Editora: Martin Claret
ISBN: 978-85-7232-294-2
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 182
Sinopse: É depois
da morte que Brás Cubas decide narrar suas memórias. Nesta condição, nada pode
suavizar seu ponto de vista irônico e mordaz sobre uma sociedade em que as
instituições se baseiam na hipocrisia. O casamento, o adultério, os
comportamentos individuais e sociais não escapam à sua visão aguda e
implacável, nesta obra fundamental de Machado de Assis.
“Acresce que a gente grave achará no livro umas
aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance
usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são
as duas colunas máximas da opinião.”
“Creiam-me, o menos mau é recordar; ninguém se
fie da felicidade presente; há nela uma gota da baba de Caim.”
“Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de
“menino diabo”; e verdadeiramente não era outra coisa; fui dos mais malignos do
meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um dia quebrei
a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do doce de coco que estava
fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e,
não satisfeito da travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara
o doce “por pirraça”; e eu tinha apenas seis anos.”
“Era boa moça, lépida, sem escrúpulos, um pouco
tolhida pela austeridade do tempo, que lhe não permitia arrastar pelas ruas os seus
estouvamentos e berlindas; luxuosa, impaciente, amiga de dinheiro e de rapazes.
Naquele ano, ela morria de amores por um certo Xavier, sujeito abastado e tísico,
– uma pérola.”
“(no navio) Fiquei só; mas a musa do capitão varrera-me
do espírito os pensamentos maus; preferi dormir, que é modo interino de morrer.
No dia seguinte, acordamos debaixo de um temporal, que meteu medo a toda a gente,
menos ao doido; esse entrou a dar pulos, a dizer que a filha o mandava buscar, numa
berlinda; a morte de uma filha fora a causa da loucura. Não, nunca me há de esquecer
a figura hedionda do pobre homem, no meio do tumulto das gentes e dos uivos do furacão,
a cantarolar e a bailar, com os olhos a saltarem-lhe da cara, pálido, cabelo arrepiado
e longo. Às vezes parava, erguia ao ar as mãos ossudas, fazia umas cruzes com os
dedos, depois um xadrez, depois umas argolas, e ria muito, desesperadamente. A mulher
não podia já cuidar dele; entregue ao terror da morte, rezava por si mesma a todos
os santos do céu. Enfim, a tempestade amainou. Confesso que foi uma diversão excelente
à tempestade do meu coração. Eu, que meditava ir ter com a morte, não ousei fitá-la
quando ela veio ter comigo.”
“– Vamos, continuou, entreguemo-la à cova que
nunca mais se abre.
Efetivamente, poucas horas depois, era o cadáver
lançado ao mar, com as cerimônias do costume.”
“Talvez espante ao leitor a franqueza com que
lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira
virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses,
a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões
e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o
melhor da obrigação é quando, à força de embaçar os outros, embaça-se um homem a
si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa, e a hipocrisia,
que é um vício hediondo. Mas, na morte, que diferença! que desabafo! que liberdade!
Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lentejoulas, despregar-se,
despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser!
Porque, em suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem
estranhos; não há plateia. O olhar da opinião, esse olhar agudo e judicial, perde
a virtude, logo que pisamos o território da morte; não digo que ele se não estenda
para cá, e nos não examine e julgue; mas a nós é que não se nos dá do exame nem
do julgamento. Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos
finados.”
“Desde então fiquei perdido. Virgília comparou
a águia e o pavão, e elegeu a águia, deixando o pavão com o seu espanto, o seu despeito,
e três ou quatro beijos que lhe dera. Talvez cinco beijos; mas dez que fossem não
queria dizer coisa nenhuma. O lábio do homem não é como a pata do cavalo de Átila,
que esterilizava o solo em que batia; é justamente o contrário.”
“Mas eu era moço (na época em que ficara doente),
tinha o remédio em mim mesmo.”
“Voltemos à casinha. Não serias capaz de lá entrar
hoje, curioso leitor; envelheceu, enegreceu, apodreceu, e o proprietário deitou-a
abaixo para substituí-la por outra, três vezes maior, mas juro-te que muito menor
que a primeira. O mundo era estreito para Alexandre; um desvão de telhado é o infinito
para as andorinhas.”
“Matamos o tempo; o tempo nos enterra.”
“Crê em ti; mas nem sempre duvides dos outros.”
“Não se compreende que um botocudo fure o beiço
para enfeitá-lo com um pedaço de pau. Esta reflexão é de um joalheiro.”
“Cinquenta anos! Não é ainda a invalidez, mas
já não é a frescura. Venham mais dez, e eu entenderei o que um inglês dizia, entenderei
que “coisa é não achar já quem se lembre de meus pais, e de que modo me há de encarar
o próprio ESQUECIMENTO”.”
“– Não me podes negar um fato, disse ele; é que
o prazer do beneficiador é sempre maior que o do beneficiado. (....)
A persistência do benefício na memória de quem
o exerce explica-se pela natureza mesma do benefício e seus efeitos. Primeiramente,
há o sentimento de uma boa ação, e dedutivamente a consciência de que somos capazes
de boas ações; em segundo lugar, recebe-se uma convicção de superioridade sobre
outra criatura, superioridade no estado e nos meios; e esta é uma das coisas mais
legitimamente agradáveis, segundo as melhores opiniões, ao organismo humano.”
“Ri-me a princípio; mas a nobre convicção do filósofo
incutiu-me certo medo. A única objeção contra a palavra do Quincas Borba é que não
me sentia doido, mas não tendo geralmente os doidos outro conceito de si mesmos,
tal objeção ficava sem valor.”
“– O cristianismo é bom para as mulheres e os
mendigos, e as outras religiões não valem mais do que essa: orçam todas pela mesma
vulgaridade ou fraqueza. O paraíso cristão é um digno êmulo do paraíso muçulmano;
e quanto ao nirvana de Buda não passa de uma concepção de paralíticos. Verás o que
é a religião humanística.”
“E imaginará mal; porque ao chegar a este outro
lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste
capítulo de negativas: – Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado
da nossa miséria.”