segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Os sofrimentos do jovem Werther – Johann Wolfgang von Goethe

Editora: L&PM
ISBN: 978-85-2541-044-3
Tradução: Marcelo Backes
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 216
Sinopse: A literatura alemã divide-se em antes e depois de Os sofrimentos do jovem Werther, que chega às livrarias brasileiras nesta nova e brilhante tradução de Marcelo Backes.
Ao escrever Werther, em 1774, Johann Wolfgang Goethe alcançava sua primeira obra de sucesso e, de quebra, dava início à prosa moderna na Alemanha.
Werther não é, simplesmente, um romance em cartas assim como Nova Heloísa de Rousseau ou Pamela de Richardson. Esta que é uma das mais célebres obras de Goethe é o romance de uma alma, uma história interior. Dilacerante, arrebatada é a história de uma paixão literalmente devastadora. Com enorme repercussão quando do seu lançamento, Werther foi um testemunho de como a literatura tinha poder de agir na sociedade. Não foram poucos os suicídios atribuídos ao romance.
Johann Wolfang von Goethe nasceu em Frankfurt em 1749 e morreu em Weimar em 1832. Poeta, romancista, dramaturgo, crítico, estadista, tornou-se um dos maiores vultos do pensamento alemão, tendo influenciado várias gerações. Em 1775, a convite do Duque Carlos Augusto, foi administrador de Weimar, onde destacou-se brilhantemente como financista e estadista. Deixou vasta obra, onde se destacam, entre outras, Werther, Ifigênia, Elegias romanas (poesia), Fausto, Teoria das cores, Viagem à Itália, Poesia e Verdade.

“Que as crianças não sabem o porquê de desejarem algo, todos os pedagogos estão de acordo. Mas que também homens feitos se arrastem como crianças, titubeando sobre a face da terra, e, exatamente como elas, não saibam de onde vêm e para onde vão, até mesmo que não têm um fim determinado para suas ações, igualmente governados por biscoitos, balas e chibatas, ninguém faz gosto em acreditar. Quanto a mim, parece-me que não há realidade mais palpável do que essa.”


“É natural que, quando um acidente ou um terror súbito nos surpreende no meio do divertimento, a impressão causada seja maior do que em qualquer outra ocasião, um pouco por causa do contraste, outro tanto - e esse viés é mais significativo - por estarem todos os nossos sentidos vivamente excitados e suscetíveis a receber tanto mais rápido uma impressão.”


“Não existe nada mais perigoso do que a solidão.”


“De resto, meu caro, dia a dia vejo com mais clareza quão estúpido é o ato de julgar os outros pelas nossas próprias faculdades”


“E se o cálice se afigurou ao Deus dos céus demasiado amargo quando o levou aos seus lábios de homem, irei eu me fazer de forte e fingir que o acho doce?”

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Contraponto – Aldous Huxley

Editora: Globo
ISBN: 978-85-2500-241-9
Tradução: Erico Verissimo e Leonel Vallandro
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 472
Sinopse: Retrato de uma Inglaterra cínica e anárquica, concebido na frívola efervescência dos anos 20, Contraponto é um dos romances mais ambiciosos de Aldous Huxley. Suas personagens – entre as quais aparecem levemente disfarçados, mas prontamente reconhecíveis os escritores ingleses D. H. Lawrence e Katherine Mansfield, além do próprio Huxley – representam uma sociedade em busca de novos rumos mas sem coragem de romper com os valores decadentes que vigoravam antes do término da Primeira Guerra.



“– Não devemos tomar a arte muito ao pé da letra. E especialmente no que diz respeito ao amor.
– Nem mesmo quando é verdadeira? – perguntara ele.
– A poesia pode ser demasiadamente verdadeira. Pura como água destilada. Quando a verdade não é nada senão a verdade, ela é antinatural; uma abstração que com nada se parece do mundo real. Na natureza há sempre tantas coisas estranhas misturadas à verdade essencial! Eis porque a arte nos comove: precisamente porque está depurada de todas as impurezas da vida real. As orgias verdadeiras nunca são tão excitantes como os livros pornográficos. Num volume de Pierre Louys todas as raparigas são jovens e têm formas perfeitas; não há soluços de bebedeira, nem mau hálito, nem fadiga, nem tédio, nem lembranças súbitas de contas a pagar ou de cartas comerciais a responder; nada disso para interromper os arrebatamentos. A arte nos dá a sensação, o pensamento, o sentimento absolutamente puros – isto é: quimicamente puros. E acrescentara, com uma risada: – Não moralmente.”


“Os silenciosos nunca depõem contra si mesmos.”


“‘Devemos ser leais para com nossos instintos’. Não, não para com todos, não para com os maus: era preciso resistir a estes últimos. Mas eles não se deixavam vencer com facilidade.”


“Marjorie gostava da ideia do amor o que não gostava era dos amantes – exceto à distância e em imaginação.”


“– Eu só queria saber o que Walter poderia ter achado nela, se a mulher é tão deplorável como tu a descreves.
– Mas que é que a gente pode achar em outra pessoa? – John Bidlake falava num tom de voz melancólico. – Nestes assuntos, – acrescentou – todos somos igualmente loucos.”


“Quantos mais somos, mais alegres ficamos.”


“– Mas é lógico – falou Rampion – que se produzam revoluções internas não menos que externas. No Estado, são os pobres contra os ricos. No indivíduo, é o corpo e os instintos oprimidos contra o intelecto. O intelecto foi exaltado, como as classes superiores, no domínio do espírito; as classes inferiores no mesmo domínio se revoltam.”


“O relógio bateu uma hora e, como um cuco libertado pela badalada, Simmons apareceu na biblioteca trazendo uma bandeja. Simmons era um homem maduro e tinha aquela dignidade ministerial de postura que a necessidade de refrear a língua e de manter a calma, de nunca dizer o que verdadeiramente se pensa e de guardar as aparências tende sempre a produzir nos diplomatas, nas personagens reais, nos altos funcionários públicos e nos mordomos.”


“A morte de alguém é uma horrível advertência do futuro.”


“– É jovem ainda. – Foi assim que Spandrell comentou a noite. – Jovem e um pouco insípida. As noites são como seres humanos: só começam a interessar depois que ficam adultas. Lá pela meia-noite elas atingem a puberdade. Um pouco depois da 1 hora chegam à maioridade. A sua plenitude está entre duas e duas e meia. Uma hora mais tarde elas vão ficando cada vez mais desesperadas, como essas mulheres devoradoras de homens e esses homens maduros em declínio que andam por aí a saltitar num pé só mais violentamente do que nunca, na esperança de se convencerem a si mesmos de que não são velhos. Depois das quatro horas, as noites entram em plena decomposição. E a sua morte é horrível. Verdadeiramente horrível, ao nascer do sol, quando as garrafas estão vazias, as pessoas têm um aspecto de cadáveres e o desejo se desfaz em desgosto. Tenho um fraco pelas cenas de leito de morte, confesso – ajuntou Spandrell.”


“Custa tanto escrever um mau livro como um bom; sai com a mesma sinceridade da alma do autor. Mas, sendo a alma do mau autor, pelo menos artisticamente, de qualidade inferior, suas sinceridades serão, senão sempre intrinsecamente desinteressantes, pelo menos desinteressantemente exprimidas, e o trabalho dispensado nessa expressão será malbaratado. A natureza é monstruosamente injusta. Não há  substituto para o talento. A indústria e todas as virtudes são de nenhum proveito.”


“Desconfiai de todos os testemunhos, mesmo dos vossos próprios.”


“Quando refletimos sobre os processos de evolução, sobre a paciência e sobre o gênio humanos, sobre a organização social, sobre tudo que se tornou possível para nós o estar aqui, e os foguistas que se expõem a um ataque de apoplexia em nosso beneficio, e as turbinas de vapor que fazem cinco mil revoluções por minuto, e o mar que é azul, e os raios luminosos que não contornam os obstáculos para que haja sombra, e o sol que nos fornece todo o tempo e energia para viver e pensar – quando pensamos em tudo isso e num milhão de outras coisas, chegamos à conclusão de que nada pode ser mais estranho e que nenhuma descrição, por mais singular que seja, poder fazer justiça aos fatos.”


“– Vocês, jornalistas, são todos os mesmos. Nada de solavancos. A segurança antes de tudo. Literatura sem dor. Nada de preconceitos extraídos a frio ou de ideias pregadas a martelo: é preciso um anestésico. Os leitores devem ser mantidos permanentemente num estado de sono crepuscular. Vocês todos são um caso perdido.”


“– Sabes lá se por acaso a terra não é o inferno de algum outro planeta?”


“– Mas isso é tão tolo, todas estas disputas políticas – disse Rampion, com a voz esganiçada pela exasperação, – tão supinamente tolo! Bolcheviques e fascistas, radicais e conservadores, comunistas e Ingleses Livres – por que diabos estão se batendo eles? Eu lhes digo. Estão lutando para decidir se nós vamos para o inferno pelo trem expresso comunista, ou pelo auto de corrida dos capitalistas, ou pelo ônibus dos individualistas ou pelo bonde coletivista que rola sobre os trilhos do controle do Estado. O destino é o mesmo em qualquer dos casos. Todos eles vão direito ao inferno, precipitam-se todos no mesmo impasse psicológico e no colapso social que resulta do colapso psicológico. O único ponto em que eles diferem é neste: “Como chegarmos até lá?”. É simplesmente impossível a um homem de bom senso interessar-se por semelhantes disputas. Para o homem sensato a coisa importante é o inferno, e não o meio de transporte que deve ser empregado para chegar até lá. A questão que se depara ao homem sensato é: “Queremos ou não queremos ir para o inferno?”. E a resposta é: “Não, não queremos.” E se a resposta é esta, então esse homem não dará ouvidos a políticos de espécie alguma. Porque eles, no fim de contas, nos querem levar para o abismo. Todos, sem exceção. Lenine e Mussolini, Mac Donald e Baldwin. Estão todos igualmente ansiosos por nos levarem para o abismo, e discutem apenas a respeito dos meios de nos carregarem...
– Alguns deles nos poderão levar um pouco mais devagar do que os outros – sugeriu Philip.
Rampion deu de ombros.
– Mas tão pouco mais devagar que não faria nenhuma diferença apreciável. Eles acreditam todos no industrialismo sob uma forma ou outra, acreditam todos na americanização. Pense no ideal bolchevista. É a América fortemente exagerada. A América com serviços governamentais em lugar de trustes, e funcionários em lugar de ricos. E depois o ideal do resto da Europa! É a mesma coisa, apenas ali os ricos são conservados. Dum lado, o maquinismo e os funcionários. Do outro, o maquinismo e Alfred Mond ou Henry Ford. O maquinismo para nos levar à perdição; os ricos ou os funcionários, para dirigi-lo. Pensas que algum desses grupos poderá dirigir mais prudentemente do que os outros? Talvez tenhas razão. Mas não vejo nada a escolher entre eles. Estão todos igualmente apressados. Em nome da ciência, do progresso e da felicidade humana! Amém – e pé no acelerador!
Philip fez um sinal de assentimento com a cabeça.
– E aceleram mesmo! – disse. – A coisa marcha. É o progresso. Mas, como dizes, marcha provavelmente na direção do abismo...
– É o único assunto que os reformadores acham para comentar é a forma, a cor e o mecanismo de direção do veículo. Esses imbecis não veem então que é o rumo tomado o que importa, que estamos absolutamente no caminho errado e que seria preciso fazer meia volta, de preferência a pé, sem essa máquina fedorenta?
– Talvez tenhas razão – disse Philip. – Mas o mal é que, dado o nosso mundo tal como existe, não se pode fazer meia volta, não se pode parar a máquina. Não é possível isso, a menos que estejamos dispostos a exterminar mais ou menos a metade da raça humana. O industrialismo permitiu duplicar a população mundial em cem anos. Se quisermos desembaraçar-nos do industrialismo, é preciso voltar ao ponto de partida. Quer isto dizer que é necessário matar a metade do número existente de homens e de mulheres. O que, sub specie ceternitatis, ou simplesmente historice, seria talvez uma excelente coisa. Mas dificilmente seria uma questão de política prática.
– Por enquanto não é – concordou Rampion. – Mas a próxima guerra e a próxima revolução hão de fazer que a questão se torne bastante prática.
– É possível. Mas não devemos contar com as guerras e as revoluções. Porque, se contamos com elas, elas hão de vir na certa.
– Virão, contemos ou não com elas. O progresso industrial significa superprodução, significa a necessidade de conseguir novos mercados, significa a rivalidade internacional, significa a guerra. E o progresso mecânico significa mais especialização e padronização do trabalho, significa divertimentos despersonalizados, feitos para todo mundo, significa uma queda da iniciativa e das faculdades criadoras, significa mais intelectualismo, e uma atrofia progressiva de todos os elementos vitais e fundamentais da natureza humana, significa mais tédio e agitação, significa enfim uma espécie de loucura individual que não pode ter outro resultado senão a revolução social. Contemos ou não com elas, as revoluções e as guerras são inevitáveis, se permitirmos que as coisas continuem o seu curso atual.
– De sorte que o problema se resolverá por si mesmo...
– Mas somente por sua própria destruição. Quando a humanidade for destruída, está claro que não haverá mais problema. Mas isso me parece uma triste solução... Acredito que possa existir outra, mesmo no quadro do sistema atual. Uma solução provisória, enquanto o sistema fosse sendo modificado na direção duma solução permanente. A raiz do mal está na psicologia individual; de maneira que é por aí, pela psicologia individual, que seria preciso começar. O primeiro passo seria fazer que as pessoas vivessem duma maneira dupla, em dois compartimentos. Num dos compartimentos, como trabalhadores industrializados, no outro, como seres humanos. Como idiotas, como máquinas, durante oito horas dentro das vinte e quatro; e como verdadeiros seres humanos o resto do tempo.
– Elas já não fazem isso?
– Está claro que não. Os homens vivem como idiotas, como máquinas, todo o tempo, tanto nas horas de trabalho como nas horas de folga. Corno idiotas e como máquinas, mas imaginando que vivem como seres humanos civilizados, mesmo como deuses. O primeiro passo a dar é fazê-los reconhecer que eles são idiotas e máquinas durante as horas de trabalho. “Sendo a nossa civilização o que é”, eis o que será preciso dizer-lhes, “vocês devem passar oito horas das vinte e quatro como uma espécie de intermediário entre um imbecil e uma máquina de coser. É muito desagradável, eu sei. É humilhante, é repugnante. Mas aí está... Vocês têm de fazer isso; de outra maneira, toda a estrutura do mundo se fará em pedaços e nós morreremos de fome. Eis por que é preciso que vocês façam esse trabalho bestamente e mecanicamente; e que passem as horas de lazer como homens ou como mulheres verdadeiros e completos. Não misturem as duas vidas; mantenham os compartimentos bem estanques entre elas. O que importa acima de tudo é a vida autenticamente humana das horas de folga. O resto não passa de uma necessidade sórdida que é preciso satisfazer. E não esqueçam nunca que ela é efetivamente sórdida e – a não ser por permitir que vocês se alimentem e conservem intata a sociedade – absolutamente sem importância, sem a menor relação com a verdadeira vida humana. Não se deixem enganar pelos patifes cheios de unção que falam da santidade do trabalho e do serviço cristão que os homens de negócios prestam aos seus semelhantes. Tudo isso são mentiras. O trabalho de vocês não passa duma tarefa repugnante e desagradável, mas que infelizmente é necessária por causa da loucura de nossos antepassados. Eles acumularam uma montanha de lixo, e é preciso que vocês fiquem a trabalhar dia e noite com suas pás procurando remover o monturo, de medo que o fedor dele os envenene e mate; é preciso que vocês trabalhem para respirar, maldizendo a memória daqueles insensatos que lhes deixaram todo esse trabalho ignóbil por fazer. Mas não procurem entregar-se-lhe de coração, fingindo que esse sujo trabalho mecânico é uma necessidade nobre. Não é verdade; e o único resultado que vocês obterão dizendo isso e crendo nisso será abaixar a nossa humanidade ao nível dessa necessidade infecta. Se vocês acreditam nos negócios, como no serviço e na santidade do trabalho, vocês se transformarão simplesmente em idiotas mecanizados durante vinte e quatro horas, das vinte e quatro que tem um dia. Reconheçam que é um trabalho infecto, tapem o nariz, dediquem-se a ele durante oito horas e depois concentrem-se em si mesmos para ser, nas horas de folga, entes humanos verdadeiros. Seres humanos verdadeiros e completos. Não leitores de jornais, nem amadores de jazz, nem maníacos da radiofonia. Os industriais que fornecem às massas divertimentos padronizados e fabricados em serie fazem o possível para torná-los, nas horas de lazer, os mesmo imbecis mecânicos que vocês são durante as horas de trabalho. Mas não permitam isso. É preciso fazer o esforço necessário para ser humano.” Aqui está o que se deve dizer as gentes: eis a lição que devemos ensinar aos moços. É necessário convencer toda a gente de que toda essa magnífica civilização industrial não passa dum mau cheiro, e de que a vida verdadeira, a que significa alguma coisa, não pode ser vivida senão fora dela. Será preciso muito, muito tempo para que uma vida decente e o cheiro industrial se possam conciliar. Talvez sejam mesmo inconciliáveis. É o que ainda está para se ver... Seja como for, por ora é necessário atacar as imundícies de rijo, suportar o cheiro estoicamente, e, nos intervalos, tratar de levar uma vida verdadeiramente humana.
– É um bom programa. Mas não te vejo ganhando muitos votos com ele nas próximas eleições.
– Eis a dificuldade. – Rampion franziu a testa. – Teríamos todos contra nós. Porque a única coisa a cujo respeito todos estão de acordo – conservadores, liberais, socialistas, bolcheviques – é a excelência intrínseca do fedor industrial e a necessidade de suprimir, pela padronização e pela especialização, todo traço de virilidade ou de feminilidade na raça humana. E querem que a gente se interesse pela política! Ora, ora...”


“Pode-se perdoar tudo, menos a ausência.”


“Tenho vagamente a ideia de ir a Madri na semana próxima. Lá há de fazer um calor formidável, é claro. Mas adoro o calor. Desabrocho nos fornos. (Talvez aqui esteja uma indicação significativa do que me reserva a imortalidade...).”


“O ódio, como a bebida, é um estimulante.”


“Desde o instante em que permitimos que a verdade especulativa tomasse, como guia da vida, o lugar da verdade instintivamente sentida, condenamos todas as coisas à ruína. (...) Não permitas que o teu conhecimento teórico influencie a tua vida prática. Duma maneira abstrata sabes que a música existe, e que é bela; mas não partas daí para fingir, ao escutar Mozart, que estas num arrebatamento que não sentes. Se procedes assim, transformas-te num desses esnobes musicais idiotas que se encontram na casa de Lady Edward Tantamount. Incapazes de distinguir Bach de Wagner, mas babando-se de êxtase quando os violinos se fazem ouvir. O mesmo se passa exatamente com Deus. O mundo está cheio de esnobes religiosos perfeitamente ridículos. Pessoas que não estão verdadeiramente vivas, que nunca praticaram um ato verdadeiramente vital, que não têm relação viva com coisa alguma; criaturas que não têm o menor conhecimento pessoal ou prático do que é Deus. Mas andam pelas igrejas, rosnam as suas orações, pervertem e destroem a totalidade de sua existência sem brilho, agindo de acordo com a vontade duma abstração arbitrariamente imaginada a que resolveram dar o nome de Deus. Estes são tão grotescos e desprezíveis como os esnobes musicais da casa de Lady Edward. Mas ninguém tem o bom senso de lhes dizer isso. Os esnobes de Deus são admirados porque são tão bons, tão piedosos, tão cristãos... No entanto, não passam de criaturas mortas, simplesmente mortas. Mereciam levar uns bons pontapés no traseiro e uns puxões de orelhas, para se alertarem e voltarem à vida.”


“– Não há razão para te zangares...
– Pelo contrário, não há quase nada que não possa dar motivo à cólera. Se nos contemos é porque a metade do tempo vivemos de olhos fechados, meio adormecidos. Se estivéssemos sempre acordados, meu Deus! Não ficaria muita louça intacta!”

segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Política e ideologia na teoria marxista: capitalismo, fascismo e populismo, de Ernesto Laclau

Editora: Paz e Terra
ISBN: 78-0731
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 206
Sinopse: Neste livro, Ernesto Laclau desenvolve conceitos inteiramente originais a respeito de importantes problemas do capitalismo, do fascismo e do populismo. Seu trabalho constitui uma fusão intelectual entre a teoria europeia e a experiência latino-americana.


“A perspectiva teórica de André Gunder Frank pode ser resumida nas seguintes teses:
1. É falso supor que o desenvolvimento econômico se verifique através da mesma sucessão de etapas em todo país, ou que as nações desenvolvidas de hoje estejam atravessando uma etapa há muito ultrapassada pelos países desenvolvidos. Ao contrário, os países hoje desenvolvidos jamais foram subdesenvolvidos nesses mesmos moldes, embora tenham sido, em dado momento, não-desenvolvidos.
2. É errado considerar o subdesenvolvimento contemporâneo como simples reflexo das estruturas econômicas, políticas, culturais e sociais dos próprios países subdesenvolvidos. Ao contrário, o subdesenvolvimento é, em grande parte, o produto histórico das relações entre o satélite subdesenvolvido e os atuais países desenvolvidos. Frank afirma: “Para extrair os frutos de seu trabalho através do comércio monopolista – já nos tempos de Cortez e Pizarro, no México e no Peru; de Clive, na Índia; de Rhodes, na África; da “Porta Aberta” na China – as metrópoles destruíram e/ou transformaram totalmente os sistemas anteriores, econômica e socialmente viáveis, destas sociedades, incorporando-as ao sistema capitalista mundial dominado desde a metrópole, e convertendo-as em fontes da própria acumulação e desenvolvimento das metrópoles. O destino destas sociedades conquistadas, transformadas, ou recém-estabelecidas, era e continua sendo sua descapitalização, sua falta de produtividade estruturalmente gerada, a crescente miséria das massas – em suma, seu subdesenvolvimento”. (...)
Desde a conquista colonial, o capitalismo tem sido a base da sociedade latino-americana e a origem de seu desenvolvimento; portanto, é absurdo propor como alternativa um desenvolvimento capitalista dinâmico. A burguesia nacional, nos casos em que existe, está tão intimamente vinculada ao sistema imperialista e à relação de exploração metrópole-satélite que as políticas baseadas em aliança com ela podem apenas prolongar e aprofundar o subdesenvolvimento. A fase nacional-burguesa dos países desenvolvidos deve, em consequência, ser eliminada ou pelo menos, abreviada, e não prolongada, em nome da existência de uma sociedade dual.”


Porque, para Marx – como é óbvio para todos os que tenham um conhecimento ainda que superficial de seu trabalho – o capitalismo era um modo de produção. A relação econômica fundamental do capitalismo é constituída pela venda, pelo trabalhador livre, de sua força de trabalho, cuja precondição necessária é a perda da propriedade dos meios de produção pelo produtor direto. Nas sociedades primitivas, as classes dominantes exploravam os produtores diretos – isto é, expropriavam o excedente econômico por eles criado – e até comercializavam parte deste excedente a ponto de permitir a acumulação de grandes capitais pela classe comercial. Contudo, não se trata de capitalismo no sentido marxista do termo, pois não havia um mercado de trabalho livre.”


“Entendemos por “modo de produção” um complexo integrado de forças sociais produtivas e relações vinculadas a um determinado tipo de propriedade dos meios de produção. Dentre o conjunto de relações de produção, consideramos as que se vinculam à propriedade dos meios de produção como sendo as relações essenciais, uma vez que determinam as formas de canalização do excedente econômico e o grau efetivo da divisão de trabalho, que, por sua vez, é a base da capacidade específica das forças produtivas para se desenvolverem. Seu próprio nível e ritmo de crescimento dependem por sua vez do destino dado ao excedente econômico. Portanto, designamos por modo de produção a articulação lógica e mutuamente coordenada de:
1. Um determinado tipo de propriedade dos meios de produção.
2. Uma determinada forma de apropriação do excedente econômico.
3. Um determinado grau de desenvolvimento da divisão do trabalho.
4. Um determinado nível de desenvolvimento das forças produtivas.
Não se trata de uma numeração meramente descritiva de “fatores isolados”, e sim, de uma totalidade definida por suas conexões recíprocas. Nesta totalidade, a propriedade dos meios de produção constitui o elemento decisivo.
Por sua vez, “sistema econômico” designa as relações mútuas entre os diferentes setores da economia, ou entre diferentes unidades produtivas, quer em escala regional, nacional ou mundial. Ao analisar no volume I de O Capital, o processo de produção de mais-valia e de acumulação do capital, Marx descreve o modo capitalista de produção. Por outro lado, quando analisa o intercâmbio entre o Departamento 1 e o Departamento 2 e introduz problemas como o da renda ou a origem do lucro comercial, descreve um “sistema econômico”. Um sistema econômico pode abranger como elementos constitutivos diferentes modos de produção – desde que o definamos sempre como um todo, ou seja, partindo do elemento ou da lei do movimento que estabelece a unidade de suas várias manifestações.
O modo de produção feudal é aquele em que o processo produtivo atua segundo o seguinte padrão:
1. O excedente econômico é produzido por uma força de trabalho sujeita à coerção econômica.
2. O excedente econômico é apropriado de forma privada por outro que não o produtor direto.
3. A propriedade dos meios de produção permanece nas mãos do produtor direto.
No modo de produção capitalista, o excedente também está sujeito à apropriação privada, mas diversamente do que ocorre no feudalismo, a propriedade dos meios de produção é separada da propriedade da força de trabalho; é isto que irá permitir a transformação da força de trabalho em mercadoria e, com isto, o surgimento da relação salarial.”


“No final da década de 20, Ortega Y Gasset escrevia: “O fascismo tem uma feição enigmática porque nele aparecem conteúdos dos mais opostos. Afirma o autoritarismo e organiza a rebelião. Combate a democracia contemporânea e, por outro lado, não crê na restauração de qualquer regime antigo. Parece propor-se a si mesmo como a forja de um Estado forte e, no entanto, emprega os meios que mais contribuem para provocar a sua dissolução, como se se tratasse de uma facção destrutiva, ou de uma sociedade secreta. Seja qual for o modo pelo qual abordemos o fascismo, descobrimos que é ao mesmo tempo, algo e seu contrário, é A e não -A2”.”


“Por democracia não entendemos nada que tenha uma relação necessária com as instituições parlamentares liberais. (As ideologias popular-democráticas nos países do Terceiro Mundo frequentemente têm-se expressado sob formas nacionalistas e anti-imperialistas que conduziram, uma vez concluído o processo de descolonização, a regimes militares.) Desse modo, entendemos por democracia algo mais do que medidas que simplesmente estabeleçam a liberdade civil, a igualdade e o autogoverno para as massas populares. Esta concepção puramente negativa da democracia surge diretamente da filosofia liberal que, ao reduzir os agentes sociais à vacuidade jurídica do “cidadão”, não conseguiu legislar além de certas formas abstratas de participação que o sistema jurídico assegura a todo o indivíduo. Esta concepção tem sido frequentemente acompanhada – embora nem sempre – no marxismo, pelo “cinismo revolucionário”: isto é, pela ideia de que a classe operária deve simplesmente “utilizar” o marco democrático existente para suas atividades políticas, propagandas, etc., até que chegue o momento em que seja suficientemente forte para impor a ditadura do proletariado. No sentido que lhe atribuímos neste texto, por democracia entendemos um conjunto de símbolos, valores, etc. – em suma, de interpelações – através dos quais “o povo” toma consciência de sua identidade através de seu confronto com o bloco de poder. Essas interpelações aparecem necessariamente unidas às instituições nas quais a democracia se materializa, mas os dois aspectos são indissolúveis. Não se pode conceber uma extensão dos direitos democráticos sem a produção paralela dos sujeitos capazes de exercê-los. Neste sentido, nossa concepção de democracia tem de ser distinguida tanto do Liberalismo quanto do “cinismo revolucionário”. A primeira faz a hipóstase de uma condição abstrata – a cidadania – e a transforma em sujeito de uma democracia concebida como um simples sistema de direitos formais de participar do processo decisório. Daí a confluência, frequentemente assinalada, entre igualdade jurídica formal e exploração real. Por outro lado, o “cinismo revolucionário” considera o sujeito “classe operária” como constituído anteriormente à sua participação nas instituições democráticas e em uma simples relação pragmática de utilização das mesmas. Pelo contrário, em nossa concepção, a extensão real do exercício da democracia e a produção de sujeitos populares cada vez mais hegemônicos, são dois aspectos do mesmo processo. O avanço no sentido de uma verdadeira democracia é uma grande marcha, que só se completará com a eliminação da exploração de classe. Mas essa eliminação deve ser paralelamente acompanhada pela rejeição da referida exploração por parte da imensa maioria da população, isto é, pela criação de um sujeito histórico em que se condensem o socialismo e a democracia.”


“O povo ou os “setores populares” não são, como supõem certas concepções, abstrações retóricas, ou a introdução – por meio de contrabando – de uma concepção liberal ou idealista no discurso político marxista. Povo é uma determinação objetiva do sistema, que difere da determinação de classe: o povo é um dos polos da contradição dominante em uma formação social, isto é, uma contradição cuja inteligibilidade depende do conjunto das relações políticas e ideológicas de dominação e não apenas das relações de produção. Se a contradição de classe é a contradição dominante ao nível abstrato do modo de produção, a contradição povo/bloco de poder é a contradição dominante ao nível da formação social.”


Agora, como a luta democrática é, como vimos, sempre dominada pela luta de classes, a ideologia popular-democrática dos setores médios será insuficiente para organizar um discurso próprio e só poderá existir integrada ao discurso ideológico da burguesia e do proletariado. A luta pela articulação da ideologia popular-democrática aos discursos ideológicos de classe é a luta ideológica fundamental das formações sociais capitalistas. Nesse sentido, a imprecisão classista da fórmula usada pelo Partido Comunista Francês – “camadas assalariadas intermediárias” – embora certamente insuficiente, não parece tão errada quanto supõe Poulantzas. Reflete a intuição de que uma contradição, que não é uma contradição de classe, domina a prática política e ideológica desses setores – de tal forma que, se a classe operária tem que condensar, em sua própria ideologia, sua identidade como classe e sua identidade como povo, esses setores “intermediários” têm, quase que exclusivamente, uma identidade como povo. Isto faz com que as classes médias constituam o campo natural da luta democrática e, ao mesmo tempo, como vimos, o campo por excelência da luta de classes. Porque este é o ponto em que se decide a identificação entre o povo e as classes, identificação que, longe de ser dada de antemão, é o resultado de uma luta: eu diria, mesmo, que é a luta fundamental de que depende a solução de toda crise política no capitalismo.”


“O fascismo surgiu de uma dupla crise:
1. Uma crise do bloco de poder, incapaz de absorver e neutralizar suas contradições com os setores populares através dos canais tradicionais.
2. Uma crise da classe operária, incapaz de hegemonizar as lutas populares e de fundir em uma prática política e ideológica coerente a ideologia popular-democrática e seus objetivos revolucionários de classe.”


“Do ponto de vista socialista, os períodos de maior confronto revolucionário (contra a burguesia) não são aqueles em que a ideologia classista se apresenta em sua máxima pureza, e sim, aqueles em que a ideologia socialista se funde completamente com a ideologia popular e democrática, quando a ideologia proletária consegue absorver todas as tradições nacionais e apresentar a luta anticapitalista como a culminação das lutas democráticas, e o socialismo como o denominador comum dessa ofensiva total contra o bloco dominante.”


(Da formação histórica do fascismo na Itália e Alemanha)
“O capital monopolista, na medida mesma em que ocupava uma posição cada vez mais importante na esfera econômica, defrontava-se com a impossibilidade de impor sua hegemonia no interior do bloco de poder – condição indispensável para efetuar a reestruturação política e econômica que a acumulação capitalista requeria. O sistema político vigente, imobilizado por suas contradições, não oferecia nenhum ponto de apoio adequado para operar, a partir do interior do próprio bloco, a referida transformação. Isto levou o capital monopolista a tentar implantar sua hegemonia através de uma fórmula que implicava uma alteração radical no tipo de Estado. Quanto a isto, é importante dar ênfase ao fato de esta alteração não poder se realizar, tanto na Alemanha, quanto na Itália, através de uma ditadura militar. Na Alemanha, o Exército era um reduto dominado pela influência feudal dos Junkers (nobres grandes proprietários de terra), e na Itália o Exército constituía um sólido suporte da monarquia. Por conseguinte, longe de constituir uma possível base de apoio à política do capital monopolista, o Exército era uma das forças a serem neutralizadas por este último.
Se consequentemente, o capital monopolista se via compelido a um enfrentamento radical com o sistema político vigente e, por esse motivo, não tinha condições de se apoiar solidamente, em nenhum aparelho interno ao próprio bloco de poder, somente poderia alcançar seus objetivos apoiando-se em um movimento de massas. Contudo, nem todo movimento de massas se adaptava às necessidades do capital monopolista. Para que essa adaptação fosse efetiva, era indispensável satisfazer a duas espécies de condições:
1. O movimento deveria ser radical, ou seja, deveria apresentar-se como uma alternativa ao sistema, e não como fórmula alternativa dentro do próprio sistema; do contrário teria sido absorvido pelo sistema político vigente e as mudanças estruturais requeridas pelo capital monopolista teriam sido impossíveis.
2. A mobilização deveria se realizar por meio de interpelações capazes de impedir a identificação entre objetivos populares radicais e objetivos socialistas, uma vez que este último tipo de identificação representava uma ameaça para as classes capitalistas em seu conjunto – inclusive para o capital monopolista.”


“Naturalmente, a persistência (no movimento fascista) de interpelações jacobinas constituía um jogo perigoso, uma vez que poderiam facilmente deslizar para um anticapitalismo efetivo. Na etapa anterior à tomada do poder, a luta de classes já havia penetrado nos próprios movimentos fascistas e só através de um rigoroso processo de expurgos internos afastou-se o perigo de uma orientação anticapitalista. Basta observar que ainda no outono de 1930, os deputados nazistas Strasser, Feder e Frick apresentaram ao Reichstag um projeto de lei estabelecendo o teto de 4 por cento sobre todas as taxas de juros, a expropriação sem indenização das “holdings” dos “magnatas dos bancos e das finanças”, além da nacionalização dos grandes bancos. Hitler obrigou seus deputados a retirarem o projeto. O mesmo projeto, palavra por palavra, foi então apresentado pelos deputados comunistas, e os deputados nazistas foram forçados por Hitler a votar contra. A fim de evitar este tipo de derivação do “jacobinismo oficial”, tornou-se necessário, após a ascensão ao poder, proceder a uma série de expurgos sangrentos, a uma vigilância ideológica constante e a uma repressão generalizada.”


“Se o fascismo foi possível, isto se deve ao fato de a classe operária, tanto através de seus setores reformistas quanto de seus setores revolucionários, ter abandonado o campo da luta popular-democrática.”


“O reducionismo classista estava, portanto, intimamente vinculado às práticas de classe do movimento operário anterior à Primeira Guerra Mundial. No período imediatamente posterior à guerra, essa etapa ainda não fora superada: o movimento operário continuava dominado por uma estreita perspectiva classista e se ressentia da ausência de uma vontade hegemônica com relação ao conjunto das classes exploradas. Para a fração reformista, cumpria reconstruir – o mais breve possível – o aparelho do Estado burguês, de forma a restabelecer as condições de negociação que haviam permitido à classe operária a conquista de benefícios cada vez maiores. Para a fração revolucionária, cumpria realizar a revolução proletária e a instalação de um regime soviético. Porém, em ambos os casos, tratava-se de políticas exclusivamente de classe, que ignoravam totalmente o problema das lutas popular-democráticas. Assim, a radicalização das classes médias e a crise do transformismo colocavam os partidos operários diante de uma situação totalmente nova, para a qual, na verdade, não tinham resposta. Em consequência, sequer tentaram vincular o jacobinismo radical das classes médias ao discurso socialista: mantiveram-se limitados a uma pura perspectiva classista, que terminou por conduzir ao seu suicídio político. O fascismo, nesse sentido, foi o resultado de uma crise da classe operária – porém, essa crise não reside na incapacidade da classe operária de levar a cabo uma revolução na Itália ou na Alemanha, e sim, na sua incapacidade de se apresentar como alternativa popular hegemônica ao conjunto das classes dominadas, no decorrer da mais grave crise já enfrentada pelo sistema de dominação capitalista da Europa. O resultado foi que as interpelações populares das classes médias foram absorvidas e neutralizadas, da forma já descrita, pelo discurso político fascista, que as colocou a serviço da nova fração capitalista. Contudo, o processo também teve repercussões ao nível da classe operária. Como dissemos, a classe operária tem uma dupla identidade: como classe e como povo. O fracasso das diferentes tentativas classistas – revolucionárias ou reformistas – em superar a crise, levou à desmoralização e à desmobilização da classe operária; a falta de articulação das interpelações populares com o discurso socialista deixou este flanco cada vez mais exposto à influência ideológica do fascismo. Daí decorre um fato, mencionado por Poulantzas: a implantação do fascismo em parte da classe operária e a neutralização política da totalidade dessa classe.
Se havia um “destino manifesto” claro para alguma classe operária e europeia ao fim da Primeira Guerra Mundial, era o da classe operária alemã. A crise da ideologia dominante se revelou, como toda crise, na desarticulação de suas interpelações constitutivas. Por um lado, o prestígio e a autoridade do bloco de poder dominante encontravam-se seriamente abalados; por outro lado, a agitação nacionalista entre as classes médias assumia conotações crescentemente plebeias e anticapitalistas. Foi através dessa fissura que o hitlerismo penetrou, e sua penetração foi uma consequência da incapacidade da classe operária em comparecer a seu encontro com a história. A classe operária deveria ter-se apresentado como a força capaz de conduzir as lutas históricas do povo alemão à sua conclusão, e ao socialismo como a sua consumação; deveria ter trazido à tona as limitações do prussianismo, cujas ambiguidades e compromissos com as velhas classes dominantes haviam conduzido à catástrofe nacional, e deveria ter feito um apelo a todos os setores populares para que condensassem em símbolos ideológicos comuns o nacionalismo, o socialismo e a democracia. (A crise provocara a desarticulação das interpelações nacionalistas e autoritárias do velho prussianismo, isto é, essas últimas haviam perdido seus direitos históricos de serem consideradas como representativas dos interesses nacionais; por outro lado, o fato de um agitador plebeu como Hitler – a quem Hindemburg qualificava desdenhosamente de “cabo austríaco” – dar a seu movimento o nome de Nacional-Socialismo, é uma prova eloquente de que essas duas palavras, na consciência das massas, tendiam a se condensar espontaneamente.) Essa vontade hegemônica por parte da classe operária teria produzido profundo impacto sobre a pequena burguesia jacobinizada e lhe teria permitido orientar seu protesto em uma direção socialista. Mesmo depois do surgimento de Hitler ele não teria condições de exercer o monopólio da linguagem popular e nacionalista de maneira como o fez; os setores de esquerda de seu movimento, desapontados diante de suas concessões às classes capitalistas, teriam encontrado um polo alternativo de reagrupamento, e o capital monopolista, por sua vez, teria se mostrado bem menos disposto a arriscar uma cartada em uma alternativa ideológica cujo sistema de interpelações constituía uma zona de disputa com o movimento comunista. Contudo, nada disto aconteceu e o abandono por parte da classe operária do campo da luta popular-democrática, abriu caminho para o fascismo.”


“Compreende-se que toda grande revolução seja uma revolução nacional, ou do povo, no sentido de que une em torno da classe revolucionária todas as forças viris e criativas da nação e a reconstrói ao redor de um novo núcleo.” (Trotsky)


“O fascista Strasser diz que 95% do povo estão interessados na revolução, consequentemente, não se trata de uma revolução de classe, mas de uma revolução popular, Thälmann faz coro. Na realidade, o operário comunista deveria dizer para o operário fascista: claro, 95% por cento da população, senão 98%, são explorados pelo capital financeiro. Mas esta exploração é organizada hierarquicamente: há exploradores, há subexploradores, há sub-subexploradores, etc. Somente graças a esta hierarquia os superexploradores conseguem manter submetida a maioria da nação.” (Trotsky)


“Portanto, repensar e reanalisar a experiência fascista parece-me essencial pela seguinte razão: o fascismo tem sido a forma extrema pela qual as interpelações populares, em sua forma mais radicalizada – o jacobinismo – logram transformar-se no discurso político da fração dominante da burguesia. É, assim, uma perfeita demonstração do caráter não classista das interpelações populares. O socialismo não constitui, consequentemente, o polo oposto ao fascismo, como muitas vezes foi apresentado – como se o fascismo fosse a ideologia dos setores mais conservadores e retrógrados, seguido pelo continuum do liberalismo – desde suas versões de direita até suas versões de esquerda – culminando no socialismo. O socialismo é, certamente, o oposto do fascismo, porém, no sentido de que, enquanto o fascismo constitui o discurso popular radical neutralizado pela burguesia e por ela transformado em seu próprio discurso político específico em um período de crise, o socialismo é o discurso popular ao qual foi permitido desenvolver todo o seu potencial revolucionário, a partir de sua vinculação ao anticapitalismo radical da classe operária.”


“Na América Latina, onde a mobilização das massas urbanas assumiu com frequência conotações populistas, o populismo tem sido considerado como expressão política e ideológica ou da pequena burguesia, ou de setores marginais, ou da burguesia nacional que precisa mobilizar as massas, tendo em vista um confronto parcial com as oligarquias locais e com o imperialismo.”


“Torcuato di Tella define o populismo como “um movimento político que desfruta do apoio das massas da classe operária urbana e/ou do campesinato, mas que não deriva do poder organizacional autônomo de nenhum dos dois setores. É também apoiado por outros setores que não a classe operária que alimentem uma ideologia anti-status quo. Em outras palavras, as classes sociais estão presentes no populismo, mas não enquanto classes; na realidade, ocorre uma distorção peculiar entre a natureza de classe desses setores e suas formas de expressão política.”


“O caráter de classe de uma ideologia é dado por sua forma, e não por seu conteúdo. Em que consiste a forma de uma ideologia? Já vimos anteriormente que a resposta está no princípio articulatório de suas interpelações constitutivas. O caráter de classe de um discurso ideológico se revela no que poderíamos chamar de seu princípio articulatório específico. Tomemos um caso: o nacionalismo. Trata-se de uma ideologia feudal, burguesa ou proletária? Considerado em si, não tem nenhuma conotação classista. Esta última só deriva de sua articulação específica com outros elementos ideológicos. Uma classe feudal, por exemplo, pode vincular o nacionalismo à manutenção de um sistema hierárquico-autoritário de tipo tradicional – basta lembrar a Alemanha de Bismark. Uma classe burguesa pode ligar o nacionalismo ao desenvolvimento de um Estado-Nação centralizado em luta contra o particularismo feudal e, simultaneamente, apelar para a unidade nacional como meio de neutralizar os conflitos de classe – recordemos o caso da França. Finalmente, um movimento comunista pode denunciar a traição da causa nacionalista pelas classes capitalistas, e articular o socialismo ao nacionalismo, em um discurso ideológico unitário – pensemos, por exemplo, em Mao.”


“A ideologia da classe dominante, justamente por ser dominante, interpela não só os membros desta classe, mas também os membros das classes dominadas. A forma concreta que assume a interpelação dessas últimas consiste na absorção parcial e neutralização dos conteúdos ideológicos através dos quais se expressa a resistência à dominação. O método através do qual se realiza esse processo é o de eliminar o antagonismo e transformá-lo em uma simples diferença. Uma classe é hegemônica não tanto na medida em que é capaz de impor uma concepção uniforme do mundo ao resto da sociedade, mas na medida em que consiga articular diferentes visões de mundo de forma tal que seu antagonismo potencial seja neutralizado. A burguesia inglesa do século XIX transformou-se em uma classe hegemônica não através da imposição de uma ideologia uniforme às demais classes, e sim na medida em que conseguiu articular diferentes ideologias a seu projeto hegemônico, graças à eliminação de seu caráter antagônico: a aristocracia não foi abolida, ao estilo jacobino, mas reduzida a um papel cada vez mais subordinado e decorativo, enquanto as reivindicações da classe operária eram parcialmente absorvidas – o que resultou no reformismo e no sindicalismo. O particularismo e a natureza ad hoc das instituições e da ideologia dominante na Grã-Bretanha não refletem, portanto, um desenvolvimento burguês insuficiente: mas justamente o contrário: o supremo poder articulador da burguesia.”


“Da análise precedente, Badiou e Balmès derivam as seguintes conclusões teóricas: “Todas as grandes revoltas de massas das sucessivas classes exploradas (escravos, camponeses, proletários) encontram sua expressão ideológica nas formulações igualitárias, antiproprietária e antiestatal que constituem as linhas mestras de um programa comunista... São os elementos dessa tomada geral de posição pelos produtores rebelados que denominamos de invariantes comunistas: invariantes ideológicas de tipo comunista, continuamente regeneradas pelo processo de unificação das grandes revoltas populares de todos os tempos. As invariantes comunistas não têm um caráter de classe, definido: sintetizam a aspiração universal dos explorados no sentido de derrubar todo princípio da exploração e da opressão. Elas nascem no campo da confrontação entre as massas e o Estado. Naturalmente, esta contradição é, ela própria, estruturada em termos de classe, pois o Estado é sempre o Estado de uma classe dominante específica. Entretanto, existe uma forma geral do Estado, organicamente vinculada à própria existência das classes e da exploração, contra a qual as massas invariavelmente se insurgem, portadoras que são de sua dissolução e do movimento histórico que “relegará todo o aparelho do Estado ao lugar que, daí por diante será o seu: ao museu de antiguidades, ao lado da roca e do machado de bronze”.”


“C. B. Macpherson, por exemplo, estudou a forma como a ideologia popular-democrática foi progressivamente desligada de seus elementos antagonísticos que, no início do século XIX, identificavam-na com o governo “dos que estão embaixo” e com o jacobinismo odiado, de modo a permitir sua absorção e neutralização pela ideologia liberal dominante. Afirma: “Na época em que surgiu a democracia, nos atuais países democrático-liberais, ela não mais se opunha à sociedade liberal e ao Estado liberal. Já era, então, não uma tentativa das classes mais baixas de derrubar o estado liberal, ou a economia competitiva de mercado; era uma tentativa das classes mais baixas de assumir, plena e justamente, seu lugar competitivo dentro daquelas instituições e daquele sistema de sociedade. A democracia havia sido transformada. De uma ameaça ao Estado liberal, tornara-se uma realização plena do Estado liberal... O Estado liberal realizara sua própria lógica. E ao fazê-lo, nem se destruiu nem se enfraqueceu: fortaleceu tanto a si mesmo como à sociedade de mercado. Liberalizou a democracia ao democratizar o liberalismo”.”


“Como salientei anteriormente, foi este o caso do nazismo. O capital monopolista não podia impor sua hegemonia dentro do sistema institucional vigente – como o fizera na Inglaterra ou na França – nem tampouco podia apoiar-se no Exército, que constituía um “enclave” sob a influência feudal dos “junkers”. A única solução era um movimento de massas que desenvolvesse o antagonismo potencial das interpelações populares, mas articuladas de modo a impedir sua canalização em uma direção revolucionária. O nazismo constituiu, em consequência, uma experiência populista e, como todo populismo das classes dominantes, teve que apelar para um conjunto de distorções ideológicas – como o racismo – para evitar que o potencial revolucionário das interpelações populares se orientasse no sentido de seus verdadeiros objetivos. O populismo das classes dominantes é sempre altamente repressivo porque tenta uma experiência mais perigosa do que um regime parlamentar: enquanto o segundo simplesmente neutraliza o potencial revolucionário das interpelações populares, o primeiro procura desenvolver este antagonismo, embora mantendo-o dentro de certos limites.”


“O Getulismo nunca foi genuinamente populista. Pelo contrário, oscilou em um movimento pendular: nos momentos de estabilidade, sua linguagem tende a ser paternalista e conservadora; nos momentos de crise, quando os elementos conservadores da coalizão desertam, lança-se resolutamente, na via do populismo – isto é, do desenvolvimento do antagonismo latente nas interpelações democráticas. Porém, nestes momentos, uma lógica política elementar se impunha: as bases sociais a que se dirige o discurso populista foram, até agora, no Brasil, insuficientes para assegurar o poder político. Isto ficaria demonstrado pelo destino de Vargas, em 1945, em 1954 e finalmente pela queda de Goulart, em 1964.”
  

“Examinemos em maior detalhe esta dialética característica existente entre o povo e as classes. Classes só existem como forças hegemônicas na medida em que conseguem articular as interpelações populares a seu próprio discurso. Para as classes dominantes, essa articulação consiste, como vimos, na neutralização do povo. Para as classes dominadas, no desenvolvimento do antagonismo inerente a ele. Para conquistarem a hegemonia, as classes dominadas devem precipitar a crise do discurso ideológico dominante e reduzir seus princípios articulatórios a enteléquias vazias, destituídas de qualquer força conotativa face às interpelações populares. Para tanto, devem desenvolver o antagonismo implícito nessas últimas até o ponto em que o povo se torne totalmente inassimilável por qualquer fração do bloco de poder. Contudo, apresentar as interpelações populares sob a forma de antagonismo é, como sabemos, característico do populismo. Se, por conseguinte, uma classe dominada deve impor sua hegemonia através de um confronto com o bloco de poder, e se para este enfrentamento necessita desenvolver o antagonismo implícito nas interpelações populares, deduz-se que quanto mais radical for seu enfrentamento com o sistema, tanto menos possível será para essa classe afirmar sua hegemonia sem “populismo”. O populismo não é, em consequência, expressão do atraso ideológico de uma classe dominada mas, ao contrário, uma expressão do momento em que o poder articulatório desta classe se impõe hegemonicamente sobre o resto da sociedade. Este é o primeiro movimento da dialética entre povo e classes: As classes não podem afirmar sua hegemonia sem articular o povo a seu discurso: e a forma específica desta articulação, no caso de uma classe que, para afirmar sua hegemonia, tem que entrar em confronto com o bloco de poder em seu conjunto será o populismo.” 

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

O Silmarillion – J. R. R. Tolkien

Editora: Martins Fontes
ISBN: 978-85-7827-126-8
Tradução: Waldéa Barcellos
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 480
Sinopse: O Silmarillion, publicado quatro anos após o falecimento do seu autor, é um relato dos Dias Antigos, a Primeira Era do Mundo. Em O Senhor dos Anéis, foram narrados os grandes eventos do final da Terceira Era; as histórias de O Silmarillion, no entanto, são lendas derivadas de um passado muito mais remoto, quando Morgoth, o primeiro Senhor do Escuro, habitava a Terra-média, e os altos-elfos guerrearam com ele pela recuperação das Silmarils.
Mas O Silmarillion não relata apenas os eventos de uma época muito anterior àquela de O Senhor dos Anéis em todos os pontos essenciais de sua concepção, ele também é, de longe, a obra mais antiga. Na realidade, embora na época não chamasse O Silmarillion, já existia meio século antes. Em cadernos velhíssimos, que remontam a 1917, podem ser lidas as versões iniciais das histórias mais importantes da mitologia, muitas vezes escritas às pressas, à lápis.



“Diz-se entre os sábios que a Primeira Guerra começou antes que Arda estivesse totalmente formada, e antes mesmo que qualquer criatura crescesse ou caminhasse sobre a terra; e por muito tempo Melkor prevaleceu. Entretanto, no meio da guerra, ao ouvir no distante firmamento que havia batalha no Pequeno Reino, um espírito de enorme força e resistência veio em auxílio dos Valar; e Arda se encheu com o som de seu riso. Assim veio Tulkas, o Forte, cuja ira circula como um vento poderoso, afastando a nuvem e a escuridão à sua frente.
E Melkor fugiu de sua fúria e de suas risadas, abandonando Arda, e a paz reinou por uma longa era. E Tulkas permaneceu, tomando-se um dos Valar do Reino de Arda; mas Melkor remoía pensamentos nas trevas distantes, e dirigiu seu ódio a Tulkas para todo o sempre.
Naquele período, os Valar trouxeram ordem aos mares, terras e montanhas, e Yavanna finalmente plantou as sementes que havia muito imaginara. E, como houvesse necessidade de luz, já que os fogos estavam dominados ou enterrados sob as colinas primitivas, Aulë, a pedido de Yavanna, criou duas lamparinas poderosas para iluminar a Terra-média, construída por ele entre os mares circundantes. Então Varda encheu as lamparinas, e Manwë as consagrou; e os Valar as puseram em cima de colunas altíssimas, mais elevadas do que qualquer das montanhas mais recentes. Ergueram uma lamparina junto ao norte da Terra-média, e ela se chamou Illuin; e a outra foi erguida no sul, e foi chamada Ormal; e a luz das Lamparinas dos Valar se derramou por toda a Terra, iluminando tudo como se fosse sempre dia.
Então, as sementes que Yavanna havia plantado logo começaram a brotar e a se desenvolver, e surgiu uma infinidade de seres em crescimento, grandes e pequenos, musgos, capins e enormes samambaias, e árvores cujas copas eram coroadas de nuvens, como montanhas vivas, mas cujos pés ficavam envoltos numa penumbra verde. E surgiram feras que habitavam as pradarias, os rios e os lagos, ou caminhavam nas sombras dos bosques. Ainda não surgira nenhuma flor, nem cantara pássaro algum, pois esses seres esperavam sua vez no ventre de Yavanna; mas havia abundância do que ela imaginara, e nenhum lugar era mais rico do que as partes mais centrais da Terra, onde a luz das duas Lamparinas se encontrava e se fundia. E ali, na Ilha de Almaren, no Grande Lago, foi a primeira morada dos Valar quando tudo era novo, e o verde recém-criado ainda era uma maravilha aos olhos dos criadores. E eles se contentaram por muito tempo.
Ora, veio a acontecer que, enquanto os Valar repousavam da sua labuta e observavam o crescimento e o desabrochar daquilo que haviam inventado e iniciado, Manwë ofereceu uma grande festa; e os Valar e toda a sua gente atenderam ao convite. No entanto, Aulë e Tulkas estavam exaustos; pois a habilidade de Aulë e a força de Tulkas haviam estado ininterruptamente a serviço de todos, nos dias de sua faina. E Melkor sabia de tudo o que era feito, pois já naquela época dispunha de espiões e amigos secretos entre os Maiar, que havia atraído para sua causa. E muito ao longe, nas trevas, ele se enchia de ódio, sentindo inveja do trabalho de seus pares e desejando submetê-los. Assim, Melkor chamou a si os espíritos que desviara para seu serviço, fazendo-os sair das mansões de Eä, e se considerou forte. E, vendo que essa era sua hora, ele mais uma vez se aproximou de Arda e baixou os olhos até ela; e a beleza da Terra em sua Primavera o enfureceu ainda mais.
Assim, os Valar se reuniram em Almaren, sem temer mal algum, e, por causa da luz de Illuin, não perceberam a sombra do norte que vinha sendo lançada de longe por Melkor; pois ele se tornara escuro como a Noite do Vazio. E dizem as canções que, naquela festa, na Primavera de Arda, Tulkas desposou Nessa, a irmã de Oromë, e ela dançou diante dos Valar sobre a relva verdejante de Almaren Tulkas então adormeceu, exausto e contente, e Melkor acreditou que sua hora havia chegado. Transpôs as Muralhas da Noite com sua legião e chegou a Terra-média, à distância, no norte, sem que os Valar dele se apercebessem.
Melkor iniciou então as escavações e a construção de uma enorme fortaleza nas profundezas da Terra, debaixo das montanhas escuras onde os raios de Illuin eram frios e pálidos. Esse reduto foi chamado Utumno. E, embora os Valar ainda nada soubessem a respeito, mesmo assim a perversidade de Melkor e a influência maléfica de seu ódio emanavam de lá, e a Primavera de Arda foi destruída. Os seres verdes adoeceram e apodreceram, os rios foram obstruídos por algas e lodo; criaram-se pântanos, repelentes e venenosos, criatórios de moscas; as florestas tornaram-se sombrias e perigosas, antros do medo; e as feras se transformaram em monstros de chifre e marfim e tingiram a terra de sangue. Os Valar tiveram então certeza, de que Melkor estava agindo novamente, e saíram à procura de seu esconderijo. Melkor, porém, confiante na resistência de Utumno e no poder de seus servos, apresentou-se de repente para a luta e deu o primeiro golpe antes que os Valar estivessem preparados, atacou as luzes de Illuin e Ormal, arrasou suas colunas e quebrou suas lamparinas. Quando as enormes colunas desmoronaram, terras fenderam-se e mares elevaram-se em turbulência. E, quando as lamparinas foram derrubadas, labaredas destruidoras se derramaram pela Terra. E a forma de Arda, além da simetria de suas águas e de suas terras, foi desfigurada naquele momento, de modo tal que os primeiros projetos dos Valar nunca mais foram restaurados.
Em meio à confusão e às trevas, Melkor conseguiu escapar, embora o medo se abatesse sobre ele; pois, mais alto que o bramido dos mares, ele ouvia a voz de Manwë como um vento fortíssimo, e a terra tremia sob os pés de Tulkas. Chegou, porém a Utumno antes que Tulkas conseguisse alcançá-lo; e ali permaneceu escondido. E os Valar não puderam então derrotá-lo, já que a maior parte de sua força era necessária para controlar as turbulências da Terra e salvar da destruição tudo o que pudesse ser salvo de sua obra. Depois, eles recearam fender novamente a Terra, enquanto não soubessem onde habitavam os Filhos de Ilúvatar, que ainda estavam por vir num momento que desconheciam.
Assim terminou a Primavera de Arda. A morada do Valar em Almaren foi totalmente destruída, e eles não tinham nenhum local de pouso na face da Terra. Por esse motivo partiram da Terra-média e foram para a Terra de Aman, a mais ocidental de todas, junto aos limites do mundo; pois seu litoral oeste dá para o Mar de Fora, que é chamado pelos elfos de Ekkaia e circunda o Reino de Arda. A extensão desse mar ninguém conhece a não ser os Valar; e, para além dele, ficam as Muralhas da Noite. Já a costa leste de Aman era o limite mais distante de Belegaer, o Grande Mar do Oeste. E, como Melkor estava de volta a Terra-média e eles ainda não tinham como derrotá-la, os Valar fortificaram sua morada e, junto ao litoral, ergueram as Pelóri, as montanhas de Aman, as mais altas de toda a Terra. E acima de todas as montanhas das Pelóri elevava-se aquela em cujo pico Manwë instalou seu trono. Taniquetil é como os elfos chamam essa montanha sagrada; e Oiolossë, Brancura Eterna; e Elerrína, Coroada de Estrelas, e muitos outros nomes. Já os sindar a mencionavam, em sua língua mais recente, como Amon Uilos. De seu palácio no cume da Taniquetil, Manwë e Varda conseguiam descortinar a Terra inteira, até mesmo as maiores distâncias a leste.
Por trás das muralhas das Pelóri, os Valar estabeleceram seu domínio na região chamada Valinor; e ali ficavam suas casas, seus jardins e suas torres. Nesse território seguro, os Valar acumularam enorme quantidade de luz e tudo de mais belo que fora salvo da destruição. E muitas outras coisas ainda mais formosas eles voltaram a criar; e Valinor tornou-se ainda mais bonita do que a Terra-média na Primavera de Arda. E Valinor foi abençoada, pois os Imortais ali moravam; e ali nada desbotava nem murchava; não havia mácula alguma em flor ou folha naquela terra; nem nenhuma decomposição ou enfermidade em coisa alguma que fosse viva; pois as próprias pedras e águas eram abençoadas.
E quando Valinor estava pronta, e as mansões dos Valar, instaladas no meio da planície do outro lado das montanhas, eles construíram sua cidade, Valmar de muitos sinos. Diante de seu portão ocidental, havia uma colina verdejante, Ezellohar, que também é chamada Corollairë; Yavanna a consagrou, e ficou ali sentada muito tempo sobre a relva verde, entoando uma canção de poder, na qual expunha o que pensava sobre as coisas que crescem na terra. Nienna, porém, meditava calada e regava o solo com lágrimas. Naquele momento, os Valar, reunidos para ouvir o canto de Yavanna, estavam sentados, em silêncio, em seus tronos do conselho no Máhanaxar, o Círculo da Lei junto aos portões dourados de Valmar; e Yavanna Kementãri cantava diante deles, e eles observavam.
E enquanto olhavam, sobre a colina surgiram dois brotos esguios; e o silêncio envolveu todo o mundo naquela hora, nem havia nenhum outro som que não o canto de Yavanna. Em obediência a seu canto, as árvores jovens cresceram e ganharam beleza e altura; e vieram a florir; e assim, surgiram no mundo as Duas Árvores de Valinor. De tudo o que Yavanna criou, são as mais célebres, e em torno de seu destino são tecidas todas as histórias dos Dias Antigos.
Uma tinha folhas verde-escuras, que na parte de baixo eram como prata brilhante; e de cada uma de suas inúmeras flores caía sem cessar um orvalho de luz prateada; e a terra sob sua copa era manchada pelas sombras de suas folhas esvoaçantes. A outra apresentava folhas de um verde viçoso, como o da faia recém-aberta, orladas de um dourado cintilante. As flores balançavam nos galhos em cachos de um amarelo flamejante, cada um na forma de uma cornucópia brilhante, derramando no chão uma chuva dourada. E da flor daquela árvore, emanavam calor e uma luz esplêndida. Telperion, a primeira, era chamada em Valinor, e Silpion, e Ninquelótë, entre muitos outros nomes; mas Laurelin era a outra, e também Malinalda e Culúrien, entre muitos outros nomes poéticos.
Em sete horas, a glória de cada árvore atingia a plenitude e voltava novamente ao nada; e cada uma despertava novamente para a vida uma hora antes de a outra deixar de brilhar. Assim, em Valinor, duas vezes ao dia havia uma hora suave de luz mais delicada, quando as duas árvores estavam fracas e seus raios prateados e dourados se fundiam. Telperion era a mais velha das árvores e chegou primeiro à sua plena estatura e florescimento; e aquela primeira hora em que brilhou, com o bruxulear pálido de uma alvorada de prata, os Valar não incluíram na história das horas, mas denominaram a Hora Inaugural, e a partir dela passaram a contar o tempo de seu reinado em Valinor. Portanto, à sexta hora do Primeiro Dia, e de todos os dias jubilosos que se seguiram, até o Ocaso de Valinor, Telperion interrompia sua vez de florir; e na décima segunda hora, era Laurelin que o fazia. E cada dia dos Valar em Aman continha doze horas e terminava com a segunda fusão das luzes, na qual Laurelin empalidecia, e Telperion se fortalecia.
Contudo, a luz que se derramava das árvores persistia muito, antes de ser levada para as alturas pelos ares ou de afundar terra adentro. E as gotas de orvalho de Telperion e a chuva que caía de Laurelin, Varda armazenava em enormes tonéis, como lagos brilhantes, que eram para toda a terra dos Valar como poços de água e luz. Assim começaram os Dias de Bem-aventurança de Valinor; e assim começou a Contagem do Tempo.
Porém, enquanto as Eras se aproximavam da hora estabelecida por Ilúvatar para a chegada dos Primogênitos, a Terra-média jazia numa penumbra sob as estrelas que Varda havia criado nos tempos remotos da sua labuta em Eä. E nas trevas habitava Melkor, e ele ainda saía com frequência, sob muitos disfarces de poder e terror, brandindo o frio e o fogo, dos cumes das montanhas às fornalhas profundas que se encontram sob elas; e tudo o que fosse cruel, violento ou fatal naqueles tempos é a ele atribuído.
Da beleza e bem-aventurança de Valinor, os Valar raramente atravessavam as montanhas para chegar a Terra-média, mas dedicavam a terra por trás das Pelóri carinho e amor. E no meio do Reino Abençoado estava a morada de Aulë; e lá ele muito trabalhou. Pois, na criação de todas as coisas naquela terra, ele teve o papel principal, e lá realizou muitas obras bonitas e bemfeitas, tanto abertamente quanto em segredo. Dele vêm as tradições e os conhecimentos da Terra e de tudo o que ela contém – tanto as tradições dos que nada fazem, mas buscam o entendimento do que seja, quanto às tradições de todos os artífices: o tecelão, aquele que dá forma à madeira, aquele que trabalha os metais; aquele que cultiva e também lavra, embora estes últimos e todos os que lidam com o que cresce e dá frutos devam recorrer também à esposa de Aulë, Yavanna Kementári. É Aulë que é chamado de Amigo-dos-noldor, pois com ele aprenderam muito nos tempos que viriam; e os noldor são os mais habilidosos dos elfos. E, a seu próprio modo, de acordo com os dons que Ilúvatar lhes concedeu, eles muito acrescentaram aos seus ensinamentos, apreciando línguas e textos, figuras bordadas, desenho e entalhe. Foram também os noldor os primeiros a aprender a criar pedras preciosas; e as mais belas de todas as gemas foram as Silmarils, que estão perdidas.
Manwë Súlimo, o supremo e mais sagrado dos Valar, instalou-se nas fronteiras de Aman, não abandonando em pensamento as Terras de Fora. Pois seu trono situa-se majestosamente sobre o cume da Taniquetil, a mais alta das montanhas do mundo, que se ergue à beira do mar.
Espíritos na forma de falcões e águias sempre chegavam em voo à sua morada e dela partiam; e seus olhos enxergavam as profundezas dos mares e penetravam nas cavernas ocultas nos subterrâneos do mundo. Assim, traziam-lhe notícia de quase tudo o que se passava em Arda.
Alguns fatos, porém, permaneciam ocultos aos olhos de Manwë e de seus servos, pois pairavam sombras impenetráveis sobre o lugar onde Melkor se encontrava, mergulhado em seus pensamentos sinistros.
Manwë não dá atenção à própria honra, nem sente apego pelo poder, mas governa todos para a paz. Dentre os elfos, os vanyar ele mais amava; e, dele, os vanyar receberam a música e a poesia; pois a poesia é o prazer de Manwë; e o entoar de palavras é sua música. Seus trajes são azuis, e azul é o brilho de seus olhos; e seu cetro é de safiras, que os noldor fabricaram para ele.
E ele foi designado vice-regente de Ilúvatar, Rei do mundo dos Valar, dos elfos e dos homens, principal baluarte contra o mal de Melkor. Com Manwë, vivia Varda, a belíssima, ela, que, no idioma sindarin é chamada de Elbereth, Rainha dos Valar, criadora das estrelas; e com os dois morava uma multidão de espíritos abençoados.
Ulmo, entretanto, vivia só e não tinha morada em Valinor, nem jamais ia até lá, a menos que houvesse alguma reunião importante. Desde o início de Arda, ele habitava o Oceano de Fora e lá reside. De lá, governa o fluxo de todas as águas, as marés, os cursos de todos os rios e o reabastecimento das nascentes, o gotejar de todos os pingos de orvalho e de chuva em todas as terras sob o céu. Nas profundezas, ele pensa em música majestosa e terrível; e o eco dessa música percorre todas as veias do mundo na dor e na alegria. Pois, se é alegre a fonte que brota à luz do sol, suas nascentes estão nos poços de insondável tristeza nos alicerces da Terra. Os teleri muito aprenderam com Ulmo, e por isso a música deles tem tanto tristeza quanto encantamento. Veio com ele para Arda, Salmar, que fabricou as trompas de Ulmo para que ninguém que as tenha ouvido jamais se esqueça delas; e Ossë e Uinen, também, a quem ele concedeu o controle das ondas e dos movimentos dos Mares Interiores, além de muitos outros espíritos. E, assim, foi pelo poder de Ulmo que, mesmo sob as trevas de Melkor, a vida continuava a correr em muitos veios secretos, e a Terra não morreu. E Ulmo estava sempre aberto a todos os que estavam perdidos nas trevas ou perambulavam afastados da luz dos Valar; e também nunca abandonou a Terra-média, nem deixou de refletir sobre tudo o que aconteceu desde então em termos de destruição ou de mudança, e não deixará de fazê-la até o final dos tempos.
E naquela época de trevas Yavanna também não quis abandonar totalmente as Terras de Fora; pois tudo o que cresce lhe é caro, e ela chorava pelas obras que havia começado na Terra-média e Melkor destruíra. Assim, deixando a morada de Aulë e os prados floridos de Valinor, ela às vezes vinha curar os ferimentos causados por Melkor; e, ao voltar, costumava instigar os Valar para a guerra contra seu domínio nefasto que sem dúvida precisariam travar antes da chegada dos Primogênitos. E Oromë, domador de feras, também costumava cavalgar de vez em quando na escuridão das florestas sem luz. Como caçador poderoso vinha com lança e arco, perseguindo até a morte os monstros e as criaturas impiedosas do reino de Melkor; e seu cavalo branco Nahar brilhava como prata nas sombras. E então a terra adormecida tremia ao som de seus cascos dourados; e, no crepúsculo do mundo, Oromë costumava fazer soar a Valaróma, sua grande trompa, pelas planícies de Arda; nesse momento, as montanhas reverberavam o som, as sombras do mal fugiam, e o próprio Melkor tremia em Utumno, prevendo a ira que estava por vir. Porém, assim que Oromë passava, os servos de Melkor voltavam a se reunir; e as terras se cobriam de sombras e falsidade.
Agora já se disse tudo o que estava relacionado à natureza da Terra e seus governantes no início dos tempos, e antes que o mundo se tornasse tal como os Filhos de Ilúvatar o conheceram. Pois elfos e homens são os Filhos de Ilúvatar; e, como os Ainur não entendessem plenamente o tema através do qual os Filhos entraram na Música, nenhum Ainu ousou acrescentar nada de seu próprio alvitre. Motivo pelo qual os Valar estão para essas famílias mais como antepassados e chefes do que como senhores. E, se algum dia no seu trato com elfos e homens, os Ainur tentaram forçá-los quando eles não queriam ser orientados, raramente o resultado foi bom, por melhor que fossem as intenções. As relações dos Ainur na realidade se deram principalmente com os elfos, pois Ilúvatar os fez mais parecidos com os Ainur, embora inferiores em poder e em estatura; enquanto aos homens conferiu dons estranhos.
Pois se diz que, depois da partida dos Valar, houve silêncio, e, por uma eternidade, Ilúvatar permaneceu sentado, meditando. Falou ele então e disse: – Olhem, eu amo a Terra, que será uma mansão para os quendi (elfos) e os atani (homens)! Mas os quendi serão as mais belas criaturas da Terra; e irão ter, conceber e produzir maior beleza do que todos os meus Filhos; e terão a maior felicidade neste mundo. Já aos atani concederei um novo dom Ele, assim, determinou que os corações dos homens sempre buscassem algo fora do mundo e que nele não encontrassem descanso; mas que tivessem capacidade de moldar sua vida, em meio aos poderes e aos acasos do mundo, fora do alcance da Música dos Ainur, que é como que o destino de todas as outras coisas; e por meio de sua atuação tudo deveria, em forma e de fato, ser completado; e o mundo seria concluído até o último e mais ínfimo detalhe.
Ilúvatar sabia, porém, que os homens, colocados em meio ao torvelinho dos poderes do mundo, se afastariam com frequência do caminho e não usariam seus dons em harmonia; e disse: – Esses também, no seu tempo, descobrirão que tudo o que fazem resulta no final em glória para minha obra.
Contudo, os elfos acreditam que os homens costumam ser motivo de tristeza para Manwë, que conhece a maior parte da mente de Ilúvatar; na opinião dos elfos, os homens são mais parecidos com Melkor do que com qualquer outro Ainur, embora Melkor sempre os tenha temido e odiado, mesmo aqueles que lhe prestaram serviços.
Inclui-se, nesse dom de liberdade, que os filhos dos homens permaneçam vivos por um curto intervalo no mundo, não sendo presos a ele, e partam logo, para onde, os elfos não sabem. Ao passo que os elfos ficam até o final dos tempos, e seu amor pela Terra e por todo o mundo é mais exclusivo e intenso por esse motivo e, com o passar dos anos, cada vez mais cheio de tristezas. Pois os elfos não morrem enquanto o mundo não morrer, a menos que sejam assassinados ou que definhem de dor (e a essas duas mortes aparentes eles estão sujeitos); nem a idade reduz sua força, a menos que estejam fartos de dez mil séculos; e, ao morrer, eles são reunidos na morada de Mandos, em Valinor, de onde podem depois retornar. Já os filhos dos homens morrem de verdade, e deixam o mundo, motivo pelo qual são chamados Hóspedes ou Forasteiros. A morte é seu destino, o dom de Ilúvatar, que, com o passar do tempo, até os Poderes hão de invejar. Melkor, porém, lançou sua sombra sobre esse dom, confundindo-o com as trevas; e fez surgir o mal do bem; e o medo, da esperança. Outrora, no entanto, os Valar declararam aos elfos em Valinor que os homens juntarão suas vozes ao coro na Segunda Música dos Ainur: embora Ilúvatar não tenha revelado suas intenções com relação aos elfos depois do fim do Mundo; e Melkor ainda não as tenha descoberto.”


“Entretanto, pouco se sabe daqueles infelizes (elfos) que caíram na armadilha de Melkor. Pois, quem, entre os seres vivos, desceu aos abismos de Utumno, ou percorreu as trevas dos pensamentos de Melkor? É, porém, considerado verdadeiro pelos sábios de Eressëa que todos aqueles quendi que caíram nas mãos de Melkor antes da destruição de Utumno foram lá aprisionados, e, por lentas artes de crueldade, corrompidos e escravizados; e assim Melkor gerou a horrenda raça dos orcs, por inveja dos elfos e em imitação a eles, de quem eles mais tarde se tornaram os piores inimigos. Pois os orcs tinham vida e se multiplicavam da mesma forma que os Filhos de Ilúvatar; e nada que tivesse vida própria, nem aparência de vida, Melkor jamais poderia criar desde sua rebelião no Ainulindalë antes do Início. Assim dizem os sábios. E, no fundo de seus corações negros, os orcs odiavam o Senhor a quem serviam por medo, criador apenas de sua desgraça. Esse pode ter sido o ato mais abjeto de Melkor, e o mais odioso aos olhos de Ilúvatar.”



“Dizem que no início os anões foram feitos por Aulë na escuridão da Terra-média. Pois, tão grande era o desejo de Aulë pela vinda dos Filhos, para ter aprendizes a quem ensinar suas habilidades e seus conhecimentos, que não se dispôs a aguardar a realização dos desígnios de Ilúvatar. E Aulë criou os anões, exatamente como ainda são, porque as formas dos Filhos que estavam por vir não estavam nítidas em sua mente e, como o poder de Melkor ainda dominasse a Terra, desejou que eles fossem fortes e obstinados. Temendo, porém, que os outros Valar pudessem condenar sua obra, trabalhou em segredo e fez em primeiro lugar os Sete Pais dos Anões num palácio sob as montanhas na Terra-média.
Ora, Ilúvatar soube o que estava sendo feito e, no exato momento em que o trabalho de Aulë se completava, e Aulë estava satisfeito e começava a ensinar aos anões a língua que inventara para eles, Ilúvatar dirigiu-lhe a palavra; e Aulë ouviu sua voz e emudeceu. E a voz de Ilúvatar lhe disse: –Por que fizeste isso? Por que tentaste algo que sabes estar fora de teu poder e de tua autoridade? Pois tens de mim como dom apenas tua própria existência e nada mais. E, portanto, as criaturas de tua mão e de tua mente poderão viver apenas através dessa existência, movendo-se quando tu pensares em movê-las e ficando ociosas se teu pensamento estiver voltado para outra coisa. É esse teu desejo?
– Não desejei tamanha ascendência – respondeu Aulë. – Desejei seres diferentes de mim, que eu pudesse amar e ensinar, para que também eles percebessem a beleza de Eä, que tu fizeste surgir. Pois me pareceu que há muito espaço em Arda para vários seres que poderiam nele deleitar-se; e, no entanto, em sua maior parte ela ainda está vazia e muda. E, na minha impaciência, cometi essa loucura. Contudo, à vontade de fazer coisas está em meu coração porque eu mesmo fui feito por ti. E a criança de pouco entendimento, que graceja com os atos de seu pai, pode estar fazendo isso sem nenhuma intenção de zombaria, apenas por ser filho dele. E agora, o que posso fazer para que não te zangues comigo para sempre? Como um filho ao pai, ofereço-te essas criaturas, obra das mãos que criaste. Faze com elas o que quiseres. Mas não seria melhor eu mesmo destruir o produto de minha presunção?
E Aulë apanhou um enorme martelo para esmagar os anões, e chorou. Mas Ilúvatar apiedou-se de Aulë e de seu desejo, em virtude de sua humildade. E os anões se encolheram diante do martelo e sentiram medo, baixaram a cabeça e imploraram clemência. E a voz de Ilúvatar disse a Aulë: – Tua oferta aceitei enquanto ela estava sendo feita. Não percebes que essas criaturas têm agora vida própria e falam com suas próprias vozes? Não fosse assim, e elas não teriam procurado fugir ao golpe nem a nenhum comando de tua vontade.
Largou, então, Aulë o martelo e, feliz, agradeceu a Ilúvatar, dizendo. – Que Eru abençoe meu trabalho e o corrija. Ilúvatar voltou a falar, entretanto, e disse: – Exatamente como dei existência aos pensamentos dos Ainur no início do Mundo, agora adotei teu desejo e lhe atribuí um lugar no Mundo; mas de nenhum outro modo corrigirei tua obra; e, como tu a fizeste, assim ela será. Contudo não tolerarei o seguinte: que esses seres cheguem antes dos Primogênitos de meus desígnios, nem que tua impaciência seja premiada. Eles agora deverão dormir na escuridão debaixo da pedra, e não se apresentarão enquanto os Primogênitos não tiverem surgido sobre a Terra; e até essa ocasião tu e eles esperareis, por longa que seja a demora. Mas quando chegar a hora, eu os despertarei, e eles serão como filhos teus; e muitas vezes haverá discórdia entre os teus e os meus, os filhos de minha adoção e os filhos de minha escolha.
Então Aulë pegou os Sete Pais dos Anões e os levou para descansar em locais bem afastados; voltou em seguida a Valinor e esperou os longos anos transcorrerem.
Como fossem surgir na época em que Melkor prevalecia, Aulë fez os anões resistentes. Por isso, eles são duros como a pedra, teimosos, firmes na amizade e na inimizade, e conseguem suportar fadiga, fome e ferimentos com mais bravura do que todos os outros povos que falam; e vivem muito, bem mais do que os homens, embora não para sempre. Antigamente, dizia-se entre os elfos na Terra-média que os anões, ao morrer, voltavam para a terra e a pedra da qual eram feitos; no entanto, não é essa a crença entre eles próprios. Pois dizem que Aulë, o Criador, que chamam de Mahal, gosta deles e os acolhe em Mandos em palácios separados; e que ele declarou a seus antigos Pais que Ilúvatar os abençoará e lhes dará um lugar entre os Filhos no Final. Então, seu papel será servir a Aulë e auxiliá-la na reconstrução de Arda depois da Última Batalha. Dizem também que os Sete Pais dos Anões voltam a viver em seus próprios parentes e a usar de novo seus nomes ancestrais: dos quais Durin foi o mais célebre em épocas posteriores, pai daquela família mais simpática aos elfos, cujas mansões ficavam em Khazad-dûm.”


“Por meio dos Naugrim (anões), as Cirth foram levadas para o leste, para o outro lado das montanhas, e se tornaram parte do conhecimento de muitos povos: mas foram pouco usadas pelos Sindar (elfos-cinzentos) para a finalidade de registros até os tempos da Guerra, e grande parte do que se guardava na memória pereceu nas ruínas de Doriath. É que da bem-aventurança e da alegria na vida há pouco a ser dito enquanto duram; assim como as obras belas e maravilhosas, enquanto perduram para que os olhos as contemplem, são registros de si mesmas, e somente quando correm perigo ou são destruídas é que se transformam em poesia.”


(Não pôde ser inserido por questões de espaço, mas é imensamente recomendada a história De Beren e Lúthien)


“Exatamente quando as primeiras sombras foram percebidas na Floresta das Trevas, surgiram no oeste da Terra-média os Istari, que os homens chamavam de Magos. Na época ninguém sabia de onde eles eram, à exceção de Círdan dos Portos, e apenas a Elrond e a Galadriel ele revelou que haviam chegado pelo Mar. Daí em diante, porém, dizia-se entre os elfos que eles eram mensageiros enviados pelos Senhores do Oeste para contestar o poder de Sauron, se ele voltasse a se erguer, e para influenciar elfos, homens e todos os seres vivos de boa vontade para com atos corajosos. Apareceram com o aspecto de homens velhos, porém vigorosos, e mudavam pouco com o passar dos anos, só envelhecendo com vagar, embora grandes preocupações pesassem sobre eles. Possuíam enorme sabedoria e muitos poderes mentais e manuais. Muito tempo viajavam por toda parte entre elfos e homens; e conversavam também com bichos e aves. E os povos da Terra-média lhes davam muitos nomes, pois seus nomes verdadeiros eles não revelavam. De maior projeção entre eles eram os que os elfos chamavam de Mithrandir e Curunír, mas a quem os homens no norte davam os nomes de Gandalf e Saruman. Desses, Curunír era o mais velho e o que chegara primeiro; e depois dele vieram Mithrandir e Radagast, bem como outros dos Istari que passaram para o leste da Terra-média e não entram nestas histórias. Radagast era amigo de todos os bichos e pássaros; mas Curunír ficava principalmente entre os homens, sua fala era suave e ele era habilidoso em todos os segredos da arte de forjar. Em deliberações Mithrandir era mais íntimo de Elrond e dos elfos. Perambulava muito pelo norte e pelo oeste, e nunca em terra alguma teve morada permanente. Já Curunír viajou para o leste; e, quando voltou, foi morar em Orthanc, no Círculo de Isengard, que os númenorianos construíram no período de seu poder.”