terça-feira, 16 de junho de 2009

Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis

Editora: Martin Claret

ISBN: 978-85-7232-294-2

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 182

Sinopse: É depois da morte que Brás Cubas decide narrar suas memórias. Nesta condição, nada pode suavizar seu ponto de vista irônico e mordaz sobre uma sociedade em que as instituições se baseiam na hipocrisia. O casamento, o adultério, os comportamentos individuais e sociais não escapam à sua visão aguda e implacável, nesta obra fundamental de Machado de Assis.


“Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião.”

 

 

“Creiam-me, o menos mau é recordar; ninguém se fie da felicidade presente; há nela uma gota da baba de Caim.”

 

 

“Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de “menino diabo”; e verdadeiramente não era outra coisa; fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce “por pirraça”; e eu tinha apenas seis anos.”

 

 

“Era boa moça, lépida, sem escrúpulos, um pouco tolhida pela austeridade do tempo, que lhe não permitia arrastar pelas ruas os seus estouvamentos e berlindas; luxuosa, impaciente, amiga de dinheiro e de rapazes. Naquele ano, ela morria de amores por um certo Xavier, sujeito abastado e tísico, – uma pérola.”

 

 

“(no navio) Fiquei só; mas a musa do capitão varrera-me do espírito os pensamentos maus; preferi dormir, que é modo interino de morrer. No dia seguinte, acordamos debaixo de um temporal, que meteu medo a toda a gente, menos ao doido; esse entrou a dar pulos, a dizer que a filha o mandava buscar, numa berlinda; a morte de uma filha fora a causa da loucura. Não, nunca me há de esquecer a figura hedionda do pobre homem, no meio do tumulto das gentes e dos uivos do furacão, a cantarolar e a bailar, com os olhos a saltarem-lhe da cara, pálido, cabelo arrepiado e longo. Às vezes parava, erguia ao ar as mãos ossudas, fazia umas cruzes com os dedos, depois um xadrez, depois umas argolas, e ria muito, desesperadamente. A mulher não podia já cuidar dele; entregue ao terror da morte, rezava por si mesma a todos os santos do céu. Enfim, a tempestade amainou. Confesso que foi uma diversão excelente à tempestade do meu coração. Eu, que meditava ir ter com a morte, não ousei fitá-la quando ela veio ter comigo.”

 

 

“– Vamos, continuou, entreguemo-la à cova que nunca mais se abre.

Efetivamente, poucas horas depois, era o cadáver lançado ao mar, com as cerimônias do costume.”

 

 

“Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o melhor da obrigação é quando, à força de embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa, e a hipocrisia, que é um vício hediondo. Mas, na morte, que diferença! que desabafo! que liberdade! Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lentejoulas, despregar-se, despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! Porque, em suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem estranhos; não há plateia. O olhar da opinião, esse olhar agudo e judicial, perde a virtude, logo que pisamos o território da morte; não digo que ele se não estenda para cá, e nos não examine e julgue; mas a nós é que não se nos dá do exame nem do julgamento. Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados.”

 

 

“Desde então fiquei perdido. Virgília comparou a águia e o pavão, e elegeu a águia, deixando o pavão com o seu espanto, o seu despeito, e três ou quatro beijos que lhe dera. Talvez cinco beijos; mas dez que fossem não queria dizer coisa nenhuma. O lábio do homem não é como a pata do cavalo de Átila, que esterilizava o solo em que batia; é justamente o contrário.”

 

 

“Mas eu era moço (na época em que ficara doente), tinha o remédio em mim mesmo.”

 

 

“Voltemos à casinha. Não serias capaz de lá entrar hoje, curioso leitor; envelheceu, enegreceu, apodreceu, e o proprietário deitou-a abaixo para substituí-la por outra, três vezes maior, mas juro-te que muito menor que a primeira. O mundo era estreito para Alexandre; um desvão de telhado é o infinito para as andorinhas.”

 

 

“Matamos o tempo; o tempo nos enterra.”

 

 

“Crê em ti; mas nem sempre duvides dos outros.”

 

 

“Não se compreende que um botocudo fure o beiço para enfeitá-lo com um pedaço de pau. Esta reflexão é de um joalheiro.”

 

 

“Cinquenta anos! Não é ainda a invalidez, mas já não é a frescura. Venham mais dez, e eu entenderei o que um inglês dizia, entenderei que “coisa é não achar já quem se lembre de meus pais, e de que modo me há de encarar o próprio ESQUECIMENTO”.”

 

 

“– Não me podes negar um fato, disse ele; é que o prazer do beneficiador é sempre maior que o do beneficiado. (....)

A persistência do benefício na memória de quem o exerce explica-se pela natureza mesma do benefício e seus efeitos. Primeiramente, há o sentimento de uma boa ação, e dedutivamente a consciência de que somos capazes de boas ações; em segundo lugar, recebe-se uma convicção de superioridade sobre outra criatura, superioridade no estado e nos meios; e esta é uma das coisas mais legitimamente agradáveis, segundo as melhores opiniões, ao organismo humano.”

 

 

“Ri-me a princípio; mas a nobre convicção do filósofo incutiu-me certo medo. A única objeção contra a palavra do Quincas Borba é que não me sentia doido, mas não tendo geralmente os doidos outro conceito de si mesmos, tal objeção ficava sem valor.”

 

 

“– O cristianismo é bom para as mulheres e os mendigos, e as outras religiões não valem mais do que essa: orçam todas pela mesma vulgaridade ou fraqueza. O paraíso cristão é um digno êmulo do paraíso muçulmano; e quanto ao nirvana de Buda não passa de uma concepção de paralíticos. Verás o que é a religião humanística.”

 

 

“E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: – Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”

Cinzas do Norte – Milton Hatoum

Editora: Companhia das Letras

ISBN: 978-85-3590-685-1

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 312

Sinopse: Cinzas do Norte, terceiro romance de Milton Hatoum, é o relato de uma longa revolta e do esforço de compreendê-la. Na Manaus dos anos 1950 e 1960, dois meninos travam uma amizade que atravessará toda a vida. De um lado, Olavo, de apelido Lavo, o narrador, menino órfão, criado por dois tios mal-e-mal remediados, que cresce à sombra da família Mattoso; de outro, Raimundo Mattoso, ou Mundo, filho de Alícia, mãe jovem e mercurial, e do aristocrático Trajano.

No centro das ambições de Trajano está a Vila Amazônia, palacete junto a Parintins, sede de uma plantação de juta e pesadelo máximo de Mundo. A fim de realizar suas inclinações artísticas, ou quem sabe para investigar suas angústias mais profundas, o jovem engalfinha-se numa luta contra o pai, a província, a moral dominante e, para culminar, os militares que tomam o poder em 1964 e dão início à vertiginosa destruição de Manaus. Nessa luta que se transforma em fuga rebelde, o rapaz amplia o universo romanesco, que alcança a Berlim e a Londres irrequietas da década de 1970, de onde manda sinais de vida para o amigo Lavo, agora advogado, mas ainda preso à cidade natal.

Outros fios completam o tecido ficcional de Cinzas do Norte: uma carta que o tio Ranulfo envia a Mundo, uma outra que este deixa como legado para o amigo de infância. São versões e revelações que se cruzam ou desencontram, sem jamais chegar a esgotar o enigma de uma vida singular ou a diminuir a dor da derrota final, às mãos da doença, da solidão e da violência. Neste livro, Hatoum escreve uma “história moral” de sua geração.


 

“Ou a obediência estúpida, ou a revolta.”

 

 

“Toda mãe conhece pelo menos um homem na vida: o filho.”

 

 

“Ranulfo ia ajudá-lo? Conhecia os moradores... podia convencer o pessoal a participar, seria um protesto de todos, um trabalho coletivo. E então?

“Tua mãe acha melhor adiar para depois da tua formatura”. Ranulfo passou a mão na boca e fechou os olhos: “Medo de mãe é sempre pertinente”.

“Medo...”, repetiu Mundo, com impaciência. “Só se fala nisso... Toda frase começa com essa palavra. Tanto medo assim, melhor morrer”.”

 

 

“Ouvi o sino da igreja bater onze vezes. Estava enfastiado de estudar leis, de ler processos maçantes sobre crimes variados. Recordei as estocadas de tio Ran: “Tanta lei para nada! Os militares jogaram todas as leis no inferno”.

“O governo militar é mais efêmero que as leis”, eu replicava, com um fiapo de esperança que faltava ao meu tio.”

 

 

“No dia sete de dezembro, seu aniversário, Naiá lhe entregou um buquê de flores do marido com umas palavras ternas de Jano. Ramira caiu em êxtase. O único buquê enviado por um homem em quase meio século de vida. Ela passou a remoer a ilusão de algo parecido com o amor. E então costurou para ele uma calça azul-marinho, caprichando no corte e no acabamento. Perguntei se não era preciso tirar a medida da altura e da cintura. “Claro que não”, respondeu minha tia. “Uma boa costureira não tira a medida de quem admira”.”

 

 

 “‘E as chicanas judiciais? Já começaste a aplicar as leis?’.

Como eu não respondia, continuava: ‘Não tem lei porra nenhuma, rapaz. Tudo depende das circunstâncias: o réu tem ou não tem grana. Amigo togado também serve. Essa é a lei, o princípio e o fim de todas as sentenças’.

Essas palavras davam uma certa dignidade a tio Ran: a grandeza de um ser revoltado.”

 

 

“Por Deus, Lavo, o mau gosto assaltou o universo, e a uniformidade vai matar a alma do ser humano”.

 

 

“Mas, neste mundo, quem vive é que vê o pior.” 

 

 

“Eu implorei pra ele tirar aquele ódio da alma. Ele disse que não ia tirar o que sobrara da vida...”

segunda-feira, 15 de junho de 2009

O Mundo de Sofia – Jostein Gaarder

Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-8057-216-2
Tradução: João Azenha Jr.
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 560
Sinopse: Às vésperas de seu aniversário de quinze anos, Sofia Amundsen começa a receber bilhetes e cartões postais bastante estranhos. Os bilhetes são anônimos e perguntam a Sofia quem é ela e de onde vem o mundo em que vivemos. Os postais foram mandados do Líbano, por um major desconhecido, para uma tal de Hilde Knag, jovem que Sofia igualmente desconhece.
O mistério dos bilhetes e dos postais é o ponto de partida deste fascinante romance, que vem conquistando milhões de leitores em todos os países em que foi lançado. De capítulo em capítulo, de “lição” em “lição”, o leitor é convidado a trilhar toda a história da filosofia ocidental – dos pré-socráticos aos pós-modernos –, ao mesmo tempo em que se vê envolvido por um intrigante thriller que toma um rumo surpreendente.



“Não se pode experimentar a sensação de existir sem se experimentar a certeza que se tem de morrer.”


“Por diferentes motivos, a maioria das pessoas é tão absorvida pelo cotidiano que a admiração pela vida acaba sendo completamente reprimida.”


“Os adultos achavam o mundo uma coisa evidente. Dormiam para sempre o sono encantado do cotidiano.”


“‘Tudo flui’, dizia Heráclito. Tudo está em movimento, e nada dura para sempre. Por esta razão, “não podemos "entrar duas vezes no mesmo rio”. Isto porque quando entro pela segunda vez no rio, tanto eu como o rio estamos mudados.”


“O homem é a medida de todas as coisas”, disse o sofista Protágoras (c. 487-420 a.C.). Com isto ele queria dizer que o certo e o errado, o bem e o mal sempre tinham de ser avaliados em relação às necessidades do homem. Quando perguntado se acreditava nos deuses gregos, Protágoras dizia: “Dos deuses nada posso dizer de concreto [...] pois neste particular são muitas as coisas que ocultam o saber: a obscuridade do assunto e a brevidade da vida humana”.”


Os que questionam são sempre os mais perigosos. Responder não é perigoso. Uma única pergunta pode ser mais explosiva do que mil respostas.”


“Por que ter medo da morte?”, perguntava Epicuro. “Enquanto somos, a morte não existe, e quando ela passa a existir, nós deixamos de ser”.”


“Tudo é possível. Mas também é preciso duvidar de tudo.”


“Dizem que Buda teria dito a seus seguidores pouco antes da morte: - ‘Todas as coisas complexas estão condenadas à decadência’.”


“Literalmente, Kant diz: “Age apenas segundo aquelas máximas através das quais possas, ao mesmo tempo, querer que elas se transformem numa lei geral”. (...).
Kant formulou o imperativo categórico de modo a que nós tratemos as outras pessoas sempre como um fim em si mesmo, e não como um simples meio para se chegar a outra coisa.”


“– Somente quando seguimos nossa “razão prática”, que nos habilita a fazer uma escolha moral, é que possuímos livre-arbítrio. Isto porque ao nos curvarmos à lei moral somos nós mesmos que estamos determinando a lei que vai nos governar.
– Sim, de certa forma isto está certo. Afinal, sou eu, ou alguma coisa em mim, quem diz que não devo maltratar os outros.
– Quando você mesma decide não maltratar mais os outros, ainda que isto venha a ferir os seus próprios interesses, nesse momento você está agindo em liberdade.”


“– Para Schelling, a natureza era o espírito visível, e o espírito a natureza invisível, pois por toda a parte podemos perceber e sentir a ação de um espírito ordenador, estruturador. Para ele, a matéria era uma espécie de inteligência adormecida.”


“Só um anjo pode se rebelar contra Deus.”


“Nem tudo o que é novo é necessariamente bom, e nem tudo o que é velho deve ser descartado.”

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Plantados no Chão: assassinatos políticos no Brasil hoje - Natalia Viana

Editora: Conrad
ISBN: 978-85-7616-231-5
Opinião★★★☆☆
Páginas: 182


“Um país que deixa matar seus líderes populares está se ferin­do, se mutilando. Cada assassinato representa uma vitória para o atraso, a barbaridade, a raiva, a estupidez. Essa sangria perma­nente das mulheres e dos homens mais corajosos e dinâmicos, mais idealistas e generosos, tem um custo alto. A morte de um líder não é simplesmente a eliminação de uma pessoa inconve­niente, mas um golpe contra a esperança. Contra o futuro.”


      “O crime chocou o país e teve um efeito devastador sobre os xukuru. Mesmo assim, os indígenas decidiram prosseguir com sua reivindicação e adotaram, como símbolo de sua luta, a frase proferida pela esposa de Chicão, Zenilda Maria Araújo, durante os ritos funerários do marido. “Recebe teu filho, minha Mãe Na­tureza. Ele não vai ser sepultado, vai ser plantado na tua sombra, como ele queria. Para que dele nasçam novos guerreiros.” Basta perguntar a qualquer xukuru se seu cacique foi enterrado e ele responderá: “Não foi; foi plantado no chão”. Daí o nome deste li­vro, que é em primeiro lugar um tributo a todos aqueles que mor­reram simplesmente porque defendiam um ideal: que os direitos expressos na Constituição fossem cumpridos. Que cada um deles seja uma nova semente para que outros continuem sua luta.”


      “A grande maioria dos assassinados por defesa de direitos no Brasil é composta de pessoas ligadas a algum movimento social, cuja atuação é diferente da dos profissionais geralmente consi­derados “defensores” pela ONU. São vítimas de violações que se organizam para pleitear o que lhes cabe por lei. Quando os sem-terra ocupam uma fazenda improdutiva, estão exigindo o cum­primento do artigo 184 da Constituição, que estabelece a função social da propriedade. Quando um grupo de estudantes bloqueia um terminal de ônibus, está realizando um ato político para rei­vindicar o que está expresso nas leis municipais – que a tarifa deve ser condizente com o poder aquisitivo da população.”


      “Com todas as suas limitações, nossa proposta é levantar a discussão: como é possível, em plena democracia, a ocorrência de assassinatos políticos?
     A pergunta ganha força ao se analisar os dados publicados pela CPT. Segundo os cadernos “Conflitos no Campo”, nos três primeiros anos do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003 a 2005), foram assassinadas 146 pessoas no campo, enquanto no mesmo período no governo anterior houve 76 mortes. Ou seja, um aumento de quase 100% – e isso se deu durante o governo do primeiro operário a chegar à presidência deste país, alguém que já foi um representante do movimento social, um sindicalista perseguido por sua militância.”


      “O assassinato de um militante não representa apenas a mor­te daquela pessoa. É um pouco o assassinato de sua causa, da luta que abraçou em vida. ‘Cada um desses assassinatos está im­pedindo que a comunidade, através da palavra daquela pessoa, possa ter um maior acolhimento das suas pretensões pelo poder público’, comenta o jurista Hélio Bicudo (...) ‘O crime político não é apenas o fato de que a pessoa assassinada esteja fazendo parte do organismo do Estado ou se opondo a ele, é a política num sentido maior, num sentido de que o Estado deve contemplar todos os direitos. Na medida em que não contempla e as pessoas se rebelam contra esse Estado, a eliminação dessas pessoas tem um conteúdo político evidente’. Ou seja: na origem de cada crime político está a responsabilidade do próprio Estado.”
  
      
     “De certa forma, existe um elemento ideológico que entre­meia todo esse processo. Para o advogado Darci Frigo (e para todos os outros entrevistados), o pano de fundo para o verda­deiro ciclo vicioso do crime político no Brasil é a criminalização dos movimentos sociais – ou seja, a associação entre militantes e criminosos perante a opinião pública.      
     “A criminalização tem vários estágios”, explica Frigo. Negar que os militantes lutam pelo que lhes é devido seria o primeiro passo para deslegitimar o movimento – algo que ocorreu inúme­ras vezes na história recente do país. No entanto, o processo evo­lui de maneiras variadas. É comum, por exemplo, que autoridades procurem deslegitimar as lideranças como representantes de um anseio coletivo. A socióloga Silvia Viana Rodrigues aponta para o fato de que é cada vez mais comum ouvir governantes afirmarem que tal ou tal movimento “tem fins políticos”. “Qualquer lideran­ça é acusada de ter aspirações político-partidárias. E o termo ‘po­lítico’ acaba ganhando uma conotação pejorativa”, explica.
     Outras estratégias, adotadas por diferentes atores em dife­rentes âmbitos do Estado, colaboram para a criminalização. Por exemplo, a negação da legitimidade dos meios de pressão utilizados pelos movimentos – como a ocupação de um terreno ou o bloqueio do trânsito – sob o argumento de que tal atitude é “ilegal”. “Pode-se desmoralizar as pessoas publicamente, acusar de crimes que não cometeram, transformar uma situação de ato político em um ato criminoso, prender sem provas formais”, re­lata Darci Frigo.
     Afinal de contas, se entrar sem permissão em uma proprie­dade privada é contra a lei, não seria correto chamar aqueles que o fazem de criminosos? Segundo Hélio Bicudo, não. “Esse embate é também político, mas é fundamentalmente jurídico. É uma questão interpretativa. Tomar posse de uma terra é uma ação formalmente ilegal, mas que defende o direito das pessoas sobre o direito da propriedade. Como o direito à terra é um di­reito social, nos usos e costumes a interpretação é absolutamen­te favorável a que o movimento tome terras que estão inaproveitadas para que elas sejam realmente utilizadas em benefício das pessoas. O que o MST está fazendo é, através de ocupações de terras que aparentemente são inaproveitadas, forçar uma de­finição do Estado sobre essas terras porque, se não estão sendo aproveitadas, o Estado tem que usar o dispositivo constitucional e desapropriá-las.” Ou seja: em vez de violar a lei, o movimen­to está forçando o cumprimento dela. A mesma regra pode ser aplicada aos demais casos: os estudantes que paralisam o trân­sito da cidade, os sindicalistas que realizam protestos diante das fábricas, os indígenas que expulsam invasores de suas terras.
     No entanto, esse debate geralmente não faz parte do coti­diano daqueles que lidam diretamente com os movimentos – os defensores da “lei e da ordem”. Artur Henrique da Silva Santos, presidente da CUT, é testemunha da violência com que as po­lícias militares e civis tratam trabalhadores durante as mani­festações sindicais, tradição que parece não perder terreno com o passar do tempo. Há ainda outras formas de coerção adota­das por policiais e investigadores, segundo Sandra Carvalho, da ONG Justiça Global: violação de domicílio ou instalações de organizações de direitos humanos, ingerências arbitrárias ou abusivas em correspondência ou comunicações telefônicas ou ele­trônicas, atividades de inteligência e espionagem dirigidas con­tra defensores, e restrições de acesso a informações em poder do Estado.”



(Trechos de declaração da ONU)
“Reconhecendo o importante papel da cooperação internacional e a importante contribuição do trabalho dos indivíduos, gru­pos e associações para a efetiva eliminação de todas as viola­ções de direitos humanos e liberdades fundamentais dos povos e dos indivíduos, nomeadamente no que diz respeito a violações em massa, flagrantes e sistemáticas como as que resultam do apartheid, de todas as formas de discriminação racial, do colo­nialismo, do domínio ou ocupação estrangeira, da agressão ou ameaças à soberania nacional, unidade nacional ou integridade territorial e da recusa em reconhecer o direito dos povos à au­todeterminação e o direito de todos os povos a exercerem plena soberania sobre suas riquezas e recursos naturais(...)”.


Artigo 1º
Todas as pessoas têm o direito, individualmente e em associação com outras, de promover e lutar pela proteção e realização dos direitos humanos e das liberdades fundamentais em nível nacio­nal e internacional.
Artigo 2º
1. Cada Estado tem a responsabilidade e o dever primordiais de proteger, promover e tornar efetivos todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, nomeadamente através da adoção das medidas necessárias à criação das devidas condições nas áreas social, econômica, política e outras, bem como das garantias ju­rídicas que se impõem para assegurar que todas as pessoas sob a sua jurisdição, individualmente e em associação com outras, possam gozar na prática esses direitos e liberdades;
  

2. Cada Estado deverá adotar as medidas legislativas, adminis­trativas e outras que se revelem necessárias para assegurar que os direitos e liberdades referidos na presente Declaração sejam efetivamente garantidos.” (...)