sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Erec e Enide, de Manuel Vázquez Montalbán

Editora: Alfaguara

ISBN: 978-85-7302-815-7

Tradução: Paulina Wacht e Ari Roitman

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 256

Sinopse: Segundo a lenda medieval, Erec, o mais moço dos cavaleiros da Távola-Redonda, teria abandonando seus companheiros de armas para viver com sua amada Enide como marido e mulher. Em Erec e Enide, Manuel Vázquez Montalbán faz uma releitura contemporânea do tema desta lenda medieval e apresenta uma reflexão sobre o sentido da vida, do amor e do casamento nos dias de hoje.

Numa narrativa em que entrelaça várias histórias de amor e adultério, Montalbán utiliza a lenda como contraponto das felicidades possíveis do ser humano. O livro conta a história do professor Julio Matasanz, especialista em literatura medieval que viaja para a Galícia para receber uma homenagem num congresso. Lá, ele reencontra sua amante, Myrna. O evento transcorre na ilha de San Simón – forte de cavaleiros templários, cárcere de republicanos durante e depois da Guerra Civil Espanhola, e hoje um centro cultural.

A última aula de Julio versa sobre Erec e Enide, primeiro romance do ciclo do rei Artur, motivo para que o professor faça uma emocionante reflexão sobre o sentido último da vida – o amor e a morte. Ao mesmo tempo, Pedro (afilhado de Julio) e sua companheira Myriam, destemidos voluntários de uma ONG, estão vivendo na América Central, desafiando paramilitares e caciques locais para permanecerem juntos. Enquanto isso, sua nem sempre fiel esposa Madrona, membro da alta burguesia barcelonesa, prepara o Natal com a esperança de reunir toda a família e superar conflitos, na esperança de que a festa dê sentido à sua vida e ao nome da sua residência: A alegria da corte.

 

“A cultura patrimonial e a linguagem de divulgação são os álibis da nossa hegemonia, considerando que o dinossauro morreu porque era um dinossauro e as formigas nos sobreviverão, mas escravas de uma lógica cavernícola que as impedirá de lutar contra os ácaros e contra as mulheres. Vão ganhar os ácaros. Sinto muito pela formiga e pelas mulheres, mas as duas alternativas avançam prepotentes numa ausência de vontade de poder, as formigas, ou numa denúncia da masculina vontade de poder, as mulheres. Sarcástica mentira, principalmente para o velho catedrático que testemunhou cinquenta anos de ascensão de suas colegas femininas, com uma capacidade de dentadas e rasteiras perfeitamente masculina, quando não usaram os peitos ou as bocetas, de que também carecem quase todos os homens. Sinto muito, sou misógino. Mas as mulheres não vão conseguir derrotar os ácaros. Os ácaros suportam até a bomba de nêutrons e não precisam se fantasiar de outra coisa para permanecer no ar ou nos nossos pulmões. Estão em toda parte. São Deus. Repetem o poder do invisível para criar ou desfazer o visível.”

 

 

“Mas certas doses de irracionalidade nos ajudam a continuar sendo racionais no fundamental.”

 

 

“Custo a admitir que penso em Julio porque estou mal, e se ao menos bastasse voltar para casa e recuperá-lo, sentiria alguma segurança de ânimo e não me forçaria a ir fazer as compras para compensar uma angústia tão incômoda que nem sequer se concretizava, uma sutil angústia feita de pressentimentos, de intuição feminina como eu mesma diria anos atrás, quando ainda acreditava na intuição feminina, antes de suspeitar que não passava de uma questão de desconfiança incontrolável na alma de todos os escravos.”

 

 

“– Mas que horror de homem! – me escapou, e os olhos claros da mulher loura me censuraram antes de seus lábios explicarem.

– Perdeu as estribeiras. Ele não é assim. Ultimamente as coisas não andam bem para o seu lado e está com uma paranoia gravíssima. Alguém disse que o pior que pode acontecer com um paranoico é ser perseguido de verdade. De qualquer modo, o problema é meu e muito obrigada.

– Você é enfermeira?

– Como percebeu?

– Pelas meias brancas.

– Tenho o título e faço algumas substituições, como agora. É duro lutar por uma vaga. São milhares de candidatos para cada emprego e isso numa sociedade com expectativa de vida de mais de setenta anos.

– Acha que é expectativa demais?

– Depende da vida que você levar.

A conversa era entre eles dois e eu estava alucinada porque tinha acabado de descobrir que Pedro era um homem que podia sentir-se atraído por uma garota loura, de olhos claros e lábios rosados. Ela tinha projetos. Inscrever-se nos Médicos Sem Fronteiras e tentar melhorar o nível de vida dos condenados da Terra, expressão que repetiu três vezes. Gostava dela. Era bonita e me emocionou. Os condenados da Terra! Havia superado a comoção do desagradável encontro e, estimulada por nossas perguntas, Myriam disse coisas brilhantes e muito instigantes. Por exemplo, que sua liberdade sem a dos outros não era liberdade e que isso deveria se estender à satisfação das necessidades, até mesmo dos prazeres.

– Isso é muito bonito. Muito cristão – exclamei entusiasmada.

– Procuro praticar o que digo sem necessidade de ser cristã. O cristianismo é um mero hábito cultural.”

 

 

“– Todos nós pensamos de duas maneiras diferentes, Marta. Primeiro pensamos para cumprir o protocolo e dizer bom-dia ou me dá esse vestido ou o que vamos fazer neste verão. E depois pensamos de verdade que os nossos pensamentos habituais falsificam o que sentimos ou o que deveríamos sentir com sinceridade. Pedro e a mulher dele viram o outro lado dessa trama de pequenas misérias, disso que chamamos de viver corretamente. Quase tudo aquilo em que acreditamos ou fingimos acreditar, e não me refiro ao aspecto religioso, é uma merda.”

 

 

“– Você deve estar imensamente feliz.

– Por quê?

– A homenagem. Na certa vai receber até um telegrama do rei. Você é muito narciso e essas coisas o engrandecem, você gosta.

– Em termos de narcisismo não tenho nada a ensinar a uma mulher.

– Errado. Em nós é uma obrigação imposta pelo papel de chamariz. Em vocês muda muito a segunda pessoa. Você, por exemplo, é narcisista porque só tem a si mesmo. Desconfia afetivamente de todos os que estão à sua volta.”

 

 

“Ela segura minha mão e a beija com suficiente, calculada leveza para que eu prossiga o caminho que me devolve à cama. Minhas costas estão doloridas e se acolhem à piedade de um colchão maravilhoso, como só costas veteranas e agredidas podem qualificá-lo, como só uma nuca cansada de sustentar a cabeça tão cheia de lembranças e presságios pode agradecer ao travesseiro, uma pátria. Luto contra a imperiosidade do sono para que Myrna não se sinta expulsa, mas talvez deseje que ela vá embora e me deixe reencontrar-me na solidão, como um ator fazendo exercícios espirituais antes de mostrar a cara no palco e antes de recompor o postal suvenir hectachrom na qual Myrna e eu nos encontramos ou nos despedimos, sem mudar o gesto num caso ou no outro, porque somos comediantes bem treinados. Já lemos tanto!”

 

 

“Porque penso que se cada qual é dono de suas próprias catástrofes, as catástrofes deixam de ser catástrofes.”

 

 

“– Vocês são católicos? – perguntou Diderot.

– Não.

– Eu também não. Mas precisamos dizer algumas coisas pelos nossos companheiros (jesuítas assassinados).

Levou Diderot a mão ao peito e olhou para um céu quase encoberto pelas copas das árvores mais altas.

– Senhor Deus dos nossos companheiros Iriondo e Blázquez, acolhe-os num dos melhores lugares destinados aos teus santos e teus mártires, porque eles não só deram provas de que acreditavam em Ti, mas sobretudo de que acreditavam em todos nós.”

 

 

“– A senhora vê? Somos umas formigas e tudo o que podemos almejar é a piedade da sola do pé dos deuses, para que adiem o nosso pisoteamento o máximo possível. Chore. Chore. Desespere-se. Mas a senhora é uma mulher bonita, muito bonita, e seu próprio corpo, como as gardênias, em contato com o meio vai encontrar motivos para sobreviver.”

 

 

“Vou ao lavatório para recuperar minha entidade, não diante do espelho e sim sentado na tampa do vaso, protegido neste pequeno âmbito onde tento juntar tudo o que aconteceu e está acontecendo, desejando que termine logo e um tapete mágico me leve a La Alegria de La Corte, onde estão à minha espera 15 dias de nada e quase ninguém. Madrona também, de quem não sei por que sinto saudades, vontade de partilhar por alguns dias aquela vida em que nunca acontece nada, irmãs e sobrinhos, amizades inócuas, a academia, dentro desse olimpo em que vivem os ricos pertencentes a pelo menos três gerações de ricos. Madrona não só é rica, mas também boa, boa pessoa, talvez por ser rica e não ter precisado ser má pessoa. Nunca lhe aconteceu nada.”

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