segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Quem manda no mundo? (Parte II), de Noam Chomsky

Editora: Crítica

ISBN: 978-85-4221-019-4

Tradução: Renato Marques

Opinião: ★★★★☆

Link para compra: Clique aqui

Páginas: 400

Sinopse: Ver Parte I

 

“Considerações semelhantes nos levam diretamente para a segunda questão de maior relevância, analisada na capa da edição de novembro/dezembro de 2011 da revista Foreign Affairs, já citada anteriormente: o conflito Israel-Palestina. Nessa arena seria difícil demonstrar de maneira mais evidente o medo dos EUA em relação à democracia. Em janeiro de 2006 foram realizadas eleições na Palestina, pleito que monitores internacionais consideraram livre e justo. A reação instantânea dos Estados Unidos (e, claro, de Israel), acompanhados de perto pela cortês Europa, foi impor duras penalidades aos palestinos por votarem errado.

Isso não é inovação nenhuma. Está plenamente de acordo com o princípio geral reconhecido pelas correntes dominantes do pensamento acadêmico: os Estados Unidos apoiam a democracia se, e somente se, os resultados estiverem em consonância com seus objetivos estratégicos e econômicos – a pesarosa conclusão de Thomas Carothers, o mais meticuloso e respeitado analista erudito das iniciativas de “promoção da democracia”.”

 

 

“A Coreia do Norte talvez seja o país mais louco do mundo; é um bom concorrente a esse título. Mas faz todo sentido tentar compreender o que se passa na cabeça das pessoas quando estão agindo loucamente. Por que se comportam da forma como se comportam? Basta imaginar-se na situação delas. Imagine o que significou, nos anos da Guerra da Coreia na década de 1950, ver seu país ser totalmente arrasado – tudo destruído por uma mastodôntica superpotência, a qual estava se regozijando com suas ações. Imagine a marca que isso deixaria.

Tenhamos em mente que a liderança norte-coreana à época provavelmente leu as publicações militares públicas dessa superpotência explicando que, uma vez que tudo na Coreia do Norte havia sido devastado, a força aérea foi enviada para lá a fim de destruir as represas norte-coreanas, enormes represas que controlavam o abastecimento de água da nação – um crime de guerra, aliás, pelo qual pessoas foram enforcadas em Nuremberg. E essas publicações oficiais discorriam entusiasticamente sobre como era maravilhoso ver a água jorrando e arrasando os vales, e o corre-corre dos “asiáticos” em sua tentativa de sobreviver.[5] As publicações exultavam com o que isso significava para aqueles asiáticos – horrores além da nossa imaginação. Significava a destruição de suas colheitas de arroz, o que queria dizer fome e morte. Que magnífico! Não está em nosso banco de memórias, mas está no deles.

Voltemos ao presente. Há uma interessante história recente: em 1993, Israel e Coreia do Norte caminhavam para um acordo no qual a Coreia do Norte interromperia o envio de todo e qualquer tipo de míssil e tecnologia militar para o Oriente Médio e em contrapartida Israel reconheceria o país. O presidente Clinton interveio e bloqueou o acordo.[6] Pouco depois, em retaliação, a Coreia do Norte realizou um teste de mísseis de pequena envergadura. Os Estados Unidos e a Coreia do Norte chegaram a um acordo estrutural em 1994, que interrompeu o programa nuclear norte-coreano e foi mais ou menos honrado por ambos os lados. Quando George W. Bush assumiu a presidência, a Coreia do Norte tinha talvez uma arma nuclear e comprovadamente não estava produzindo outras mais.

Bush imediatamente lançou seu militarismo agressivo, ameaçando a Coreia do Norte (“Eixo do Mal” e tudo mais), de modo que os norte-coreanos retomaram seu programa nuclear. Quando Bush deixou a Casa Branca, a Coreia do Norte possuía de oito a dez armas nucleares e um sistema de mísseis, outra formidável realização neoconservadora.[7] No meio, outras coisas aconteceram. Em 2005, os Estados Unidos e a Coreia do Norte chegaram efetivamente a um acordo por meio do qual a Coreia do Norte cessaria todo o desenvolvimento de armamentos nucleares e de mísseis; em troca, o Ocidente – mas principalmente os Estados Unidos – forneceria um reator de água leve para suas necessidades médicas e daria fim às suas declarações agressivas. A seguir, ambos firmariam um pacto de não agressão e caminhariam para a conciliação.

O acordo era muito promissor, mas quase imediatamente Bush o sabotou. O presidente retirou a oferta do reator de água leve e iniciou programas para coagir os bancos a pararem de realizar transações financeiras norte-coreanas, até mesmo as que fossem perfeitamente legais.[8] Os norte-coreanos reagiram retomando seu programa de armas nuclear. E é assim que a coisa vem seguindo.

O jargão é bem conhecido. Qualquer um pode lê-lo na produção acadêmica norte-americana dominante. Sem meias palavras, o que se diz é: trata-se de um regime bastante louco, mas que segue uma política do olho por olho, dente por dente. Você faz um gesto hostil e nós responderemos na mesma moeda, com o nosso próprio gesto louco. Você faz um gesto conciliador, e nós retribuímos da mesma forma.

Recentemente, o comando militar dos EUA e da Coreia do Sul realizaram exercícios militares de grande escala na península coreana, o que do ponto de vista do norte deve parecer ameaçador. Nós acharíamos ameaçador se manobras desse tipo estivessem acontecendo no Canadá, com armas apontadas para nós. Durante esses exercícios, os mais avançados bombardeiros da história, Stealth B-2 e B-52, simularam ataques de bombardeio nuclear bem nas fronteiras da Coreia do Norte.[9]

Isso fez soarem os sinos de alarme do passado. Os norte-coreanos lembram-se de algo daquele passado, por isso estão reagindo de forma bastante agressiva e extremada. Bem, o que chega ao Ocidente é o quanto os líderes norte-coreanos são loucos e terríveis. Sim, eles são – mas isso está longe de ser a história completa, e é assim que o mundo tem caminhado.

Não é que não haja alternativas. As alternativas simplesmente não estão sendo levadas em consideração. Isso é perigoso. Então, se me perguntarem o que acontecerá com o mundo e como vejo a feição do mundo no futuro, a imagem não é nada boa. A menos que as pessoas façam algo a respeito. Sempre podemos.”

5. Sobre o bombardeio de diques como crime de guerra, ver por exemplo Gabriel Kolko, “Report on the Destruction of Dikes: Holland, 1944-45 and Korea, 1953”, in Against the Crime of Silence: Proceedings of the Russell International War Crimes Tribunal, Estocolmo e Copenhague, 1967, ed. John Duffett (Nova York: O’Hare Books, 1968), 224-26; ver também Jon Halliday e Bruce Cumings, Korea: The Unknown War (Nova York: Viking, 1988), 195-96; Noam Chomsky, Towards a New Cold War: Essays on the Current Crisis and How We Got There (Nova York: Pantheon, 1982), 121-22 (edição brasileira: Rumo a uma Nova Guerra Fria – Política Externa dos EUA, do Vietnã a Reagan, São Paulo: Record, 2007).

6. Oded Granot, “Background on North Korea-Iran Missile Deal”, Ma’ariv, 14 de abril de 1995.

7. Fred Kaplan, “Rolling Blunder: How the Bush Administration Let North Korea Get Nukes”, Washington Monthly, maio de 2004.

8. Shreeya Sinha e Susan C. Beachy, “Timeline on North Korea’s Nuclear Program”, The New York Times, 19 de novembro de 2014; Leon Sigal, “The Lessons of North Korea’s Test”, Current History 105, nº 694 (novembro de 2006).

9. Bill Gertz, “U.S. B-52 Bombers Simulated Raids over North Korea During Military Exercises”, Washington Times, 19 de março de 2013.

 

 

“Há graves barreiras e empecilhos a superar na luta por justiça, liberdade e dignidade, mesmo além da cruel e implacável luta de classes incessantemente conduzida pelo mundo corporativo – que tem elevada consciência de classe – com o “apoio indispensável” dos governos que em larga medida são controlados pelas corporações. Ware discute algumas dessas insidiosas ameaças da forma como eram entendidas pela classe trabalhadora. Ele discorre sobre o pensamento de trabalhadores qualificados de Nova York 170 anos atrás, que repetiam a opinião comum de que um salário diário é uma forma de escravidão e alertavam, com aguçado discernimento, que chegaria um dia em que os escravos do salário “terão até certo ponto se esquecido tanto daquilo que se deve à humanidade como à glória, em um sistema que lhes é impingido por sua necessidade e em oposição a seus sentimentos de independência e autorrespeito”.[17] Eles tinham a esperança de que esse dia estivesse “bem distante”. Hoje, são comuns os sinais desse dia, mas as demandas por independência, respeito próprio, dignidade pessoal e controle de cada indivíduo sobre o próprio trabalho e a própria vida, tal qual a velha toupeira de Marx, continuam a cavar e a circular incessantemente por baixo da terra, não muito longe da superfície, pronta para irromper bruscamente quando é despertada pelas circunstâncias e pelo ativismo militante.

17. Ware, The Industrial Worker 1840-1860.

 

 

“Outros eventos importantes ocorreram imediatamente após a queda do Muro de Berlim, dando fim à Guerra Fria. Um deles aconteceu em El Salvador, o maior beneficiário de auxílio militar dos Estados Unidos em todo o mundo – com exceção de Israel e do Egito, uma categoria à parte – e um país com os piores históricos de desrespeito aos direitos humanos já registrados no planeta. Essa é uma correlação frequente e bastante estreita.

O alto comando salvadorenho deu ordens para que o Batalhão Atlacatl invadisse a universidade jesuíta e assassinasse seis destacados intelectuais latino-americanos, todos eles padres jesuítas, incluindo o reitor, o teólogo e filósofo frei Ignacio Ellacuría e todas as testemunhas, a saber, a governanta e a filha dela. O batalhão já havia deixado um rastro sangrento de milhares de vítimas – as habituais – no decurso da campanha de terror patrocinada pelos Estados Unidos em El Salvador, parte de uma campanha mais ampla de terror e tortura em toda a região.[4] Tudo rotina, tudo ignorado e praticamente esquecido pelos EUA e por seus aliados – como sempre, rotina. Mas isso nos diz muita coisa sobre os fatores que conduzem a política, se nos dermos ao trabalho de observar o mundo real.

Outro evento importante se deu na Europa. O presidente soviético Mikhail Gorbachev concordou em permitir a unificação da Alemanha e a integração da Alemanha unificada como membro da OTAN, uma aliança militar hostil. À luz da história recente, foi uma concessão espantosa. Houve uma troca justa, um toma lá dá cá: o presidente Bush e o secretário de Estado James Baker estavam de acordo que a OTAN não se expandiria “um centímetro que fosse para o leste”, querendo dizer Alemanha Oriental. No mesmo instante, os dois expandiram a OTAN Alemanha Oriental adentro.

Gorbachev ficou obviamente enfurecido, mas, quando reclamou, Washington esclareceu que a coisa toda havia sido apenas um compromisso verbal, um acordo de cavalheiros, portanto sem força alguma.[5] Se Gorbachev foi ingênuo o bastante a ponto de acreditar na palavra de líderes norte-americanos, era problema dele.

Tudo isso também era rotina, bem como a silenciosa aceitação e aprovação da expansão da OTAN nos Estados Unidos e no Ocidente em geral. A seguir, o presidente Bill Clinton expandiu ainda mais a OTAN até as fronteiras da Rússia. Hoje, o mundo encara uma grave crise, em larga medida um resultado dessas políticas.”

4. Ver Noam Chomsky, Hopes and Prospects (Chicago: Haymarket Books, 2010), capítulo 12.

5. Ibid.

 

 

O fascínio de saquear os pobres

Outra fonte de provas são os registros históricos dessegredados e disponibilizados ao conhecimento público. Eles contêm explicações reveladoras dos reais motivos da política de Estado. A história é farta e complexa, mas alguns temas persistentes desempenham o papel dominante. Um deles foi articulado com clareza numa conferência para o hemisfério Ocidental convocada pelos Estados Unidos e realizada no México em fevereiro de 1945, ocasião em que Washington impôs uma “Carta Econômica das Américas”, cujo intuito era eliminar o nacionalismo econômico “em todas as suas formas”.[6] Havia uma condição tácita: o nacionalismo econômico seria bom para os EUA, cuja economia depende pesadamente de uma substancial intervenção do Estado.

A eliminação do nacionalismo econômico para os outros entrou em nítido e acentuado conflito com a posição latino-americana naquele momento, o que os funcionários do alto escalão do Departamento de Estado descreveram como “a filosofia do Novo Nacionalismo [que] adota políticas concebidas para ocasionar uma distribuição mais ampla de riqueza e aumentar o padrão de vida das massas”.[7] Como acrescentaram analistas políticos norte-americanos, “os latino-americanos estão convencidos de que os primeiros beneficiários do desenvolvimento dos recursos de um país devem ser o povo desse país”.[8]

Isso, é claro, não poderia acontecer. Washington entende que os “primeiros beneficiários” devem ser os investidores norte-americanos, enquanto cabe à América Latina cumprir sua função de oferecer serviços e propiciar recursos. Como as administrações Truman e Eisenhower deixariam bem claro, a América Latina não poderia passar por um “desenvolvimento industrial excessivo” que talvez prejudicasse os interesses dos EUA. Assim, o Brasil poderia produzir aço de baixa qualidade com o qual as empresas norte-americanas não precisavam se incomodar, mas cuja produção seria considerada “excessiva” caso viesse a concorrer com siderúrgicas norte-americanas.

Preocupações semelhantes ressoaram ao longo do período pós-Segunda Guerra Mundial. O sistema global que seria dominado pelos Estados Unidos estava ameaçado por aquilo que documentos internos chamam de “regimes radicais e nacionalistas” que responderam a pressões populares por desenvolvimento independente.[9] Foi essa a preocupação que motivou a derrubada dos governos parlamentaristas do Irã e da Guatemala em 1953 e 1954, bem como inúmeros outros golpes. No caso do Irã, uma das principais preocupações foi o impacto potencial da independência iraniana sobre o Egito, então em turbulência por causa das práticas coloniais britânicas. Na Guatemala, além do crime cometido pela nova democracia ao dar poder à maioria camponesa e as expropriações de latifúndios da United Fruit Company – o que por si só já era suficientemente ofensivo –, o que inquietava Washington eram a agitação dos trabalhadores e a mobilização popular em ditaduras vizinhas apoiadas pelos EUA.

Em ambos os casos, as consequências chegam até o presente. Literalmente, não se passou um dia desde 1953 sem que os Estados Unidos tivessem deixado de torturar o povo do Irã. A Guatemala continua sendo uma das mais perversas câmaras de horror do mundo; até hoje há maias fugindo dos efeitos das quase genocidas campanhas dos governos militares no país, respaldadas pelo presidente Ronald Reagan e seus comandantes do alto escalão. Como relatou em 2014 um médico guatemalteco, diretor da Oxfam no país: “Está em curso uma drástica deterioração do contexto político, social e econômico. Ataques contra defensores [dos direitos humanos] aumentaram em 300% no último ano. Há claras evidências de uma estratégia muito bem organizada pelo setor privado e o Exército; ambos capturaram o governo a fim de manter o status quo e impor o modelo econômico extrativista, expulsando dramaticamente os povos nativos de suas próprias terras, ocupadas pela indústria de mineração e por plantações de dendezeiros e cana-de-açúcar. Além disso, o movimento social que defende as terras e os direitos dos nativos foi criminalizado, muitos líderes estão presos e muitos outros foram assassinados”.[10]

Nada disso chega ao conhecimento das pessoas nos Estados Unidos, e a causa óbvia desses fatos continua sendo abafada.

Na década de 1950, o presidente Eisenhower e o secretário de Estado John Foster Dulles explicaram o dilema enfrentado pelos Estados Unidos. Eles reclamaram do fato de que os comunistas contavam com uma vantagem injusta: tinha a habilidade de “apelar diretamente às massas” e “obter o controle dos movimentos de massa, coisa que nós não temos a capacidade de reproduzir. É com os pobres que eles falam diretamente, e sempre quiseram saquear os ricos”.[11]

Isso causa problemas. De uma forma ou de outra os Estados Unidos, com sua doutrina segundo a qual os ricos devem saquear os pobres, encontram dificuldades para falar diretamente aos pobres.”

6. “U.S. Economic and Industrial Proposals Made at Inter-American Conference”, The New York Times, 26 de fevereiro de 1945.

7. David Green, The Containment of Latin America: A History of the Myths and Realities of the Good Neighbor Policy (Nova York: Quadrangle Books, 1971), 175.

8. Ibid., VII.

9. “United States Objectives and Courses of Action with Respect to Latin America”, Foreign Relations of the United States, 1952-1954, vol. IV, Documento 3, 18 de março de 1953.

10. Luis Paiz a Noam Chomsky, 13 de junho de 2014, de posse do autor.

11. Dwight Eisenhower, conforme citado por Richard Immerman em “Confession of an Eisenhower Revisionist: An Agonizing Reappraisal”, Diplomatic History 14, nº 3 (verão de 1990); John Foster Dulles em telefonema a Alan Dulles, “Minutes of Telephone Conversations of John Foster Dulles and Christian Herter”, 19 de junho de 1958, Biblioteca Presidencial Dwight D. Eisenhower.

 

 

Atrocidade

Praticamente todos os dias somos bombardeados por notícias de crimes horríveis, mas alguns são tão hediondos, tão horrendos e malignos que fazem com que todos os demais pareçam menores. Um desses raros eventos ocorreu quando o voo MH17 da Malaysia Airlines foi derrubado no leste da Ucrânia, matando 298 pessoas.

O Guardião da Virtude na Casa Branca condenou o episódio como “uma atrocidade de proporções indescritíveis”, que ele atribuiu a “apoio russo”.[1] Na ONU, a embaixadora dos EUA denunciou, aos berros, que “quando 298 civis são mortos” na “horrível derrubada” de um avião civil, “devemos trabalhar de forma irrefreável para determinar quem são os responsáveis e levá-los à justiça”. Ela também conclamou Vladimir Putin a acabar com seus vergonhosos esforços de se evadir de sua claríssima responsabilidade.[2]

Verdade seja dita, aquele “homenzinho irritante” com “cara de rato” – como Timothy Garton Ash o descreveu – tinha exigido uma investigação independente, mas isso só poderia ter acontecido por causa das sanções do único país suficientemente corajoso para impô-las, os Estados Unidos.[3]

Na CNN, o ex-embaixador norte-americano na Ucrânia, William Taylor, assegurou ao mundo que aquele homenzinho irritante é “claramente responsável [...] pela derrubada dessa aeronave”.[4] Durante semanas, as manchetes, matérias de capa e principais reportagens noticiaram a agonia das famílias, a vida das vítimas assassinadas, os esforços internacionais para reclamar os corpos e a fúria suscitada pelo horrível crime que “chocou o mundo”, de acordo com o que a imprensa veiculava diariamente, com profusão de detalhes, o criminoso desastre.

Toda pessoa alfabetizada, e todos os editores, comentaristas e analistas deveriam instantaneamente ter recordado outro caso em que um avião civil foi abatido com um número comparável de perda de vidas: o voo 655 da Iran Air, em que morreram todas as 290 pessoas a bordo, entre elas 66 crianças; a aeronave foi derrubada em espaço aéreo iraniano, numa rota comercial claramente identificada. O agente responsável sempre foi do conhecimento de todos: um míssil guiado disparado pelo cruzador norte-americano Vincennes, operando em águas iranianas no golfo Pérsico.

O comandante de uma embarcação norte-americana que estava nos arredores, David Carlson, escreveu na revista do Instituto Naval dos EUA, Proceedings, que “se surpreendeu, incrédulo” quando “o Vincennes anunciou suas intenções” de atacar um alvo que era uma aeronave civil. Ele especulou que o “cruzador robô”, como o Vincennes era chamado por causa de seu comportamento agressivo, “sentiu necessidade de provar a viabilidade do Aegis (o sofisticado sistema antiaéreo do cruzador) no golfo Pérsico, e que estava ansioso por mostrar seu equipamento.[5]

Dois anos depois, o comandante do Vincennes e o oficial encarregado do equipamento antiaéreo foram agraciados com a Legião de Mérito por “conduta excepcionalmente meritória na execução de extraordinários serviços” e pela “atmosfera calma e profissional” mantida durante o período em que o avião de passageiros iraniano foi derrubado. A destruição do avião não foi mencionada na cerimônia de entrega da comenda.[6]

O presidente Ronald Reagan culpou os iranianos pelo desastre e defendeu as ações do navio de guerra, que “seguiu ordens padrão e procedimentos amplamente divulgados, disparando para se proteger contra um possível ataque”.[7] Seu sucessor, George H. W. Bush, proclamou que “jamais pedirei desculpas pelos Estados Unidos – não me importo com os fatos. [...] Não sou o tipo de cara que pede desculpas em nome dos EUA”.[8]

Nenhuma evasão de responsabilidade aqui, ao contrário dos bárbaros do Leste.

À época, as reações foram mínimas: nenhum furor, nenhuma busca desesperada por vítimas, nenhuma acusação veemente e apaixonada dos responsáveis, nenhum lamento eloquente da embaixadora dos EUA na ONU sobre a perda “imensa e pesarosa” quando o avião de passageiros foi derrubado. As condenações iranianas foram esporadicamente mencionadas, mas logo descartadas como “ataques de praxe contra os Estados Unidos”, conforme definiu Philip Shenon no jornal The New York Times.[9]

Não é de surpreender, portanto, que esse insignificante evento anterior tenha merecido apenas algumas escassas linhas na mídia dos EUA durante o vasto furor por causa de um crime real, no qual o demoníaco inimigo talvez estivesse diretamente envolvido.

Uma exceção foi o jornal londrino Daily Mail, onde Dominic Lawson escreveu que, embora os “apologistas de Putin” talvez pudessem trazer à baila o ataque ao avião da Iran Air, a comparação demonstra os nossos altos valores morais em contraste com os dos miseráveis russos, que tentam, com mentiras, eximir-se de sua responsabilidade no caso do MH17, ao passo que Washington anunciou de imediato que o navio de guerra havia derrubado a aeronave iraniana – de modo correto e moralmente justo.[10] Qual evidência mais poderosa poderia haver da nossa nobreza e da perversidade dos russos?

Sabemos por que ucranianos e russos estão em seus próprios países, mas é o caso de se perguntar o que exatamente o Vincennes estava fazendo em águas iranianas. A resposta é simples: a belonave estava defendendo o grande amigo de Washington, Saddam Hussein, em sua assassina agressão contra o Irã. Para as vítimas, a derrubada do avião não foi uma questão rasa. Foi um fator de considerável peso na aceitação por parte do Irã de que já não podia seguir lutando, de acordo com o historiador Dilip Hiro.[11]

Vale a pena lembrar a extensão da devoção de Washington por seu amigo Saddam. Reagan retirou o nome de Saddam da lista de terroristas do Departamento de Estado, de modo que assim fosse possível enviar ajuda para acelerar o ataque de Hussein ao Irã, e mais tarde ambos negaram seus terríveis crimes contra os curdos, incluindo o uso de armas químicas, e Reagan bloqueou a condenação por parte do Congresso a esses crimes. Reagan também cedeu a Saddam um privilégio que só havia sido dado a Israel: não houve reação relevante quando o Iraque atacou com mísseis Exocet o USS Stark, matando 37 membros da tripulação, num caso muito parecido ao que aconteceu quando o USS Liberty foi repetidamente atacado por jatos e torpedeiros israelenses em 1967, matando 34 tripulantes.[12]

O sucessor de Reagan, George H. W. Bush, cedeu a Saddam um amparo maior ainda, auxílio de que Hussein precisava após a guerra contra o Irã, iniciada por ele. Bush também convidou engenheiros nucleares iraquianos para passar uma temporada nos Estados Unidos a fim de receber treinamento avançado em produção de armamentos. Em abril de 1990, Bush despachou uma delegação de alto escalão do Senado, encabeçada por Bob Dole, futuro candidato Republicano à presidência, para transmitir a seu amigo Saddam as mais calorosas saudações e reassegurar que ele deveria desprezar as críticas irresponsáveis da “imprensa arrogante e mimada”, e que os torpes canalhas desse calibre haviam sido retirados da Voz da América.[13] A adulação a Saddam continuou até que ele tornou-se um novo Hitler meses depois, quando desobedeceu a ordens, ou talvez as tenha entendido mal, e invadiu o Kuwait, com claras consequências que devo deixar de lado aqui.

Desde então, outros precedentes do MH17 foram descartados como fatos sem importância e mandados para dentro do buraco da memória: vejamos, por exemplo, o episódio do avião de passageiros líbio (voo 114 da Libyan Arab Airlines) que, em fevereiro de 1973, se perdeu numa tempestade de areia e foi abatido por jatos israelenses fornecidos pelos EUA, a dois minutos de chegar a seu destino, em sua rota regular de Trípoli ao Cairo.[14] Nessa ocasião, o número total de mortos foi de apenas 110. Israel culpou o capitão francês do avião líbio, com o endosso do jornal The New York Times, que acrescentou que o ato israelense foi “na pior das hipóteses [...] um ato de insensibilidade que nem mesmo a selvageria das ações árabes prévias pode desculpar”.[15] O incidente foi rapidamente ignorado nos Estados Unidos e passou em brancas nuvens, com poucas críticas. Quando a primeira-ministra Golda Meir chegou a Washington quatro dias depois, enfrentou algumas perguntas embaraçosas e voltou para casa levando alguns novos presentinhos militares. A reação foi basicamente a mesma quando a organização terrorista angolana favorita de Washington, a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) reivindicou ter derrubado dois aviões civis.”

1. Katie Zezima, “Obama: Plane Crash in Ukraine an ‘Outrage of Unspeakable Proportions’”, Washington Post, 18 de julho de 2014.

2. “Explanation of Vote by Ambassador Samantha Power, US Permanent Representative to the United Nations, After a Vote on Security Council Resolution 2166 on the Downing of Malaysian Airlines Flight 17 in Ukraine”, Missão dos Estados Unidos nas Nações Unidas, 21 de julho de 2014, http://usun.state.gov/remarks/6109.

3. Timothy Garton Ash, “Putin’s Deadly Doctrine”, Opinion, The New York Times, 18 de julho de 2014.

4. William Taylor, entrevista a Anderson Cooper, CNN, 18 de julho de 2014, transcrição publicada em http://www.cnn.com/TRANSCRIPTS/1407/18/acd.01.html.

5. United Press International, “Vincennes Too Aggressive in Downing Jet, Officer Writes”, Los Angeles Times, 2 de setembro de 1989.

6. David Evans, “Vincennes Medals Cheapen Awards for Heroism”, Daily Press, 15 de abril de 1990.

7. Ronald Reagan, “Statement on the Destruction of an Iranian Jetliner by the United States Navy over the Persian Gulf”, 3 de julho de 1988. Disponibilizado online por Gerhard Peters e John T. Woolley, The American Presidency Project, http://www.presidency.ucsb.edu/ws/?pid=36080.

8. Michael Kinsley, “Rally Round the Flag, Boys”, Time, 12 de setembro de 1988.

9. Philip Shenon, “Iran’s Chief Links Aid to Better Ties”, The New York Times, 6 de julho de 1990.

10. Dominic Lawson, “Conspiracy Theories and the Useful Idiots Who Are Happy to Believe Putin’s Lies”, Daily Mail (Londres), 20 de julho de 2014.

11. Dilip Hiro, The Longest War: The Iran-Iraq Military Conflict (Nova York: Psychology Press, 1989).

12. John Crewdson, “New Revelations in Attack on American Spy Ship”, Chicago Tribune, 2 de outubro de 2007.

13. Miron Rezun, Saddam Hussein’s Gulf Wars: Ambivalent Stakes in the Middle East (Westport: Praeger, 1992), 58f.

14. Michael Omer-Man, “This Week in History: IAF Shoots Down Libyan Flight 114”, Jerusalem Post, 25 de fevereiro de 2011.

15. Edward W. Said e Christopher Hitchens, Blaming the Victims: Spurious Scholarship and the Palestinian Question (Nova York: Verso, 2001), 133.

 

 

Para a Cisjordânia, a norma tem sido Israel prosseguir com a sua construção ilegal de assentamentos e de infraestrutura, de modo que possa anexar e integrar tudo o que tiver valor, ao passo que os palestinos recebem os cantões inviáveis e são submetidos a intensa repressão e violência. Nos últimos catorze anos, a norma tem sido Israel matar mais de duas crianças palestinas por semana. Um recente episódio de violência israelense teve início em 12 de junho de 2014, quando foram brutalmente assassinados três meninos israelenses de um assentamento ocupado na Cisjordânia. Um mês antes, dois meninos palestinos haviam sido mortos a tiros na cidade de Ramallah, na Cisjordânia. Isso despertou pouca atenção, o que é compreensível, já que é rotineiro. “O desprezo institucionalizado pela vida palestina no Ocidente ajuda a explicar não somente por que os palestinos recorrem à violência”, segundo Mouin Rabbani, o respeitado analista do Oriente Médio, “mas também o mais recente ataque de Israel na Faixa de Gaza”.[21]

21. Mouin Rabbani, “Institutionalised Disregard for Palestinian Life”, blog LRB, 9 de julho de 2014.

 

 

Se alguma espécie extraterrestre estivesse compilando uma história do Homo sapiens, poderia muito bem dividir o seu calendário em duas eras: AAN (antes das armas nucleares) e EAN (era das armas nucleares). Esta última, claro, teve início em 6 de agosto de 1945, o primeiro dia na contagem regressiva para o que pode ser o inglório fim desta estranha espécie que teve inteligência para descobrir os meios efetivos de destruir a si mesma, mas – assim mostram as evidências – não capacidade moral e intelectual de controlar seus piores instintos.”

 

 

“É importante ter em mente que os republicanos abandonaram há muito tempo o fingimento de funcionar como um partido parlamentar normal. Conforme observou o respeitado comentarista político conservador Norman Ornstein, do direitista Instituto Empresarial Norte-americano (American Enterprise Institute – AEI, na sigla em inglês), os republicanos tornaram-se uma “insurgência radical” que mal e mal procura participar da política normal no Congresso.[6] Desde os dias do presidente Ronald Reagan, a liderança do partido mergulhou tão fundo nos bolsos dos ricaços e do setor corporativo que só consegue atrair votos mobilizando partes da população que anteriormente não foram arregimentadas em forças políticas organizadas. Entre esses setores estão os cristãos evangélicos extremistas, que hoje devem constituir a maioria dos eleitores republicanos; remanescentes dos antigos estados escravagistas; nativistas que estão aterrorizados com o fato de que “eles” estão roubando de nós o nosso país, branco, cristão e anglo-saxão; e outros que transformam as primárias republicanas em espetáculos distantes das tendências dominantes das sociedades modernas – embora não do mainstream do país mais poderoso da história mundial.”

6. Thomas E. Mann e Norman J. Ornstein, “Finding the Common Good in an Era of Dysfunctional Governance”, Daedalus 142, nº 2 (primavera de 2013).

Quem manda no mundo? (Parte I), de Noam Chomsky

Editora: Crítica

ISBN: 978-85-4221-019-4

Tradução: Renato Marques

Opinião: ★★★★☆

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Páginas: 400

Sinopse: O mais importante ativista intelectual do mundo oferece neste livro um aprofundado exame das mudanças do poder norte-americano, as ameaças à democracia e o futuro da ordem global. Meticulosamente documentado, “Quem manda no mundo?” é um guia indispensável para entender a situação internacional atual. Com clareza e oferecendo diversos exemplos, Chomsky mostra como os Estados Unidos continuam sendo a voz mais forte, mesmo com a ascensão da Europa e da Ásia. O envolvimento americano com China e Cuba, as sanções contra o Irã, os conflitos no Iraque, Afeganistão e Israel/Palestina, a relação com a América Latina e África e o aquecimento global são alguns dos pontos discutidos no livro. Chomsky escreveu um posfácio sobre a eleição de Donald Trump, o referendo Brexit e a ascensão dos partidos ultranacionalistas de extrema direita na Europa. Sua conclusão sobre o futuro do mundo é alarmante.



É claro que os “mestres do universo” estão muito longe de ser representativos das populações das potências dominantes. Mesmo nos Estados mais democráticos, as populações exercem um impacto apenas limitado acerca de diretrizes políticas. Nos Estados Unidos, pesquisadores renomados forneceram evidências contundentes de que “elites econômicas e grupos organizados representantes de interesses comerciais causam substanciais impactos independentes sobre as políticas governamentais dos EUA, ao passo que cidadãos comuns e grupos de interesse de massas exercem pouca ou nenhuma influência independente”. Os resultados de seus estudos, concluem os autores, “propiciam substancial sustentação a teorias de Dominação da Elite Econômica e Teorias de Pluralismo Tendencioso, mas não para teorias de Democracia Eleitoral Majoritária ou Pluralismo Majoritário”. Outros estudos já demonstraram que a ampla maioria da população, na ponta mais baixa do espectro de renda/riqueza, é efetivamente excluída do sistema político, suas opiniões e atitudes são ignoradas por seus representantes formais, ao passo que um ínfimo setor que ocupa o topo da escala tem um grau de influência esmagador. Esses estudos também apontaram que, no decorrer de um longo período, o financiamento de campanha é um extraordinário previsor das decisões políticas.[2]”

2. Martin Gilens e Benjamin Page, “Testing Theories of American Politics: Elites, Interest Groups, and Average Citizens”, Perspectives on Politics 12, nº 3 (setembro de 2014), http://www.princeton.edu/~mgilens/Gilens%20homepage%20materials/Gilens%20and%20Page/Gilens%20and%20Page%202014-Testing%20Theories%203-7-14.pdf; Martin Gilens, Affluence and Influence: Economic Inequality and Political Power in America (Princeton: Princeton University Press, 2010); Larry Bartels, Unequal Democracy: The Political Economy of the New Gilded Age (Princeton, Princeton University Press, 2008); Thomas Ferguson, Golden Rule: The Investment Theory of Party Competition and the Logic of Money-Driven Political Systems (Chicago: University of Chicago Press, 1995).

 

 

“O venerando termo “dissidente” é usado seletivamente. Não se aplica, é óbvio, com suas conotações favoráveis a intelectuais orientados por valores ou aos que combatem a tirania respaldada pelos EUA no exterior. Vejamos o interessante caso de Nelson Mandela, cujo nome só foi excluído da lista oficial de terroristas do Departamento de Estado em 2008, o que lhe permitiu viajar para os Estados Unidos sem autorização especial. Vinte anos antes, Mandela era o líder criminoso de um dos “mais notórios grupos terroristas” do mundo, de acordo com um relatório do Pentágono. [12] Foi por essa razão que o presidente Reagan teve de apoiar o regime do apartheid, aumentando o comércio com a África do Sul em violação de sanções do Congresso e apoiando os atos hostis dos sul-africanos em países vizinhos, que resultaram, segundo um estudo da ONU, em 1,5 milhão de mortes.[13] Esse foi apenas um episódio da guerra ao terrorismo que Reagan declarou para combater “a praga da era moderna”, ou como definiu o secretário de Defesa George Scultz, “uma volta à barbárie na era moderna”.[14] Poderíamos acrescentar as centenas de milhares de cadáveres na América Central e dezenas de milhares mais no Oriente Médio, entre outras façanhas.”

12. “Terrorist Group Profiles”, Departamento de Estado, janeiro de 1989. Ver também Robert Pear, “US Report Stirs Furor in South Africa”, The New York Times, 14 de janeiro de 1989.

13. Força-Tarefa Interagências das Nações Unidas, Programa de Recuperação da África/Comissão Econômica da ONU para a África, South African Destabilization: The Economic Cost of Frontline Resistance to Apartheid, 1989, 13.

14. Noam Chomsky, “The Evil Scourge of Terrorism” (discurso à Sociedade Internacional Erich Fromm, Stuttgart, Alemanha, 23 de março de 2010).

 

 

Uma vez que mal somos capazes de enxergar o que se passa diante de nossos olhos, não surpreende que eventos a uma distância mínima sejam completamente invisíveis. Um exemplo instrutivo: o envio de 79 soldados de uma força de elite ao Paquistão em maio de 2011 para executar o que foi evidentemente o assassinato premeditado do principal suspeito das atrocidades terroristas de 11 de Setembro, Osama bin Laden.[28] Embora o alvo da operação, desarmado e sem nenhuma proteção, pudesse ter sido detido e capturado vivo com facilidade, ele foi sumariamente executado, e seu corpo atirado ao mar, sem autópsia – uma “ação justa e necessária”, lemos na imprensa de esquerda.[29] Não haveria julgamento, como ocorreu no caso dos criminosos de guerra nazistas – fato que não foi ignorado pelas autoridades legais no exterior, que aprovaram a operação, mas apresentaram objeções ao procedimento. Conforme nos lembra a professora de Harvard Elaine Scarry, a proibição do assassinato nas normas elementares do direito internacional remonta a uma veemente denúncia contra a prática feita por Abraham Lincoln, que em 1863 condenou a mobilização para o assassínio como “banditismo internacional”, uma “abominável atrocidade” que as “nações civilizadas” veem com “horror” e que merece “a mais severa retaliação”.[30] Avançamos muito desde então.”

25. Daniel Wilkinson, “Death and Drugs in Colombia”, The New York Review of Books, 23 de junho de 2011.

26. Anthony Lewis, “Abroad at Home”, The New York Times, 2 de março de 1990.

27. Mary McGrory, “Havel’s Gentle Rebuke”, Washington Post, 25 de fevereiro de 1990.

28. Mark Mazzetti, Helene Cooper e Peter Baker, “Behind the Hunt for Bin Laden”, The New York Times, 2 de maio de 2011.

29. Eric Alterman, “Bin Gotten”, Nation, 4 de maio de 2011.

30. Elaine Scarry, “Rules of Engagement”, Boston Review, 8 de novembro de 2006.

 

 

Inúmeros analistas observaram que Bin Laden obteve enormes êxitos em sua guerra contra os Estados Unidos. “Ele afirmou repetidamente que a única maneira de expulsar os EUA do mundo islâmico e derrotar seus sátrapas era arrastar os norte-americanos para uma série de pequenas mas dispendiosas guerras que, ao fim e ao cabo, os arruinaria e os levaria à bancarrota”, escreve o jornalista Eric Margolis. “Os Estados Unidos, primeiro sob George W. Bush e depois Barack Obama, precipitaram-se diretamente na armadilha de Bin Laden [...] Orçamentos e gastos militares grotescamente inchados e o vício compulsivo em dívidas [...] talvez sejam o mais pernicioso legado do homem que julgou ser capaz de derrotar os Estados Unidos.”[33] Um relatório do projeto Custos de guerra do Instituto Watson para estudos internacionais e públicos da Universidade Brown estima que a conta final será de 3,2 a 4 trilhões de dólares.[34] Um feito impressionante de Bin Laden.

Que Washington tinha toda a resoluta intenção de cair na armadilha de Bin Laden logo ficou evidente. Michael Scheuer, o analista sênior da CIA responsável por perseguir e rastrear os passos de Bin Laden de 1996 a 1999, escreveu que “Bin Laden, com precisão cirúrgica, mostrou aos Estados Unidos as razões pelas quais está desencadeando sua guerra contra nós”. O líder da al-Qaeda, continuou Scheuer, estava “determinado a alterar de forma drástica as políticas dos EUA e do Ocidente em relação ao mundo islâmico”.

E, conforme explica Scheuer, Bin Laden foi muito bem-sucedido. “As forças e as políticas dos EUA estão completando a radicalização do mundo islâmico, algo que Osama bin Laden vem tentando fazer com sucesso substancial, porém incompleto, desde o início dos anos 1990. O resultado, parece-me justo concluir, é que os Estados Unidos da América continuam a ser o único aliado indispensável de Bin Laden”.[35] E possivelmente continuam a sê-lo, mesmo após a morte do líder da Al-Qaeda.

Existem bons motivos para acreditar que o movimento jihadista pudesse ter sido dividido e minado após o 11 de Setembro, que recebeu severas críticas dentro do próprio movimento. Além disso, o “crime contra a humanidade”, como foi corretamente rotulado, poderia ter sido tratado como um crime, com uma operação internacional para capturar os presumíveis suspeitos. Essa ideia foi aceita logo após o ataque, mas a sua execução nem sequer foi cogitada pelos tomadores de decisões em Washington. Parece que não se levou a sério a oferta provisória feita pelo Talibã – ainda que não tenhamos como avaliar o grau de seriedade dessa oferta – de apresentar os líderes da al-Qaeda para que fossem submetidos a um processo judicial.

À época, citei a conclusão de Robert Fisk de que o horrendo crime de 11 de Setembro foi cometido com “maldade e crueldade impressionantes” – um juízo exato. Os crimes poderiam ter sido ainda piores: suponhamos, por exemplo, que o voo 93, derrubado por corajosos passageiros na Pensilvânia, tivesse ido tão longe a ponto de atingir a Casa Branca, matando o presidente? Suponhamos que os criminosos planejassem e lograssem impor uma ditadura militar que matasse milhares e torturasse dezenas de milhares. Suponhamos que a nova ditadura estabelecesse, com o apoio dos criminosos, um centro de terror internacional que ajudasse a instalar em outros países regimes de tortura e terror similares e, a cereja do bolo, trouxesse uma equipe de economistas – vamos chamá-los de “os meninos de Kandahar” – que rapidamente conduzisse a economia a uma das piores depressões de sua história. Claramente, isso teria sido muito pior do que o 11 de Setembro.”

33. Eric S. Margolis, “Osama’s Ghost”, American Conservative, 20 de maio de 2011.

34. Daniel Trotta, “Cost of War at Least $3.7 Trillion and Counting”, Reuters, 29 de junho de 2011.

35. Michael Scheuer, Imperial Hubris: Why the West Is Losing the War on Terror (Washington: Potomac Books, 2004).

 

 

“Quanto à responsabilidade dos intelectuais, a meu ver não parece haver muito a dizer além de algumas verdades simples: os intelectuais são geralmente privilegiados; o privilégio enseja oportunidades, e a oportunidade confere reponsabilidades. Um indivíduo tem, então, escolhas.”

 

 

A amnésia histórica é um fenômeno perigoso, não só porque mina a integridade moral e intelectual, mas também porque prepara o terreno e estabelece as bases para crimes que ainda estão por vir.”

 

 

“Os EUA e seus aliados ocidentais estão resolvidos a fazer tudo o que puderem para impedir uma democracia autêntica no mundo árabe. Para entender por quê, basta apenas dar uma olhada nas pesquisas de opinião realizadas no mundo árabe por agências norte-americanas de sondagem. Embora os resultados sejam pouco divulgados, são de conhecimento dos responsáveis pelo planejamento político. Revelam que a esmagadora maioria de árabes vê os EUA e Israel como as maiores ameaças que enfrentam: é o que pensam 90% dos egípcios e mais de 75% dos habitantes da região como um todo. A título de contraste, 10% dos árabes consideram o Irã uma ameaça. A oposição às diretrizes políticas dos EUA é tão forte que uma maioria acredita que a segurança melhoraria se o Irã dispusesse de armamento nuclear (é a opinião de 80% dos egípcios).[9] Outros dados de pesquisa mostram resultados semelhantes. Se a opinião pública pudesse influir nas decisões, os EUA não só não poderiam controlar a região, mas seriam expulsos dela junto com todos os seus aliados, o que arruinaria os princípios fundamentais da dominação global.”

9. Centro de Pesquisas Pew, “Egyptians Embrace Revolt Leaders, Religious Party and Military, As Well”, 25 de abril de 2011, http://pewglobal.org/files/2011/04/Pew-Global-Attitudes-Egypt-Report-FINAL-April-25-2011.pdf.

 

 

O desprezo da elite pela democracia revelou-se de maneira eloquente e impactante na reação às revelações e aos vazamentos de informações do WikiLeaks. Os que receberam maior atenção, com comentários eufóricos, foram os cabogramas informando o apoio dos árabes à posição dos EUA acerca do Irã. A referência era aos ditadores no poder das nações árabes; a posição da opinião pública nem sequer recebeu menção.”

 

 

“A imprensa alerta que “os investidores e negociantes chineses estão preenchendo agora um vácuo no Irã, à medida que as empresas de muitas outras nações, notadamente as europeias, saem de cena”, e chama a atenção, em particular, para o fato de que a China está expandindo seu papel dominante nas indústrias energéticas iranianas.[19] Washington reage com uma pitada de desespero. O Departamento de Estado advertiu a China de que, se o país deseja ser aceito na “comunidade internacional” – um termo técnico para se referir aos Estados Unidos e quem mais porventura estiver de acordo com os norte-americanos –, então não pode “esquivar-se e evadir-se das responsabilidades internacionais, [que] são bem claras”: a saber, obedecer às ordens dos EUA.[20] É pouco provável que isso impressione ou abale a China.

É grande também a preocupação acerca da crescente ameaça militar chinesa. Um estudo recente do Pentágono alertou que o orçamento militar chinês aproxima-se de “um quinto do que o Pentágono gastou para planejar e realizar as guerras no Iraque e no Afeganistão” – uma fração do orçamento militar estadunidense, é óbvio. A expansão das forças militares chinesas poderia “tolher a capacidade dos navios de guerra norte-americanos de operar em águas internacionais ao largo da costa chinesa”, acrescentou The New York Times.[21]

Ao largo da costa da China, claro está; ninguém propôs ainda que os Estados Unidos eliminem as forças militares que impedem o acesso dos navios de guerra chineses ao Caribe. A incapacidade chinesa para compreender as regras da civilidade internacional é ilustrada de maneira mais patente por suas objeções aos planos para que o avançado porta-aviões nuclear da Marinha norte-americana George Washington se junte aos exercícios navais realizados a poucas milhas da costa da China, o que supostamente o colocaria em posição propícia para bombardear Pequim.

Em contraste, o Ocidente compreende que essas operações estadunidenses são, todas elas, levadas a efeito para defender a “estabilidade” e sua própria segurança. A revista liberal de esquerda The New Republic expressa a sua preocupação porque “a China enviou dez navios de guerra por meio de águas internacionais ao largo da ilha japonesa de Okinawa”.[22] Isso é, de fato, uma provocação – ao contrário do fato, não mencionado, de que Washington converteu a ilha em uma grande base militar, numa afronta aos veementes protestos da população de Okinawa. Isso não é uma provocação, conforme o princípio tácito de que nós somos os donos do mundo.”

19. Clayton Jones, “China Is a Barometer on Whether Israel Will Attack Nuclear Plants in Iran”, Christian Science Monitor, 6 de agosto de 2010.

20. Kim Ghattas, “US Gets Serious on Iran Sanctions”, BBC News, 3 de agosto de 2010.

21. Thom Shanker, “Pentagon Cites Concerns in China Military Growth”, The New York Times, 16 de agosto de 2010.

22. Joshua Kurlantzick, “The Belligerents”, The New Republic, 17 de fevereiro de 2011.

 

 

Na década de 1970 deu-se também uma drástica mudança na economia norte-americana, no sentido da financeirização e exportação da produção. Vários fatores convergiram para criar um círculo vicioso de extrema concentração da riqueza, primordialmente na fração do 1% mais abastado da população: altos executivos e presidentes de empresas, gestores de fundos de investimento de alto risco e afins. Isso levou à concentração do poder político, e por conseguinte políticas estatais para o favorecimento do incremento da concentração econômica; políticas fiscais, normas de governança corporativa, desregulamentação etc. Nesse ínterim, os custos das campanhas eleitorais subiram vertiginosamente, empurrando os partidos políticos para dentro dos bolsos do capital concentrado, cada vez mais financeiros: os republicanos, agindo por reflexo; os democratas – que agora são o que antes costumávamos chamar de republicanos moderados – não muito atrás.”

 

 

Enquanto a população em geral se mantiver passiva, apática, entretida com o consumismo ou distraída pelo ódio contra os vulneráveis, os poderosos continuarão fazendo o que lhes der na telha, e aos que sobreviverem não restará senão contemplar o resultado.”

 

 

“Embora as políticas de longa data dos Estados Unidos permaneçam em larga medida estáveis, com ajustes táticos, sob Obama houve algumas mudanças significativas. O analista militar Yochi Dreazen e seus coautores observaram na revista The Atlantic que, enquanto a política de Bush era capturar (e torturar) suspeitos, Obama simplesmente os assassina, incrementando o uso de armas de terror (drones) e comandos das Forças Especiais, muitos deles esquadrões de extermínio.[13] O cronograma das unidades das Forças Especiais prevê a atuação dessas tropas de elite em 120 países.[14] Agora do tamanho de todo o contingente militar do Canadá, essas forças são, a bem da verdade, um exército privado do presidente, questão discutida em detalhes pelo jornalista investigativo norte-americano Nick Turse no site Tom Dispatch.[15] A equipe que Obama enviou para assassinar Osama bin Laden já havia realizado talvez uma dúzia de missões similares no Paquistão. Como este e muitos outros fatos importantes ilustram, ainda que a hegemonia dos Estados Unidos tenha diminuído, sua ambição não definhou.

Outro tema comum, pelo menos entre aqueles que não são intencionalmente cegos, é que o declínio americano é, em grande medida, autoinfligido. A ópera-bufa em cartaz em Washington, cujo enredo gira em torno da decisão de “paralisar” ou não o governo, o que enoja o país (a grande maioria do qual considera que o Congresso deveria ser dissolvido) e desconcerta o mundo, tem poucos análogos nos anais da democracia parlamentar. O espetáculo está chegando inclusive a apavorar os patrocinadores da farsa. Os poderes corporativos estão agora preocupados, temendo que os extremistas que eles ajudaram a eleger possam acabar optando por derrubar o edifício do qual dependem a sua própria riqueza e seus privilégios, o poderoso Estado-babá que atende a seus interesses.

Certa vez, o eminente filósofo social norte-americano John Dewey descreveu a política como “a sombra que os grandes negócios lançam sobre a sociedade”, advertindo que “a atenuação da sombra não mudará a substância”.[16] Desde a década de 1970, a sombra tornou-se uma nuvem escura encobrindo a sociedade e o sistema político. O poder corporativo, a essa altura composto em larga medida de capital financeiro, chegou a um ponto em que ambas as organizações políticas, republicanos e democratas – que agora mal se assemelham a partidos tradicionais –, estão bem à direita da população nos temas mais importantes em debate.

Para o povo, a principal preocupação é a grave crise do desemprego. Nas atuais circunstâncias, esse problema crítico só poderia ser superado por um significativo estímulo governamental, muito além do que Obama iniciou em 2009, e que mal se equiparou à queda dos gastos estaduais e municipais, embora mesmo assim tenha salvado milhões de empregos. Para as instituições financeiras, a principal preocupação é o déficit. Portanto, somente o déficit está em discussão. A grande maioria da população (72%) é favorável a uma política de enfrentamento do déficit por meio da taxação dos muito ricos.[17] Os cortes nos programas de saúde enfrentam a oposição da esmagadora maioria (69% no caso do Medicaid, 78% para o Medicare).[18] O resultado provável é, portanto, o oposto.

Divulgando os resultados de um estudo sobre como o povo estadunidense eliminaria o déficit, Steven Kull, diretor do Programa para Consultas Públicas, que conduziu a análise, escreve que “tanto a administração como a Câmara liderada pelos republicanos estão fora de sintonia com os valores e as prioridades da opinião pública em relação ao orçamento [...] A maior diferença é que o povo é a favor de cortes profundos nos gastos de defesa, ao passo que o governo e a Câmara propõem aumentos modestos [...] A opinião pública também apoia gastos maiores em formação e capacitação profissional, educação e controle da poluição do que propõem o governo ou a Câmara”.[19]

Estima-se que os custos das guerras de Bush e Obama no Iraque e no Afeganistão cheguem a 4,4 trilhões de dólares – uma tremenda vitória para Osama bin Laden, cujo objetivo anunciado era levar os Estados Unidos à falência, arrastando o país para uma armadilha.[20] O orçamento militar norte-americano para 2011 – quase equivalente aos gastos com despesas militares do restante do mundo inteiro somado – foi maior em termos reais (ajustado à inflação) do que em qualquer outro momento desde a Segunda Guerra Mundial, e está programado para subir ainda mais.”

13. Yochi Dreazen, Aamer Madhani e Marc Ambinder, “The Goal Was Never to Capture Bin Laden”, The Atlantic, 4 de maio de 2011.

14. Nick Turse, “Iraq, Afghanistan, and Other Special Ops ‘Successes’”, TomDispatch, 25 de outubro de 2015, http://www.tomdispatch.com/blog/176060/.

15. Ver também Nick Turse, The Changing Face of Empire: Special Ops, Drones, Spies, Proxy Fighters, Secret Bases, and Cyberwarfare (Chicago: Haymarket Books/ Dispatch Books, 2012) e Nick Turse, Tomorrow’s Battlefield: U.S. Proxy Wars and Secret Ops in Africa (Chicago: Haymarket Books/Dispatch Books, 2015).

16. Robert Westbrook, John Dewey and American Democracy (Ithaca: Cornell University Press, 1991), 440.

17. Jennifer Epstein, “Poll: Tax Hike Before Medicare Cuts”, Politico, 20 de abril de 2011.

18. Jon Cohen, “Poll Shows Americans Oppose Entitlement Cuts to Deal with Debt Problem”, Washington Post, 20 de abril de 2011.

19. University of Maryland–College Park, “Public’s Budget Priorities Differ Dramatically from House and Obama”, comunicado à imprensa, Newswise.com, 2 de março de 2011, http://www.newswise.com/articles/publics-budget-priorities-differ-dramatically-from-house-and-obama.

20. Catherine Lutz, Neta Crawford e Andrea Mazzarino, “Costs of War”, Instituto Watson para Assuntos Internacionais e Públicos da Universidade Brown, http://watson.brown.edu/costsofwar/.

 

 

“Tais golpes autoinfligidos, ainda que cada vez mais potentes, não são uma inovação recente. Remontam à década de 1970, quando a política econômica nacional passou por transformações decisivas, dando fim ao que é chamado “a idade de ouro do capitalismo [de Estado]”. Dois elementos de peso foram a financeirização e o offshoring de produção (ou transferência de plantas industriais),* ambos relacionados ao declínio da taxa de lucros na indústria fabril e ao desmantelamento do sistema de Bretton Woods de controles de capital e moedas regulamentadas. O triunfo ideológico das “doutrinas de livre mercado”, seletivas como sempre, aplicou golpes adicionais, na medida em que essas doutrinas se traduziram em desregulamentação, regras de governança corporativa vinculando polpudas recompensas pagas a altos executivos de empresas a lucros de curto prazo e outras decisões políticas afins. A resultante concentração da riqueza rendeu maior poder político, acelerando um círculo vicioso que levou a uma extraordinária riqueza para uma ínfima minoria, enquanto para a grande maioria os rendimentos reais praticamente estagnaram.”

* O termo offshoring designa a transferência da atividade produtiva e respectivos postos de trabalho de regiões com consideráveis custos de produção para regiões onde o custo de produção é significativamente mais baixo, principalmente no que diz respeito à mão de obra e matérias-primas. (N. T.)

 

 

“Alguns aniversários significativos são comemorados de forma solene – o do ataque japonês à base aérea e naval norte-americana de Pearl Harbor, por exemplo. Outros são ignorados, e podemos aprender com eles valiosas lições sobre o que o futuro provavelmente nos reserva.

Não houve comemoração nenhuma do 50º aniversário da decisão do presidente John F. Kennedy de desferir o mais assassino e destrutivo ato de agressão do período pós-Segunda Guerra Mundial: a invasão do Vietnã do Sul e, depois, de toda a Indochina, o que deixou milhões de mortos e quatro países devastados, e o número de baixas ainda hoje aumenta progressivamente, por causa dos efeitos de longo prazo da exposição do Vietnã do Sul aos carcinógenos mais letais conhecidos, despejados com o intuito de destruir a cobertura vegetal e a produção de alimentos.

O primeiro alvo foi o Vietnã do Sul. A seguir, a agressão se espalhou para o Norte, e depois para a remota sociedade camponesa do norte do Laos, até finalmente chegar ao rural Camboja, bombardeado em níveis impressionantes, equivalente a todas as operações aéreas aliadas realizadas na região do Pacífico durante a Segunda Guerra Mundial, incluindo as duas bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki. Neste caso, as ordens do consultor de Segurança Nacional de Henry Kissinger estavam sendo obedecidas – “jogar qualquer coisa que voe sobre tudo que se mova”, um chamamento aberto para o genocídio como raras vezes se viu na história.[1] Pouco disso é lembrado. A maior parte desses fatos mal é conhecida fora dos estreitos círculos de ativistas.”

1. Elizabeth Becker, “Kissinger Tapes Describe Crises, War and Stark Photos of Abuse”, The New York Times, 27 de maio de 2004.

 

 

“A vitória mais importante das guerras da Indochina deu-se em 1965, quando um golpe de Estado militar liderado pelo general Suharto e respaldado pelos EUA resultou numa criminosa matança que a CIA comparou às chacinas de Hitler, Stálin e Mao. O “assombroso morticínio”, segundo a descrição no jornal The New York Times, foi noticiado com exatidão de detalhes por toda a mídia dominante, e com incontida euforia.[17]

Foi um “brilho de luz na Ásia”, de acordo com o que escreveu o renomado comentarista de esquerda James Reston, no Times.[18] O golpe deu fim à ameaça de democracia ao demolir o partido político de massas, dos pobres, instituindo uma ditadura que compilaria os piores registros de violações dos direitos humanos na história do mundo e que escancarou as riquezas do país para os investidores ocidentais. Não é de surpreender que, mesmo depois de tantos horrores, inclusive a quase genocida invasão do Timor Leste, Suharto tenha sido recebido de bom grado numa visita à Casa Branca em 1995, ocasião em que a administração Clintou saudou-o como “nosso tipo de homem”.[19]”

17. Seymour Topping, “Slaughter of Reds Gives Indonesia a Grim Legacy”, The New York Times, 24 de agosto de 1966.

18. James Reston, “A Gleam of Light in Asia”, The New York Times, 19 de junho de 1966.

19. David Sanger, “Why Suharto Is In and Castro Is Out”, The New York Times, 31 de outubro de 1995.

 

 

“A Primavera Árabe, outro acontecimento de importância histórica, talvez pressagie pelo menos uma “perda” parcial do MENA. Os Estados Unidos e seus aliados vêm tentando com afinco evitar esse resultado – até aqui, com considerável sucesso. Sua política com relação às revoltas populares aferrou-se com unhas e dentes às diretrizes padrão: apoiar as forças mais dóceis e submissas à influência e ao controle dos EUA.

Os ditadores favorecidos devem ser respaldados durante o tempo em que conseguirem manter o controle (como os principais Estados produtores de petróleo). Quando isso já não for possível, descarte-os e tentem restaurar o antigo regime da forma mais completa possível (como na Tunísia e no Egito). O padrão geral é conhecido em outros lugares do mundo, por ser praticado por Somoza, Marcos, Duvalier, Mobutu, Suharto e muitos outros. No caso da Líbia, as três tradicionais potências imperiais, violando a resolução do Conselho de Segurança da ONU que elas mesmas tinham acabado de endossar, tornaram-se a força aérea dos rebeldes, aumentando de forma acentuada o número de baixas civis e criando um desastre humanitário e caos político à medida que o país descambava para a guerra civil e abundantes quantidades de armamento caíam nas mãos de jihadistas na África Ocidental e outras regiões.[21]”

21. Alan J. Kuperman, “Obama’s Libya Debacle”, Foreign Affairs 94, nº 2 (março/abril de 2015).