quinta-feira, 14 de outubro de 2010

O Livreiro de Cabul – Åsne Seierstad

Editora: Record
ISBN: 978-85-01-07287-0
Tradução: Grete Skevik
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 322
Sinopse: Por ter vivido três meses com uma família afegã, na primavera de 2002, logo após a queda do regime talibã, a jornalista norueguesa Åsne Seierstad pôde produzir esta narrativa ímpar que mostra aspectos do país que poucos estrangeiros testemunhariam. Como ocidental, mulher e hóspede de Sultan Khan, um livreiro de Cabul, obteve o privilégio de transitar entre o universo feminino e masculino de uma sociedade islâmica fundamentalista. Preso e torturado durante o regime comunista, Sultan Khan teve sua livraria invadida e parte dos livros queimados, mas alimentava o sonho de ver seu acervo de 10 mil volumes sobre história e literatura afegã transformar-se no núcleo de uma nova Biblioteca Nacional.
Apesar da situação estável, a família do livreiro, dividia uma casa de quatro cômodos em uma cidade que se recuperava da guerra e de trágicos reflexos políticos. Os integrantes da família acostumaram-se à presença da autora sob uma burca. Assim, ela pôde observar relatos das rixas do clã; da exploração sexual das jovens viúvas que esperavam doações de alimentos das organizações de ajuda internacional; da adúltera sufocada com um travesseiro pelos três irmãos sob as ordens da mãe; do exílio no Paquistão da primeira esposa de Sultan Khan, após um segundo casamento com uma moça de 16 anos, do filho adolescente do livreiro obrigado a trabalhar 12 horas por dia sem chance de estudar.
A autora apresenta uma coleção de personagens comoventes que reflete as contradições do Afeganistão, e nos emociona sobretudo ao apresentar a rotina, a pobreza e as limitações impostas às mulheres e aos jovens do país. O protagonista, mesmo sendo um homem de letras, é um tirano na orientação familiar, nos negócios, e pautado pelo radicalismo. Prova disso é que, indignado com o trabalho da autora, o livreiro de Cabul que inspirou o personagem Sultan Khan foi à Noruega com o propósito de pedir reparação judicial.



“Uma manhã, enquanto tomava uma xícara de chá fumegante na livraria, ele percebeu que Cabul voltava à vida. Enquanto fazia planos de como realizar seu sonho, pensou numa citação do seu poeta favorito Firdausi. ‘Para se ter êxito, algumas vezes é preciso ser lobo, outras vezes cordeiro’. Estava na hora de ser lobo, Sultan pensou.”


“O divórcio nunca foi uma alternativa para Sharifa. Quando uma mulher pede o divórcio, ela praticamente perde todos os seus direitos. Os filhos seguem o marido e ele pode até impedi-la de vê-los. A mulher se torna uma vergonha para a família, é muitas vezes expulsa, e todos os seus bens cabem ao marido.”


“No Afeganistão, mulher apaixonada é tabu. É proibido pelos conceitos de honra rigorosos do clã e pelos mulás. Os jovens não têm o direito de se encontrar para amar, não têm o direito de escolher. Amor tem pouco a ver com casamento, ao contrário, pode ser um grave crime, castigado com a morte. Pessoas indisciplinadas são mortas a sangue-frio. Caso apenas um dos dois tenha de ser castigado com a morte, invariavelmente é a mulher.
Mulheres jovens são, antes de mais nada, um objeto de troca e venda. Um casamento é um contrato entre famílias ou dentro de uma família. A vantagem que o casamento pode ter para o clã é o que determina tudo – sentimentos raramente são levados em consideração. Durante séculos, as mulheres afegãs têm suportado a injustiça cometida contra elas. Mas em canções e poemas as próprias mulheres dão seu testemunho. São canções para ninguém ouvir, e até o eco permanece nas montanhas ou no deserto.
Elas protestam “se suicidando ou cantando”, escreveu o poeta afegão Sayed Bahoudin Majrouh num livro de poemas das próprias mulheres pashtun. Ele reuniu os poemas com a ajuda da cunhada. Majrouh foi assassinado por fundamentalistas em Peshawar, em 1988.
Os poemas ou rimas são passados oralmente de umas para as outras próximo ao poço, no caminho para o campo ou ao lado do forno de pão. Falam de amores proibidos, do ser amado como outro homem, nunca o marido, e do ódio ao marido, frequentemente muito mais velho do que elas. Mas expressam também o orgulho de ser mulher e a coragem demonstrada por elas. Os poemas são chamados de landay, que significa curto.
Consistem de poucas linhas, curtas e ritmadas, “como um grito ou uma facada”, escreve Majrouh.

Pessoas cruéis veem um velhinho
a caminho da minha cama
E ainda me perguntam por que choro e arranco os cabelos.

Meu Deus! De novo me mandastes a noite escura E de novo tremo da cabeça aos pés por ter que subir na cama que odeio.

Mas as mulheres nos poemas também são rebeldes, arriscando a vida por amor, numa sociedade onde a paixão é proibida e o castigo é impiedoso.

Dá-me tua mão, meu amor, vamos nos esconder no campo
Para amar ou sucumbir às facadas.

Mergulho nas águas, mas a correnteza não quer me levar. Meu marido tem sorte, meu corpo sempre volta à beira do rio.
Amanhã de manhã estarei morta por tua causa. Não diga que não me amou.

A maioria dos “gritos” é de desapontamento, por uma vida não vivida. Uma mulher pede a Deus para na próxima vida ser uma pedra em vez de mulher. Nenhum desses poemas fala de esperança, ao contrário — reina a desesperança de não se ter vivido o suficiente, de não se ter aproveitado a beleza, a juventude, os prazeres do amor.

Eu era bela como uma rosa.
Debaixo de ti fiquei amarela como uma laranja.

Eu não conhecia o sofrimento.
Por isso cresci reta, como um pinheiro.

Os poemas também estão cheios de ternura. Com uma sinceridade brutal, a mulher glorifica seu corpo, o amor carnal e o fruto proibido – como querendo chocar os homens, provocar sua virilidade.

Põe tua boca sobre a minha,
Mas deixa minha língua livre para poder falar de amor.

Pegue-me primeiro nos teus braços, me segure!
Depois te amarre às minhas coxas de veludo.

Minha boca é tua, devora-a, não tenhas medo!
Não é feita de açúcar, que se dissolve e
desaparece.

Minha boca, eu te dou com prazer. Por que
me atiças? – Já estou molhada.

Vou te fazer em cinzas.
Se eu, por um só momento, olhar na tua direção.”


O paraíso negado
Quando o Talibã assumiu o poder em Cabul em setembro de 1996, 16 decretos foram transmitidos pela Rádio Sharia. Uma nova era estava começando.
1. É proibido às mulheres andar descobertas.
É proibido aos motoristas aceitar mulheres que não estejam usando burca. Se o fizerem, o motorista será preso. Se mulheres assim forem vistas na rua, suas casas serão encontradas e seus maridos punidos. Se as mulheres vestirem roupas insinuantes ou atraentes, desacompanhadas de parentes próximos do sexo masculino, o motorista não poderá levá-las no carro.

2. Proibição contra a música.
Fitas cassetes e música são proibidas em lojas, hotéis, veículos e riquixás. Caso sejam encontradas fitas de música numa loja, seu proprietário será preso e a loja fechada. Se uma fita for encontrada num veículo, este será apreendido e o motorista será preso.

3. É proibido barbear-se.
Aquele que se barbear ou cortar a barba será preso até que a barba tenha crescido até o comprimento de um punho.

4. Oração obrigatória.
As orações devem ser observadas em horários fixos em todos os distritos. A duração exata da oração será anunciada pelo Ministério da Promoção da Virtude e Prevenção do Vício, Todo transporte fica estritamente proibido nos 15 minutos antes da oração. É obrigatório ir à mesquita durante o horário da oração. Se jovens forem vistos em lojas, serão imediatamente presos.

5. É proibido criar pombos e promover rinhas de aves.
Este passatempo deve ser reprimido. Pombos usados em jogos e rinhas serão mortos.

6. Erradicação das drogas e de seus usuários.
Usuários de drogas serão presos e o vendedor e seu estabelecimento investigados. O estabelecimento será fechado e ambos os criminosos, proprietário e usuário, serão presos e punidos.

7. É proibido soltar pipas.
Soltar pipas tem consequências nefastas, assim como o fomento a jogos de azar, mortes entre crianças e ausência do aluno nas escolas. Lojas que vendem pipas serão fechadas.

8. É proibido reproduzir imagens.
Fotos e retratos em veículos, lojas, casas, hotéis e outros lugares serão retirados. Os proprietários destes estabelecimentos devem destruir todas as imagens existentes. Veículos com imagens de seres vivos serão detidos.

9. Estão rigorosamente proibidos os jogos de azar.
Os estabelecimentos serão fechados e os jogadores ficarão detidos por um mês.

10. É proibido usar cortes de cabelo no estilo americano ou inglês.
Homens com cabelos compridos serão presos e levados para o Ministério da Promoção da Virtude e Prevenção do Vício para cortarem o cabelo. O criminoso pagará o barbeiro.

11. São proibidos empréstimos a juros, taxas de câmbio e de transações.
Estes três tipos de transação financeira estão proibidos no Islã. Caso as regras sejam quebradas, o criminoso ficará preso por um período indeterminado.

12. É proibido lavar roupa à margem dos rios.
Mulheres que desobedecerem a esta lei serão retiradas de maneira respeitosa do local e levadas para suas casas, onde seus maridos serão duramente punidos.

13. Música e dança são proibidos em festas de casamento.
Caso esta proibição seja desobedecida, o chefe da família será preso e punido.

Allahu akbar – Deus é grande.


“Mulheres de burca são como cavalos com antolhos, só podem ver numa direção. Nas laterais, a rede do véu se fecha, impedindo olhares de soslaio. É preciso virar a cabeça inteira. Outro truque dos inventores da burca: um homem deve saber quem ou o quê sua mulher persegue com os olhos.”


“Mas para a grande massa pouco mudou. Nas famílias, a tradição é tudo: são os homens que decidem. Apenas uma minoria das mulheres de Cabul largou a burca, e a maioria nem sabe que suas ancestrais, mulheres afegãs do século passado, desconheciam esse traje. Foi durante o regime do rei Habibullah, entre 1901 e 1919, que a burca foi introduzida.
Ele impôs às duzentas mulheres do seu harém o uso da burca, para que não tentassem outros homens com seus belos rostos quando estavam fora dos portões do castelo. O véu que cobria tudo era de seda com bordados elaborados, e as princesas de Habibullah tinham até burcas bordadas com fios de ouro. Assim, virou um traje para a classe alta, para protegê-las dos olhares do povo. Nos anos 1950, o uso da burca já estava difundido no país inteiro, principalmente entre os ricos.”


“Os dois filhos seguintes morreram ainda pequenos. Um quarto das crianças do Afeganistão morre antes de completar cinco anos. O país tem o maior índice de mortalidade infantil do mundo. Crianças morrem de sarampo, caxumba, resfriado, mas principalmente de diarreia. Muitos pais acreditam que não se deve dar nada às crianças com diarreia, porque será posto para fora de qualquer maneira. Acreditam que é possível “secar” a doença. Um desconhecimento que tem custado a vida de milhares de crianças. Bibi Gul não lembra mais do que os dois filhos morreram. “Eles apenas morreram”, ela diz.
Veio então Sultan, o amado e respeitado Sultan. Quando Bibi Gul finalmente teve um filho homem que vingou, sua posição na família do marido melhorou muito. O valor de uma noiva está no hímen, o valor de uma esposa está em quantos filhos homens ela põe no mundo.”


“Os líderes guerreiros em combate também ganharam lugar no palanque, Atta Muhammad e o general Abdul Rashid Dostum. O tadjique Atta Muhammad é quem governa a cidade, o uzbeque Dostum é quem pensa que devia estar governando. Os dois inimigos ferrenhos estão lado a lado ouvindo os discursos. Atta Muhammad de barba no estilo talibã. Dostum, corpulento como um boxeador precocemente aposentado. Eles se aliaram a contragosto durante a última ofensiva contra o Talibã. Agora há novamente uma barreira hostil entre eles. Dostum é o mais mal-afamado membro do novo governo e foi incorporado unicamente para que não caísse na tentação de sabotá-lo. O homem que agora pisca contra o sol, com as mãos pacificamente cruzadas diante do corpo volumoso, é um dos afegãos a respeito de quem correm histórias das mais cruéis. Como punição por uma ofensa podia amarrar seus soldados a um tanque de guerra e pô-lo em movimento, até os corpos virarem trapos sangrentos. Numa ocasião, milhares de soldados talibãs foram levados ao deserto e colocados em contêineres, que foram trancados e abandonados. Quando foram abertos dias depois, os prisioneiros estavam mortos e carbonizados pelo calor ardente. Dostum também é conhecido como um mestre na traição, já serviu a diversos líderes e traiu a todos. Lutou ao lado dos russos quando estes atacaram, dizia-se ateu e um grande bebedor de vodca. Hoje mostra-se reverente a Alá e prega o pacifismo.”

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