Este blog destina-se a dividir com os companheiros de estrada as impressões e alguns belos trechos deste fantástico universo que é a literatura.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013
Manuscritos econômico-filosóficos – Karl Marx
quinta-feira, 3 de outubro de 2013
Anarquismo - Roteiro da Libertação Social (Parte I), de Edgard Leuenroth
Editora: Mundo livre
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 238
“É fato comum de cada dia encontrar-se em
discursos de políticos, como na imprensa e em livros a palavra anarquia como qualificativo
de uma situação de desordem, o que demonstra a ignorância em matéria de
etimologia e filosofia desses oradores, jornalistas e escritores. Nunca se diz
que anarquia significa liberdade e justiça para todos.
Em rigorosa análise, o ideal de uma verdadeira
democracia, a que aspira, em nossos dias, a maioria da humanidade, só se poderá
realizar com a ausência da coação econômica e política.
Se o povo resolve seus problemas sociais sem
a intervenção de políticos profissionais, evitando rigorosamente, ao mesmo
tempo, a corruptora burocracia administrativa, então o regime será
verdadeiramente democrático, e, portanto, ácrata, isto é, anarquista. Em tal
regime existirá a anelada felicidade social. A doutrina anarquista nos
apresenta o ideal de uma ordem social sem exploração privada ou estatal, no
qual a administração das coisas acabará com a dominação do homem. Esta
definição não é nova, mas tem de ser repetida, porque a mentira também se
repete sempre.”
(Agustin Souchy)
“A atual sociedade é o resultado das lutas
seculares que os homens travaram entre si. Os homens desconheciam as vantagens
que podiam resultar para todos, orientando-se pelas normas da cooperação e da
solidariedade. Consideravam cada um de seus semelhantes (excetuados, quando
muito, os membros de sua família), um concorrente ou um inimigo. E procuravam
monopolizar, cada qual para si, a maior quantidade possível de gozos, sem
pensar nos interesses dos outros.
Naturalmente, nessa luta, os mais fortes e os
mais espertos deveriam vencer, e de diversas maneiras, explorar e oprimir os
vencidos.
Enquanto o homem não foi capaz de extrair da
natureza senão o estritamente necessário à sua manutenção, os vencedores
limitaram-se a pôr em fuga e a massacrar os vencidos para se apoderarem dos
produtos silvestres, da caça, da pesca num dado território. Em seguida, quando,
com a criação do gado e com o aparecimento da agricultura, o homem soube
produzir mais do que precisava para viver, os vencedores acharam mais cômodo
reduzir os vencidos à escravidão e fazê-los trabalhar para eles.
Muito tempo após, tornou-se mais vantajoso,
mais eficaz e mais seguro explorar o trabalho alheio, por outro sistema:
conservar para si a propriedade exclusiva da terra e de todos os instrumentos
de trabalho, e conceder liberdade aparente aos deserdados. Logo, estes, não
tendo meios para viver, eram forçados a recorrer aos proprietários e a
trabalhar para eles nas condições que os patrões lhes impunham.
Assim, pouco a pouco, a Humanidade tem
evoluído através de uma rede complicada de lutas de toda espécie – invasões,
guerras, rebeliões, repressões, concessões feitas e retomadas, associações dos
vencidos unindo-se para a defesa e dos vencedores coligados para a ofensiva. O
trabalho, porém, não conseguiu ainda a sua emancipação. No atual estado da
sociedade, alguns grupos de homens monopolizam arbitrariamente a terra e todas
as riquezas sociais, enquanto que a grande massa do povo, privada de tudo, é
espezinhada e oprimida.
Conhecemos o estado de miséria em que se
acham geralmente os trabalhadores, e conhecemos todos os males derivados dessa
miséria: ignorância, crimes, prostituição, fraqueza física, abjeção moral e
morte prematura.
(...) Em resumo, querem os anarquistas:
1.° – Abolição da propriedade
(capitalista ou estatal) da terra, das matérias-primas e dos instrumentos de
trabalho, para que ninguém tenha meios de explorar o trabalho dos outros e para
que todos, assegurados os meios de produzir e de viver, sejam verdadeiramente
independentes e possam associar-se livremente uns com os outros, no interesse
comum e de conformidade com as afinidades e simpatias pessoais.
2.° – Abolição do Estado e de qualquer poder
que faça leis para impô-las aos outros; portanto, abolição de todos os órgãos
governamentais e todos os elementos que lhe são próprios, bem como de toda e
qualquer instituição dotada dos meios de constranger e de punir.
3.° – Organização da vida social por
iniciativa das associações livres e das livres federações de produtores e
consumidores, criadas e modificadas conforme à vontade de seus componentes
guiados pela ciência e pela experiência e libertos de toda obrigação que não se
origine da necessidade natural, à qual todos de bom grado se submeterão quando
lhe reconheçam o caráter inelutável.
4.° – A todos serão garantidos os meios de
vida, de desenvolvimento, de bem-estar, particularmente às crianças e a todos
os que sejam incapazes de prover à própria subsistência.
5.° – Guerra a todos os preconceitos
religiosos e a todas as mentiras, mesmo que se ocultem sob o manto da ciência.
Instrução completa para todos, até aos graus mais elevados.
6.° – Guerra às rivalidades e aos prejuízos
patrióticos. Abolição das fronteiras, confraternização de todos os povos.
7.° – Libertação da família de todas as
peias, de tal modo que ela resulte da prática do amor, livre de toda influência
estatal ou religiosa e da opressão econômica ou física.”
(Errico Malatesta)
“O ponto de vista comum em torno do qual
todos os anarquistas estão de acordo, porque reagrupa todas as tendências do
anarquismo, por mais variadas que sejam, é aquele que conduz à mesma meta e que
se caracteriza no fato de se manter o movimento anárquico com uma feição que o
distingue de todos os outros movimentos político- social: a concepção de um
futuro para a Humanidade que exclua todo princípio de autoridade, de domínio e
de exploração do homem pelo homem.”
(Gigi Damiani)
“O anarquismo pode ser filosofia e ciência
político-econômica, sem cair no dogmatismo; simples especulação idealista ou
fundamentalmente prático em suas atitudes fora de qualquer ação impositiva;
pode apegar-se ao materialismo histórico ou apelar para as forças morais e
considerar o sentimento como fator mais eficaz para libertar o homem da
incompreensão em que se debate; pode dizer-se ateu, agnóstico ou divagar em
hipóteses espiritualistas; mas conserva a sua idoneidade quanto à necessidade
que há em combater todo e qualquer princípio de idolatria estatal, conformista
e de monopólio econômico, É antiautoritário e anti-totalitário em todas as
circunstâncias.”
(Gigi Damiani)
“Viver uma vida integralmente anárquica na
sociedade presente é impossível, porque a autoridade do homem sobre o homem, a
exploração do trabalho alheio e a prática de iludir a boa-fé do próximo
constituem as regras fundamentais da ordem social em que vivemos. A autoridade
do Estado, o desfrutamento dos patrões, a ação nefasta e embrutecedora do clero
e da escola oficial estão sempre presentes, assediam-nos, comprimem-nos de
todos os lados e não se pode fugir aos seus tentáculos absorventes.
Ser anarquista requer, por conseguinte,
aspirar a uma forma de convivência social isenta de governantes, de
exploradores e de todas as mentiras convencionais interessadas em manter o
presente estado de coisas; lutar para tornar possível o advento da anarquia,
contra as violências, os prejuízos sociais, as mentiras e os interesses criados
em que se alicerça a ordem existente.”
(“Umanità Nuova”, Roma)
“A perspectiva de uma sociedade sem governo,
sem patrões e sem charlatões sorri a todos os homens que amam a liberdade,
sorri particularmente, luminosamente, às multidões famintas de deserdados e
oprimidos que, desde milênios, são vítimas dos governos, dos privilégios da
riqueza e dos monopólios do saber.
Se alguma vez esses deserdados são
atormentados pela dúvida, é porque, de tão bela, consideram irrealizável o
advento da anarquia; é porque as agruras da luta pelo pão de cada dia lhes
absorvem o tempo e os meios de cultivar as ideias e de afirmar as
possibilidades da realização do ideal anárquico.”
(“Umanità Nuova”, Roma)
“Os anarquistas não condenam a existência do
automóvel, do rádio, do avião, de todas as coisas belas e úteis. Condenam o
privilégio que têm alguns de possuir e usar essas coisas todas, enquanto a
outros não lhes é permitido fazê-lo. Condenam, principalmente, o fato de que,
para usarem essas coisas, alguns explorem o trabalho de outros, que construam
os seus prazeres, e até mesmo os seus vícios, com a miséria dos seres a quem
exploram o trabalho, os sentimentos, a honra e a dignidade.”
(Souza Passos)
“Todos iguais, como os anarquistas concebem a
expressão, é dar a todos o direito de viver, não matando, mas elevando a vida à
mais alta expressão da dignidade. Todos iguais para receber os benefícios da
vida livre, do amor sem peias e preconceitos, da consciência livre, da livre
manifestação de todos os sentidos. Iguais no dever para todos de fazer alguma
coisa útil, contribuindo, cada qual, com a sua capacidade física, intelectual,
moral ou artística, para o bem de todos.”
(Souza Passos)
Os Anarquistas e as Lutas Sociais
O anarquista não quer fazer escada do seu
companheiro de desventuras; não procura melhorar sua posição tornando-se
instrumento da cobiça do capitalista; não se presta aos desejos do patrão, não
se humilha diante dele, não pactua com o inimigo seu e de sua classe. Não
aspira a viver à parte, enquanto todos sofrem; não separa a sua causa da de
seus companheiros; não reconhece diferença de raça ou de nacionalidade; não se
ilude imaginando poder arrancar ao capitalista concessões valiosas e
duradouras, não pensa exclusivamente no seu interesse momentâneo, mas remonta à
causa de seus males e contra ela se insurge.
O anarquista reclama para os outros o mesmo
que para si; recusa servir de rufião aos patrões; revolta-se contra todas as
instituições presentes porque todas sancionam a onipotência dos ricos; não
elege fazedores de leis para não consentir na sua escravidão e para não se
deixar enganar pelos costumados mariolas; não confia nas mentirosas promessas
dos governantes. E ao burguês que tenta, para o subjugar, ora à força, ora à
lisonja, ele responde: “O teu ouro não me seduz, porque fui eu que o extraí das
entranhas da terra. As tuas vinganças não me aterrorizam, porque a vida que me
deixas é uma contínua agonia; o teu poder está condenado a cair. Eu gozo
combatendo-o, e cada revolta minha acelera o triunfo da liberdade e da justiça”.
“A Plebe”, São Paulo
“Se o bem individual fosse realmente oposto
ao da sociedade, não teria podido existir a espécie humana.”
(Pedro Kropotkine)
“O ser humano não é um ser de conflitos.
Quando estes surgem é por motivo anormais e estranhos ao ser humano no decurso
de seu viver. Freud, talvez sem o propósito específico de não lhe dar esse
sentido, assentou uma das bases mais fortes da ética moderna ao demonstrar que
os conflitos psicológicos, considerados sempre como inerente e consubstanciais
à psique humana e, portanto, rodeadas de todos os mistérios metafísicos, têm
origem e natureza em determinadas facetas anormais do viver, que retorcem e
reprimem os instintos. De acordo com as leis naturais, um ser vivente não pode
levar na essência mesma de sua natureza manifestações contraditórias em
conflito permanente, se isso não for motivado por causas alheias a essas
essências que o caracterizam. Todo ser vivo é manifestação de harmonia vital;
quando essa harmonia cessa, vem a morte, pois que a vida em si não é senão
manifestação de harmonia. E o ser humano, que é uma das manifestações mais
altas da vida, não pode conter elementos contraditórios permanentes naquilo que
constitui os fundamentos de sua existência.
Os instintos que nos induzem à satisfação das
necessidades inerentes ao nosso próprio viver não podem ficar à margem da ética
nem em contradição com ela. Não pode ser amoral beber-se um copo d’água, comer
uma maçã ou coabitar com o sexo contrário, que é o complemento e fator da vida,
ou descansar de uma fadiga. Como tampouco é moral satisfazer essas necessidades
em detrimento da satisfação das mesmas necessidades dos outros.
As verdadeiras essências da ética residem,
pois, na harmonização entre a satisfação dos instintos que nos induzem à
conservação da nossa própria existência e os que nos impelem à prática da
cooperação na convivência com os nossos semelhantes.
A concepção ética do anarquismo não pode ser
outra senão essa ética natural manifestada pela livre expressão dos instintos.
Daí a razão de ter o anarquismo que rechaçar toda ética imposta de fora, o que,
em definitivo, é autoritarismo.”
(B. Cano Ruiz, “Tierra
y Libertad”)
“Naturalmente, não me ocupo, neste trabalho
dos sinistros mistificadores para os quais o idealismo não passa de mera
manifestação de hipocrisia e de um instrumento de engano; dos capitalistas que
pregam aos trabalhadores o sentimento do dever e o espírito de sacrifício, para
amortecer-lhes as energias e poderem continuar pacificamente acumulando
fortunas à custa de seu trabalho e de sua miséria; dos “patriotas” que, cheios
de fervor pelo amor à pátria e dominados pelo espírito nacionalista, vivem
explorando por todos os modos o próprio país e, quando podem, procedem da mesma
forma quanto às pátrias alheias; dos militares que, pela glória da pátria e
honra da sua bandeira, atacam outros povos, maltratando-os e oprimindo-os.”
(Errico
Malatesta)
“Em minha vida de militante libertário, tive
oportunidade de, durante muitos anos, frequentar organizações operárias, grupos
revolucionários e sociedades educativas, e sempre verifiquei que os elementos
mais ativos, os mais dedicados, os que sempre estavam dispostos às mais duras
tarefas, contribuindo não apenas com a sua atividade, mas ainda com recursos
retirados de seus ganhos, não eram os mais necessitados, mas, ao contrário,
justamente os de melhor situação – e que se sentiam impelidos à luta não tanto
pelas próprias necessidades, mas pelo desejo de cooperar em prol de uma boa
obra e sentirem-se nobilitados por um ideal. Os elementos de situação mais
miserável, aqueles que, em virtude de suas penosas condições de vida deveriam
ser os mais direta e imediatamente interessados na mudança das coisas,
conservam-se ausentes, ou participam apenas quando a isso levados por um
interesse imediato e, assim mesmo, como parte passiva, beneficiando-se do
esforço dos demais.”
(Errico
Malatesta)
“Parlamento é a máscara política inventada
para fazer crer ao povo ser ele, povo, o soberano e serem púrpuras seus
andrajos de escravo.”
(José Oiticica)
“Para defenderem os próprios privilégios, os
exploradores lançam os explorados uns contra os outros, criando toda uma série
de pequenos interesses que ligam a eles uma parte dos exploradores, e todos se
empenham na defesa dos “grandes privilégios”. E são os trabalhadores, cujos
frutos de trabalho lhes permitem apenas viver uma vida de miséria e
humilhações, que se transformam nos verdadeiros pontilhões do atual estado de
sujeição econômica, política e moral.”
(Ugo Fedelli)
“Como libertário, não aceito a ação
parlamentar, que implica na delegação de poderes, o que constitui séria
divergência doutrinária com o anarquismo. É em obediência a este sábio critério
que os libertários, arrostando dificuldades sem conta, lutam incessantemente no
sentido de conseguir que cada elemento do povo, libertando-se da mentalidade
messiânica imperante, tornando-se senhor de si mesmo, constitua uma unidade
ativa na vida social, agindo em causa própria no patrocínio dos interesses que,
sendo seus, estão em harmonia com os da coletividade. (...)
A experiência é a grande mestra, e esta nos
ensina que o Parlamento, instituição essencialmente burguesa, nunca agiu e
jamais poderá agir em detrimento da vigente ordem de coisas, o que corresponde
a nada fazer em proveito do povo e da causa pública.”
(Edgard
Leuenroth)
“Os socialistas libertários ou anarquistas,
condenando o Estado como órgão parasitário, explorador e tirânico, e a
instituição do monopólio da propriedade, como iníqua e antissocial, lutam por
uma organização que considera o indivíduo como sua unidade essencial e que,
repudiando todas as normas totalitárias e ditatoriais, seja baseada no livre
consenso, determinada e regulada pelas necessidades, aptidões, ideias e
sentimentos de cada qual, dentro de uma vasta confederação
socialista-libertária de comunas livres, estruturadas pelas organizações
profissionais, técnicas, científicas, artísticas, culturais, recreativas, etc.
Esse é o verdadeiro socialismo, obediente aos seus fundamentos históricos, que
os anarquistas propagam, lutando para que seja aceito e posto em prática pelo
povo.”
(Edgard
Leuenroth)
“O anarquismo é o herdeiro e o intransigente
defensor do verdadeiro socialismo. Só o anarquismo vem defendendo desde os seus
primórdios, trazendo-o íntegro até os nossos dias, o que o socialismo tem de
essencial: o sentido da liberdade.
O marxismo, embora tenha concorrido com
algumas contribuições apreciáveis para o estudo do problema social, tornou-se,
em sua contextura e em sua ação, um desvirtuamento e uma corrupção do
socialismo. À medida que consegue vencer politicamente, vai esvaziando o
socialismo do seu conteúdo idealístico e de sua renovação social.”
(G. Ernestan)
“Socialismo é o sistema de organização da
sociedade que tem por base a substituição do regime capitalista – fundamentado
no domínio da propriedade privada e do salariato, instrumento da exploração do
homem pelo homem – por um regime cujo princípio fundamental é socializar, isto
é, pôr em comum os bens sociais, em função dos interesses da coletividade, como
produtos que são dos esforços de todas as gerações.
Socializar quer dizer tornar social a
propriedade hoje em poder do capitalismo. A riqueza existente, que em sua
origem é social (obra de todos), passa a ser também social no seu destino, para
ser de todos. Não se pode confundir socialização com estatização –
transferência para o Estado da propriedade capitalista.”
(Edgard
Leuenroth)
“Onde os comunistas chegaram a tomar o poder,
o socialismo serve de rótulo para um regime de capitalismo de Estado,
continuando o proletariado sujeito à tirania do salariato – instrumento de
exploração capitalista e negação do socialismo – e do Estado todo-poderoso,
senhor das coisas e dos destinos das gentes.”
(Edgard
Leuenroth)
“O anarquismo tem expressão num movimento
constituído de unidades autônomas e ativas, que a ele se ligam – sem perda de
personalidade – por deliberação voluntária e consciente, e não de indivíduos ainda
sem consciência social bem formada, arregimentados sob disciplina autoritária,
obedientes às palavras de ordem de elementos de cúpula, para serem executadas
automaticamente, sem possibilidade de nenhum exame ou divergência.
O movimento libertário assenta a base
ética-social de sua estruturação no objetivo de formar conjuntos constituídos
de unidades representando valores individuais, e não multidões de atuação
oscilante, sem individualidade própria, dependentes sempre de determinações de
líderes, dirigentes, chefes, muitas vezes transformados em messias, dos quais
tudo esperam.
Há ainda uma circunstância relevante, que não
permite ajuizar-se sobre a situação do anarquismo mediante confronto das bases
de seu movimento com as de outras correntes do socialismo e de organizações de
orientação nacionalista ou mística: o movimento anarquista não oferece a
possibilidade da obtenção de empregos ou da conquista de postos de
representação política, não mantendo quadros de funcionalismo para a
movimentação de sua obra e nem apresentando candidatos a eleições.
Exatamente o contrário se verifica em relação
aos outros movimentos ou organizações que, com diferença de proporções,
sujeitara o desenvolvimento de sua atividade à atuação de funcionalismos
numerosos, constituídos, em grande parte, de elementos retirados da produção,
isto é, do exercício de suas profissões, e que, desabituando-se das obrigações
de produtores, passam a constituir um burocratismo desvirtuador e parasitário.
Além dos cargos nos partidos e nas organizações, oferecem ainda postos nas
casas de representação municipal, nas deputações e senatorias e em cargos
governamentais, tudo isso proporcionando a possibilidade de vida mais folgada,
e ainda, para muitos, o ensejo para a exibição de vaidades e de ganhos cuja
origem nem sempre pode ser justificada. (...)
Daí concluir-se que, não oferecendo o
movimento anarquista as vantagens de ordem pessoal proporcionadas por outros
movimentos, partidos e agrupações, dificilmente pode atrair para suas fileiras
os numerosos elementos que orientam a própria atividade social na base de
entusiasmos ocasionais sem motivo ideológico, de simpatias ou de antipatias
pessoais, de paixões políticas, o que lhes permite alternar as respectivas
ações em campos os mais diversos e muitas vezes contraditórios, como
consequência de influências dominantes em cada situação.”
(Edgard
Leuenroth)
domingo, 29 de setembro de 2013
Jogos Sagrados – Vikram Chandra
Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-359-1310-1
Tradução: Celso Nogueira
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 986
Sinopse: O herói e o vilão de Jogos sagrados não
se conhecem pessoalmente; trocam umas poucas palavras pelo interfone, tamanha a
distância que separa o humilde inspetor Sartaj Singh de Ganesh Gaitonde, chefão
da máfia de Mumbai. A suspeita morte do gângster no bunker que mandou construir
em Mumbai marca o início da investigação que levará o detetive Singh a uma
jornada pelas contradições e mistérios da Índia moderna, onde tradição e
mudança se chocam diariamente.
“– Se pretende viver
na cidade, precisa antecipar três rodadas, e ver através de uma mentira para conhecer
a verdade, e ver através da verdade para ver a mentira.”
“Mas eu sabia, lá no
fundo, que sem terra o sujeito não valia nada. A gente pode morrer por amor, pode
morrer por amizade, pode morrer por dinheiro, mas, no final das contas, a única
coisa real neste mundo é a terra.”
“Mas por que Chotta
Badriya me seguiu até as portas da morte? Ele mal me conhecia, sabia dos riscos
insanos de meu plano, e mesmo assim me acompanhou. Eu acho que ele foi comigo porque
eu mandei. A maioria dos homens quer ser conduzida, e só poucos sabem liderar. Eu
tinha um problema, uma escolha e uma decisão a tomar. Decidi, Chotta Badriya e outros
me seguiram. Os que não conseguem decidir são barro mole nas mãos de quem consegue.”
“A comida é o maior
e mais confiável dos prazeres.”
“Um homem sóbrio tem
prioridades, vive alerta e atento. Não precisa de uísque e rum. Basta-lhe a vida.”
“Patriosh Shah me dava
lições diárias sobre o poder de seu dândi-swami. “Você viu como seu apelo foi atendido.
Você pediu, ele deu. Como pode se recusar a acreditar?”. Eu me sentia tentado a
acreditar. Mas, no início da vida, vira como a crença era uma podridão interna que
esvaziava um homem e o transformava num eunuco. Sabia ser a fé uma muleta conveniente
para fracos e covardes. Não, eu não queria ser contaminado por essa doença.”
“Era bom para os dois
policiais Sartaj Singh e Katekar ficarem ali debaixo de uma thela, reclamando. Eles
já haviam se queixado da prefeitura, das corporações, das transferências de funcionários
públicos e policiais honestos, do preço da manga, do trânsito, do excesso de construções,
dos prédios que caíam, dos bueiros entupidos, do parlamento rebelde e selvagem,
da extorsão dos Rakshaks, dos filmes ruins, da falta de programas interessantes
na televisão, da interferência norte-americana nos assuntos subcontinetais, do desaparecimento
de Rimzim das barracas que vendiam refrigerantes, das disputas interestaduais a
respeito das águas dos rios, da falta de boas escolas que ensinassem inglês para
quem não tivesse um pai disposto a gastar um caminhão de dinheiro, da maneira como
retratavam os policiais nos filmes, das horas extras sem pagamento de adicional,
do trabalho e do trabalho. Depois que a pessoa reclama de tudo, resta sempre o trabalho,
com suas horas aleatórias, monotonia, complicações políticas, falta de reconhecimento
e exaustão.”
““O propósito, o sentido,
o intento e a metodologia do serviço secreto é o discernimento de padrões.” Os alunos
esperam, ávidos, pela revelação que lhes trará conhecimento, aguçando-lhes a compreensão
para que, preparados, sobrevivam e triunfem. “A capacidade de identificar um método,
ordem, projeto, é o maior talento que um agente secreto pode possuir”, declara K.D.
Yadav, alcançando o fundo da sala. “O velho ditado se aplica: uma vez é o acaso,
duas é coincidência, três é ação inimiga”.”
“Existem sadhus (milagres),
mesmo. Reais e falsos. Ambos são úteis.”
“Para jogar esse jogo
direito, é preciso controlar homens maus, levá-los a fazer coisas ruins que acabariam
se tornando coisas boas. Era necessário. Só quem nunca esteve num campo de batalha
exige virtude impoluta e feitos impecáveis.”
“O que a quase meia
idade lhe fizera, corroera seu fervor revolucionário com – com o quê? – longas horas
de serviço, contas, o trânsito insuportável, a poluição venenosa que aplicava um
filme negro em seu rosto e nos braços. E pelas derrotas profissionais, pelo divórcio,
pela abrupta amputação do amor, pela compreensão profunda de que o futuro não era
um prado interminável, e sim um vale estreito cercado pela noite.”
“Eu sabia até a medula
dos ossos que todos os presentes são traições, que nascer é ser enganado, que nada
nos é concedido sem que algo maior nos seja tirado”.
“O dinheiro cria beleza,
o dinheiro liberta, o dinheiro torna a moralidade possível.”
“Os escritores são
especialmente suscetíveis ao elogio. Já trabalhei com políticos, homens santos e
gângsteres, e posso afirmar que nenhum deles poderia competir com escritores em
matéria de ego inflado e insegurança de rato.”
“O amor, Sartaj pensou
zombeteiro, era uma armadilha inescapável. Capturado em suas barras, nos debatemos,
salvamos uns aos outros e destruímos uns aos outros.”
domingo, 25 de agosto de 2013
As terras ásperas, de Rachel de Queiroz
Editora: Record/Altaya
ISBN: 978-85-0115-908-3
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 208
Sinopse: Com
sensibilidade de mestra, a autora pinta cenas corriqueiras, como episódios
vividos nas ruas do Rio, aborda temas do cotidiano, recortados do noticiário
dos jornais, coleciona impressões de viagem ao exterior, expõe anotações sobre
amigos, hábitos e costumes...
“Você, homem do século XX, não tem bem noção,
no seu cotidiano, de quanto depende da proteção da ciência e da técnica. Não é
um ser autônomo, capaz de prover as suas mais mínimas necessidades. É tão
condicionado a máquinas quanto um rato de Pavlov às campainhas da gaiola. Toda
a sua vida depende das máquinas – é incrível. Desde o relojinho de pilha, no pulso,
até tudo o que o cerca dentro de casa – geladeira, filtro, fogão, lava-louças,
lava roupas, condicionador de ar, batedeira, liquidificador, torradeira, forno,
enceradeira, aspirador, telefone, TV, rádio, máquina de escrever, COMPUTADOR!
Você não mexe um dedo sem máquinas. Você é mais robotizado que um robô.
Sempre que faço viagens aéreas,
transcontinentais ou transatlânticas, dentro daquela segurança e daquele
conforto do avião – o ar pressurizado, a comida quente, a bebida gelada, o
banheiro completo, a música ambiente, o alto-falante informando sobre o tempo
lá embaixo –, sim, dentro daquele casulo voador, de repente eu penso: Meu Deus,
e bastará uma pequena falha nos motores, uma fratura na asa, um buraco na
fuselagem, e tudo isso se desarticula (não viu no desastre do foguete
Challenger, foram só uns rebites que afrouxaram), tudo se rompe, explode, nos
expele para o ar frio a 40 graus abaixo de zero, para as águas do mar, para a
floresta amazônica. Se morrer, tudo bem, acabou, pronto. Mas e se a gente
escapa? Estaremos muito mais indefesos e vulneráveis do que o mais primitivo
homem da Idade da Pedra. Não sabemos como arranjar abrigo, fazer fogo, não
distinguimos os bichos e os frutos comestíveis. Não temos como nos defender das
feras de terra ou de mar. Em alguns segundos, a gente passará das condições
mais sofisticadas de civilização à condição bruta de um extraterreno,
ignorante, incapaz, lançado num ambiente hostil e estranho.
Isso é bom para rebater o orgulho dos homens
ante essas maquininhas que hoje são a razão da sua vida. Pensavam que eram
deuses, que nada lhes era mais proibido? Pois neste seu paraíso de fios de
arame e rodelinhas de latão, basta um pequeno descontrole de funcionamento para
desmoronar tudo, acabar tudo. E se vão ver nus e inermes, num mundo inimigo,
desconhecido, que eles deliberadamente ignoraram”.
“A ecologia é como o amor a pátria. Em seu
nome, quanta barbaridade se comete.”
“O pior é que o castigo não ensina nada:
enquanto se vive se erra, como sempre foi.”
“A velhice é o mais indesejável dos
progressos. A gente é, de certa forma, como aquelas bonecas russas que contém
várias bonecas, uma dentro da outra, e que se vai descartando até chegar à mais
bonita, que é a menor. Só que, no processo de crescimento, a mudança é a
inversa, vai-se do menor para o maior. Embora o modelo menor continue a ser,
como nas bonecas, o mais bem acabado e o mais bonito.”
“Ah, os homens fazem de tudo para embelezar,
amenizar, poetizar, sublimar a morte, criando os rituais solenes da partida.
Mas em vão. Pois é o próprio morto que estraga suas pompas fúnebres. O morto
não quer saber de exposição, nem esplendores, nem luzes, nem músicas, nem coroa
de flores. O morto só precisa ser oculto, devolvido à terra, desfazer-se. O
morto não espera por ninguém: ele parte sem adeus. Antes nos amava. Morto nos
repele, nos ignora, não quer saber de lágrimas nem de amores. Ele é o grande
indiferente, já partiu, de-fi-ni-ti-va-men-te.
Creio que é o que mais nos horroriza na
morte: o definitivo daquele rompimento. Não há briga entre vivos que não possa
ser remediada, ou pelo menos prolongada em nova briga. A morte corta como uma
guilhotina. Aquele que se interessava até pelos teus pensamentos ocultos, por
tua mínima palavra ou gesto, que segurava febrilmente a tua mão, no desespero
de não se apartar, de repente te larga, te esquece, te corta, te desconhece.
Como se ele nunca tivesse existido – como se você nunca tivesse existido para
ele. Acabou, acabou tudo. O que os amantes rompidos jamais aceitam de verdade,
a morte realiza num fechar de olhos, num suspiro leve, num parar de coração.
Primeiro havia tudo. Um instante, e não haverá mais nada. Nem agora, nem
amanhã, nem nunca, nem pelos séculos dos séculos.
É isso a morte. O não ser. O não estar. O não
ver, o não querer. O não. Por toda a eternidade.”
“No caso dos gregos, os homens não são feitos
à semelhança de Deus, mas os deuses é que são criados à semelhança dos homens,
com todas as suas paixões e iniquidades.”
“O homem progride mas não muda.”
“Assim mesmo tenho medo daquele possível
aventureiro com que dom João VI ameaçava o filho, e que nos vinha empolgar a
coroa! Chego a temer até o ‘bispo’ Macedo! É que eu vi pela televisão o estrago
que ele fez no congresso do Maracanã. O dinheiro lhe chovia em cima como
mariposas, os acólitos só tinham o trabalho de encher os sacos enormes com a
volante pecúnia que tombava das mãos dos fieis sobre a arena. E se o povão dá
com tanto gosto a um cara daqueles o que ele menos tem, que é o dinheiro,
imagine só como não dará voto, que é de graça!...
É isso, realmente, o que mais me apavora.”
“Os Napoleões, os Césares, os Alexandres, os
Tarmelões, nenhum deles incitava os seus soldados com o brado verdadeiro das
suas ambições pessoais. “Vamos matar, assaltar vizinhos inocentes, vamos ficar
ricos à custa da miséria e do sangue dos mais fracos!”. Não, o discurso deles é
sempre generoso e grandiloquente: “Vamos reparar aquela injustiça, esmagar quem
nos ameaça, redimir um povo do erro ou da tirania em que se engolfa!”. Quando
eles tocam os clarins e reúnem os exércitos, essa voz do clarim como que eleva
os homens para a generosidade das paixões heroicas. E eles, os manipuladores
das almas (e dos corpos!), sabem muito bem o efeito hipnótico da chamada ao
heroísmo.”
“O homem, quer como indivíduo, quer como
nação, não nasceu para a felicidade, mas apenas para a procura dela.”
“Pois que, mesmo aqui no Brasil, os aviões
voam sempre lotados para Miami e Disneilândia; e a cada menino rico que viaja
em férias correspondem pelo menos dez meninos de rua, pedindo trocado, roubando
– quando podem – e cheirando cola.”
“Os profetas nunca são felizes. Primeiro,
ninguém acredita neles; depois os culpam porque acertaram.”