar que o tomava nas noites de
inverno. Não queria o que tinha Pirulito, o rosto cheio de uma exaltação.
Queria alegria, uma mão que, o acarinhasse, alguém que com muito amor o fizesse
esquecer o defeito físico e os muitos anos (talvez tivessem sido apenas meses
ou semanas, mas para ele seriam sempre longos anos) que vivera sozinho nas ruas
da cidade, hostilizado pelos homens que passavam, empurrado pelos guardas,
surrado pelos moleques maiores. Nunca tivera família. Vivera na casa de um
padeiro a quem chamava meu padrinho e
que o surrava. Fugiu logo que pôde compreender que a fuga o libertaria. Sofreu
fome, um dia levaram-no preso. Ele quer um carinho, uma mão que passe sobre os
seus olhos e faça com que ele possa se esquecer daquela noite na cadeia, quando
os soldados bêbados o fizeram correr com sua perna coxa em volta de uma saleta.
Em cada canto estava um com uma borracha comprida. As marcas que ficaram nas
suas costas desapareceram. Mas de dentro dele nunca desapareceu a dor daquela
hora. Corria na saleta como um animal perseguido por outros mais fortes. A
perna coxa se recusava a ajudá-lo. E a borracha zunia nas suas costas quando o
cansaço o fazia parar. A princípio chorou muito, depois, não sabe como, as
lágrimas secaram. Certa hora não resistiu mais, abateu-se no chão. Sangrava.
Ainda hoje ouve como os soldados riam e como riu aquele homem de colete
cinzento que fumava um charuto.”
“Pedro Bala agora sabe que não foi apenas
para que sua história fosse contada no cais, no Mercado, na Porta do Mar,
(agora sabe) que seu pai morrera pela liberdade. A liberdade é como o sol. É o
bem maior do mundo.”
“A revolução chama Pedro Bala como Deus
chamava Pirulito nas noites do trapiche. É uma voz poderosa dentro dele,
poderosa como a voz do mar, como a voz do vento, tão poderosa como uma voz sem
comparação. Como a voz de um negro que canta num saveiro o samba que Boa-Vida
fez:
Companheiros, chegou a hora...
A voz o chama. Uma voz que o alegra, que faz
bater seu coração. Ajudar a mudar o destino de todos os pobres. Uma voz que
atravessa a cidade, que parece vir dos atabaques que ressoam nas macumbas da
religião ilegal dos negros. Uma voz que vem com o ruído dos bondes onde vão os
condutores e motorneiros grevistas. Uma voz que vem do cais, do peito dos
estivadores, de João de Adão, de seu pai morrendo num comício, dos marinheiros
dos navios, dos saveiristas e dos canoeiros. Uma voz que vem do grupo que joga
a luta da capoeira, que vem dos golpes que o Querido-de-Deus aplica. Uma voz
que vem mesmo do padre José Pedro, padre pobre de olhos espantados diante do
destino terrível dos Capitães da Areia. Uma voz que vem das filhas-de-santo do
candomblé de Don'Aninha, na noite que a polícia levou Ogum. Voz que vem do
trapiche dos Capitães da Areia. Que vem do reformatório e do orfanato. Que vem
do ódio do Sem-Pernas se atirando do elevador para não se entregar. Que vem no trem
da Leste Brasileira, através do sertão, do grupo de Lampião pedindo justiça
para os sertanejos. Que vem de Alberto, o estudante pedindo escolas e liberdade
para a cultura. Que vem dos quadros de Professor, onde meninos esfarrapados
lutam naquela exposição da rua Chile. Que vem de Boa-Vida e dos malandros da cidade,
do bojo dos seus violões, dos sambas tristes que eles cantam. Uma voz que vem
de todos os pobres, do peito de todos os pobres. Uma voz que diz uma palavra
bonita de solidariedade, de amizade: companheiros. Uma voz que convida para a
festa da luta. Que é como um samba alegre de negro, como ressoar dos atabaques
nas macumbas. Voz que vem da lembrança de Dora, valente lutadora. Voz que chama
Pedro Bala. Como a voz de Deus chamava Pirulito, a voz do ódio o Sem-Pernas,
como a voz dos sertanejos chamava Volta Seca para o grupo de Lampião. Voz
poderosa como nenhuma outra. Porque é uma voz que chama para lutar por todos,
pelo destino de todos, sem exceção. Voz poderosa como nenhuma outra. Voz que
atravessa a cidade e vem de todos os lados. Voz que traz com ela uma festa, que
faz o inverno acabar lá fora e ser a primavera. A primavera da luta. Voz que
chama Pedro Bala, que o leva para a luta. Voz que vem de todos os peitos
esfomeados da cidade, de todos os peitos explorados da cidade. Voz que traz o
bem maior do mundo, bem que é igual ao sol, mesmo maior que o sol: a liberdade.
A cidade no dia de primavera é deslumbradoramente bela. Uma voz de mulher canta
a canção da Bahia. Canção da beleza da Bahia. Cidade negra e velha, sinos de
igreja, ruas calçadas de pedra. Canção da Bahia que uma mulher canta. Dentro de
Pedro Bala uma voz o chama: voz que traz para a canção da Bahia, a canção da
liberdade. Voz poderosa que o chama. Voz de toda a cidade pobre da Bahia, voz
da liberdade. A revolução chama Pedro Bala. (...)
Anos depois os jornais de classe, pequenos
jornais, dos quais vários não tinham existência legal e se imprimiam em
tipografias clandestinas, jornais que circulavam nas fábricas, passados de mão
em mão, e que eram lidos à luz de fifós, publicavam sempre notícias sobre um
militante proletário, o camarada Pedro Bala, que estava perseguido pela polícia
de cinco estados como organizador de greves, como dirigente de partidos
ilegais, como perigoso inimigo da ordem estabelecida.
No ano em que todas as bocas foram impedidas
de falar, no ano que foi todo ele uma noite de terror, esses jornais (únicas
bocas que ainda falavam) clamavam pela liberdade de Pedro Bala, líder da sua
classe, que se encontrava preso numa colônia.
E, no dia em que ele fugiu, em inúmeros
lares, na hora pobre do jantar, rostos se iluminaram ao saber da notícia. E,
apesar de que lá fora era o terror, qualquer daqueles lares era um lar que se
abriria para Pedro Bala, fugitivo da polícia. Porque a revolução é uma pátria e
uma família.”
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