sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Manuscritos econômico-filosóficos – Karl Marx

Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-002-7
Tradução: Jesus Rainieri
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 176
Sinopse: Com tradução, introdução e notas de Jesus Ranieri e uma cronologia da vida de Karl Marx, a Boitempo Editorial está lançando os Manuscritos econômico-filosóficos, dentro do seu projeto de publicar no Brasil a obra completa de Marx, em novas traduções direto do alemão.
Publicados apenas após sua morte, os Manuscritos foram escritos em 1844, quando Marx tinha apenas 26 anos e antes do seu célebre encontro com Engels. Os Manuscritos econômico-filosóficos ou Manuscritos de Paris apresentam a planta fundamental do pensamento de Marx: a concentração de sua filosofia na crítica da economia nacional de Adam Smith, J.B. Say e David Ricardo. Na obra, Marx expõe a discrepância entre moral e economia, denunciando a radicalidade da exploração do homem pela empresa capitalista. Enquanto a reprodução do capital é o único objetivo da produção, o trabalhador ganha apenas para sustentar suas necessidades mais vitais, ou seja, para não morrer e poder continuar produzindo.
O fundamento da teoria da mais-valia, desenvolvida mais tarde em O Capital, já é antecipado nos Manuscritos. O estranhamento do mesmo trabalhador, fazedor de um produto que não lhe pertence, também é esboçado.
Aqui, Marx dá sinais de sua passagem do idealismo hegeliano ao materialismo dialético e declara a necessidade de “uma ação comunista efetiva” a fim de superar a propriedade privada. Se muitos dos capítulos da obra são apenas esboços, ela não deixa de oferecer um desenvolvimento quase absoluto da compreensão geral de Marx acerca das relações íntimas entre liberdade, economia e sociedade, em ensaios às vezes geniais – e inclusive acabados – como é o caso de “[Dinheiro]”, o último capítulo dos Manuscritos.

“Para o trabalhador, a separação de capital, renda da terra e trabalho é mortal.”


“O capital é trabalho acumulado.”


“Na realidade efetiva, o salário é uma dedução que terra e capital permitem chegar ao trabalhador, uma concessão do produto do trabalho ao trabalhador.
Mas, na situação em progresso da sociedade, o declínio e o empobrecimento do trabalhador são o produto de seu trabalho e da riqueza por ele produzida. A miséria que resulta, portanto, da essência do trabalho hodierno mesmo. (...)
O apelo de Lord Brougham aos trabalhadores: “Tornai-vos capitalistas!” (...) O mal é que milhões – apenas através de trabalho fatigante, corporalmente arruinante, moral e espiritualmente atrofiante – podem ganhar parcos meios de subsistência; que até mesmo essa infelicidade de ter encontrado um tal trabalho tenha de ser considerada uma felicidade. (...)
Esta constituição econômica condena os homens a ocupações de tal modo abjetas, a uma degradação de tal maneira desoladora e amarga, que a selvageria aparece, em comparação, como uma condição real.”


“O trabalhador não está defronte àquele que o emprega na posição de um livre vendedor. (...) O capitalista é sempre livre para empregar o trabalhador, e o trabalhador é sempre forçado a vendê-lo. O valor do trabalho é completamente destruído se não for vendido a cada instante. O trabalho não é suscetível nem de acumulação, nem mesmo de poupança, diferentemente das verdadeiras mercadorias.”


“A guerra industrial, para ser conduzida com efeito, exige numerosos exércitos que ela possa juntar no mesmo ponto e dizimar abundantemente. E nem por dedicação, nem por dever, os soldados desse exército suportam os esforços que lhe são exigidos: só para fugir da dura necessidade da fome. Eles não têm afeto nem reconhecimento pelos seus chefes; estes não se ligam aos seus subordinados por nenhum sentimento de benevolência; eles não os conhecem como seres humanos, mas apenas como instrumentos de produção, os quais têm de render tanto quanto possível e fazer tão poucas despesas quanto possível. Estas multidões de trabalhadores, cada vez mais pressionadas, não têm nem mesmo a despreocupação de estarem para sempre empregadas. A indústria, que os convocou a todos, somente os deixa viver enquanto precisa deles, e assim que pode libertar-se deles, ela os abandona sem a mínima hesitação; e os trabalhadores são forçados a ofertar a sua pessoa e a sua força pelo preço que se lhes quiser atribuir. Quanto mais o trabalho que se lhes dá é longo, penoso, repugnante, tanto menos eles são pagos; veem-se alguns que, com 16 horas de trabalho por dia, sob esforço contínuo, mal compram o direito de não morrer.”


“As mais importantes operações do trabalho são reguladas e dirigidas segundo os planos e as especulações daqueles que aplicam os capitais, e o objetivo que eles pressupõem em todos estes planos e operações é o lucro.”


“As mais importantes operações do trabalho são reguladas e dirigidas segundo os planos e as especulações daqueles que aplicam os capitais; e o objetivo que eles pressupõem em todos estes planos e operações é o lucro. Portanto: a taxa de lucro não sobe, como a renda da terra e o salário, com a prosperidade da sociedade, e não cai, como aqueles, com o declínio desta última. Pelo contrário, esta taxa é naturalmente baixa nos países ricos e alta nos países pobres; e nunca é tão alta como nos países que mais rapidamente caminham em direção à ruína. O interesse desta classe não tem, portanto, como as outras duas, a mesma ligação com o interesse geral da sociedade. (...) O interesse particular daqueles que exploram um ramo do comércio ou da manufatura é, em certo sentido, sempre diferente do interesse do público e, frequentemente, até mesmo contraposto a ele de maneira hostil. O interesse do comerciante é sempre o de ampliar o mercado e limitar a concorrência dos vendedores. (...) Esta é uma classe de gente cujo interesse jamais será exatamente o mesmo que o da sociedade, de gente que tem em geral um interesse, o de enganar e sobrecarregar o público.”


“Alugar o seu trabalho é começar a sua escravidão.” (Constantine Pecqueur)


“A concorrência não exprime outra coisa senão a troca facultativa, que é, ela própria, a consequência próxima e lógica do direito individual de usar e abusar dos instrumentos de toda a produção. Estes três momentos econômicos (o direito de usar e de abusar, a liberdade de trocas e a concorrência arbitrária), os quais constituem apenas um, produzem as seguintes consequências: cada um produz o que quer, como quer, quando quer, onde quer; produz bem ou produz mal, em demasia ou insuficientemente, demasiado cedo ou demasiado tarde, demasiado caro ou demasiado barato; cada um ignora se venderá, a quem venderá, como venderá, quando venderá, onde venderá; e é o mesmo quanto às compras. (...) O produtor ignora as necessidades e os recursos, a procura e a oferta. Vende quando quer, quanto pode, onde quer, a quem quer, ao preço que quer. E da mesma maneira, compra. Em tudo isto, ele é sempre o joguete do acaso, o escravo da lei do mais forte, do menos apressado, do mais rico. (...) Enquanto, num ponto, existe escassez de riqueza, no outro há excesso e desperdício. Enquanto um produtor vende muito ou caro demais, e tem um ganho enorme, o outro não vende nada ou vende com perda. (...) A oferta ignora a procura e a procura ignora a oferta. Vós produzis acreditando num gosto, numa moda que se manifesta no público dos consumidores; mas, quando estais prestes a fornecer a mercadoria, a fantasia passou e fixou-se num outro gênero de produto. (...) Consequências infalíveis, a permanência e a universalização das bancarrotas, as fraudes, as ruínas súbitas e as fortunas improvisadas; as crises comerciais, o desemprego, as saturações ou escassez periódicas; a instabilidade e o aviltamento dos salários e dos lucros; o desperdício ou o depauperamento de riquezas, de tempo e de esforços na arena de uma concorrência encarniçada.”


Ricardo, em seu livro Renda da terra: “as nações são apenas oficinas da produção, o homem é uma máquina de consumir e produzir; a vida humana, um capital; as leis econômicas regem cegamente o mundo.” Para Ricardo, os homens são nada; o produto, tudo.”


“Partimos dos pressupostos da economia política. Aceitamos suas linguagens e suas leis. Supusemos a propriedade privada, a separação de trabalho, capital e terra, igualmente do salário, lucro de capital e renda da terra, da mesma forma que a divisão do trabalho, a concorrência, o conceito de valor de troca, etc. A partir da própria economia política, com suas próprias palavras, constatamos: o trabalhador baixa à condição e mercadoria e à de mais miserável mercadoria; que a miséria do trabalhador põe-se em relação inversa à potência e à grandeza da sua produção: que o resultado necessário da concorrência é a acumulação de capital em poucas mãos – portanto, a mais tremenda restauração o monopólio; que no fim, a diferença entre o capitalista e o rentista fundiário desaparece, assim como entre o agricultor e o trabalhador em manufatura; e que, no final das contas, toda a sociedade tem de decompor-se nas duas classes dos proprietários e dos trabalhadores sem propriedade.”


A economia política oculta o estranhamento na essência do trabalho porque não considera a relação imediata entre o trabalhador (o trabalho) e a produção. Sem dúvida, o trabalho produz maravilha para os ricos, mas produz privação para o trabalhador. Produz palácios, mas cavernas para o trabalhador. Produz beleza, mas deformação para o trabalhador. Substitui o trabalho por máquinas, mas lança uma parte dos trabalhadores de volta a um trabalho bárbaro e faz da outra parte máquinas. Produz imbecilidade, cretinismo para o trabalhador.”


A relação imediata do trabalho com os seus produtos é a relação do trabalhador com os objetos da sua produção. A relação do abastado com os objetos da produção e com ela mesma é somente uma consequência desta primeira relação. E a confirma. Se, portanto, perguntamos: qual a relação essencial do trabalho, então perguntamos pela relação do trabalhador com a produção.
Até aqui examinamos o estranhamento, a exteriorização do trabalhador sob apenas um dos seus aspectos, qual seja, a sua relação com os produtos do seu trabalho. Mas o estranhamento não se mostra somente no resultado, mas também, e principalmente, no ato da produção, dentro da própria atividade produtiva. Como poderia o trabalhador defrontar-se alheio ao produto da sua atividade se no ato mesmo da produção ele não se estranhasse a si mesmo? O produto é, sim, somente o resumo da atividade, da produção. Se, portanto, o produto do trabalho é a exteriorização, então a produção mesma tem de ser a exteriorização ativa, a exteriorização da atividade, a atividade da exteriorização. No estranhamento do objeto do trabalho resume-se somente o estranhamento, a exteriorização na atividade do trabalho mesmo.
Em que consiste, então, a exteriorização do trabalho?
Primeiro, que o trabalho é externo ao trabalhador, isto é, não pertence ao seu ser, que ele não se afirma, portanto, em seu trabalho, mas nega-se nele, que não se sente bem, mas infeliz, que não desenvolve nenhuma energia física e espiritual livre, mas mortifica sua physis e arruína o seu espírito. O trabalhador só se sente, por conseguinte e em primeiro lugar, junto a si quando fora do trabalho e fora de si quando no trabalho. Está em casa quando não trabalha e, quando trabalha, não está em casa. O seu trabalho não é, portanto, voluntário, mas forçado, trabalho obrigatório. O trabalho não é, por isso, a satisfação de uma carência, mas somente um meio para satisfazer necessidades fora dele. Sua estranheza evidencia-se aqui de forma tão pura que, tão logo inexista coerção física ou outra qualquer, foge-se do trabalho como de uma peste. O trabalho externo, o trabalho no qual o homem se exterioriza, é um trabalho de auto-sacrifício, de mortificação. Finalmente, a externalidade do trabalho aparece para o trabalhador como se o trabalho não fosse seu próprio, mas de outro, como se o trabalho não lhe pertencesse, como se ele no trabalho não pertence a si mesmo, mas a outro. Assim como na religião a auto-atividade da fantasia humana, do cérebro e do coração humanos, atua independentemente do indivíduo e sobre ele, isto é, como uma atividade estranha, divina ou diabólica, assim também a atividade do trabalhador não é a sua auto-atividade. Ela pertence a outro, é a perda de si mesmo.
Chega-se, por conseguinte, ao resultado de que o homem (o trabalhador) só se sente como ser livre e ativo em suas funções animais, comer, beber e procriar, quando muito ainda habitação, adornos, etc., e em suas funções humanas só se sente como animal. O animal se torna humano e o humano, animal.
Comer, beber, procriar, etc., são também, é verdade, funções genuinamente humanas. Porém, na abstração que as separa da esfera restante da atividade humana, e faz delas finalidades últimas e exclusivas, são funções animais.
Examinamos o ato do estranhamento da atividade humana prática, o trabalho, sob dois aspectos. 1) A relação do trabalhador com o produto do trabalho como objeto estranho e poderoso sobre ele. Esta relação é ao mesmo tempo a relação com o mundo exterior sensível, com os objetos da natureza como um mundo alheio que se lhe defronta hostilmente. 2) A relação do trabalho com o ato da produção no interior do trabalho. Esta relação é a relação do trabalhador com a sua própria atividade como uma atividade estranha, não pertencente a ele, a atividade como miséria, a força como impotência, a procriação como castração. A energia espiritual e física própria do trabalhador, a sua vida pessoal – pois o que é vida senão atividade – como uma atividade voltada contra ele mesmo, independente dele, não pertencente a ele.”


“Mas o trabalhador tem a infelicidade de ser um capital vivo e, portanto, carente, que, a cada momento em que não trabalha, perde seus juros e, com isso, sua existência. Como capital, o valor do trabalhador aumenta no sentido da procura e da oferta e, também fisicamente, a sua existência, a sua vida, se torna, e é sabido, como oferta de mercadoria, tal como qualquer outra mercadoria. O trabalhador produz o capital; o capital produz o trabalhador. O trabalhador produz, portanto, a si mesmo, e o homem enquanto trabalhador, enquanto mercadoria, é o produto do movimento total. O homem nada mais é do que trabalhador e, como trabalhador, suas propriedades humanas o são apenas na medida em que o são para o capital, que lhe é estranho. Mas porque ambos, capital e trabalho, são estranhos entre si e estão, por conseguinte, em uma relação indiferente, exterior e acidental, esta estranheza tem de aparecer como algo efetivo. Tão logo aconteça ao capital – ocorrência necessária ou arbitrária – não mais existir para o trabalhador, o trabalhador mesmo não é mais para si; ele não tem nenhum trabalho e, por causa disto, nenhum salário. E, aí, ele tem existência não enquanto homem, mas enquanto trabalhador, podendo deixar-se enterrar, morrer de fome, etc. O trabalhador só é enquanto trabalhador, assim que é para si como capital; e só é como capital assim que um capital é para ele. A existência do capital é sua existência, sua vida, tal como determina o conteúdo da sua vida de um modo indiferente a ele.”

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Anarquismo - Roteiro da Libertação Social (Parte I), de Edgard Leuenroth

Editora: Mundo livre

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 238


“É fato comum de cada dia encontrar-se em discursos de políticos, como na imprensa e em livros a palavra anarquia como qualificativo de uma situação de desordem, o que demonstra a ignorância em matéria de etimologia e filosofia desses oradores, jornalistas e escritores. Nunca se diz que anarquia significa liberdade e justiça para todos.

Em rigorosa análise, o ideal de uma verdadeira democracia, a que aspira, em nossos dias, a maioria da humanidade, só se poderá realizar com a ausência da coação econômica e política.

Se o povo resolve seus problemas sociais sem a intervenção de políticos profissionais, evitando rigorosamente, ao mesmo tempo, a corruptora burocracia administrativa, então o regime será verdadeiramente democrático, e, portanto, ácrata, isto é, anarquista. Em tal regime existirá a anelada felicidade social. A doutrina anarquista nos apresenta o ideal de uma ordem social sem exploração privada ou estatal, no qual a administração das coisas acabará com a dominação do homem. Esta definição não é nova, mas tem de ser repetida, porque a mentira também se repete sempre.”

(Agustin Souchy)

 

 

“A atual sociedade é o resultado das lutas seculares que os homens travaram entre si. Os homens desconheciam as vantagens que podiam resultar para todos, orientando-se pelas normas da cooperação e da solidariedade. Consideravam cada um de seus semelhantes (excetuados, quando muito, os membros de sua família), um concorrente ou um inimigo. E procuravam monopolizar, cada qual para si, a maior quantidade possível de gozos, sem pensar nos interesses dos outros.

Naturalmente, nessa luta, os mais fortes e os mais espertos deveriam vencer, e de diversas maneiras, explorar e oprimir os vencidos.

Enquanto o homem não foi capaz de extrair da natureza senão o estritamente necessário à sua manutenção, os vencedores limitaram-se a pôr em fuga e a massacrar os vencidos para se apoderarem dos produtos silvestres, da caça, da pesca num dado território. Em seguida, quando, com a criação do gado e com o aparecimento da agricultura, o homem soube produzir mais do que precisava para viver, os vencedores acharam mais cômodo reduzir os vencidos à escravidão e fazê-los trabalhar para eles.

Muito tempo após, tornou-se mais vantajoso, mais eficaz e mais seguro explorar o trabalho alheio, por outro sistema: conservar para si a propriedade exclusiva da terra e de todos os instrumentos de trabalho, e conceder liberdade aparente aos deserdados. Logo, estes, não tendo meios para viver, eram forçados a recorrer aos proprietários e a trabalhar para eles nas condições que os patrões lhes impunham.

Assim, pouco a pouco, a Humanidade tem evoluído através de uma rede complicada de lutas de toda espécie – invasões, guerras, rebeliões, repressões, concessões feitas e retomadas, associações dos vencidos unindo-se para a defesa e dos vencedores coligados para a ofensiva. O trabalho, porém, não conseguiu ainda a sua emancipação. No atual estado da sociedade, alguns grupos de homens monopolizam arbitrariamente a terra e todas as riquezas sociais, enquanto que a grande massa do povo, privada de tudo, é espezinhada e oprimida.

Conhecemos o estado de miséria em que se acham geralmente os trabalhadores, e conhecemos todos os males derivados dessa miséria: ignorância, crimes, prostituição, fraqueza física, abjeção moral e morte prematura.

(...) Em resumo, querem os anarquistas:

1.° – Abolição da propriedade (capitalista ou estatal) da terra, das matérias-primas e dos instrumentos de trabalho, para que ninguém tenha meios de explorar o trabalho dos outros e para que todos, assegurados os meios de produzir e de viver, sejam verdadeiramente independentes e possam associar-se livremente uns com os outros, no interesse comum e de conformidade com as afinidades e simpatias pessoais.

2.° – Abolição do Estado e de qualquer poder que faça leis para impô-las aos outros; portanto, abolição de todos os órgãos governamentais e todos os elementos que lhe são próprios, bem como de toda e qualquer instituição dotada dos meios de constranger e de punir.

3.° – Organização da vida social por iniciativa das associações livres e das livres federações de produtores e consumidores, criadas e modificadas conforme à vontade de seus componentes guiados pela ciência e pela experiência e libertos de toda obrigação que não se origine da necessidade natural, à qual todos de bom grado se submeterão quando lhe reconheçam o caráter inelutável.

4.° – A todos serão garantidos os meios de vida, de desenvolvimento, de bem-estar, particularmente às crianças e a todos os que sejam incapazes de prover à própria subsistência.

5.° – Guerra a todos os preconceitos religiosos e a todas as mentiras, mesmo que se ocultem sob o manto da ciência. Instrução completa para todos, até aos graus mais elevados.

6.° – Guerra às rivalidades e aos prejuízos patrióticos. Abolição das fronteiras, confraternização de todos os povos.

7.° – Libertação da família de todas as peias, de tal modo que ela resulte da prática do amor, livre de toda influência estatal ou religiosa e da opressão econômica ou física.”

(Errico Malatesta)

 

 

“O ponto de vista comum em torno do qual todos os anarquistas estão de acordo, porque reagrupa todas as tendências do anarquismo, por mais variadas que sejam, é aquele que conduz à mesma meta e que se caracteriza no fato de se manter o movimento anárquico com uma feição que o distingue de todos os outros movimentos político- social: a concepção de um futuro para a Humanidade que exclua todo princípio de autoridade, de domínio e de exploração do homem pelo homem.”

(Gigi Damiani)

 

 

“O anarquismo pode ser filosofia e ciência político-econômica, sem cair no dogmatismo; simples especulação idealista ou fundamentalmente prático em suas atitudes fora de qualquer ação impositiva; pode apegar-se ao materialismo histórico ou apelar para as forças morais e considerar o sentimento como fator mais eficaz para libertar o homem da incompreensão em que se debate; pode dizer-se ateu, agnóstico ou divagar em hipóteses espiritualistas; mas conserva a sua idoneidade quanto à necessidade que há em combater todo e qualquer princípio de idolatria estatal, conformista e de monopólio econômico, É antiautoritário e anti-totalitário em todas as circunstâncias.”

(Gigi Damiani)

 

 

“Viver uma vida integralmente anárquica na sociedade presente é impossível, porque a autoridade do homem sobre o homem, a exploração do trabalho alheio e a prática de iludir a boa-fé do próximo constituem as regras fundamentais da ordem social em que vivemos. A autoridade do Estado, o desfrutamento dos patrões, a ação nefasta e embrutecedora do clero e da escola oficial estão sempre presentes, assediam-nos, comprimem-nos de todos os lados e não se pode fugir aos seus tentáculos absorventes.

Ser anarquista requer, por conseguinte, aspirar a uma forma de convivência social isenta de governantes, de exploradores e de todas as mentiras convencionais interessadas em manter o presente estado de coisas; lutar para tornar possível o advento da anarquia, contra as violências, os prejuízos sociais, as mentiras e os interesses criados em que se alicerça a ordem existente.”

(“Umanità Nuova”, Roma)

 

 

“A perspectiva de uma sociedade sem governo, sem patrões e sem charlatões sorri a todos os homens que amam a liberdade, sorri particularmente, luminosamente, às multidões famintas de deserdados e oprimidos que, desde milênios, são vítimas dos governos, dos privilégios da riqueza e dos monopólios do saber.

Se alguma vez esses deserdados são atormentados pela dúvida, é porque, de tão bela, consideram irrealizável o advento da anarquia; é porque as agruras da luta pelo pão de cada dia lhes absorvem o tempo e os meios de cultivar as ideias e de afirmar as possibilidades da realização do ideal anárquico.”

(“Umanità Nuova”, Roma)

 

 

“Os anarquistas não condenam a existência do automóvel, do rádio, do avião, de todas as coisas belas e úteis. Condenam o privilégio que têm alguns de possuir e usar essas coisas todas, enquanto a outros não lhes é permitido fazê-lo. Condenam, principalmente, o fato de que, para usarem essas coisas, alguns explorem o trabalho de outros, que construam os seus prazeres, e até mesmo os seus vícios, com a miséria dos seres a quem exploram o trabalho, os sentimentos, a honra e a dignidade.”

(Souza Passos)

 

 

“Todos iguais, como os anarquistas concebem a expressão, é dar a todos o direito de viver, não matando, mas elevando a vida à mais alta expressão da dignidade. Todos iguais para receber os benefícios da vida livre, do amor sem peias e preconceitos, da consciência livre, da livre manifestação de todos os sentidos. Iguais no dever para todos de fazer alguma coisa útil, contribuindo, cada qual, com a sua capacidade física, intelectual, moral ou artística, para o bem de todos.”

(Souza Passos)

 

 

Os Anarquistas e as Lutas Sociais

O anarquista não quer fazer escada do seu companheiro de desventuras; não procura melhorar sua posição tornando-se instrumento da cobiça do capitalista; não se presta aos desejos do patrão, não se humilha diante dele, não pactua com o inimigo seu e de sua classe. Não aspira a viver à parte, enquanto todos sofrem; não separa a sua causa da de seus companheiros; não reconhece diferença de raça ou de nacionalidade; não se ilude imaginando poder arrancar ao capitalista concessões valiosas e duradouras, não pensa exclusivamente no seu interesse momentâneo, mas remonta à causa de seus males e contra ela se insurge.

O anarquista reclama para os outros o mesmo que para si; recusa servir de rufião aos patrões; revolta-se contra todas as instituições presentes porque todas sancionam a onipotência dos ricos; não elege fazedores de leis para não consentir na sua escravidão e para não se deixar enganar pelos costumados mariolas; não confia nas mentirosas promessas dos governantes. E ao burguês que tenta, para o subjugar, ora à força, ora à lisonja, ele responde: “O teu ouro não me seduz, porque fui eu que o extraí das entranhas da terra. As tuas vinganças não me aterrorizam, porque a vida que me deixas é uma contínua agonia; o teu poder está condenado a cair. Eu gozo combatendo-o, e cada revolta minha acelera o triunfo da liberdade e da justiça”.

“A Plebe, São Paulo

 

 

“Se o bem individual fosse realmente oposto ao da sociedade, não teria podido existir a espécie humana.”

(Pedro Kropotkine)

 

 

“O ser humano não é um ser de conflitos. Quando estes surgem é por motivo anormais e estranhos ao ser humano no decurso de seu viver. Freud, talvez sem o propósito específico de não lhe dar esse sentido, assentou uma das bases mais fortes da ética moderna ao demonstrar que os conflitos psicológicos, considerados sempre como inerente e consubstanciais à psique humana e, portanto, rodeadas de todos os mistérios metafísicos, têm origem e natureza em determinadas facetas anormais do viver, que retorcem e reprimem os instintos. De acordo com as leis naturais, um ser vivente não pode levar na essência mesma de sua natureza manifestações contraditórias em conflito permanente, se isso não for motivado por causas alheias a essas essências que o caracterizam. Todo ser vivo é manifestação de harmonia vital; quando essa harmonia cessa, vem a morte, pois que a vida em si não é senão manifestação de harmonia. E o ser humano, que é uma das manifestações mais altas da vida, não pode conter elementos contraditórios permanentes naquilo que constitui os fundamentos de sua existência.

Os instintos que nos induzem à satisfação das necessidades inerentes ao nosso próprio viver não podem ficar à margem da ética nem em contradição com ela. Não pode ser amoral beber-se um copo d’água, comer uma maçã ou coabitar com o sexo contrário, que é o complemento e fator da vida, ou descansar de uma fadiga. Como tampouco é moral satisfazer essas necessidades em detrimento da satisfação das mesmas necessidades dos outros.

As verdadeiras essências da ética residem, pois, na harmonização entre a satisfação dos instintos que nos induzem à conservação da nossa própria existência e os que nos impelem à prática da cooperação na convivência com os nossos semelhantes.

A concepção ética do anarquismo não pode ser outra senão essa ética natural manifestada pela livre expressão dos instintos. Daí a razão de ter o anarquismo que rechaçar toda ética imposta de fora, o que, em definitivo, é autoritarismo.”

(B. Cano Ruiz, “Tierra y Libertad”)

 

 

“Naturalmente, não me ocupo, neste trabalho dos sinistros mistificadores para os quais o idealismo não passa de mera manifestação de hipocrisia e de um instrumento de engano; dos capitalistas que pregam aos trabalhadores o sentimento do dever e o espírito de sacrifício, para amortecer-lhes as energias e poderem continuar pacificamente acumulando fortunas à custa de seu trabalho e de sua miséria; dos “patriotas” que, cheios de fervor pelo amor à pátria e dominados pelo espírito nacionalista, vivem explorando por todos os modos o próprio país e, quando podem, procedem da mesma forma quanto às pátrias alheias; dos militares que, pela glória da pátria e honra da sua bandeira, atacam outros povos, maltratando-os e oprimindo-os.”

(Errico Malatesta)

 

 

“Em minha vida de militante libertário, tive oportunidade de, durante muitos anos, frequentar organizações operárias, grupos revolucionários e sociedades educativas, e sempre verifiquei que os elementos mais ativos, os mais dedicados, os que sempre estavam dispostos às mais duras tarefas, contribuindo não apenas com a sua atividade, mas ainda com recursos retirados de seus ganhos, não eram os mais necessitados, mas, ao contrário, justamente os de melhor situação – e que se sentiam impelidos à luta não tanto pelas próprias necessidades, mas pelo desejo de cooperar em prol de uma boa obra e sentirem-se nobilitados por um ideal. Os elementos de situação mais miserável, aqueles que, em virtude de suas penosas condições de vida deveriam ser os mais direta e imediatamente interessados na mudança das coisas, conservam-se ausentes, ou participam apenas quando a isso levados por um interesse imediato e, assim mesmo, como parte passiva, beneficiando-se do esforço dos demais.”

(Errico Malatesta)

 

 

“Parlamento é a máscara política inventada para fazer crer ao povo ser ele, povo, o soberano e serem púrpuras seus andrajos de escravo.”

(José Oiticica)

 

 

“Para defenderem os próprios privilégios, os exploradores lançam os explorados uns contra os outros, criando toda uma série de pequenos interesses que ligam a eles uma parte dos exploradores, e todos se empenham na defesa dos “grandes privilégios”. E são os trabalhadores, cujos frutos de trabalho lhes permitem apenas viver uma vida de miséria e humilhações, que se transformam nos verdadeiros pontilhões do atual estado de sujeição econômica, política e moral.”

(Ugo Fedelli)

 

 

“Como libertário, não aceito a ação parlamentar, que implica na delegação de poderes, o que constitui séria divergência doutrinária com o anarquismo. É em obediência a este sábio critério que os libertários, arrostando dificuldades sem conta, lutam incessantemente no sentido de conseguir que cada elemento do povo, libertando-se da mentalidade messiânica imperante, tornando-se senhor de si mesmo, constitua uma unidade ativa na vida social, agindo em causa própria no patrocínio dos interesses que, sendo seus, estão em harmonia com os da coletividade. (...)

A experiência é a grande mestra, e esta nos ensina que o Parlamento, instituição essencialmente burguesa, nunca agiu e jamais poderá agir em detrimento da vigente ordem de coisas, o que corresponde a nada fazer em proveito do povo e da causa pública.”

(Edgard Leuenroth)

 

 

“Os socialistas libertários ou anarquistas, condenando o Estado como órgão parasitário, explorador e tirânico, e a instituição do monopólio da propriedade, como iníqua e antissocial, lutam por uma organização que considera o indivíduo como sua unidade essencial e que, repudiando todas as normas totalitárias e ditatoriais, seja baseada no livre consenso, determinada e regulada pelas necessidades, aptidões, ideias e sentimentos de cada qual, dentro de uma vasta confederação socialista-libertária de comunas livres, estruturadas pelas organizações profissionais, técnicas, científicas, artísticas, culturais, recreativas, etc. Esse é o verdadeiro socialismo, obediente aos seus fundamentos históricos, que os anarquistas propagam, lutando para que seja aceito e posto em prática pelo povo.”

(Edgard Leuenroth)

 

 

“O anarquismo é o herdeiro e o intransigente defensor do verdadeiro socialismo. Só o anarquismo vem defendendo desde os seus primórdios, trazendo-o íntegro até os nossos dias, o que o socialismo tem de essencial: o sentido da liberdade.

O marxismo, embora tenha concorrido com algumas contribuições apreciáveis para o estudo do problema social, tornou-se, em sua contextura e em sua ação, um desvirtuamento e uma corrupção do socialismo. À medida que consegue vencer politicamente, vai esvaziando o socialismo do seu conteúdo idealístico e de sua renovação social.”

(G. Ernestan)

 

 

“Socialismo é o sistema de organização da sociedade que tem por base a substituição do regime capitalista – fundamentado no domínio da propriedade privada e do salariato, instrumento da exploração do homem pelo homem – por um regime cujo princípio fundamental é socializar, isto é, pôr em comum os bens sociais, em função dos interesses da coletividade, como produtos que são dos esforços de todas as gerações.

Socializar quer dizer tornar social a propriedade hoje em poder do capitalismo. A riqueza existente, que em sua origem é social (obra de todos), passa a ser também social no seu destino, para ser de todos. Não se pode confundir socialização com estatização – transferência para o Estado da propriedade capitalista.”

(Edgard Leuenroth)

 

 

“Onde os comunistas chegaram a tomar o poder, o socialismo serve de rótulo para um regime de capitalismo de Estado, continuando o proletariado sujeito à tirania do salariato – instrumento de exploração capitalista e negação do socialismo – e do Estado todo-poderoso, senhor das coisas e dos destinos das gentes.”

(Edgard Leuenroth)

 

 

“O anarquismo tem expressão num movimento constituído de unidades autônomas e ativas, que a ele se ligam – sem perda de personalidade – por deliberação voluntária e consciente, e não de indivíduos ainda sem consciência social bem formada, arregimentados sob disciplina autoritária, obedientes às palavras de ordem de elementos de cúpula, para serem executadas automaticamente, sem possibilidade de nenhum exame ou divergência.

O movimento libertário assenta a base ética-social de sua estruturação no objetivo de formar conjuntos constituídos de unidades representando valores individuais, e não multidões de atuação oscilante, sem individualidade própria, dependentes sempre de determinações de líderes, dirigentes, chefes, muitas vezes transformados em messias, dos quais tudo esperam.

Há ainda uma circunstância relevante, que não permite ajuizar-se sobre a situação do anarquismo mediante confronto das bases de seu movimento com as de outras correntes do socialismo e de organizações de orientação nacionalista ou mística: o movimento anarquista não oferece a possibilidade da obtenção de empregos ou da conquista de postos de representação política, não mantendo quadros de funcionalismo para a movimentação de sua obra e nem apresentando candidatos a eleições.

Exatamente o contrário se verifica em relação aos outros movimentos ou organizações que, com diferença de proporções, sujeitara o desenvolvimento de sua atividade à atuação de funcionalismos numerosos, constituídos, em grande parte, de elementos retirados da produção, isto é, do exercício de suas profissões, e que, desabituando-se das obrigações de produtores, passam a constituir um burocratismo desvirtuador e parasitário. Além dos cargos nos partidos e nas organizações, oferecem ainda postos nas casas de representação municipal, nas deputações e senatorias e em cargos governamentais, tudo isso proporcionando a possibilidade de vida mais folgada, e ainda, para muitos, o ensejo para a exibição de vaidades e de ganhos cuja origem nem sempre pode ser justificada. (...)

Daí concluir-se que, não oferecendo o movimento anarquista as vantagens de ordem pessoal proporcionadas por outros movimentos, partidos e agrupações, dificilmente pode atrair para suas fileiras os numerosos elementos que orientam a própria atividade social na base de entusiasmos ocasionais sem motivo ideológico, de simpatias ou de antipatias pessoais, de paixões políticas, o que lhes permite alternar as respectivas ações em campos os mais diversos e muitas vezes contraditórios, como consequência de influências dominantes em cada situação.”

(Edgard Leuenroth)

domingo, 29 de setembro de 2013

Jogos Sagrados – Vikram Chandra

Editora: Companhia das Letras

ISBN: 978-85-359-1310-1

Tradução: Celso Nogueira

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 986

Sinopse: O herói e o vilão de Jogos sagrados não se conhecem pessoalmente; trocam umas poucas palavras pelo interfone, tamanha a distância que separa o humilde inspetor Sartaj Singh de Ganesh Gaitonde, chefão da máfia de Mumbai. A suspeita morte do gângster no bunker que mandou construir em Mumbai marca o início da investigação que levará o detetive Singh a uma jornada pelas contradições e mistérios da Índia moderna, onde tradição e mudança se chocam diariamente.



“– Se pretende viver na cidade, precisa antecipar três rodadas, e ver através de uma mentira para conhecer a verdade, e ver através da verdade para ver a mentira.”

 

 

“Mas eu sabia, lá no fundo, que sem terra o sujeito não valia nada. A gente pode morrer por amor, pode morrer por amizade, pode morrer por dinheiro, mas, no final das contas, a única coisa real neste mundo é a terra.”

 

 

“Mas por que Chotta Badriya me seguiu até as portas da morte? Ele mal me conhecia, sabia dos riscos insanos de meu plano, e mesmo assim me acompanhou. Eu acho que ele foi comigo porque eu mandei. A maioria dos homens quer ser conduzida, e só poucos sabem liderar. Eu tinha um problema, uma escolha e uma decisão a tomar. Decidi, Chotta Badriya e outros me seguiram. Os que não conseguem decidir são barro mole nas mãos de quem consegue.”

 

 

“A comida é o maior e mais confiável dos prazeres.”

 

 

“Um homem sóbrio tem prioridades, vive alerta e atento. Não precisa de uísque e rum. Basta-lhe a vida.”

 

 

“Patriosh Shah me dava lições diárias sobre o poder de seu dândi-swami. “Você viu como seu apelo foi atendido. Você pediu, ele deu. Como pode se recusar a acreditar?”. Eu me sentia tentado a acreditar. Mas, no início da vida, vira como a crença era uma podridão interna que esvaziava um homem e o transformava num eunuco. Sabia ser a fé uma muleta conveniente para fracos e covardes. Não, eu não queria ser contaminado por essa doença.”

 

 

“Era bom para os dois policiais Sartaj Singh e Katekar ficarem ali debaixo de uma thela, reclamando. Eles já haviam se queixado da prefeitura, das corporações, das transferências de funcionários públicos e policiais honestos, do preço da manga, do trânsito, do excesso de construções, dos prédios que caíam, dos bueiros entupidos, do parlamento rebelde e selvagem, da extorsão dos Rakshaks, dos filmes ruins, da falta de programas interessantes na televisão, da interferência norte-americana nos assuntos subcontinetais, do desaparecimento de Rimzim das barracas que vendiam refrigerantes, das disputas interestaduais a respeito das águas dos rios, da falta de boas escolas que ensinassem inglês para quem não tivesse um pai disposto a gastar um caminhão de dinheiro, da maneira como retratavam os policiais nos filmes, das horas extras sem pagamento de adicional, do trabalho e do trabalho. Depois que a pessoa reclama de tudo, resta sempre o trabalho, com suas horas aleatórias, monotonia, complicações políticas, falta de reconhecimento e exaustão.”

 

 

““O propósito, o sentido, o intento e a metodologia do serviço secreto é o discernimento de padrões.” Os alunos esperam, ávidos, pela revelação que lhes trará conhecimento, aguçando-lhes a compreensão para que, preparados, sobrevivam e triunfem. “A capacidade de identificar um método, ordem, projeto, é o maior talento que um agente secreto pode possuir”, declara K.D. Yadav, alcançando o fundo da sala. “O velho ditado se aplica: uma vez é o acaso, duas é coincidência, três é ação inimiga”.”

 

 

“Existem sadhus (milagres), mesmo. Reais e falsos. Ambos são úteis.”

 

 

“Para jogar esse jogo direito, é preciso controlar homens maus, levá-los a fazer coisas ruins que acabariam se tornando coisas boas. Era necessário. Só quem nunca esteve num campo de batalha exige virtude impoluta e feitos impecáveis.”

 

 

“O que a quase meia idade lhe fizera, corroera seu fervor revolucionário com – com o quê? – longas horas de serviço, contas, o trânsito insuportável, a poluição venenosa que aplicava um filme negro em seu rosto e nos braços. E pelas derrotas profissionais, pelo divórcio, pela abrupta amputação do amor, pela compreensão profunda de que o futuro não era um prado interminável, e sim um vale estreito cercado pela noite.”

 

 

“Eu sabia até a medula dos ossos que todos os presentes são traições, que nascer é ser enganado, que nada nos é concedido sem que algo maior nos seja tirado”.

 

 

“O dinheiro cria beleza, o dinheiro liberta, o dinheiro torna a moralidade possível.”

 

 

“Os escritores são especialmente suscetíveis ao elogio. Já trabalhei com políticos, homens santos e gângsteres, e posso afirmar que nenhum deles poderia competir com escritores em matéria de ego inflado e insegurança de rato.”

 

 

“O amor, Sartaj pensou zombeteiro, era uma armadilha inescapável. Capturado em suas barras, nos debatemos, salvamos uns aos outros e destruímos uns aos outros.”

domingo, 25 de agosto de 2013

As terras ásperas, de Rachel de Queiroz

Editora: Record/Altaya

ISBN: 978-85-0115-908-3

Opinião: ★★☆☆☆

Páginas: 208

Sinopse: Com sensibilidade de mestra, a autora pinta cenas corriqueiras, como episódios vividos nas ruas do Rio, aborda temas do cotidiano, recortados do noticiário dos jornais, coleciona impressões de viagem ao exterior, expõe anotações sobre amigos, hábitos e costumes...



“Você, homem do século XX, não tem bem noção, no seu cotidiano, de quanto depende da proteção da ciência e da técnica. Não é um ser autônomo, capaz de prover as suas mais mínimas necessidades. É tão condicionado a máquinas quanto um rato de Pavlov às campainhas da gaiola. Toda a sua vida depende das máquinas – é incrível. Desde o relojinho de pilha, no pulso, até tudo o que o cerca dentro de casa – geladeira, filtro, fogão, lava-louças, lava roupas, condicionador de ar, batedeira, liquidificador, torradeira, forno, enceradeira, aspirador, telefone, TV, rádio, máquina de escrever, COMPUTADOR! Você não mexe um dedo sem máquinas. Você é mais robotizado que um robô.

Sempre que faço viagens aéreas, transcontinentais ou transatlânticas, dentro daquela segurança e daquele conforto do avião – o ar pressurizado, a comida quente, a bebida gelada, o banheiro completo, a música ambiente, o alto-falante informando sobre o tempo lá embaixo –, sim, dentro daquele casulo voador, de repente eu penso: Meu Deus, e bastará uma pequena falha nos motores, uma fratura na asa, um buraco na fuselagem, e tudo isso se desarticula (não viu no desastre do foguete Challenger, foram só uns rebites que afrouxaram), tudo se rompe, explode, nos expele para o ar frio a 40 graus abaixo de zero, para as águas do mar, para a floresta amazônica. Se morrer, tudo bem, acabou, pronto. Mas e se a gente escapa? Estaremos muito mais indefesos e vulneráveis do que o mais primitivo homem da Idade da Pedra. Não sabemos como arranjar abrigo, fazer fogo, não distinguimos os bichos e os frutos comestíveis. Não temos como nos defender das feras de terra ou de mar. Em alguns segundos, a gente passará das condições mais sofisticadas de civilização à condição bruta de um extraterreno, ignorante, incapaz, lançado num ambiente hostil e estranho.

Isso é bom para rebater o orgulho dos homens ante essas maquininhas que hoje são a razão da sua vida. Pensavam que eram deuses, que nada lhes era mais proibido? Pois neste seu paraíso de fios de arame e rodelinhas de latão, basta um pequeno descontrole de funcionamento para desmoronar tudo, acabar tudo. E se vão ver nus e inermes, num mundo inimigo, desconhecido, que eles deliberadamente ignoraram”.

 

 

“A ecologia é como o amor a pátria. Em seu nome, quanta barbaridade se comete.”

 

 

“O pior é que o castigo não ensina nada: enquanto se vive se erra, como sempre foi.”

 

 

“A velhice é o mais indesejável dos progressos. A gente é, de certa forma, como aquelas bonecas russas que contém várias bonecas, uma dentro da outra, e que se vai descartando até chegar à mais bonita, que é a menor. Só que, no processo de crescimento, a mudança é a inversa, vai-se do menor para o maior. Embora o modelo menor continue a ser, como nas bonecas, o mais bem acabado e o mais bonito.”

 

 

“Ah, os homens fazem de tudo para embelezar, amenizar, poetizar, sublimar a morte, criando os rituais solenes da partida. Mas em vão. Pois é o próprio morto que estraga suas pompas fúnebres. O morto não quer saber de exposição, nem esplendores, nem luzes, nem músicas, nem coroa de flores. O morto só precisa ser oculto, devolvido à terra, desfazer-se. O morto não espera por ninguém: ele parte sem adeus. Antes nos amava. Morto nos repele, nos ignora, não quer saber de lágrimas nem de amores. Ele é o grande indiferente, já partiu, de-fi-ni-ti-va-men-te.

Creio que é o que mais nos horroriza na morte: o definitivo daquele rompimento. Não há briga entre vivos que não possa ser remediada, ou pelo menos prolongada em nova briga. A morte corta como uma guilhotina. Aquele que se interessava até pelos teus pensamentos ocultos, por tua mínima palavra ou gesto, que segurava febrilmente a tua mão, no desespero de não se apartar, de repente te larga, te esquece, te corta, te desconhece. Como se ele nunca tivesse existido – como se você nunca tivesse existido para ele. Acabou, acabou tudo. O que os amantes rompidos jamais aceitam de verdade, a morte realiza num fechar de olhos, num suspiro leve, num parar de coração. Primeiro havia tudo. Um instante, e não haverá mais nada. Nem agora, nem amanhã, nem nunca, nem pelos séculos dos séculos.

É isso a morte. O não ser. O não estar. O não ver, o não querer. O não. Por toda a eternidade.”

 

 

“No caso dos gregos, os homens não são feitos à semelhança de Deus, mas os deuses é que são criados à semelhança dos homens, com todas as suas paixões e iniquidades.”

 

 

“O homem progride mas não muda.”

 

 

“Assim mesmo tenho medo daquele possível aventureiro com que dom João VI ameaçava o filho, e que nos vinha empolgar a coroa! Chego a temer até o ‘bispo’ Macedo! É que eu vi pela televisão o estrago que ele fez no congresso do Maracanã. O dinheiro lhe chovia em cima como mariposas, os acólitos só tinham o trabalho de encher os sacos enormes com a volante pecúnia que tombava das mãos dos fieis sobre a arena. E se o povão dá com tanto gosto a um cara daqueles o que ele menos tem, que é o dinheiro, imagine só como não dará voto, que é de graça!...

É isso, realmente, o que mais me apavora.”

 

 

“Os Napoleões, os Césares, os Alexandres, os Tarmelões, nenhum deles incitava os seus soldados com o brado verdadeiro das suas ambições pessoais. “Vamos matar, assaltar vizinhos inocentes, vamos ficar ricos à custa da miséria e do sangue dos mais fracos!”. Não, o discurso deles é sempre generoso e grandiloquente: “Vamos reparar aquela injustiça, esmagar quem nos ameaça, redimir um povo do erro ou da tirania em que se engolfa!”. Quando eles tocam os clarins e reúnem os exércitos, essa voz do clarim como que eleva os homens para a generosidade das paixões heroicas. E eles, os manipuladores das almas (e dos corpos!), sabem muito bem o efeito hipnótico da chamada ao heroísmo.”

 

 

“O homem, quer como indivíduo, quer como nação, não nasceu para a felicidade, mas apenas para a procura dela.”

 

 

“Pois que, mesmo aqui no Brasil, os aviões voam sempre lotados para Miami e Disneilândia; e a cada menino rico que viaja em férias correspondem pelo menos dez meninos de rua, pedindo trocado, roubando – quando podem – e cheirando cola.”

 

 

“Os profetas nunca são felizes. Primeiro, ninguém acredita neles; depois os culpam porque acertaram.”