Editora: Martins Fontes
ISBN: 978-85-7827-126-8
Tradução: Waldéa Barcellos
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 480
Sinopse: O
Silmarillion, publicado quatro anos após o falecimento do seu autor, é um
relato dos Dias Antigos, a Primeira Era do Mundo. Em O Senhor dos Anéis,
foram narrados os grandes eventos do final da Terceira Era; as histórias de O
Silmarillion, no entanto, são lendas derivadas de um passado muito mais
remoto, quando Morgoth, o primeiro Senhor do Escuro, habitava a Terra-média, e
os altos-elfos guerrearam com ele pela recuperação das Silmarils.
Mas O Silmarillion não relata apenas os eventos de
uma época muito anterior àquela de O Senhor dos Anéis em todos os pontos
essenciais de sua concepção, ele também é, de longe, a obra mais antiga. Na
realidade, embora na época não chamasse O Silmarillion, já existia meio
século antes. Em cadernos velhíssimos, que remontam a 1917, podem ser lidas as
versões iniciais das histórias mais importantes da mitologia, muitas vezes
escritas às pressas, à lápis.
“Diz-se entre os sábios que a Primeira Guerra
começou antes que Arda estivesse totalmente formada, e antes mesmo que qualquer
criatura crescesse ou caminhasse sobre a terra; e por muito tempo Melkor
prevaleceu. Entretanto, no meio da guerra, ao ouvir no distante firmamento que
havia batalha no Pequeno Reino, um espírito de enorme força e resistência veio
em auxílio dos Valar; e Arda se encheu com o som de seu riso. Assim veio
Tulkas, o Forte, cuja ira circula como um vento poderoso, afastando a nuvem e a
escuridão à sua frente.
E Melkor fugiu de sua fúria e de suas
risadas, abandonando Arda, e a paz reinou por uma longa era. E Tulkas
permaneceu, tomando-se um dos Valar do Reino de Arda; mas Melkor remoía
pensamentos nas trevas distantes, e dirigiu seu ódio a Tulkas para todo o
sempre.
Naquele período, os Valar trouxeram ordem aos
mares, terras e montanhas, e Yavanna finalmente plantou as sementes que havia
muito imaginara. E, como houvesse necessidade de luz, já que os fogos estavam
dominados ou enterrados sob as colinas primitivas, Aulë, a pedido de Yavanna,
criou duas lamparinas poderosas para iluminar a Terra-média, construída por ele
entre os mares circundantes. Então Varda encheu as lamparinas, e Manwë as
consagrou; e os Valar as puseram em cima de colunas altíssimas, mais elevadas
do que qualquer das montanhas mais recentes. Ergueram uma lamparina junto ao
norte da Terra-média, e ela se chamou Illuin; e a outra foi erguida no sul, e
foi chamada Ormal; e a luz das Lamparinas dos Valar se derramou por toda a
Terra, iluminando tudo como se fosse sempre dia.
Então, as sementes que Yavanna havia plantado
logo começaram a brotar e a se desenvolver, e surgiu uma infinidade de seres em
crescimento, grandes e pequenos, musgos, capins e enormes samambaias, e árvores
cujas copas eram coroadas de nuvens, como montanhas vivas, mas cujos pés
ficavam envoltos numa penumbra verde. E surgiram feras que habitavam as
pradarias, os rios e os lagos, ou caminhavam nas sombras dos bosques. Ainda não
surgira nenhuma flor, nem cantara pássaro algum, pois esses seres esperavam sua
vez no ventre de Yavanna; mas havia abundância do que ela imaginara, e nenhum
lugar era mais rico do que as partes mais centrais da Terra, onde a luz das
duas Lamparinas se encontrava e se fundia. E ali, na Ilha de Almaren, no Grande
Lago, foi a primeira morada dos Valar quando tudo era novo, e o verde
recém-criado ainda era uma maravilha aos olhos dos criadores. E eles se
contentaram por muito tempo.
Ora, veio a acontecer que, enquanto os Valar
repousavam da sua labuta e observavam o crescimento e o desabrochar daquilo que
haviam inventado e iniciado, Manwë ofereceu uma grande festa; e os Valar e toda
a sua gente atenderam ao convite. No entanto, Aulë e Tulkas estavam exaustos;
pois a habilidade de Aulë e a força de Tulkas haviam estado ininterruptamente a
serviço de todos, nos dias de sua faina. E Melkor sabia de tudo o que era
feito, pois já naquela época dispunha de espiões e amigos secretos entre os
Maiar, que havia atraído para sua causa. E muito ao longe, nas trevas, ele se
enchia de ódio, sentindo inveja do trabalho de seus pares e desejando
submetê-los. Assim, Melkor chamou a si os espíritos que desviara para seu
serviço, fazendo-os sair das mansões de Eä, e se considerou forte. E, vendo que
essa era sua hora, ele mais uma vez se aproximou de Arda e baixou os olhos até
ela; e a beleza da Terra em sua Primavera o enfureceu ainda mais.
Assim, os Valar se reuniram em Almaren, sem
temer mal algum, e, por causa da luz de Illuin, não perceberam a sombra do
norte que vinha sendo lançada de longe por Melkor; pois ele se tornara escuro
como a Noite do Vazio. E dizem as canções que, naquela festa, na Primavera de
Arda, Tulkas desposou Nessa, a irmã de Oromë, e ela dançou diante dos Valar
sobre a relva verdejante de Almaren Tulkas então adormeceu, exausto e contente,
e Melkor acreditou que sua hora havia chegado. Transpôs as Muralhas da
Noite com sua legião e chegou a Terra-média, à distância, no norte, sem que os
Valar dele se apercebessem.
Melkor iniciou então as escavações e a
construção de uma enorme fortaleza nas profundezas da Terra, debaixo das
montanhas escuras onde os raios de Illuin eram frios e pálidos. Esse reduto foi
chamado Utumno. E, embora os Valar ainda nada soubessem a respeito, mesmo assim
a perversidade de Melkor e a influência maléfica de seu ódio emanavam de lá, e
a Primavera de Arda foi destruída. Os seres verdes adoeceram e apodreceram, os
rios foram obstruídos por algas e lodo; criaram-se pântanos, repelentes e
venenosos, criatórios de moscas; as florestas tornaram-se sombrias e perigosas,
antros do medo; e as feras se transformaram em monstros de chifre e marfim e
tingiram a terra de sangue. Os Valar tiveram então certeza, de que Melkor
estava agindo novamente, e saíram à procura de seu esconderijo. Melkor, porém,
confiante na resistência de Utumno e no poder de seus servos, apresentou-se de
repente para a luta e deu o primeiro golpe antes que os Valar estivessem
preparados, atacou as luzes de Illuin e Ormal, arrasou suas colunas e quebrou
suas lamparinas. Quando as enormes colunas desmoronaram, terras fenderam-se e
mares elevaram-se em turbulência. E, quando as lamparinas foram derrubadas,
labaredas destruidoras se derramaram pela Terra. E a forma de Arda, além da
simetria de suas águas e de suas terras, foi desfigurada naquele momento, de
modo tal que os primeiros projetos dos Valar nunca mais foram restaurados.
Em meio à confusão e às trevas, Melkor
conseguiu escapar, embora o medo se abatesse sobre ele; pois, mais alto que o
bramido dos mares, ele ouvia a voz de Manwë como um vento fortíssimo, e a terra
tremia sob os pés de Tulkas. Chegou, porém a Utumno antes que Tulkas conseguisse
alcançá-lo; e ali permaneceu escondido. E os Valar não puderam então
derrotá-lo, já que a maior parte de sua força era necessária para controlar as
turbulências da Terra e salvar da destruição tudo o que pudesse ser salvo de
sua obra. Depois, eles recearam fender novamente a Terra, enquanto não
soubessem onde habitavam os Filhos de Ilúvatar, que ainda estavam por vir num
momento que desconheciam.
Assim terminou a Primavera de Arda. A morada
do Valar em Almaren foi totalmente destruída, e eles não tinham nenhum local de
pouso na face da Terra. Por esse motivo partiram da Terra-média e foram para a
Terra de Aman, a mais ocidental de todas, junto aos limites do mundo; pois seu
litoral oeste dá para o Mar de Fora, que é chamado pelos elfos de Ekkaia e
circunda o Reino de Arda. A extensão desse mar ninguém conhece a não ser os
Valar; e, para além dele, ficam as Muralhas da Noite. Já a costa leste de Aman
era o limite mais distante de Belegaer, o Grande Mar do Oeste. E, como Melkor
estava de volta a Terra-média e eles ainda não tinham como derrotá-la, os Valar
fortificaram sua morada e, junto ao litoral, ergueram as Pelóri, as montanhas
de Aman, as mais altas de toda a Terra. E acima de todas as montanhas das
Pelóri elevava-se aquela em cujo pico Manwë instalou seu trono. Taniquetil é
como os elfos chamam essa montanha sagrada; e Oiolossë, Brancura Eterna; e
Elerrína, Coroada de Estrelas, e muitos outros nomes. Já os sindar a
mencionavam, em sua língua mais recente, como Amon Uilos. De seu palácio no
cume da Taniquetil, Manwë e Varda conseguiam descortinar a Terra inteira, até
mesmo as maiores distâncias a leste.
Por trás das muralhas das Pelóri, os Valar
estabeleceram seu domínio na região chamada Valinor; e ali ficavam suas casas,
seus jardins e suas torres. Nesse território seguro, os Valar acumularam enorme
quantidade de luz e tudo de mais belo que fora salvo da destruição. E muitas
outras coisas ainda mais formosas eles voltaram a criar; e Valinor tornou-se
ainda mais bonita do que a Terra-média na Primavera de Arda. E Valinor foi
abençoada, pois os Imortais ali moravam; e ali nada desbotava nem murchava; não
havia mácula alguma em flor ou folha naquela terra; nem nenhuma decomposição ou
enfermidade em coisa alguma que fosse viva; pois as próprias pedras e águas eram
abençoadas.
E quando Valinor estava pronta, e as mansões
dos Valar, instaladas no meio da planície do outro lado das montanhas, eles
construíram sua cidade, Valmar de muitos sinos. Diante de seu portão ocidental,
havia uma colina verdejante, Ezellohar, que também é chamada Corollairë;
Yavanna a consagrou, e ficou ali sentada muito tempo sobre a relva verde,
entoando uma canção de poder, na qual expunha o que pensava sobre as coisas que
crescem na terra. Nienna, porém, meditava calada e regava o solo com lágrimas.
Naquele momento, os Valar, reunidos para ouvir o canto de Yavanna, estavam
sentados, em silêncio, em seus tronos do conselho no Máhanaxar, o Círculo da
Lei junto aos portões dourados de Valmar; e Yavanna Kementãri cantava diante
deles, e eles observavam.
E enquanto olhavam, sobre a colina surgiram
dois brotos esguios; e o silêncio envolveu todo o mundo naquela hora, nem havia
nenhum outro som que não o canto de Yavanna. Em obediência a seu canto, as
árvores jovens cresceram e ganharam beleza e altura; e vieram a florir; e
assim, surgiram no mundo as Duas Árvores de Valinor. De tudo o que Yavanna
criou, são as mais célebres, e em torno de seu destino são tecidas todas as
histórias dos Dias Antigos.
Uma tinha folhas verde-escuras, que na parte
de baixo eram como prata brilhante; e de cada uma de suas inúmeras flores caía
sem cessar um orvalho de luz prateada; e a terra sob sua copa era manchada
pelas sombras de suas folhas esvoaçantes. A outra apresentava folhas de um
verde viçoso, como o da faia recém-aberta, orladas de um dourado cintilante. As
flores balançavam nos galhos em cachos de um amarelo flamejante, cada um na
forma de uma cornucópia brilhante, derramando no chão uma chuva dourada. E da
flor daquela árvore, emanavam calor e uma luz esplêndida. Telperion, a
primeira, era chamada em Valinor, e Silpion, e Ninquelótë, entre muitos outros
nomes; mas Laurelin era a outra, e também Malinalda e Culúrien, entre muitos
outros nomes poéticos.
Em sete horas, a glória de cada árvore
atingia a plenitude e voltava novamente ao nada; e cada uma despertava
novamente para a vida uma hora antes de a outra deixar de brilhar. Assim, em
Valinor, duas vezes ao dia havia uma hora suave de luz mais delicada, quando as
duas árvores estavam fracas e seus raios prateados e dourados se fundiam.
Telperion era a mais velha das árvores e chegou primeiro à sua plena estatura e
florescimento; e aquela primeira hora em que brilhou, com o bruxulear pálido de
uma alvorada de prata, os Valar não incluíram na história das horas, mas
denominaram a Hora Inaugural, e a partir dela passaram a contar o tempo de seu
reinado em Valinor. Portanto, à sexta hora do Primeiro Dia, e de todos os dias
jubilosos que se seguiram, até o Ocaso de Valinor, Telperion interrompia sua
vez de florir; e na décima segunda hora, era Laurelin que o fazia. E cada dia
dos Valar em Aman continha doze horas e terminava com a segunda fusão das
luzes, na qual Laurelin empalidecia, e Telperion se fortalecia.
Contudo, a luz que se derramava das árvores
persistia muito, antes de ser levada para as alturas pelos ares ou de afundar
terra adentro. E as gotas de orvalho de Telperion e a chuva que caía de
Laurelin, Varda armazenava em enormes tonéis, como lagos brilhantes, que eram
para toda a terra dos Valar como poços de água e luz. Assim começaram os Dias
de Bem-aventurança de Valinor; e assim começou a Contagem do Tempo.
Porém, enquanto as Eras se aproximavam da
hora estabelecida por Ilúvatar para a chegada dos Primogênitos, a Terra-média
jazia numa penumbra sob as estrelas que Varda havia criado nos tempos remotos
da sua labuta em Eä. E nas trevas habitava Melkor, e ele ainda saía com
frequência, sob muitos disfarces de poder e terror, brandindo o frio e o fogo,
dos cumes das montanhas às fornalhas profundas que se encontram sob elas; e
tudo o que fosse cruel, violento ou fatal naqueles tempos é a ele atribuído.
Da beleza e bem-aventurança de Valinor, os
Valar raramente atravessavam as montanhas para chegar a Terra-média, mas
dedicavam a terra por trás das Pelóri carinho e amor. E no meio do Reino
Abençoado estava a morada de Aulë; e lá ele muito trabalhou. Pois, na criação
de todas as coisas naquela terra, ele teve o papel principal, e lá realizou
muitas obras bonitas e bemfeitas, tanto abertamente quanto em segredo. Dele vêm
as tradições e os conhecimentos da Terra e de tudo o que ela contém – tanto as
tradições dos que nada fazem, mas buscam o entendimento do que seja, quanto às
tradições de todos os artífices: o tecelão, aquele que dá forma à madeira,
aquele que trabalha os metais; aquele que cultiva e também lavra, embora estes
últimos e todos os que lidam com o que cresce e dá frutos devam recorrer também
à esposa de Aulë, Yavanna Kementári. É Aulë que é chamado de Amigo-dos-noldor,
pois com ele aprenderam muito nos tempos que viriam; e os noldor são os mais
habilidosos dos elfos. E, a seu próprio modo, de acordo com os dons que
Ilúvatar lhes concedeu, eles muito acrescentaram aos seus ensinamentos,
apreciando línguas e textos, figuras bordadas, desenho e entalhe. Foram também
os noldor os primeiros a aprender a criar pedras preciosas; e as mais belas de
todas as gemas foram as Silmarils, que estão perdidas.
Manwë Súlimo, o supremo e mais sagrado dos
Valar, instalou-se nas fronteiras de Aman, não abandonando em pensamento as
Terras de Fora. Pois seu trono situa-se majestosamente sobre o cume da
Taniquetil, a mais alta das montanhas do mundo, que se ergue à beira do mar.
Espíritos na forma de falcões e águias sempre
chegavam em voo à sua morada e dela partiam; e seus olhos enxergavam as
profundezas dos mares e penetravam nas cavernas ocultas nos subterrâneos do
mundo. Assim, traziam-lhe notícia de quase tudo o que se passava em Arda.
Alguns fatos, porém, permaneciam ocultos aos
olhos de Manwë e de seus servos, pois pairavam sombras impenetráveis sobre o
lugar onde Melkor se encontrava, mergulhado em seus pensamentos sinistros.
Manwë não dá atenção à própria honra, nem
sente apego pelo poder, mas governa todos para a paz. Dentre os elfos, os
vanyar ele mais amava; e, dele, os vanyar receberam a música e a poesia; pois a
poesia é o prazer de Manwë; e o entoar de palavras é sua música. Seus trajes
são azuis, e azul é o brilho de seus olhos; e seu cetro é de safiras, que os
noldor fabricaram para ele.
E ele foi designado vice-regente de Ilúvatar,
Rei do mundo dos Valar, dos elfos e dos homens, principal baluarte contra o mal
de Melkor. Com Manwë, vivia Varda, a belíssima, ela, que, no idioma sindarin é
chamada de Elbereth, Rainha dos Valar, criadora das estrelas; e com os dois morava
uma multidão de espíritos abençoados.
Ulmo, entretanto, vivia só e não tinha morada
em Valinor, nem jamais ia até lá, a menos que houvesse alguma reunião
importante. Desde o início de Arda, ele habitava o Oceano de Fora e lá reside.
De lá, governa o fluxo de todas as águas, as marés, os cursos de todos os rios
e o reabastecimento das nascentes, o gotejar de todos os pingos de orvalho e de
chuva em todas as terras sob o céu. Nas profundezas, ele pensa em música
majestosa e terrível; e o eco dessa música percorre todas as veias do mundo na
dor e na alegria. Pois, se é alegre a fonte que brota à luz do sol, suas
nascentes estão nos poços de insondável tristeza nos alicerces da Terra. Os
teleri muito aprenderam com Ulmo, e por isso a música deles tem tanto tristeza
quanto encantamento. Veio com ele para Arda, Salmar, que fabricou as trompas de
Ulmo para que ninguém que as tenha ouvido jamais se esqueça delas; e Ossë e
Uinen, também, a quem ele concedeu o controle das ondas e dos movimentos dos
Mares Interiores, além de muitos outros espíritos. E, assim, foi pelo poder de
Ulmo que, mesmo sob as trevas de Melkor, a vida continuava a correr em muitos
veios secretos, e a Terra não morreu. E Ulmo estava sempre aberto a todos os
que estavam perdidos nas trevas ou perambulavam afastados da luz dos Valar; e
também nunca abandonou a Terra-média, nem deixou de refletir sobre tudo o que
aconteceu desde então em termos de destruição ou de mudança, e não deixará de
fazê-la até o final dos tempos.
E naquela época de trevas Yavanna também não
quis abandonar totalmente as Terras de Fora; pois tudo o que cresce lhe é caro,
e ela chorava pelas obras que havia começado na Terra-média e Melkor destruíra.
Assim, deixando a morada de Aulë e os prados floridos de Valinor, ela às vezes vinha
curar os ferimentos causados por Melkor; e, ao voltar, costumava instigar os
Valar para a guerra contra seu domínio nefasto que sem dúvida precisariam
travar antes da chegada dos Primogênitos. E Oromë, domador de feras, também
costumava cavalgar de vez em quando na escuridão das florestas sem luz. Como
caçador poderoso vinha com lança e arco, perseguindo até a morte os monstros e
as criaturas impiedosas do reino de Melkor; e seu cavalo branco Nahar brilhava
como prata nas sombras. E então a terra adormecida tremia ao som de seus cascos
dourados; e, no crepúsculo do mundo, Oromë costumava fazer soar a Valaróma, sua
grande trompa, pelas planícies de Arda; nesse momento, as montanhas
reverberavam o som, as sombras do mal fugiam, e o próprio Melkor tremia em
Utumno, prevendo a ira que estava por vir. Porém, assim que Oromë passava, os
servos de Melkor voltavam a se reunir; e as terras se cobriam de sombras e
falsidade.
Agora já se disse tudo o que estava
relacionado à natureza da Terra e seus governantes no início dos tempos, e
antes que o mundo se tornasse tal como os Filhos de Ilúvatar o conheceram. Pois
elfos e homens são os Filhos de Ilúvatar; e, como os Ainur não entendessem
plenamente o tema através do qual os Filhos entraram na Música, nenhum Ainu ousou
acrescentar nada de seu próprio alvitre. Motivo pelo qual os Valar estão para
essas famílias mais como antepassados e chefes do que como senhores. E, se
algum dia no seu trato com elfos e homens, os Ainur tentaram forçá-los quando
eles não queriam ser orientados, raramente o resultado foi bom, por melhor que
fossem as intenções. As relações dos Ainur na realidade se deram principalmente
com os elfos, pois Ilúvatar os fez mais parecidos com os Ainur, embora
inferiores em poder e em estatura; enquanto aos homens conferiu dons estranhos.
Pois se diz que, depois da partida dos Valar,
houve silêncio, e, por uma eternidade, Ilúvatar permaneceu sentado, meditando.
Falou ele então e disse: – Olhem, eu amo a Terra, que será uma mansão para os
quendi (elfos) e os atani (homens)! Mas os quendi serão as mais belas criaturas
da Terra; e irão ter, conceber e produzir maior beleza do que todos os meus
Filhos; e terão a maior felicidade neste mundo. Já aos atani concederei um novo
dom Ele, assim, determinou que os corações dos homens sempre buscassem algo
fora do mundo e que nele não encontrassem descanso; mas que tivessem capacidade
de moldar sua vida, em meio aos poderes e aos acasos do mundo, fora do alcance
da Música dos Ainur, que é como que o destino de todas as outras coisas; e por
meio de sua atuação tudo deveria, em forma e de fato, ser completado; e o mundo
seria concluído até o último e mais ínfimo detalhe.
Ilúvatar sabia, porém, que os homens,
colocados em meio ao torvelinho dos poderes do mundo, se afastariam com frequência
do caminho e não usariam seus dons em harmonia; e disse: – Esses também, no seu
tempo, descobrirão que tudo o que fazem resulta no final em glória para minha
obra.
Contudo, os elfos acreditam que os homens
costumam ser motivo de tristeza para Manwë, que conhece a maior parte da mente
de Ilúvatar; na opinião dos elfos, os homens são mais parecidos com Melkor do
que com qualquer outro Ainur, embora Melkor sempre os tenha temido e odiado,
mesmo aqueles que lhe prestaram serviços.
Inclui-se, nesse dom de liberdade, que os
filhos dos homens permaneçam vivos por um curto intervalo no mundo, não sendo
presos a ele, e partam logo, para onde, os elfos não sabem. Ao passo que os
elfos ficam até o final dos tempos, e seu amor pela Terra e por todo o mundo é
mais exclusivo e intenso por esse motivo e, com o passar dos anos, cada vez
mais cheio de tristezas. Pois os elfos não morrem enquanto o mundo não morrer,
a menos que sejam assassinados ou que definhem de dor (e a essas duas mortes
aparentes eles estão sujeitos); nem a idade reduz sua força, a menos que
estejam fartos de dez mil séculos; e, ao morrer, eles são reunidos na morada de
Mandos, em Valinor, de onde podem depois retornar. Já os filhos dos homens
morrem de verdade, e deixam o mundo, motivo pelo qual são chamados Hóspedes ou
Forasteiros. A morte é seu destino, o dom de Ilúvatar, que, com o passar do
tempo, até os Poderes hão de invejar. Melkor, porém, lançou sua sombra sobre
esse dom, confundindo-o com as trevas; e fez surgir o mal do bem; e o medo, da
esperança. Outrora, no entanto, os Valar declararam aos elfos em Valinor que os
homens juntarão suas vozes ao coro na Segunda Música dos Ainur: embora Ilúvatar
não tenha revelado suas intenções com relação aos elfos depois do fim do Mundo;
e Melkor ainda não as tenha descoberto.”
“Entretanto,
pouco se sabe daqueles infelizes (elfos) que caíram na armadilha de Melkor.
Pois, quem, entre os seres vivos, desceu aos abismos de Utumno, ou percorreu as
trevas dos pensamentos de Melkor? É, porém, considerado verdadeiro pelos sábios
de Eressëa que todos aqueles quendi que caíram nas mãos de Melkor antes da
destruição de Utumno foram lá aprisionados, e, por lentas artes de crueldade,
corrompidos e escravizados; e assim Melkor gerou a horrenda raça dos orcs, por
inveja dos elfos e em imitação a eles, de quem eles mais tarde se tornaram os
piores inimigos. Pois os orcs tinham vida e se multiplicavam da mesma forma que
os Filhos de Ilúvatar; e nada que tivesse vida própria, nem aparência de vida,
Melkor jamais poderia criar desde sua rebelião no Ainulindalë antes do Início.
Assim dizem os sábios. E, no fundo de seus corações negros, os orcs odiavam o
Senhor a quem serviam por medo, criador apenas de sua desgraça. Esse pode ter
sido o ato mais abjeto de Melkor, e o mais odioso aos olhos de Ilúvatar.”
“Dizem que no início os anões foram feitos
por Aulë na escuridão da Terra-média. Pois, tão grande era o desejo de Aulë
pela vinda dos Filhos, para ter aprendizes a quem ensinar suas habilidades e
seus conhecimentos, que não se dispôs a aguardar a realização dos desígnios de
Ilúvatar. E Aulë criou os anões, exatamente como ainda são, porque as formas
dos Filhos que estavam por vir não estavam nítidas em sua mente e, como o poder
de Melkor ainda dominasse a Terra, desejou que eles fossem fortes e obstinados.
Temendo, porém, que os outros Valar pudessem condenar sua obra, trabalhou em
segredo e fez em primeiro lugar os Sete Pais dos Anões num palácio sob as
montanhas na Terra-média.
Ora, Ilúvatar soube o que estava sendo feito
e, no exato momento em que o trabalho de Aulë se completava, e Aulë estava
satisfeito e começava a ensinar aos anões a língua que inventara para eles,
Ilúvatar dirigiu-lhe a palavra; e Aulë ouviu sua voz e emudeceu. E a voz de
Ilúvatar lhe disse: –Por que fizeste isso? Por que tentaste algo que sabes
estar fora de teu poder e de tua autoridade? Pois tens de mim como dom apenas
tua própria existência e nada mais. E, portanto, as criaturas de tua mão e de
tua mente poderão viver apenas através dessa existência, movendo-se quando tu
pensares em movê-las e ficando ociosas se teu pensamento estiver voltado para
outra coisa. É esse teu desejo?
– Não desejei tamanha ascendência – respondeu
Aulë. – Desejei seres diferentes de mim, que eu pudesse amar e ensinar, para
que também eles percebessem a beleza de Eä, que tu fizeste surgir. Pois me
pareceu que há muito espaço em Arda para vários seres que poderiam nele
deleitar-se; e, no entanto, em sua maior parte ela ainda está vazia e muda. E,
na minha impaciência, cometi essa loucura. Contudo, à vontade de fazer coisas
está em meu coração porque eu mesmo fui feito por ti. E a criança de pouco
entendimento, que graceja com os atos de seu pai, pode estar fazendo isso sem
nenhuma intenção de zombaria, apenas por ser filho dele. E agora, o que posso
fazer para que não te zangues comigo para sempre? Como um filho ao pai,
ofereço-te essas criaturas, obra das mãos que criaste. Faze com elas o que
quiseres. Mas não seria melhor eu mesmo destruir o produto de minha presunção?
E Aulë apanhou um enorme martelo para esmagar
os anões, e chorou. Mas Ilúvatar apiedou-se de Aulë e de seu desejo, em virtude
de sua humildade. E os anões se encolheram diante do martelo e sentiram medo,
baixaram a cabeça e imploraram clemência. E a voz de Ilúvatar disse a Aulë: – Tua
oferta aceitei enquanto ela estava sendo feita. Não percebes que essas
criaturas têm agora vida própria e falam com suas próprias vozes? Não fosse
assim, e elas não teriam procurado fugir ao golpe nem a nenhum comando de tua
vontade.
Largou, então, Aulë o martelo e, feliz,
agradeceu a Ilúvatar, dizendo. – Que Eru abençoe meu trabalho e o corrija.
Ilúvatar voltou a falar, entretanto, e disse: – Exatamente como dei existência
aos pensamentos dos Ainur no início do Mundo, agora adotei teu desejo e lhe
atribuí um lugar no Mundo; mas de nenhum outro modo corrigirei tua obra; e,
como tu a fizeste, assim ela será. Contudo não tolerarei o seguinte: que esses
seres cheguem antes dos Primogênitos de meus desígnios, nem que tua impaciência
seja premiada. Eles agora deverão dormir na escuridão debaixo da pedra, e não
se apresentarão enquanto os Primogênitos não tiverem surgido sobre a Terra; e
até essa ocasião tu e eles esperareis, por longa que seja a demora. Mas quando
chegar a hora, eu os despertarei, e eles serão como filhos teus; e muitas vezes
haverá discórdia entre os teus e os meus, os filhos de minha adoção e os filhos
de minha escolha.
Então Aulë pegou os Sete Pais dos Anões e os
levou para descansar em locais bem afastados; voltou em seguida a Valinor e
esperou os longos anos transcorrerem.
Como fossem surgir na época em que Melkor
prevalecia, Aulë fez os anões resistentes. Por isso, eles são duros como a
pedra, teimosos, firmes na amizade e na inimizade, e conseguem suportar fadiga,
fome e ferimentos com mais bravura do que todos os outros povos que falam; e
vivem muito, bem mais do que os homens, embora não para sempre. Antigamente,
dizia-se entre os elfos na Terra-média que os anões, ao morrer, voltavam para a
terra e a pedra da qual eram feitos; no entanto, não é essa a crença entre eles
próprios. Pois dizem que Aulë, o Criador, que chamam de Mahal, gosta deles e os
acolhe em Mandos em palácios separados; e que ele declarou a seus antigos Pais
que Ilúvatar os abençoará e lhes dará um lugar entre os Filhos no Final. Então,
seu papel será servir a Aulë e auxiliá-la na reconstrução de Arda depois da
Última Batalha. Dizem também que os Sete Pais dos Anões voltam a viver em seus
próprios parentes e a usar de novo seus nomes ancestrais: dos quais Durin foi o
mais célebre em épocas posteriores, pai daquela família mais simpática aos
elfos, cujas mansões ficavam em Khazad-dûm.”
“Por meio dos Naugrim (anões), as Cirth foram
levadas para o leste, para o outro lado das montanhas, e se tornaram parte do
conhecimento de muitos povos: mas foram pouco usadas pelos Sindar
(elfos-cinzentos) para a finalidade de registros até os tempos da Guerra, e
grande parte do que se guardava na memória pereceu nas ruínas de Doriath. É que
da bem-aventurança e da alegria na vida há pouco a ser dito enquanto duram;
assim como as obras belas e maravilhosas, enquanto perduram para que os olhos
as contemplem, são registros de si mesmas, e somente quando correm perigo ou
são destruídas é que se transformam em poesia.”
(Não pôde ser inserido por questões de
espaço, mas é imensamente recomendada a história De Beren e Lúthien)
“Exatamente quando as primeiras sombras foram
percebidas na Floresta das Trevas, surgiram no oeste da Terra-média os Istari,
que os homens chamavam de Magos. Na época ninguém sabia de onde eles
eram, à exceção de Círdan dos Portos, e apenas a
Elrond e a Galadriel ele revelou que haviam chegado pelo Mar. Daí em diante,
porém, dizia-se entre os elfos que eles eram mensageiros enviados pelos
Senhores do Oeste para contestar o poder de Sauron, se ele voltasse a se
erguer, e para influenciar elfos, homens e todos os seres vivos de boa vontade
para com atos corajosos. Apareceram com o aspecto de homens velhos, porém
vigorosos, e mudavam pouco com o passar dos anos, só envelhecendo com vagar,
embora grandes preocupações pesassem sobre eles. Possuíam enorme sabedoria e
muitos poderes mentais e manuais. Muito tempo viajavam por toda parte entre
elfos e homens; e conversavam também com bichos e aves. E os povos da
Terra-média lhes davam muitos nomes, pois seus nomes verdadeiros eles não
revelavam. De maior projeção entre eles eram os que os elfos chamavam de
Mithrandir e Curunír, mas a quem os homens no norte davam os nomes de Gandalf e
Saruman. Desses, Curunír era o mais velho e o que chegara primeiro; e depois
dele vieram Mithrandir e Radagast, bem como outros dos Istari que passaram para
o leste da Terra-média e não entram nestas histórias. Radagast era amigo de
todos os bichos e pássaros; mas Curunír ficava principalmente entre os homens,
sua fala era suave e ele era habilidoso em todos os segredos da arte de forjar.
Em deliberações Mithrandir era mais íntimo de Elrond e dos elfos. Perambulava
muito pelo norte e pelo oeste, e nunca em terra alguma teve morada permanente.
Já Curunír viajou para o leste; e, quando voltou, foi morar em Orthanc, no
Círculo de Isengard, que os númenorianos construíram no período de seu poder.”
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