quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Os Fundamentos da Liberdade (Parte II) – Friedrich A. Hayek

Editora: Visão
Tradução: Anna Maria Capovilla e José Ítalo Stelle
Opinião: ★☆☆☆☆
Páginas: 522
Sinopse: Ver Parte I



“A coerção ocorre quando um indivíduo é obrigado a colocar suas ações a serviço da vontade de outro, não para alcançar seus próprios objetivos mas para buscar os da pessoa a quem serve. Não que o coagido não tenha nenhuma escolha; se fosse assim, não poderíamos falar em “ação” de sua parte. Se alguém, pela força física, conduz minha mão a assinar meu nome ou força meu dedo a pressionar o gatilho de uma arma, não sou eu que estou agindo. Tal violência, que faz de meu corpo o instrumento físico de outra pessoa, evidentemente é tão execrável quanto a coerção propriamente dita e deve ser impedida pelas mesmas razões. A coerção, todavia, implica ainda a existência de uma escolha de minha parte, embora minha mente se tenha transformado em mero instrumento da ação de outrem, pois as alternativas de que disponho foram tão manipuladas, que a conduta que o coator quer que eu adote se torna para mim a menos dolorosa.204 Apesar de coagido, sou ainda eu que decido qual o mal menor, dadas as circunstâncias.  (...)
A coerção implica não só a ameaça de infligir um mal como, também, a intenção de provocar com isso certa conduta.
Embora o coagido ainda possa escolher, as alternativas são-lhe impostas pelo coator de modo que ele escolha o que este pretende. Ele não é totalmente privado do uso de suas faculdades mentais, mas é privado da possibilidade de utilizar seus conhecimentos para alcançar seus próprios objetivos. O uso eficaz da inteligência e dos conhecimentos de um indivíduo na busca de seus próprios fins exige que ele tenha a possibilidade de prever certas condições de seu ambiente e de se ater a um plano de ação. A maioria dos objetivos humanos só pode ser alcançada por uma cadeia de ações interligadas, estabelecidas como um todo coerente e baseadas no pressuposto de que os fatos serão aquilo que se espera que sejam. Somente conseguimos realizar algo porque, e na medida em que, podemos prever os eventos ou pelo menos conhecemos as probabilidades. E, embora as circunstâncias físicas sejam muitas vezes imprevisíveis, elas não frustrarão intencionalmente nossos objetivos. Mas, na medida em que os fatos que determinam nossos planos estejam sob controle total de outrem, nossas ações estarão, igualmente, controladas.
A coerção, portanto, é indesejável porque impede o ser humano de utilizar plenamente seus poderes mentais e, consequentemente, de prestar a maior contribuição possível à comunidade. Embora o coagido ainda procure obter o melhor para si em dado momento, o único plano ao qual suas ações obedecem é o determinado pelo coator.”
204: Cf. F. H. Knight, “Conflict of Values: Freedom and Justice”, em Goals of Economic Life, ed. A. Dudley Ward (Nova Iorque, 1953), página 208: “A coerção é a manipulação ‘arbitrária’ exercida por uma pessoa em relação às condições ou às alternativas de escolha de outra pessoa – e deveríamos, normalmente, chamá-la interferência ‘injustificada’”. Ver também R. M. Mclver, Society: A Textbook of Sociology (Nova Iorque, 1937), página 342.


“A moralidade da ação praticada dentro da esfera privada de um indivíduo não pode constituir objeto de controle coercitivo do Estado. Talvez uma das mais importantes características que distinguem uma sociedade livre de uma não livre seja o fato de que, em questões de conduta que não afetam diretamente a esfera protegida do indivíduo, as normas realmente observadas pela maioria dos indivíduos são de caráter voluntário e não impostas pela coerção. A recente observação do que ocorre em regimes totalitários demonstra a importância do princípio que diz: “nunca [devemos] identificar a causa dos valores morais com a causa do Estado”.224 De fato, é provável que muito mais dano e sofrimento tenham sido causados por indivíduos que se propuseram utilizar a coerção para erradicar um mal moral do que por outros que tencionavam realmente fazer o mal.”
224: A frase foi atribuída a Ignazio Silone. (...)


“Ordem não é uma pressão exercida sobre a sociedade de fora para dentro, mas um equilíbrio gerado em seu interior.” (J. Ortega y Gasset – Mirabeau o elpolítico )


“A importância de um sistema no qual toda ação coercitiva do governo se restringe à aplicação de normas gerais abstratas é frequentemente citada nas palavras de um dos grandes historiadores do direito: “A evolução das sociedades progressistas tem sido, até o momento, a evolução de uma sociedade de ‘status’ para uma sociedade de contrato'”.235 A concepção de status, a posição predeterminada que cada indivíduo ocupa na sociedade, corresponde, de fato, a um estado no qual as normas não são totalmente gerais, mas distinguem grupos ou indivíduos particulares, conferindo-lhes direitos e deveres específicos. A ênfase dada a contrato em contraposição a status é, entretanto, de certa forma enganadora, na medida em que distingue apenas um, embora o mais importante, dos instrumentos que a lei oferece ao indivíduo para que este possa determinar sua posição. O que realmente se contrapõe ao império do status é o império das leis gerais e aplicáveis igualmente a todos, ou, como poderíamos dizer, a supremacia das leges, no sentido original da palavra latina correspondente a leis - ou seja, em contraposição a privi-leges.
A exigência de que as normas da verdadeira lei sejam gerais não significa que, em certas ocasiões, normas especiais não se apliquem a diferentes classes de indivíduos, quando se referem a certas propriedades que somente alguns possuem. Podem existir leis que se aplicam somente a mulheres, cegos ou mesmo pessoas acima de determinada idade (em muitos desses casos sequer é necessário indicar a classe de indivíduos aos quais a lei se aplica: somente uma mulher, por exemplo, pode ser estuprada ou engravidar). Essas distinções não serão arbitrárias, nem sujeitarão um grupo à vontade de outros, se forem reconhecidas como justificadas tanto pelos indivíduos pertencentes ao grupo quanto por aqueles que não pertencem a ele. Isto não significa que deva existir unanimidade quanto à conveniência da distinção, mas apenas que as opiniões individuais não dependerão do fato de o indivíduo pertencer ou não ao grupo. Na medida em que, por exemplo, a distinção é apoiada pela maioria dentro e fora do grupo, quase certamente ela servirá aos objetivos de ambas. Quando, porém, a distinção é apoiada somente por aqueles que fazem parte do grupo, trata-se evidentemente de privilégio; ao passo que, se for apoiada só por aqueles que estão fora do grupo, tratar-se-á de discriminação *. Aquilo que é privilégio para alguns sempre será, obviamente, discriminação para os outros.
235: Sir Henry Maine, Ancient Law (Londres, 1861), página 151. Cf. R. H. Graveson, “The Movement from Status to Contract”, Modern Law Review, Vol. IV (1940-41).
* N. T.: No sentido de ação discriminatória positiva.


“A finalidade da lei não é abolir ou restringir, mas preservar e ampliar a liberdade. Porque onde não há lei não há liberdade, como se vê nas sociedades em que existem seres humanos capazes de fazer leis. Pois liberdade significa estar livre de coerção e da violência dos outros, o que não pode ocorrer onde não há lei; e não significa, como dizem alguns, liberdade de cada um fazer o que lhe apraz (pois quem poderia ser livre se estivesse sujeito aos humores de algum outro?), mas liberdade de dispor a seu bel-prazer de sua pessoa, suas ações, bens e todas as suas propriedades com a limitação apenas das leis às quais está sujeito. Significa, portanto, não ser o escravo da vontade arbitrária de outro, mas seguir livremente sua própria.”
(John Locke – Second Treatrise, Sec. 57, página 29)


“Os homens que se pautaram pelos ideais da Revolução Francesa não conseguiram aprender os princípios tradicionais da liberdade venerados na Inglaterra, como claramente mostra um dos primeiros apóstolos da Revolução naquele país, o Dr. Richard Price. Já em 1778, ele argumentava que “a liberdade é definida de forma demasiado imperfeita quando se diz que ela é ‘o governo de leis e não o governo de homens'. Se as leis são feitas por um homem ou por uma facção dentro de um Estado e não pelo consenso comum, esse governo não é diferente da escravidão”.348
348: Richard Price, Two Tracts on Civil Liberty, etc, (Londres, 1778), página 7.


“Os homens, na busca de objetivos imediatos, estão mais ou menos inclinados, ou mesmo obrigados, pelas limitações de seu intelecto, a violar normas de conduta, que não obstante gostariam de ver observadas por todos. Dada a capacidade limitada de nossa inteligência, nossos objetivos imediatos sempre parecerão muito importantes e tenderemos a sacrificar a eles vantagens futuras. Tanto na conduta social como na individual, podemos, portanto, alcançar certo grau de racionalidade ou coerência ao tomar determinadas decisões somente se obedecermos a princípios gerais, independentemente de necessidades momentâneas. Assim como qualquer outra atividade humana, a legislação não poderá prescindir da orientação oferecida por certos princípios se pretender levar em conta as consequências globais.”


“Como as forças que regem a mente do indivíduo, as que contribuem para o estabelecimento da ordem social operam em diversos níveis; e as próprias constituições baseiam-se em um consenso básico (ou o pressupõem) em torno de princípios mais fundamentais, que podem não haver sido nunca expressados explicitamente e no entanto precedem e tornam possível este consenso e as leis fundamentais escritas. Não devemos crer que, pelo fato de termos aprendido a fazer leis, todas as leis devam ser produto deliberado de algum organismo. O que ocorre, ao contrário, é que um grupo de indivíduos pode formar uma sociedade capaz de elaborar leis, porque seus membros já compartilham de princípios comuns que possibilitam o debate e a persuasão, aos quais as normas expressas devem adaptar-se para que possam ser aceitas como legítimas.369
Segue-se que nenhum indivíduo ou grupo de indivíduos tem completa liberdade de impor aos demais toda lei que lhe convier. O princípio contrário, sobre o qual assenta o conceito da soberania de Hobbes,370 bem como o positivismo legal que dele deriva, decorre de um falso racionalismo que concebe uma razão autônoma e autodeterminante e despreza o fato de que todo pensamento racional se move dentro de um arcabouço de princípios e instituições não racionais. Constitucionalismo significa que todo poder se fundamenta no pressuposto de que será exercido de acordo com princípios aceitos por todos e de que as pessoas às quais esses poderes são conferidos são escolhidas por se acreditar que provavelmente farão o que é justo, e não porque tudo que elas fizerem será necessariamente justo. Em última instância, o constitucionalismo repousa no pressuposto de. que o poder não é um fato físico, mas um clima de opinião que faz com que as pessoas obedeçam.371
369: Sobre a concepção de legitimidade, cf. G. Ferrero, The Principies of Power (Londres, 1942).
370: Isto não se aplica ao conceito original de soberania, tal como foi introduzido por Jean Bodin. Cf. C. H. Mcllwain, Constitutionalism and the Changing World, Cap. II.
371: Como salientaram D. Hume e um vasto número de teóricos até o completo desenvolvimento da ideia em F. Wieser, Das Gesetz der Macht (Viena, 1926).


“Como pode haver limites definidos ao poder supremo, se ele visa a uma felicidade geral indefinida, sempre sujeita à sua interpretação? Deverão os príncipes ser considerados os pais do povo, mesmo que seja grande o risco de se tornarem também seus déspotas?”
(G. H.von Berg, Handbuch des teutschen Policeyrechtes – Hannover, 1799-1804), II, p. 3.)


“O que não se admite não é a empresa estatal em si, mas o monopólio estatal.”


“É pura ilusão pensar que, quando certas necessidades do cidadão são controladas exclusivamente por uma única máquina burocrática, a fiscalização democrática dessa máquina possa então salvaguardar eficazmente a liberdade do cidadão.”


“Na verdade, longe de constituir uma calamidade pública, seria extremamente desejável que os trabalhadores não achassem necessário formar sindicatos.”


“É bastante questionável a existência de um sistema único de seguro estatal; e parece ser extremamente desaconselhável um serviço médico gratuito para todos. (...)
A ideia de um serviço médico gratuito costuma basear-se em duas premissas fundamentalmente errôneas. Primeiro, o pressuposto de que os problemas de saúde são em geral objetivamente verificáveis e de natureza tal que podem e devem ser totalmente atendidos em todos os casos, não importando considerações de ordem econômica; segundo, que tal atendimento é economicamente viável porque um bom serviço médico normalmente resulta numa restauração da eficiência econômica ou da capacidade de trabalho, compensando assim seus próprios custos. Ambos os pressupostos interpretam erradamente a natureza desse problema na maioria das decisões concernentes à preservação da saúde e da vida. Não existe um padrão objetivo para se julgar em que medida um caso determinado exige cuidados médicos; por outro lado, com o avanço da medicina, torna-se cada vez mais claro que não há limite para a quantia que se poderia investir a fim de tomar todas as medidas objetivamente possíveis. Além disso, tampouco é verdade que, em nossa avaliação individual, tudo que ainda possa ser feito para garantir a saúde e a vida tenha absoluta prioridade sobre outras necessidades. Como em todas as outras decisões nas quais temos de levar em conta não certezas, mas probabilidades e eventualidades, constantemente corremos riscos e tomamos nossas resoluções com base em argumentos de ordem econômica no que diz respeito à validade de determinada medida, ou seja, pesando os riscos em relação a outras necessidades. Nem o mais rico dos homens recorreria normalmente a todos os meios que a medicina põe à sua disposição para preservar sua saúde, talvez porque outras preocupações disputam seu tempo e energia. Alguém terá sempre de decidir sobre a necessidade de um maior esforço e um emprego adicional de recursos. A verdadeira questão é se o indivíduo poderá decidir, obtendo, com um maior sacrifício, atendimento médico adicional, ou se essa decisão será tomada, em seu lugar, por outra pessoa. Embora não nos agrade a necessidade de pesar valores imateriais, como saúde e vida, em relação a vantagens materiais, e desejássemos que tal escolha fosse desnecessária, todos temos, entretanto, de fazê-la por força de fatos que não podemos alterar. (...)
Pode parecer cruel, mas provavelmente é do interesse de todos que, num sistema gratuito, os que gozam de plena capacidade de trabalho sejam frequentemente curados com mais rapidez de uma enfermidade temporária e não grave, em detrimento dos idosos e dos que sofrem de doenças sem cura.”


“Há outro problema que assumiu sérias proporções em alguns países europeus e do qual não nos devemos esquecer: o número excessivo de intelectuais em relação ao número de empregos. Poucas ameaças à estabilidade política são tão graves quanto a existência de uma intelectualidade proletarizada que não encontra meios de utilizar seu conhecimento.
O problema geral com que nos defrontamos em relação à educação superior é, portanto, o seguinte: certos jovens devem ser selecionados, segundo algum critério, numa idade em que não se pode saber ao certo quem tirará maior proveito, para receber uma educação que lhes permitirá obter renda maior que os outros; e, para justificar o investimento, eles devem ser selecionados de forma que, em geral, façam jus a uma renda maior. Finalmente, temos de aceitar o fato de que, como normalmente outras pessoas precisarão pagar pela educação, os que dela se beneficiam estarão usufruindo de uma vantagem “imerecida”.”


“Por mais louváveis que sejam os motivos das pessoas que desejam, por amor à justiça, que todos comecem a partir do mesmo patamar, esse ideal é literalmente impossível de se atingir. Além disso, pensar que ele foi realizado, mesmo parcialmente, só pode tomar a situação pior para os menos dotados. Embora seja plenamente justificável a eliminação de todos os obstáculos artificiais que as instituições existentes podem colocar no caminho de algumas pessoas, não é possível nem desejável compelir todos a começar no mesmo patamar, pois isto só pode ocorrer se privarmos algumas pessoas das possibilidades que não podem ser proporcionadas a todos. Embora queiramos que as oportunidades de todos sejam as maiores possíveis, certamente reduziríamos as da maioria se impedíssemos que elas fossem maiores que as dos menos dotados. Afirmar que todos os que vivem na mesma época em determinado país devem começar a partir do mesmo ponto é tão incompatível com uma civilização em desenvolvimento quanto afirmar que este tipo de igualdade deve ser garantido a pessoas que vivem em épocas e lugares diferentes.”


“Tudo que torna um indivíduo diferente do outro, em função de dons naturais ou de oportunidades, cria vantagens “injustas”. Mas, como a principal contribuição de qualquer indivíduo consiste em fazer o melhor uso dos acidentes com os quais se depara, o sucesso, em grande parte, será uma questão de sorte.”


“Direi agora o que considero a objeção decisiva ao verdadeiro conservadorismo: por sua própria natureza, o conservadorismo não pode oferecer uma alternativa ao caminho que estamos seguindo. Por resistir às tendências atuais poderá frear desdobramentos indesejáveis, mas, como não indica outro caminho, não pode impedir sua evolução. Por esta razão, o destino do conservadorismo tem sido invariavelmente deixar-se arrastar por um caminho que não escolheu. A luta pela supremacia entre conservadores e progressistas só afeta o ritmo, não o rumo dos acontecimentos contemporâneos, mas, embora seja necessário “frear o curso do progresso”, pessoalmente não posso limitar-me a ajudar a puxar o freio. Antes de mais nada, os liberais devem perguntar não a que velocidade estamos avançando, nem até onde iremos, mas para onde iremos.”


“Com isso, chegamos ao primeiro ponto no qual as atitudes liberais e conservadoras diferem radicalmente. Como muitas vezes os escritores conservadores reconheceram, uma das principais características da atitude conservadora é o medo da mudança, uma desconfiança tímida em relação ao novo enquanto tal,813 ao passo que a posição liberal se baseia na coragem e na confiança, na disposição de permitir que as transformações sigam seu curso, mesmo quando não podemos prever aonde nos levarão. Não haveria por que contestar os conservadores se eles simplesmente não gostassem de mudanças muito rápidas nas instituições e na política de governo; de fato, neste caso, justifica-se o cuidado e o lento progresso. Mas os conservadores tendem a utilizar os poderes do governo para impedir as mudanças ou limitar seu âmbito àquilo que agrada às mentes mais tímidas. Ao contemplar o futuro, carecem de fé nas forças espontâneas de ajustamento, que levam os liberais a aceitar mudanças sem apreensão, mesmo sem saber como as adaptações necessárias se efetivarão. Com efeito, faz parte da atitude liberal supor que, especialmente no campo econômico, as forças auto-reguladoras do mercado de alguma maneira gerarão os necessários ajustamentos às novas condições, embora ninguém possa prever como farão isso no caso particular. Talvez não exista um fator que contribui mais para as pessoas frequentemente se mostrarem relutantes em deixar que o mercado funcione do que sua incapacidade de conceber como, sem controle deliberado, pode surgir o equilíbrio necessário entre a oferta e a procura, entre as importações e as exportações, e assim por diante. O conservador só se sente seguro e satisfeito quando tem a garantia de que alguma sabedoria superior observa e supervisiona as mudanças, somente quando sabe que há uma autoridade encarregada de verificar que elas se deem dentro da “ordem”.
Esse temor em confiar em forças sociais incontroladas está intimamente ligado a duas outras características do conservadorismo: sua paixão pela autoridade e sua falta de compreensão das forças econômicas. Como não confia nem em teorias abstratas nem em princípios gerais, não compreende as forças espontâneas nas quais se baseia uma política de liberdade nem dispõe de bases para formular princípios de política de governo. Para os conservadores, a ordem aparece como o resultado da atenção contínua da autoridade, à qual, para tanto, se deve permitir tomar qualquer medida necessária em circunstâncias específicas, sem que precise ater-se a uma norma rígida. A aceitação de princípios pressupõe uma compreensão das forças gerais que coordenam as ações humanas na sociedade; porém, é exatamente de tal teoria da sociedade e em especial da teoria do mecanismo econômico que o conservadorismo evidentemente carece. O conservadorismo foi completamente incapaz de elaborar um conceito geral sobre a maneira pela qual a ordem social consegue sustentar-se, e seus modernos defensores, ao tentar construir uma base teórica, quase sempre acabaram apelando quase exclusivamente para autores que se consideravam liberais.”
813: Ver Lord Hugh Cecil, Conservatism (“Home University Library” [Londres, 1912]), página 9: “O conservadorismo natural... é uma atitude contrária à mudança, que decorre em parte de certa desconfiança em relação ao desconhecido”.
814: Ver a reveladora descrição que o conservador K. Feilling faz de si mesmo em Sketches in Nineteenth Century Biography (Londres, 1930), página 174: “A direita, como um todo, tem horror a ideias, pois não é o homem prático, nas palavras de Disraeli, ‘aquele que põe em uso os erros de seus predecessores’? Por longos períodos de sua história, os direitistas indiscriminadamente resistiram a todos os avanços e, ao reclamar o respeito pelos antepassados, muitas vezes costumam reduzir a opinião ao preconceito individual do passado. Sua posição se tornará ainda mais fácil de ser defendida, porém mais complexa, se acrescentarmos que esta direita domina incessantemente a esquerda; que ela vive da constante inoculação de ideias liberais e desta forma sofre as consequências de uma situação de compromisso que nunca chega a ser definida.”


“Em termos gerais, poderíamos afirmar que o conservador não se opõe à coerção ou ao poder arbitrário, desde que utilizados para os fins que ele julga válidos. Ele acredita que, se o governo for confiado a homens probos, não deve ser limitado por normas demasiado rígidas. Como se trata de indivíduo essencialmente oportunista e desprovido de princípios, ele espera que os bons e os sábios governem, não meramente pelo exemplo, como todos queremos, mas por uma autoridade a eles conferida e por eles exercida. Como o socialista, o conservador preocupa-se menos com o problema de como deveriam ser limitados os poderes do governo do que com o de quem irá exercê-los; e, como o socialista, também se acha no direito de impor às outras pessoas os valores nos quais acredita. Quando digo que o conservador carece de princípios, não quero com isso afirmar que ele careça de convicção moral. O conservador típico é, de fato, geralmente um homem de convicções morais muito fortes. O que quero dizer é que ele não tem princípios políticos que lhe permitam promover, junto com pessoas cujos valores morais divergem dos seus, uma ordem política na qual todos possam seguir suas convicções. É o reconhecimento desses princípios que possibilita a coexistência de diferentes sistemas de valores, a qual, por sua vez, permite construir uma sociedade pacífica, com um emprego mínimo da força. Sua aceitação significa que podemos tolerar muitas situações com as quais não concordamos. Há muitos valores conservadores que me atraem mais do que muitos valores socialistas, porém a importância que um liberal atribui a objetivos específicos não lhe serve de justificativa suficiente para obrigar outros a submeter-se a eles.”


“Para conviver com os outros é preciso muito mais do que fidelidade aos nossos objetivos concretos. É necessário um comprometimento intelectual com um tipo de ordem em que, até nas questões que um indivíduo considera fundamentais, os demais têm o direito de buscar objetivos diferentes.815 É por esse motivo que para o liberal os ideais morais, bem como os ideais religiosos, não podem ser objeto de coerção, enquanto conservadores e socialistas não reconhecem esses limites. Às vezes, penso que o atributo mais marcante do liberalismo, que o distingue tanto do conservadorismo quanto do socialismo, é a ideia de que convicções morais quanto a questões de conduta que não interferem diretamente com a esfera individual protegida pela lei não justificam a coerção dos demais. Isso também pode explicar por que parece muito mais fácil para o socialista arrependido encontrar um novo lar espiritual entre os conservadores do que entre os liberais. Em última análise, a posição conservadora baseia-se no princípio de que, em qualquer sociedade, há indivíduos reconhecidamente superiores, cujos valores, padrões e posições, sua herança espiritual, precisariam ser protegidos, e que deveriam exercer maior influência nos assuntos públicos do que os demais. Obviamente, o liberal não nega que existam pessoas superiores; ele não é um defensor do igualitarismo. O que ele nega é que qualquer um possa ter a autoridade de decidir quem são essas pessoas superiores. Enquanto os conservadores tendem a defender uma determinada hierarquia estabelecida e pretendem que a autoridade proteja o status daqueles que eles prezam, os liberais acreditam que não haja respeito por valores estabelecidos que justifique o recurso ao privilégio ou ao monopólio ou a qualquer poder coercitivo do Estado para proteger estas pessoas das forças da transformação econômica. Embora o liberal esteja plenamente cônscio do importante papel que as elites culturais e intelectuais representaram no avanço da civilização, também crê que essas elites devem dar provas da capacidade de manter sua posição obedecendo às mesmas normas aplicadas a todos os outros.”
815 Espero que me desculpem por estar repetindo aqui as palavras com as quais, em outra situação, defini uma importante questão: “O principal mérito do individualismo que [Adam Smith] e seus contemporâneos defenderam é aquele de constituir um sistema no qual os homens maus podem ocasionar um mínimo de prejuízo. Trata-se de um sistema social que não depende para seu funcionamento de encontrarmos bons homens para dirigi-lo, nem de que todos os homens se tomem melhores do que são, mas de um sistema que utiliza homens em toda a sua variedade e complexidade, algumas vezes bons e algumas vezes maus, algumas vezes inteligentes e muitas vezes imbecis” (Individualism and Economic Order [Londres e Chicago, 1948], página 11).


“Ao contrário do liberalismo e sua convicção fundamental no poder das ideias, o conservadorismo pauta seu comportamento pelo conjunto de ideias herdadas em dado momento. E, como realmente não acredita no poder do debate, seu último recurso é, em geral, alegar uma sabedoria superior, fundamentada em uma virtude elevada que ele próprio se atribui.
Este contraste se manifesta mais claramente nas diferentes atitudes de ambas as tradições em relação ao avanço do conhecimento. Embora o liberal não considere toda mudança um progresso, ele encara o avanço do conhecimento como uma das metas principais do esforço humano e confia em que lhe proporcione uma solução gradual para os problemas e dificuldades que esperamos poder resolver. Sem preferir o novo apenas por ser novo, o liberal está consciente de que é da essência da realização humana produzir o novo; e está preparado para conviver com o novo conhecimento, goste ou não de seus efeitos imediatos.
Pessoalmente, acho que o aspecto mais reprovável da atitude conservadora é sua tendência a rejeitar novos conhecimentos, ainda que bem fundamentados, porque desaprova algumas das consequências que aparentemente decorrem deles – ou, mais francamente, seu obscurantismo. Não nego que os cientistas, como qualquer pessoa, são dados a modismos e excentricidades e que devemos ser cautelosos em aceitar as conclusões às quais os levam suas teorias mais recentes. Mas os motivos de nossa relutância precisam ser racionais e não devem ser condicionados pela consternação que sentimos quando as novas teorias abalam nossas mais caras convicções. Sou pouco paciente com os que se opõem, por exemplo, à teoria da evolução ou às chamadas explicações “mecanicistas” dos fenômenos da vida, simplesmente por causa de algumas consequências morais que, a princípio, parecem decorrer dessas teorias, e ainda menos paciente com os que consideram irreverente e ímpio indagar a respeito de certas questões. Ao recusar-se a enfrentar os fatos, o conservador contribui para enfraquecer sua própria posição. Frequentemente, as conclusões que a mentalidade racionalista tira das novas interpretações científicas de modo algum decorrem delas. Contudo, somente se tomarmos parte da avaliação das consequências das novas descobertas saberemos se elas se adaptam ou não à nossa visão de mundo, e, em caso afirmativo, como se adaptam. Caso se comprove que nossas convicções morais dependem de pressupostos factuais errados, não seria moral defender tais convicções recusando-nos a reconhecer os fatos.
Aliada à desconfiança dos conservadores em relação a tudo que é novo e incomum está sua hostilidade ao internacionalismo e sua tendência a um nacionalismo exagerado. Isto também contribui para enfraquecer sua posição na luta das ideias, e não pode alterar o fato de as concepções que estão modificando nossa civilização não respeitarem fronteiras. Entretanto, a recusa de estudar novas ideias acaba simplesmente privando o indivíduo do poder de opor-se efetivamente a elas quando necessário.”


“Num mundo em que a necessidade básica se tomou, como no início do século XIX, libertar o processo de crescimento espontâneo dos obstáculos e das dificuldades criados pela insensatez humana, as esperanças do filósofo político devem concentrar-se na persuasão e na obtenção do apoio daqueles que por natureza são “progressistas”, aqueles que, embora atualmente busquem mudanças na direção errada, pelo menos estão dispostos a examinar criticamente o que existe e a modificá-lo sempre que necessário.”


“A tarefa do filósofo político é influenciar a opinião pública e não organizar o povo para a ação. E ele terá êxito somente se não se voltar para aquilo que é politicamente possível agora, mas defender com firmeza “os princípios gerais duradouros”.”

Os Fundamentos da Liberdade (Parte I) – Friedrich A. Hayek

Editora: Visão
Tradução: Anna Maria Capovilla e José Ítalo Stelle
Opinião: ★☆☆☆☆
Páginas: 522
Sinopse: Este livro é uma daquelas obras notáveis que se pode ler começando da primeira página ou que pode ser compulsada como se faz com um bom dicionário ou com a própria Bíblia, abrindo-se para lê-la em qualquer parte. O título do original em inglês, The Constitution of Liberty, poderia ser literalmente traduzido para o português como A Constituição da Liberdade ou então como Os Fundamentos da Liberdade.



“As obras de Hayek, principalmente as que se referem à filosofia política, constituem essencialmente um só bloco de grande coerência conceitual. Elas apresentam, de forma honesta, bem temperada, penetrante e abrangente, quatro propostas básicas.
Em primeiro lugar, que as instituições que constituem a base da sociedade brotam da ação humana, mas não dos planos ou da ação deliberada dos homens; e portanto as tentativas de planejamento ou ‘organização’ da sociedade são fatais para seu sucesso.
Em segundo lugar, que numa sociedade livre a lei é fundamentalmente natural, não é fabricada; de modo que, normalmente, ela não constitui a projeção da simples vontade dos governantes, sejam eles reis ou maiorias democráticas. A lei é uma norma geral de conduta, igual para todos e aplicável a número desconhecido de casos futuros, abstraídos, portanto, de quaisquer circunstâncias específicas de tempo e de lugar e referindo-se apenas a condições que possam ocorrer em qualquer lugar ou a qualquer tempo.
Em terceiro lugar, que o Estado de Direito não somente constitui o primeiro e mais importante princípio da sociedade livre, mas também depende das duas condições acima citadas. O Estado de Direito é não só um ‘estado de legalidade’, mas, muito mais que isso, pressupõe o princípio da liberdade individual e exige que a lei possua esses atributos de norma geral, igual para todos, abstrata e prospectiva.
Em quarto lugar, que o Estado de Direito exige que os homens sejam tratados com igualdade, mas o Estado de Direito, além de não exigir que os homens sejam igualados, também será minado por qualquer tentativa neste sentido.”
(Henry Maksoud)


“Mais do que outros especialistas, o economista sabe que a mente humana não consegue apreender todo o conhecimento que orienta as ações da sociedade e está consciente, portanto, da consequente necessidade de um mecanismo impessoal, independente de julgamentos humanos individuais, que coordene os esforços de cada um.”


“É certo que ser livre pode significar liberdade de morrer de fome, de cometer erros que redundarão em perdas ou, ainda, de correr riscos mortais. No sentido em que empregamos a palavra, o mendigo sem vintém que leva uma vida precária, baseada na constante improvisação, é, realmente, mais livre que o conscrito com toda sua segurança e relativo conforto.”


“Poder-se-ia dizer que a civilização começa quando o indivíduo, na busca de seus objetivos, utiliza um volume de conhecimentos muito maior do que o adquirido por ele próprio, podendo transcender os limites de sua ignorância recorrendo a um conhecimento que não possui.”


“O funcionamento do processo exige que cada indivíduo possa agir conforme seu conhecimento pessoal, sempre inimitável, pelo menos no que se refere a certas circunstâncias específicas, e que seja capaz de utilizar suas aptidões e oportunidades, dentro dos limites que conhece e visando a seus próprios objetivos individuais.”


“O homem aprende pela frustração de suas esperanças. É óbvio que não devemos aumentar a imprevisibilidade dos acontecimentos com a criação de tolas instituições humanas. Na medida do possível, deveríamos eleger como objetivo a melhoria das instituições humanas, a fim de aumentar as possibilidades de previsão correta. Todavia, acima de tudo, deveríamos proporcionar o máximo de oportunidades para que indivíduos que não conhecemos aprendessem fatos que nós mesmos ainda desconhecemos e utilizassem este conhecimento em suas ações.
É graças aos esforços harmônicos de muitas pessoas que se pode utilizar uma quantidade de conhecimento maior do que aquela que um indivíduo isolado pode acumular ou do que seria possível sintetizar intelectualmente. E graças a essa utilização do conhecimento disperso é que se tornam possíveis realizações superiores às que uma mente isolada poderia prever. É justamente porque liberdade significa renúncia ao controle direto dos esforços individuais que uma sociedade livre pode fazer uso de um volume muito maior de conhecimentos do que aquele que a mente do mais sábio governante poderia abranger.”


“A liberdade utilizada apenas por um homem entre um milhão pode ser mais importante para a sociedade e mais benéfica para a maioria do que qualquer grau de liberdade que todos nós poderíamos desfrutar.”


“É absurda a ideia de que nosso conhecimento nos permite deduzir leis necessárias de evolução às quais deveríamos obedecer. A razão humana não pode predizer nem moldar seu próprio futuro. Suas conquistas consistem em descobrir seus erros.”


“Das convenções e costumes inerentes às relações humanas, as normas morais são as mais importantes, mas não representam absolutamente os únicos elementos significativos. Conseguimos comunicar-nos e relacionar-nos uns com os outros, somos capazes de executar nossos planos com êxito, porque, quase sempre, os membros de nossa civilização se atêm a padrões inconscientes de conduta e mostram em suas ações uma regularidade que não é resultado de ordens ou coerção – frequentemente, nem mesmo de observância consciente a normas conhecidas – mas de hábitos e tradições firmemente arraigados. A observância geral de tais convenções é condição necessária para a ordem do mundo em que vivemos, para que possamos encontrar nosso caminho, embora não nos demos conta de sua importância e talvez nem estejamos conscientes de sua existência. Em alguns casos, seria necessário, para o bom funcionamento da sociedade, garantir uma uniformidade semelhante por meio da coerção, sempre que tais convenções e regras não fossem obedecidas com a frequência adequada. Às vezes, a coerção pode, então, ser evitada apenas porque existe um alto grau de conformidade voluntária, o que significa que a conformidade voluntária pode ser uma condição para que a liberdade possa produzir resultados benéficos.”


“Uma sociedade que não reconhece a cada indivíduo valores próprios pelos quais ele tem o direito de se pautar não terá nenhum respeito pela dignidade do indivíduo e realmente não sabe o que é liberdade. Mas também não é menos verdade que em uma sociedade livre um indivíduo será respeitado de acordo com o uso que ele fizer de sua liberdade. O apreço moral não teria sentido se não houvesse liberdade: “Se cada ação, boa ou má, de um homem maduro, dependesse da permissão, da prescrição e da coerção, o que seria a virtude senão uma palavra, que elogio caberia à boa ação, que honra haveria em ser sensato, justo, ou continente?”146 Liberdade é uma oportunidade de fazer o bem, mas isso só ocorre quando também é uma oportunidade de fazer o mal. Uma sociedade livre se tornará viável somente se os indivíduos se deixarem, de alguma maneira, pautar por valores comuns. É, talvez, por isso que os filósofos definiram algumas vezes a liberdade como ação em conformidade com normas morais. Mas essa definição de liberdade é a negação daquela liberdade de que estamos tratando. A liberdade de ação que é condição do mérito moral inclui a liberdade de errar: elogiamos ou criticamos o indivíduo somente quando ele tem a possibilidade de escolher, quando ele cumpre as normas por ser exortado e não compelido a fazê-lo.”
146: John Milton, Areopagitica (Edições “Everyman” [Londres, 1927]), página 18. O conceito pelo qual o mérito moral depende da liberdade já foi assinalado por alguns filósofos escolásticos e posteriormente, de modo especial, pela literatura “clássica” alemã (ver por ex. F. Schiller, On the Aesthetic Education of Man [New Haven: Yale University Press, 1954], página 74: “Para ser capaz de ação, o homem deve ser antes livre”).


“A igualdade estabelecida pelas normas legais e de conduta gerais é, todavia, a única forma de igualdade que conduz à liberdade e a única que podemos obter sem destruir a liberdade. A liberdade não só não tem relação alguma com qualquer outro tipo de igualdade como também tende, em muitos casos, a produzir desigualdade. Isto constitui a consequência necessária e, em parte, a justificativa da liberdade individual; se os efeitos da liberdade individual não demonstrassem que certos modos de vida levam a resultados melhores do que outros, provavelmente seria impossível justificá-la.”


“Não é correto afirmar, no sentido factual, que “todos os homens nascem iguais”. Podemos continuar usando esta frase consagrada para exprimir o ideal de que, de um ponto de vista legal e moral, todos os homens deveriam ser tratados com igualdade. Mas, para compreender o que esse ideal pode ou deve significar, devemos primeiramente libertar-nos da crença em qualquer igualdade factual. (...)
A função da família, que consiste em transmitir modelos e tradições, está estreitamente vinculada à possibilidade de transmitir bens materiais. E é difícil entender como a limitação do progresso material a uma única geração poderia servir aos verdadeiros interesses da sociedade.”


“Seria irracional negar que uma sociedade poderá criar uma elite melhor se a ascensão social não for limitada a uma geração, se os indivíduos não forem obrigados a começar do mesmo patamar e se as crianças não forem privadas da oportunidade de se beneficiar da melhor educação e meios materiais que seus pais lhes possam proporcionar.”


“Num sistema livre não é nem conveniente nem praticável que as recompensas materiais correspondam àquilo que os homens entendem por mérito, e que uma sociedade livre se caracteriza pelo fato de que a posição de um indivíduo não deve depender, necessariamente, da opinião que os outros têm sobre o mérito por ele conquistado.”


“Na medida em que pretendemos que os indivíduos orientem suas ações de acordo com seus próprios pontos de vista no que concerne às suas expectativas e oportunidades, os resultados são necessariamente imprevisíveis e a questão da justeza da consequente distribuição da renda deixa de fazer qualquer sentido.168
168: Ver a interessante análise em R. G. Collingwood, “Economics as a Philosophical Science”, Ethics, Vol. XXXVI (1926), que conclui (página 174): “Um preço justo, um salário justo, uma justa taxa de juro são uma contradição em termos. A ideia de que uma pessoa deve receber determinada quantia em troca de seus bens e trabalho é uma questão totalmente desprovida de significado. As únicas questões realmente válidas são o que ela pode obter em troca de seus bens ou trabalho, e se ela deveria realmente vendê-los”.


“O oposto de democracia é governo autoritário; o de liberalismo é totalitarismo. Nenhum dos dois sistemas exclui necessariamente o oposto do outro: a democracia pode exercer poderes totalitários, e um governo autoritário pode agir com base em princípios liberais.*”
*: Cf também H. Kelsen, “Foundations of Democracy”, Ethics, LXVI (1955), 3: “É importante ter em mente que os princípios da democracia e do liberalismo não são idênticos e que há mesmo certo antagonismo entre os dois”.


“Enquanto o liberalismo é uma das doutrinas referentes ao âmbito de ação e à finalidade do governo entre as quais a democracia tem de escolher, a democracia, por ser um método, não diz respeito aos objetivos do governo. Embora a palavra “democrático” seja frequentemente usada, hoje, para definir determinados objetivos no campo da política que são populares, particularmente certos objetivos igualitários, não existe uma relação necessária entre democracia e uma teoria que diga como devem ser usados os poderes da maioria. Para saber o que queremos que os outros aceitem, precisamos de outros critérios, além da opinião corrente da maioria, que constitui um fator irrelevante no processo de formação da opinião.”


“Há pelo menos dois aspectos em que é quase sempre possível ampliar a democracia: a gama de indivíduos com direito ao voto e a gama de questões decididas por processo democrático. Em nenhum dos dois aspectos pode-se afirmar coerentemente que toda ampliação possível da democracia implica uma conquista, ou que o princípio da democracia exige sua ampliação indefinida.”


“Não se pode dizer que a igualdade perante a lei exige necessariamente que todos os adultos tenham direito de votar; o princípio continuaria vigorando se a mesma norma impessoal fosse aplicada a todos. Se somente as pessoas acima de quarenta anos, ou só os que percebem algum tipo de renda,176 ou só os chefes de família, ou as pessoas com um nível mínimo de escolaridade tivessem direito ao voto, isto não constituiria violação maior do princípio do que as restrições normalmente aceitas.
As pessoas mais sensatas podem também argumentar que seria mais coerente, do ponto de vista do ideal da democracia, se aos funcionários do governo ou a todos os que vivem de subvenções governamentais fosse vedado o voto. Ainda que o sufrágio universal pareça a melhor solução no mundo ocidental, isto não prova que algum princípio básico o imponha. (...)
Estas observações têm por fim exclusivo mostrar como nem o mais dogmático dos democratas pode afirmar que toda e qualquer ampliação da democracia é um bem. Independentemente do peso dos argumentos a favor da democracia, ela não é um valor último, ou absoluto, e deve ser julgada pelo que realizar. Ela constitui provavelmente o melhor método para a consecução de certos fins, mas não é um fim em si mesma. Embora o método democrático de decisão pareça o mais recomendável quando uma ação coletiva é obviamente necessária, a decisão relativa à conveniência ou não de se ampliar o controle coletivo deve ser tomada com base em outros princípios que não os da democracia em si.”
176: É bom lembrar que na mais antiga e mais estável democracia europeia, a Suíça, às mulheres ainda é vedado o voto, aparentemente com a aprovação da maioria delas. Também parece plausível que, em condições primitivas, somente o sufrágio limitado, por exemplo, aos proprietários de terra, permitiria a constituição de um Legislativo suficientemente independente do governo para exercer efetivo controle sobre este.


“Se a democracia é antes um meio do que um fim, seus limites devem ser determinados à luz do propósito ao qual queremos que ela sirva. Há três argumentos principais pelos quais é possível justificar a democracia, podendo-se considerar cada um deles definitivo. O primeiro é que, quando se faz necessário que prevaleça uma entre várias opiniões discordantes, mesmo que se tenha de recorrer à força, sempre causa menos dano determinar qual das opiniões tem maior apoio pela contagem numérica do que pela luta. A democracia é o único método de mudança pacífica que o homem descobriu até hoje.181
O segundo argumento, historicamente o mais importante, e que, apesar das dúvidas acerca de sua atual validade, ainda tem considerável relevância, é que a democracia representa uma valiosa garantia da liberdade individual. Disse um escritor do século XVII que “o melhor aspecto da democracia é a liberdade e a coragem e a capacidade de iniciativa que a liberdade engendra”. 182 Tal concepção reconhece, é claro, que democracia ainda não é liberdade; apenas afirma que é a forma de governo com maior probabilidade de gerar liberdade do que outras. Pode-se considerar este ponto de vista bastante válido quanto à prevenção da coerção exercida por certos indivíduos sobre outros: não é benéfico para a maioria que alguns indivíduos tenham o poder de coagir arbitrariamente. Entretanto, a proteção do indivíduo contra a ação coletiva da própria maioria é outra questão. Mesmo neste caso, pode-se argumentar que, como na realidade o poder coercitivo sempre será exercido por poucos, é menos provável que se abuse dele se o poder delegado a poucos sempre puder ser revogado por aqueles que a ele têm de se submeter. Mas, embora a probabilidade de a liberdade individual sobreviver seja maior em uma democracia do que em outras formas de governo, não quer dizer que esteja automaticamente assegurada. A liberdade só se transformará em realidade se a maioria decidir torná-la seu objetivo. A liberdade dificilmente sobreviveria se confiássemos na mera existência da democracia para preservá-la. O terceiro argumento fundamenta-se na possibilidade de as instituições democráticas promoverem maior entendimento dos assuntos públicos pela população. Este me parece o mais convincente.”
181 Ver J.F. Stephen, Liberty, Equality, Fraternity (Londres, 1873), página 27: “Concordamos em medir forças contando cabeças, e não quebrando cabeças. (...) Não é o lado mais sábio que vence, e sim aquele que, no momento, mostra a superioridade de sua força (e um de seus elementos é, indubitavelmente, a sabedoria) ao conquistar a maior solidariedade. A minoria não cede porque se convence de que está equivocada, mas porque se convence de que é minoria”. Cf. também L. von Mises, Human Action (New Haven: Yale University Press, 1949), página 150: “Para assegurar a paz interna, o liberalismo visa ao governo democrático. A democracia não é, portanto, uma instituição revolucionária; ao contrário, ela é o único meio de impedir as revoluções e guerras civis. Ela oferece um método de ajustamento pacífico do governo à vontade da maioria”. Ver também K. R. Popper, “Prediction and Prophecy and Their Significance for Social Theory”, Proceedings of the 10th International Congress of Philosophy, I (Amsterdam, 1948), especialmente página 90: “Pessoalmente, chamo ao tipo de governo que pode ser destituído, sem se recorrer à violência, ‘democracia’; ao outro, ‘tirania’ ”.
182: Sir John Culpepper, An Exact Collection of All the Remonstrances, etc. (Londres, 1643), página 266.


“Democracia é, acima de tudo, um processo de formação da opinião. Sua principal vantagem não está no método de seleção dos governantes, mas no fato de que, como a maioria dos habitantes toma parte ativa na formação da opinião, consequentemente aqueles podem ser escolhidos entre grande número de pessoas. É possível admitir que a democracia não confia o poder aos mais sábios e mais bem informados e que as decisões de um governo de elite seriam talvez mais benéficas à comunidade; mas não quer dizer que devemos deixar de preferir a democracia. É em seus aspectos dinâmicos, e não em seus aspectos estáticos, que se revela o valor da democracia. Os benefícios da democracia, assim como os da liberdade, só transparecem a longo prazo, e seus resultados imediatos podem até ser inferiores aos de outras formas de governo.”


“A ideia de que a democracia não proporciona apenas um método para a solução das divergências de opinião quanto à linha de ação a ser adotada, mas também um padrão para definir qual será a opinião adotada, já alcançou repercussões de amplas consequências. Em particular, contribuiu para criar graves equívocos em torno do que é uma verdadeira lei e que leis deveremos adotar. Para que a democracia seja viável, dois pontos são igualmente importantes: que o primeiro conceito possa ser sempre averiguado e que o segundo possa sempre ser questionado. As decisões da maioria mostram o que as pessoas querem em dado momento, mas não o que seria seu interesse querer, se estivessem mais bem informadas; e, a menos que pudessem ser modificadas pela persuasão, não teriam nenhum valor. Democracia pressupõe que qualquer opinião minoritária possa tornar-se majoritária.
Nem seria preciso enfatizar esta ideia, se, às vezes, não se apontasse como dever do democrata, e em especial do intelectual democrático, aceitar os pontos de vista e os valores da maioria. Sem dúvida, convencionou-se que os pontos de vista da maioria devem prevalecer em termos de ação coletiva, mas isto não significa, de modo algum, que não se deva fazer todo o esforço para mudá-los. Pode-se ter profundo respeito por essa convenção e, ao mesmo tempo, muito pouco pela sabedoria da maioria. Nossos conhecimentos e compreensão evoluem justamente porque alguns sempre discordam da opinião da maioria. No processo de formação da opinião, é muito provável que, quando uma opinião qualquer se torna majoritária, já não seja a melhor: alguém já estará um passo adiante da posição que a maioria acabou de alcançar.185 É por não sabermos ainda qual das inúmeras opiniões provará ser a melhor que esperamos até uma delas ganhar consenso suficiente.
A ideia de que as realizações de todos devem guiar-se pela opinião da maioria, ou de que a sociedade é melhor ou pior segundo seu grau de conformidade com os padrões majoritários, é, na verdade, o inverso do princípio que tem regido a evolução da civilização. Adotá-la levaria, provavelmente, à estagnação e até à decadência da civilização. O progresso se dá quando a minoria convence a maioria. Antes de tornar-se comuns à maioria, as novas opiniões surgem necessariamente da minoria, pois não há experiência ao nível da sociedade como um todo que não tenha sido antes a experiência de alguns indivíduos. Tampouco o processo de formação da opinião da maioria, basicamente ou em sua totalidade, resulta de discussão, como a concepção ultraintelectualizada daria a entender. É relativamente válido afirmar que democracia é o governo por meio do debate, mas isso só se aplica ao último estágio do processo pelo qual são testados os méritos de posições e tendências alternativas. Embora essencial, o debate não é o processo principal pelo qual o povo aprende. As opiniões e desejos do povo são formados por indivíduos que agem visando a seus próprios objetivos; e o povo se beneficia do que outros aprenderam mediante a experiência individual. A opinião pública não avançará a não ser que alguns indivíduos tenham um conhecimento maior e melhores condições de convencer os demais. É justamente porque, em geral, desconhecemos quem tem um conhecimento maior, que deixamos a decisão a um processo que não controlamos. No entanto, a maioria acaba sempre se aperfeiçoando graças a uma minoria que se comporta de maneira diferente daquela que a maioria prescreveria.”
185 Hoje, a expressão “liberdade civil” parece ser utilizada principalmente em relação aos exercícios de liberdade individual, que são de importância essencial para o funcionamento da democracia, como a liberdade de expressão, de reunião e de imprensa - e, nos Estados Unidos, em particular com referência às oportunidades garantidas pela Declaração de Direitos. O próprio termo “liberdade política” tem sido usado ocasionalmente para definir, em particular em contraposição à expressão “liberdade interior”, não a liberdade coletiva para a qual o empregaremos, mas a liberdade pessoal. Embora, porém, este uso tenha a sanção de Montesquieu, hoje só pode gerar equívocos.


“Se a política é a arte do possível, a filosofia política é a arte de tornar politicamente possível o aparentemente impossível.”
(H. Schoeck, “What Is Meant by ‘Politically Impossible’?”)


“Para o intelectual, dobrar-se a certas convicções só porque são aceitas pela maioria constitui traição, não apenas à sua missão peculiar, mas também aos valores da própria democracia.*”
*:Cf. a observação de A. Marshall (Memorials of Alfred Marshall, ed. por A.C. Pigou [Londres, 1925], página 89) de que “os estudiosos das ciências sociais devem ter receio do apoio popular: infeliz daquele de quem todos falam bem! Se um jornal pode aumentar as vendas por defender certas opiniões, o estudioso que ambiciona tornar o mundo, em geral, e seu país, em particular, melhor do que seria se ele não tivesse nascido, deve apontar fatalmente as limitações, defeitos e erros destas opiniões: e não deve nunca apoiá-las incondicionalmente, nem mesmo em um debate sobre elas. É quase impossível que um estudioso consiga ser um verdadeiro patriota e, ao mesmo tempo, ser respeitado como tal, em sua própria época”.


“A importância do proprietário individual de considerável soma de recursos não está, entretanto, no simples fato de sua existência ser condição essencial para a preservação da estrutura de iniciativas competitivas. O indivíduo que dispõe de recursos próprios é uma figura ainda mais importante para uma sociedade livre quando não se dedica exclusivamente a utilizar seu capital com a intenção de obter ganhos materiais, mas usa-o em favor de objetivos que não trazem retorno material. (...)
A liderança de indivíduos ou grupos que podem dar respaldo financeiro a suas ideias é particularmente essencial no campo da cultura, das artes, da educação e pesquisa, na preservação das belezas naturais e dos tesouros históricos e, acima de tudo, na divulgação de novas ideias políticas, morais e religiosas. Para que as opiniões da minoria possam tornar-se as opiniões da maioria, é necessário não apenas que os homens já detentores de prestígio junto à maioria possam tomar iniciativas, mas também que os representantes de todas as posições e tendências divergentes tenham condições de apoiar, com seus meios e sua energia, ideais ainda não compartilhados pela maioria.
Se porventura não descobríssemos maneira mais apropriada de apoiar financeiramente tais grupos, seria justificável que escolhêssemos, ao acaso, um entre cem ou mil e lhe oferecêssemos os meios para que pudesse perseguir o objetivo que ele se propusesse. Na medida em que gostos e opiniões em geral fossem representados, e todo tipo de interesse tivesse sua oportunidade, isso valeria a pena, ainda que, dessa pequena parcela da população, apenas um em cem, ou em mil, utilizasse a oportunidade de forma que, futuramente, fosse julgada benéfica. Na seleção permitida pelo processo de herança, que em nossa sociedade produz de fato tal situação, há ao menos a vantagem (mesmo que não levemos em conta a probabilidade da transmissão do talento) de aqueles que receberam essa oportunidade especial terem, geralmente, sido educados para isso, num ambiente em que os benefícios materiais da riqueza são um dado corriqueiro e, por isso, deixaram de constituir a fonte principal de satisfação. Os prazeres menos refinados com que os novos-ricos frequentemente se satisfazem não costumam atrair aqueles que herdaram riqueza. Se é válido afirmar que o processo de ascensão social deveria, em alguns casos, estender-se por várias gerações, e se admitimos que algumas pessoas não deveriam precisar dedicar a maior parte de seu tempo e energia ao seu sustento, mas a um objetivo previamente escolhido, então não podemos negar que a herança é, provavelmente, a melhor forma de seleção que conhecemos.
Entretanto, os ricos só podem desempenhar esta função quando a comunidade não considera a única missão de indivíduos abastados investir e aumentar seu capital, e quando a classe alta não se compõe exclusivamente de homens que se preocupam apenas com o emprego lucrativo de seus recursos. Em outras palavras: é absolutamente necessário tolerar a existência de um grupo de ricos ociosos – ociosos não no sentido de que não fazem nada de útil, mas no sentido de que seus objetivos não são inteiramente pautados pelo interesse de ganho material. Se a maior parte das pessoas precisa trabalhar para ganhar seu pão, disto não decorre ser menos recomendável que algumas não devam ter de fazê-lo, que possam perseguir objetivos não apreciados pelas demais. (...)
O fato de apenas alguns indivíduos terem essa oportunidade não significa que deixe de ser recomendável.197
Por outro lado, também é verdade que, embora os gastos extravagantes de alguns repugnem aos demais, dificilmente podemos ter certeza de que, em determinadas circunstâncias, até a mais absurda experiência de vida não possa produzir resultados benéficos em geral. Não deve surpreender que a vida num novo contexto de possibilidades leve, a princípio, a uma ostentação despropositada. No entanto, não tenho dúvidas – ainda que, ao dizer isso, me esteja expondo a zombarias – de que a própria fruição do ócio exige certo pioneirismo e de que devemos muitas das formas de vida, hoje comuns, a pessoas que dedicaram todo o seu tempo à arte de viver;201 muitos jogos e equipamentos esportivos que se tornaram posteriormente instrumentos de recreação das massas foram inventados por playboys.”
197: (...) Ainda que a “mais generosa das bênçãos terrestres, a independência” (como a chamou Edward Gibbon em sua Autobiography [Edição “World’s Classics”), página 176), seja um “privilégio”, no sentido de que apenas alguns podem possuí-la, não deixa de ser recomendável que outros possam gozá-la. Esperamos apenas que esse dom tão raro não seja distribuído pelo arbítrio humano, mas abençoe, por acidente do destino, alguns indivíduos de sorte.
201: Um estudo da evolução da arquitetura doméstica e dos hábitos cotidianos ingleses levou um famoso arquiteto dinamarquês a afirmar que, “na cultura inglesa, o ócio tem sido a origem de tudo o que é bom” (S.E. Rasmussen, London, the Unique City [Londres e Nova Iorque, 1937], página 294).


“É realmente trágico que as massas tenham chegado a acreditar que devem seu alto padrão de bem-estar material ao fato de terem eliminado os ricos, e que temam que a preservação ou o reaparecimento de tal classe as privariam de algo que teriam (e a que julgam ter direito) se esta não existisse. Já vimos por que, numa sociedade progressista, não há razões para crer que a riqueza desfrutada por poucos existiria se estes não pudessem dela usufruir. Esta riqueza não é algo que lhes foi tirado, tampouco é algo que lhes era devido e lhes foi negado; ela é o primeiro sinal de um modo de vida inaugurado pela vanguarda. De fato, os que têm o privilégio de apontar novos caminhos que só os filhos, ou netos, de outros poderão palmilhar não são geralmente os indivíduos mais merecedores, mas simplesmente os que a sorte colocou nessa posição invejada. Este fato é, porém, inseparável do processo de evolução, que ultrapassa tudo que qualquer indivíduo ou grupo pode prever. Ao impedir, desde o início, que alguns gozem de certas vantagens, podemos acabar privando delas todos os demais. Se, por inveja, tornamos impossível a existência de certos estilos excepcionais de vida, terminaremos todos condenados ao empobrecimento material e espiritual. Também não podemos eliminar as manifestações desagradáveis do sucesso individual sem destruir, ao mesmo tempo, as forças que tornam possível o progresso. Podemos desprezar a ostentação, o mau gosto e o desperdício de muitos novos-ricos e, no entanto, reconhecer que, se eliminássemos tudo o que nos desagrada, possivelmente estaríamos suprimindo, desta forma, um número muito maior de benefícios que ainda não conseguimos vislumbrar. Um mundo em que a maioria pudesse impedir o surgimento de tudo que ela própria não aprovasse seria um mundo estagnado e, provavelmente, em decadência.”