quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Os Fundamentos da Liberdade (Parte I) – Friedrich A. Hayek

Editora: Visão
Tradução: Anna Maria Capovilla e José Ítalo Stelle
Opinião: ★☆☆☆☆
Páginas: 522
Sinopse: Este livro é uma daquelas obras notáveis que se pode ler começando da primeira página ou que pode ser compulsada como se faz com um bom dicionário ou com a própria Bíblia, abrindo-se para lê-la em qualquer parte. O título do original em inglês, The Constitution of Liberty, poderia ser literalmente traduzido para o português como A Constituição da Liberdade ou então como Os Fundamentos da Liberdade.



“As obras de Hayek, principalmente as que se referem à filosofia política, constituem essencialmente um só bloco de grande coerência conceitual. Elas apresentam, de forma honesta, bem temperada, penetrante e abrangente, quatro propostas básicas.
Em primeiro lugar, que as instituições que constituem a base da sociedade brotam da ação humana, mas não dos planos ou da ação deliberada dos homens; e portanto as tentativas de planejamento ou ‘organização’ da sociedade são fatais para seu sucesso.
Em segundo lugar, que numa sociedade livre a lei é fundamentalmente natural, não é fabricada; de modo que, normalmente, ela não constitui a projeção da simples vontade dos governantes, sejam eles reis ou maiorias democráticas. A lei é uma norma geral de conduta, igual para todos e aplicável a número desconhecido de casos futuros, abstraídos, portanto, de quaisquer circunstâncias específicas de tempo e de lugar e referindo-se apenas a condições que possam ocorrer em qualquer lugar ou a qualquer tempo.
Em terceiro lugar, que o Estado de Direito não somente constitui o primeiro e mais importante princípio da sociedade livre, mas também depende das duas condições acima citadas. O Estado de Direito é não só um ‘estado de legalidade’, mas, muito mais que isso, pressupõe o princípio da liberdade individual e exige que a lei possua esses atributos de norma geral, igual para todos, abstrata e prospectiva.
Em quarto lugar, que o Estado de Direito exige que os homens sejam tratados com igualdade, mas o Estado de Direito, além de não exigir que os homens sejam igualados, também será minado por qualquer tentativa neste sentido.”
(Henry Maksoud)


“Mais do que outros especialistas, o economista sabe que a mente humana não consegue apreender todo o conhecimento que orienta as ações da sociedade e está consciente, portanto, da consequente necessidade de um mecanismo impessoal, independente de julgamentos humanos individuais, que coordene os esforços de cada um.”


“É certo que ser livre pode significar liberdade de morrer de fome, de cometer erros que redundarão em perdas ou, ainda, de correr riscos mortais. No sentido em que empregamos a palavra, o mendigo sem vintém que leva uma vida precária, baseada na constante improvisação, é, realmente, mais livre que o conscrito com toda sua segurança e relativo conforto.”


“Poder-se-ia dizer que a civilização começa quando o indivíduo, na busca de seus objetivos, utiliza um volume de conhecimentos muito maior do que o adquirido por ele próprio, podendo transcender os limites de sua ignorância recorrendo a um conhecimento que não possui.”


“O funcionamento do processo exige que cada indivíduo possa agir conforme seu conhecimento pessoal, sempre inimitável, pelo menos no que se refere a certas circunstâncias específicas, e que seja capaz de utilizar suas aptidões e oportunidades, dentro dos limites que conhece e visando a seus próprios objetivos individuais.”


“O homem aprende pela frustração de suas esperanças. É óbvio que não devemos aumentar a imprevisibilidade dos acontecimentos com a criação de tolas instituições humanas. Na medida do possível, deveríamos eleger como objetivo a melhoria das instituições humanas, a fim de aumentar as possibilidades de previsão correta. Todavia, acima de tudo, deveríamos proporcionar o máximo de oportunidades para que indivíduos que não conhecemos aprendessem fatos que nós mesmos ainda desconhecemos e utilizassem este conhecimento em suas ações.
É graças aos esforços harmônicos de muitas pessoas que se pode utilizar uma quantidade de conhecimento maior do que aquela que um indivíduo isolado pode acumular ou do que seria possível sintetizar intelectualmente. E graças a essa utilização do conhecimento disperso é que se tornam possíveis realizações superiores às que uma mente isolada poderia prever. É justamente porque liberdade significa renúncia ao controle direto dos esforços individuais que uma sociedade livre pode fazer uso de um volume muito maior de conhecimentos do que aquele que a mente do mais sábio governante poderia abranger.”


“A liberdade utilizada apenas por um homem entre um milhão pode ser mais importante para a sociedade e mais benéfica para a maioria do que qualquer grau de liberdade que todos nós poderíamos desfrutar.”


“É absurda a ideia de que nosso conhecimento nos permite deduzir leis necessárias de evolução às quais deveríamos obedecer. A razão humana não pode predizer nem moldar seu próprio futuro. Suas conquistas consistem em descobrir seus erros.”


“Das convenções e costumes inerentes às relações humanas, as normas morais são as mais importantes, mas não representam absolutamente os únicos elementos significativos. Conseguimos comunicar-nos e relacionar-nos uns com os outros, somos capazes de executar nossos planos com êxito, porque, quase sempre, os membros de nossa civilização se atêm a padrões inconscientes de conduta e mostram em suas ações uma regularidade que não é resultado de ordens ou coerção – frequentemente, nem mesmo de observância consciente a normas conhecidas – mas de hábitos e tradições firmemente arraigados. A observância geral de tais convenções é condição necessária para a ordem do mundo em que vivemos, para que possamos encontrar nosso caminho, embora não nos demos conta de sua importância e talvez nem estejamos conscientes de sua existência. Em alguns casos, seria necessário, para o bom funcionamento da sociedade, garantir uma uniformidade semelhante por meio da coerção, sempre que tais convenções e regras não fossem obedecidas com a frequência adequada. Às vezes, a coerção pode, então, ser evitada apenas porque existe um alto grau de conformidade voluntária, o que significa que a conformidade voluntária pode ser uma condição para que a liberdade possa produzir resultados benéficos.”


“Uma sociedade que não reconhece a cada indivíduo valores próprios pelos quais ele tem o direito de se pautar não terá nenhum respeito pela dignidade do indivíduo e realmente não sabe o que é liberdade. Mas também não é menos verdade que em uma sociedade livre um indivíduo será respeitado de acordo com o uso que ele fizer de sua liberdade. O apreço moral não teria sentido se não houvesse liberdade: “Se cada ação, boa ou má, de um homem maduro, dependesse da permissão, da prescrição e da coerção, o que seria a virtude senão uma palavra, que elogio caberia à boa ação, que honra haveria em ser sensato, justo, ou continente?”146 Liberdade é uma oportunidade de fazer o bem, mas isso só ocorre quando também é uma oportunidade de fazer o mal. Uma sociedade livre se tornará viável somente se os indivíduos se deixarem, de alguma maneira, pautar por valores comuns. É, talvez, por isso que os filósofos definiram algumas vezes a liberdade como ação em conformidade com normas morais. Mas essa definição de liberdade é a negação daquela liberdade de que estamos tratando. A liberdade de ação que é condição do mérito moral inclui a liberdade de errar: elogiamos ou criticamos o indivíduo somente quando ele tem a possibilidade de escolher, quando ele cumpre as normas por ser exortado e não compelido a fazê-lo.”
146: John Milton, Areopagitica (Edições “Everyman” [Londres, 1927]), página 18. O conceito pelo qual o mérito moral depende da liberdade já foi assinalado por alguns filósofos escolásticos e posteriormente, de modo especial, pela literatura “clássica” alemã (ver por ex. F. Schiller, On the Aesthetic Education of Man [New Haven: Yale University Press, 1954], página 74: “Para ser capaz de ação, o homem deve ser antes livre”).


“A igualdade estabelecida pelas normas legais e de conduta gerais é, todavia, a única forma de igualdade que conduz à liberdade e a única que podemos obter sem destruir a liberdade. A liberdade não só não tem relação alguma com qualquer outro tipo de igualdade como também tende, em muitos casos, a produzir desigualdade. Isto constitui a consequência necessária e, em parte, a justificativa da liberdade individual; se os efeitos da liberdade individual não demonstrassem que certos modos de vida levam a resultados melhores do que outros, provavelmente seria impossível justificá-la.”


“Não é correto afirmar, no sentido factual, que “todos os homens nascem iguais”. Podemos continuar usando esta frase consagrada para exprimir o ideal de que, de um ponto de vista legal e moral, todos os homens deveriam ser tratados com igualdade. Mas, para compreender o que esse ideal pode ou deve significar, devemos primeiramente libertar-nos da crença em qualquer igualdade factual. (...)
A função da família, que consiste em transmitir modelos e tradições, está estreitamente vinculada à possibilidade de transmitir bens materiais. E é difícil entender como a limitação do progresso material a uma única geração poderia servir aos verdadeiros interesses da sociedade.”


“Seria irracional negar que uma sociedade poderá criar uma elite melhor se a ascensão social não for limitada a uma geração, se os indivíduos não forem obrigados a começar do mesmo patamar e se as crianças não forem privadas da oportunidade de se beneficiar da melhor educação e meios materiais que seus pais lhes possam proporcionar.”


“Num sistema livre não é nem conveniente nem praticável que as recompensas materiais correspondam àquilo que os homens entendem por mérito, e que uma sociedade livre se caracteriza pelo fato de que a posição de um indivíduo não deve depender, necessariamente, da opinião que os outros têm sobre o mérito por ele conquistado.”


“Na medida em que pretendemos que os indivíduos orientem suas ações de acordo com seus próprios pontos de vista no que concerne às suas expectativas e oportunidades, os resultados são necessariamente imprevisíveis e a questão da justeza da consequente distribuição da renda deixa de fazer qualquer sentido.168
168: Ver a interessante análise em R. G. Collingwood, “Economics as a Philosophical Science”, Ethics, Vol. XXXVI (1926), que conclui (página 174): “Um preço justo, um salário justo, uma justa taxa de juro são uma contradição em termos. A ideia de que uma pessoa deve receber determinada quantia em troca de seus bens e trabalho é uma questão totalmente desprovida de significado. As únicas questões realmente válidas são o que ela pode obter em troca de seus bens ou trabalho, e se ela deveria realmente vendê-los”.


“O oposto de democracia é governo autoritário; o de liberalismo é totalitarismo. Nenhum dos dois sistemas exclui necessariamente o oposto do outro: a democracia pode exercer poderes totalitários, e um governo autoritário pode agir com base em princípios liberais.*”
*: Cf também H. Kelsen, “Foundations of Democracy”, Ethics, LXVI (1955), 3: “É importante ter em mente que os princípios da democracia e do liberalismo não são idênticos e que há mesmo certo antagonismo entre os dois”.


“Enquanto o liberalismo é uma das doutrinas referentes ao âmbito de ação e à finalidade do governo entre as quais a democracia tem de escolher, a democracia, por ser um método, não diz respeito aos objetivos do governo. Embora a palavra “democrático” seja frequentemente usada, hoje, para definir determinados objetivos no campo da política que são populares, particularmente certos objetivos igualitários, não existe uma relação necessária entre democracia e uma teoria que diga como devem ser usados os poderes da maioria. Para saber o que queremos que os outros aceitem, precisamos de outros critérios, além da opinião corrente da maioria, que constitui um fator irrelevante no processo de formação da opinião.”


“Há pelo menos dois aspectos em que é quase sempre possível ampliar a democracia: a gama de indivíduos com direito ao voto e a gama de questões decididas por processo democrático. Em nenhum dos dois aspectos pode-se afirmar coerentemente que toda ampliação possível da democracia implica uma conquista, ou que o princípio da democracia exige sua ampliação indefinida.”


“Não se pode dizer que a igualdade perante a lei exige necessariamente que todos os adultos tenham direito de votar; o princípio continuaria vigorando se a mesma norma impessoal fosse aplicada a todos. Se somente as pessoas acima de quarenta anos, ou só os que percebem algum tipo de renda,176 ou só os chefes de família, ou as pessoas com um nível mínimo de escolaridade tivessem direito ao voto, isto não constituiria violação maior do princípio do que as restrições normalmente aceitas.
As pessoas mais sensatas podem também argumentar que seria mais coerente, do ponto de vista do ideal da democracia, se aos funcionários do governo ou a todos os que vivem de subvenções governamentais fosse vedado o voto. Ainda que o sufrágio universal pareça a melhor solução no mundo ocidental, isto não prova que algum princípio básico o imponha. (...)
Estas observações têm por fim exclusivo mostrar como nem o mais dogmático dos democratas pode afirmar que toda e qualquer ampliação da democracia é um bem. Independentemente do peso dos argumentos a favor da democracia, ela não é um valor último, ou absoluto, e deve ser julgada pelo que realizar. Ela constitui provavelmente o melhor método para a consecução de certos fins, mas não é um fim em si mesma. Embora o método democrático de decisão pareça o mais recomendável quando uma ação coletiva é obviamente necessária, a decisão relativa à conveniência ou não de se ampliar o controle coletivo deve ser tomada com base em outros princípios que não os da democracia em si.”
176: É bom lembrar que na mais antiga e mais estável democracia europeia, a Suíça, às mulheres ainda é vedado o voto, aparentemente com a aprovação da maioria delas. Também parece plausível que, em condições primitivas, somente o sufrágio limitado, por exemplo, aos proprietários de terra, permitiria a constituição de um Legislativo suficientemente independente do governo para exercer efetivo controle sobre este.


“Se a democracia é antes um meio do que um fim, seus limites devem ser determinados à luz do propósito ao qual queremos que ela sirva. Há três argumentos principais pelos quais é possível justificar a democracia, podendo-se considerar cada um deles definitivo. O primeiro é que, quando se faz necessário que prevaleça uma entre várias opiniões discordantes, mesmo que se tenha de recorrer à força, sempre causa menos dano determinar qual das opiniões tem maior apoio pela contagem numérica do que pela luta. A democracia é o único método de mudança pacífica que o homem descobriu até hoje.181
O segundo argumento, historicamente o mais importante, e que, apesar das dúvidas acerca de sua atual validade, ainda tem considerável relevância, é que a democracia representa uma valiosa garantia da liberdade individual. Disse um escritor do século XVII que “o melhor aspecto da democracia é a liberdade e a coragem e a capacidade de iniciativa que a liberdade engendra”. 182 Tal concepção reconhece, é claro, que democracia ainda não é liberdade; apenas afirma que é a forma de governo com maior probabilidade de gerar liberdade do que outras. Pode-se considerar este ponto de vista bastante válido quanto à prevenção da coerção exercida por certos indivíduos sobre outros: não é benéfico para a maioria que alguns indivíduos tenham o poder de coagir arbitrariamente. Entretanto, a proteção do indivíduo contra a ação coletiva da própria maioria é outra questão. Mesmo neste caso, pode-se argumentar que, como na realidade o poder coercitivo sempre será exercido por poucos, é menos provável que se abuse dele se o poder delegado a poucos sempre puder ser revogado por aqueles que a ele têm de se submeter. Mas, embora a probabilidade de a liberdade individual sobreviver seja maior em uma democracia do que em outras formas de governo, não quer dizer que esteja automaticamente assegurada. A liberdade só se transformará em realidade se a maioria decidir torná-la seu objetivo. A liberdade dificilmente sobreviveria se confiássemos na mera existência da democracia para preservá-la. O terceiro argumento fundamenta-se na possibilidade de as instituições democráticas promoverem maior entendimento dos assuntos públicos pela população. Este me parece o mais convincente.”
181 Ver J.F. Stephen, Liberty, Equality, Fraternity (Londres, 1873), página 27: “Concordamos em medir forças contando cabeças, e não quebrando cabeças. (...) Não é o lado mais sábio que vence, e sim aquele que, no momento, mostra a superioridade de sua força (e um de seus elementos é, indubitavelmente, a sabedoria) ao conquistar a maior solidariedade. A minoria não cede porque se convence de que está equivocada, mas porque se convence de que é minoria”. Cf. também L. von Mises, Human Action (New Haven: Yale University Press, 1949), página 150: “Para assegurar a paz interna, o liberalismo visa ao governo democrático. A democracia não é, portanto, uma instituição revolucionária; ao contrário, ela é o único meio de impedir as revoluções e guerras civis. Ela oferece um método de ajustamento pacífico do governo à vontade da maioria”. Ver também K. R. Popper, “Prediction and Prophecy and Their Significance for Social Theory”, Proceedings of the 10th International Congress of Philosophy, I (Amsterdam, 1948), especialmente página 90: “Pessoalmente, chamo ao tipo de governo que pode ser destituído, sem se recorrer à violência, ‘democracia’; ao outro, ‘tirania’ ”.
182: Sir John Culpepper, An Exact Collection of All the Remonstrances, etc. (Londres, 1643), página 266.


“Democracia é, acima de tudo, um processo de formação da opinião. Sua principal vantagem não está no método de seleção dos governantes, mas no fato de que, como a maioria dos habitantes toma parte ativa na formação da opinião, consequentemente aqueles podem ser escolhidos entre grande número de pessoas. É possível admitir que a democracia não confia o poder aos mais sábios e mais bem informados e que as decisões de um governo de elite seriam talvez mais benéficas à comunidade; mas não quer dizer que devemos deixar de preferir a democracia. É em seus aspectos dinâmicos, e não em seus aspectos estáticos, que se revela o valor da democracia. Os benefícios da democracia, assim como os da liberdade, só transparecem a longo prazo, e seus resultados imediatos podem até ser inferiores aos de outras formas de governo.”


“A ideia de que a democracia não proporciona apenas um método para a solução das divergências de opinião quanto à linha de ação a ser adotada, mas também um padrão para definir qual será a opinião adotada, já alcançou repercussões de amplas consequências. Em particular, contribuiu para criar graves equívocos em torno do que é uma verdadeira lei e que leis deveremos adotar. Para que a democracia seja viável, dois pontos são igualmente importantes: que o primeiro conceito possa ser sempre averiguado e que o segundo possa sempre ser questionado. As decisões da maioria mostram o que as pessoas querem em dado momento, mas não o que seria seu interesse querer, se estivessem mais bem informadas; e, a menos que pudessem ser modificadas pela persuasão, não teriam nenhum valor. Democracia pressupõe que qualquer opinião minoritária possa tornar-se majoritária.
Nem seria preciso enfatizar esta ideia, se, às vezes, não se apontasse como dever do democrata, e em especial do intelectual democrático, aceitar os pontos de vista e os valores da maioria. Sem dúvida, convencionou-se que os pontos de vista da maioria devem prevalecer em termos de ação coletiva, mas isto não significa, de modo algum, que não se deva fazer todo o esforço para mudá-los. Pode-se ter profundo respeito por essa convenção e, ao mesmo tempo, muito pouco pela sabedoria da maioria. Nossos conhecimentos e compreensão evoluem justamente porque alguns sempre discordam da opinião da maioria. No processo de formação da opinião, é muito provável que, quando uma opinião qualquer se torna majoritária, já não seja a melhor: alguém já estará um passo adiante da posição que a maioria acabou de alcançar.185 É por não sabermos ainda qual das inúmeras opiniões provará ser a melhor que esperamos até uma delas ganhar consenso suficiente.
A ideia de que as realizações de todos devem guiar-se pela opinião da maioria, ou de que a sociedade é melhor ou pior segundo seu grau de conformidade com os padrões majoritários, é, na verdade, o inverso do princípio que tem regido a evolução da civilização. Adotá-la levaria, provavelmente, à estagnação e até à decadência da civilização. O progresso se dá quando a minoria convence a maioria. Antes de tornar-se comuns à maioria, as novas opiniões surgem necessariamente da minoria, pois não há experiência ao nível da sociedade como um todo que não tenha sido antes a experiência de alguns indivíduos. Tampouco o processo de formação da opinião da maioria, basicamente ou em sua totalidade, resulta de discussão, como a concepção ultraintelectualizada daria a entender. É relativamente válido afirmar que democracia é o governo por meio do debate, mas isso só se aplica ao último estágio do processo pelo qual são testados os méritos de posições e tendências alternativas. Embora essencial, o debate não é o processo principal pelo qual o povo aprende. As opiniões e desejos do povo são formados por indivíduos que agem visando a seus próprios objetivos; e o povo se beneficia do que outros aprenderam mediante a experiência individual. A opinião pública não avançará a não ser que alguns indivíduos tenham um conhecimento maior e melhores condições de convencer os demais. É justamente porque, em geral, desconhecemos quem tem um conhecimento maior, que deixamos a decisão a um processo que não controlamos. No entanto, a maioria acaba sempre se aperfeiçoando graças a uma minoria que se comporta de maneira diferente daquela que a maioria prescreveria.”
185 Hoje, a expressão “liberdade civil” parece ser utilizada principalmente em relação aos exercícios de liberdade individual, que são de importância essencial para o funcionamento da democracia, como a liberdade de expressão, de reunião e de imprensa - e, nos Estados Unidos, em particular com referência às oportunidades garantidas pela Declaração de Direitos. O próprio termo “liberdade política” tem sido usado ocasionalmente para definir, em particular em contraposição à expressão “liberdade interior”, não a liberdade coletiva para a qual o empregaremos, mas a liberdade pessoal. Embora, porém, este uso tenha a sanção de Montesquieu, hoje só pode gerar equívocos.


“Se a política é a arte do possível, a filosofia política é a arte de tornar politicamente possível o aparentemente impossível.”
(H. Schoeck, “What Is Meant by ‘Politically Impossible’?”)


“Para o intelectual, dobrar-se a certas convicções só porque são aceitas pela maioria constitui traição, não apenas à sua missão peculiar, mas também aos valores da própria democracia.*”
*:Cf. a observação de A. Marshall (Memorials of Alfred Marshall, ed. por A.C. Pigou [Londres, 1925], página 89) de que “os estudiosos das ciências sociais devem ter receio do apoio popular: infeliz daquele de quem todos falam bem! Se um jornal pode aumentar as vendas por defender certas opiniões, o estudioso que ambiciona tornar o mundo, em geral, e seu país, em particular, melhor do que seria se ele não tivesse nascido, deve apontar fatalmente as limitações, defeitos e erros destas opiniões: e não deve nunca apoiá-las incondicionalmente, nem mesmo em um debate sobre elas. É quase impossível que um estudioso consiga ser um verdadeiro patriota e, ao mesmo tempo, ser respeitado como tal, em sua própria época”.


“A importância do proprietário individual de considerável soma de recursos não está, entretanto, no simples fato de sua existência ser condição essencial para a preservação da estrutura de iniciativas competitivas. O indivíduo que dispõe de recursos próprios é uma figura ainda mais importante para uma sociedade livre quando não se dedica exclusivamente a utilizar seu capital com a intenção de obter ganhos materiais, mas usa-o em favor de objetivos que não trazem retorno material. (...)
A liderança de indivíduos ou grupos que podem dar respaldo financeiro a suas ideias é particularmente essencial no campo da cultura, das artes, da educação e pesquisa, na preservação das belezas naturais e dos tesouros históricos e, acima de tudo, na divulgação de novas ideias políticas, morais e religiosas. Para que as opiniões da minoria possam tornar-se as opiniões da maioria, é necessário não apenas que os homens já detentores de prestígio junto à maioria possam tomar iniciativas, mas também que os representantes de todas as posições e tendências divergentes tenham condições de apoiar, com seus meios e sua energia, ideais ainda não compartilhados pela maioria.
Se porventura não descobríssemos maneira mais apropriada de apoiar financeiramente tais grupos, seria justificável que escolhêssemos, ao acaso, um entre cem ou mil e lhe oferecêssemos os meios para que pudesse perseguir o objetivo que ele se propusesse. Na medida em que gostos e opiniões em geral fossem representados, e todo tipo de interesse tivesse sua oportunidade, isso valeria a pena, ainda que, dessa pequena parcela da população, apenas um em cem, ou em mil, utilizasse a oportunidade de forma que, futuramente, fosse julgada benéfica. Na seleção permitida pelo processo de herança, que em nossa sociedade produz de fato tal situação, há ao menos a vantagem (mesmo que não levemos em conta a probabilidade da transmissão do talento) de aqueles que receberam essa oportunidade especial terem, geralmente, sido educados para isso, num ambiente em que os benefícios materiais da riqueza são um dado corriqueiro e, por isso, deixaram de constituir a fonte principal de satisfação. Os prazeres menos refinados com que os novos-ricos frequentemente se satisfazem não costumam atrair aqueles que herdaram riqueza. Se é válido afirmar que o processo de ascensão social deveria, em alguns casos, estender-se por várias gerações, e se admitimos que algumas pessoas não deveriam precisar dedicar a maior parte de seu tempo e energia ao seu sustento, mas a um objetivo previamente escolhido, então não podemos negar que a herança é, provavelmente, a melhor forma de seleção que conhecemos.
Entretanto, os ricos só podem desempenhar esta função quando a comunidade não considera a única missão de indivíduos abastados investir e aumentar seu capital, e quando a classe alta não se compõe exclusivamente de homens que se preocupam apenas com o emprego lucrativo de seus recursos. Em outras palavras: é absolutamente necessário tolerar a existência de um grupo de ricos ociosos – ociosos não no sentido de que não fazem nada de útil, mas no sentido de que seus objetivos não são inteiramente pautados pelo interesse de ganho material. Se a maior parte das pessoas precisa trabalhar para ganhar seu pão, disto não decorre ser menos recomendável que algumas não devam ter de fazê-lo, que possam perseguir objetivos não apreciados pelas demais. (...)
O fato de apenas alguns indivíduos terem essa oportunidade não significa que deixe de ser recomendável.197
Por outro lado, também é verdade que, embora os gastos extravagantes de alguns repugnem aos demais, dificilmente podemos ter certeza de que, em determinadas circunstâncias, até a mais absurda experiência de vida não possa produzir resultados benéficos em geral. Não deve surpreender que a vida num novo contexto de possibilidades leve, a princípio, a uma ostentação despropositada. No entanto, não tenho dúvidas – ainda que, ao dizer isso, me esteja expondo a zombarias – de que a própria fruição do ócio exige certo pioneirismo e de que devemos muitas das formas de vida, hoje comuns, a pessoas que dedicaram todo o seu tempo à arte de viver;201 muitos jogos e equipamentos esportivos que se tornaram posteriormente instrumentos de recreação das massas foram inventados por playboys.”
197: (...) Ainda que a “mais generosa das bênçãos terrestres, a independência” (como a chamou Edward Gibbon em sua Autobiography [Edição “World’s Classics”), página 176), seja um “privilégio”, no sentido de que apenas alguns podem possuí-la, não deixa de ser recomendável que outros possam gozá-la. Esperamos apenas que esse dom tão raro não seja distribuído pelo arbítrio humano, mas abençoe, por acidente do destino, alguns indivíduos de sorte.
201: Um estudo da evolução da arquitetura doméstica e dos hábitos cotidianos ingleses levou um famoso arquiteto dinamarquês a afirmar que, “na cultura inglesa, o ócio tem sido a origem de tudo o que é bom” (S.E. Rasmussen, London, the Unique City [Londres e Nova Iorque, 1937], página 294).


“É realmente trágico que as massas tenham chegado a acreditar que devem seu alto padrão de bem-estar material ao fato de terem eliminado os ricos, e que temam que a preservação ou o reaparecimento de tal classe as privariam de algo que teriam (e a que julgam ter direito) se esta não existisse. Já vimos por que, numa sociedade progressista, não há razões para crer que a riqueza desfrutada por poucos existiria se estes não pudessem dela usufruir. Esta riqueza não é algo que lhes foi tirado, tampouco é algo que lhes era devido e lhes foi negado; ela é o primeiro sinal de um modo de vida inaugurado pela vanguarda. De fato, os que têm o privilégio de apontar novos caminhos que só os filhos, ou netos, de outros poderão palmilhar não são geralmente os indivíduos mais merecedores, mas simplesmente os que a sorte colocou nessa posição invejada. Este fato é, porém, inseparável do processo de evolução, que ultrapassa tudo que qualquer indivíduo ou grupo pode prever. Ao impedir, desde o início, que alguns gozem de certas vantagens, podemos acabar privando delas todos os demais. Se, por inveja, tornamos impossível a existência de certos estilos excepcionais de vida, terminaremos todos condenados ao empobrecimento material e espiritual. Também não podemos eliminar as manifestações desagradáveis do sucesso individual sem destruir, ao mesmo tempo, as forças que tornam possível o progresso. Podemos desprezar a ostentação, o mau gosto e o desperdício de muitos novos-ricos e, no entanto, reconhecer que, se eliminássemos tudo o que nos desagrada, possivelmente estaríamos suprimindo, desta forma, um número muito maior de benefícios que ainda não conseguimos vislumbrar. Um mundo em que a maioria pudesse impedir o surgimento de tudo que ela própria não aprovasse seria um mundo estagnado e, provavelmente, em decadência.”

A Mentalidade Anticapitalista, de Ludwig von Mises

Editora: Instituto Ludwig Von Mises Brasil

ISBN: 978-85-6281-614-7

Opinião: ★☆☆☆☆

Páginas: 88

Sinopse: O capitalismo elevou o padrão de vida no mundo a um nível sem precedentes. Por que motivo, então, tantos são contra esse sistema?

Ludwig von Mises, renomado economista liberal, analisa aqui, de modo incisivo, as causas e consequências dessa tendência anticapitalista.

O que faz com que muitos se sintam infelizes sob o regime capitalista, diz o professor Mises, é precisamente o fato de o capitalismo garantir a todos a oportunidade de obter os cargos mais almejados. Nesse tipo de sociedade, o homem que não viu suas ambições totalmente satisfeitas procura um bode expiatório que possa ser responsabilizado por suas próprias falhas.

O professor Mises examina criticamente os sentimentos anticapitalistas dos intelectuais, escritores e artistas, e põe em evidência suas falácias e equívocos. Esse livro incitante deve ser lido por todos os que se interessam pela liberdade individual e por uma economia sã.

 

“Muitas pessoas e especialmente os intelectuais repelem o capitalismo com veemência. Na sua maneira de ver, esta horrível forma de organização econômica da sociedade só trouxe desordem e miséria. Outrora, os homens eram felizes e prósperos, nos bons velhos tempos que antecederam a Revolução Industrial. Hoje, sob o capitalismo, o que predomina são os pobres famintos cruelmente explorados por grosseiros individualistas. Para estes patifes, a única coisa que conta é ganhar dinheiro. Não produzem coisas boas e realmente úteis, mas apenas o que proporciona altos lucros. Envenenam os corpos das pessoas com bebidas alcoólicas e fumo, suas almas e mentes com histórias em quadrinhos, livros lascivos e filmes tolos. A “superestrutura ideológica” do capitalismo é a literatura da decadência e da degradação, o show burlesco e a arte do strip-tease, os filmes de Hollywood e as histórias de detetive.

O preconceito e o fanatismo da opinião pública se manifestam com mais clareza pelo fato de ela vincular o adjetivo “capitalista” exclusivamente às coisas abomináveis, e nunca àquelas que todos aprovam. Como poderia o capitalismo gerar coisas boas? Tudo o que tem valor foi produzido apesar do capitalismo, mas as coisas ruins são excrescências do capitalismo.”

 

 

“A característica essencial do capitalismo moderno é a produção em massa de mercadorias destinadas ao consumo pelo povo. O resultado é a tendência para uma contínua melhoria no padrão médio de vida, o enriquecimento progressivo de muitos. O capitalismo desproletariza o “homem comum” e o eleva à posição de “burguês”.

No mercado de uma sociedade capitalista, o homem comum é o consumidor soberano, aquele que, ao comprar ou ao se abster de comprar, determina em última análise o que deve ser produzido e em que quantidade. As lojas e fábricas que suprem exclusiva ou predominantemente os pedidos dos cidadãos mais abastados em relação a artigos de luxo exercem apenas um papel secundário no cenário econômico do mercado. Elas nunca atingem a dimensão da grande empresa. As grandes empresas servem sempre — direta ou indiretamente — às massas.

É esta ascensão das multidões que caracteriza a radical mudança social efetuada pela “Revolução Industrial”. Os desfavorecidos que em todas as épocas precedentes da história formavam os bandos de escravos e servos, de indigentes e pedintes, transformaram-se no público comprador por cuja preferência os homens de negócios lutam. Tornaram-se os clientes que estão “sempre com a razão”, os patrões que têm o poder de tornar ricos os fornecedores pobres, e pobres os fornecedores ricos.

Na estrutura de uma economia de mercado não sabotada pelas panaceias dos governos e dos políticos, não existem grandes nem nobres mantendo a ralé submissa, coletando tributos e impostos, banqueteando-se suntuosamente enquanto os servos devem contentar-se com as migalhas. O sistema de lucro torna prósperos aqueles que foram bem-sucedidos em atender as necessidades das pessoas, da maneira melhor e mais barata possível. A riqueza somente pode ser conseguida pelo atendimento ao consumidor. Os capitalistas perdem suas reservas monetárias se deixarem de investir no tipo de produção que melhor satisfaz as solicitações do público, no plebiscito diário e contínuo no qual cada centavo dá direito a um voto, os consumidores determinam quem deve possuir e fazer funcionar as fábricas, lojas e fazendas. O controle dos meios materiais de produção é uma função social, sujeita à confirmação ou à revogação pelos consumidores soberanos.

O conceito moderno de liberdade é isto. Todo adulto é livre para moldar sua vida de acordo com seus próprios planos, não é forçado a viver de acordo com o projeto de uma autoridade planejadora que impõe seu único esquema através da polícia, isto é, o aparato social de compulsão e coação. O que restringe a liberdade do indivíduo não é a violência ou a ameaça de violência de outrem, mas a estrutura fisiológica de seu corpo e a inevitável escassez natural dos fatores de produção. É óbvio que o critério do homem para moldar seu destino jamais poderá ultrapassar os limites estabelecidos pelas chamadas leis da natureza.”

 

 

“A principal característica do homem é de ele nunca desistir de aumentar seu bem-estar através de atividades intencionais.”

 

 

“Ora, nunca se contestou que, no capitalismo sem obstáculos, saem-se melhor aqueles que, do ponto de vista dos padrões de valores eternos, devem ser os preferidos. O que a democracia capitalista de mercado faz não é premiar as pessoas de acordo com seus “verdadeiros” méritos, valor próprio e dignidade moral. O que torna um homem mais ou menos próspero não é a avaliação de sua contribuição a partir de um princípio “absoluto” de justiça, mas a avaliação por parte de seus semelhantes, que aplicarão somente o critério de suas necessidades, desejos e objetivos pessoais. O sistema democrático de mercado é exatamente isto. Os consumidores são supremos — isto é, soberanos. Desejam ser satisfeitos.”

 

 

“No regime capitalista a coisa é outra. A situação de vida de cada um depende de seus próprios feitos. Quem não tiver suas ambições plenamente satisfeitas sabe muito bem que deixou escapar as oportunidades, que foi testado e considerado inapto por seus semelhantes.

A tão falada dureza do capitalismo consiste no fato de ele tratar cada um de acordo com a contribuição que este oferece ao bem-estar do seu semelhante. A força do princípio a cada um de acordo com seus feitos não dá margem a escusar falhas pessoais. O indivíduo sabe muito bem que existem pessoas iguais a ele que obtiveram sucesso onde ele falhou. Sabe que muitos daqueles que inveja são pessoas que se fizeram pelo próprio esforço e que partiram do mesmo ponto onde ele começou. E, muito pior, sabe que os outros também sabem disso. Ele vê nos olhos da mulher e dós filhos a reprovação silenciosa: “Por que você não foi mais esperto?” Ele vê como as pessoas admiram quem obteve mais sucesso do que ele e como contemplam com desprezo ou com piedade o seu fracasso.”

 

 

“Geralmente o homem comum não tem ocasião de conviver com pessoas que tenham tido mais êxito do que ele. Convive com outros homens comuns. Jamais se encontra, na vida social, com o seu chefe, nunca aprende por experiência própria quão diferentes são um empresário ou um executivo com respeito às habilidades e competência necessárias para um atendimento eficaz dos consumidores. Sua inveja e consequente ressentimento não estão voltados contra um ser vivo de carne e osso, mas contra pálidas abstrações como “administração”, “capital” e “Wall Street”. É impossível detestar tais fantasmas, com sentimentos tão amargos quanto se pode ter contra um semelhante a quem se encontre diariamente.”

 

 

“O acesso à sociedade europeia está aberto a quem se distingue em algum domínio. Talvez seja mais fácil para as pessoas de ascendência nobre e com muito dinheiro do que para os plebeus com modestos rendimentos. Mas nem os bens nem os títulos podem dar a um membro desse meio a posição e o prestigio que é a recompensa da grande distinção pessoal. As estrelas dos salões parisienses não são os milionários mas os membros da Academia Francesa. Os intelectuais predominam e os outros no mínimo simulam um vivo interesse por assuntos intelectuais.

Esse significado de sociedade é estranho ao cenário norte-americano. O que se chama “sociedade” nos Estados Unidos consiste quase exclusivamente nas famílias mais ricas. Existe pouca relação entre os homens de negócio bem-sucedidos e os autores, artistas e cientistas famosos do país. Os que constam do rol do Registro Social não se reúnem socialmente com os formadores da opinião pública e com os precursores das ideias que determinarão o futuro da nação. A maioria das pessoas da alta sociedade não está interessada em livros ou ideias. Quando se encontram e não jogam cartas, bisbilhotam sobre as pessoas e discutem mais sobre esportes do que sobre assuntos culturais. Mas mesmo os que não são avessos à leitura consideram os escritores, cientistas e artistas como gente com a qual não desejam conviver. Há um abismo, quase insuperável, separando a “sociedade” dos intelectuais.

É possível explicar o aparecimento desta situação historicamente. Mas tal explicação não altera os fatos. Não irá remover nem aliviar o ressentimento com que os intelectuais reagem ao desprezo que recebem dos membros da “sociedade”. Os autores ou cientistas americanos costumam considerar o abastado homem de negócios como um bárbaro, como homem exclusivamente concentrado em ganhar dinheiro. O professor menospreza os alunos que estão mais interessados no time de futebol da universidade do que no seu rendimento acadêmico. Sente-se insultado ao saber que o técnico esportivo recebe salário superior ao de um eminente professor de filosofia. Os pesquisadores, que descobrem novos métodos de produção, odeiam os homens de negócio que só estão interessados no valor monetário do seu trabalho de pesquisa. É muito significativo que um grande número de físicos norte-americanos dedicados à pesquisa sejam simpatizantes do socialismo ou do comunismo. Como não entendem de economia e percebem que os professores de economia também se opõem ao que eles chamam injuriosamente de sistema de lucro, não é de estranhar que tenham tal atitude.”

 

 

“A coisa mais impressionante com relação à mudança sem precedentes das condições universais proporcionadas pelo capitalismo é o fato de ele ter sido realizado por um pequeno número de autores e por uma quantidade pouco maior de homens de estado que assimilaram os ensinamentos desses autores. Não apenas as massas indolentes mas também a maioria dos homens de negócios que, por meio do seu comércio, tornaram eficientes os princípios do laissez-faire não conseguiram compreender as formas essenciais como agem esses princípios. Mesmo no apogeu do liberalismo, somente alguns tiveram conhecimento integral do funcionamento da economia de mercado. A civilização ocidental adotou o capitalismo por recomendação de uma pequena elite.”

 

 

“O que distingue as condições industriais modernas nos países capitalistas das condições das eras pré-capitalistas assim como das que existem hoje nos países chamados subdesenvolvidos é o volume de oferta de capital. Nenhum progresso tecnológico funciona se o capital necessário não for previamente acumulado por poupança.

Poupar, acumular capital é a atividade que transformou, passo a passo, a complicada procura de alimento pelo homem das cavernas em formas modernas da indústria. Os arautos dessa evolução foram as ideias que criaram a estrutura institucional no interior da qual a acumulação de capital foi preservada através do princípio da propriedade privada dos meios de produção. Cada passada em direção à prosperidade é efeito da poupança. Os mais engenhosos inventos tecnológicos seriam praticamente inúteis se os bens de capital indispensáveis ao seu uso não fossem acumulados pela poupança.

Os empresários empregam os bens de capital tornados disponíveis pelos poupadores para a satisfação mais econômica das necessidades mais urgentes dentre as necessidades ainda não satisfeitas dos consumidores. Junto com os tecnólogos, na busca de aperfeiçoar os métodos de processamento, os empresários, próximos aos poupadores, desempenham papel ativo no curso dos acontecimentos, o que é chamado de progresso econômico. O resto da humanidade aproveita das atividades dessas três classes de pioneiros. Mas, quaisquer que sejam suas ações, eles apenas se beneficiam das mudanças para as quais nada contribuíram.

O aspecto principal da economia de mercado está no fato de ela distribuir a maior parte das melhorias conseguidas pelos esforços das três classes progressistas — os que poupam, os que investem em bens de capital e os que elaboram novos métodos para a aplicação dos bens de capital — à maioria das pessoas não progressistas. A acumulação de capital que ultrapassa o aumento da população, por um lado, eleva a produtividade marginal do trabalho e, por outro, barateia os produtos. O processo do mercado oferece ao homem comum a oportunidade de colher os frutos fornecidos pelos feitos de outras pessoas. Ele força as três classes progressistas a servir da melhor maneira possível à maioria não progressista.

Todos têm a liberdade de se juntarem às fileiras das três classes progressistas da sociedade capitalista. Elas não são castas fechadas. Ser membro delas não é privilégio concedido ao indivíduo por uma autoridade maior ou privilégio herdado de um antepassado. Também não são clubes, e seus membros não têm o direito de impedir a entrada de nenhum recém-chegado. O indispensável para tornar-se capitalista, empresário ou projetista de novos métodos tecnológicos é ter inteligência e força de vontade. O herdeiro de um milionário goza de certa vantagem pois começa em condições mais favoráveis que outros. Mas sua tarefa na disputa pelo mercado não é fácil e pode, às vezes, tornar-se mais cansativa e menos recompensadora do que a de um recém-chegado. Ele tem de reorganizar sua herança de modo a ajustá-la às mudanças das condições do mercado. Assim, por exemplo, os problemas que o herdeiro de um “império” ferroviário teve de enfrentar, nas últimas décadas, foram certamente mais complicados do que os encontrados por alguém que, vindo do nada, tenha entrado no transporte rodoviário ou aéreo.”

 

 

“Ninguém sofre necessidade na economia de mercado pelo fato de algumas pessoas serem ricas. As posses dos ricos não são a causa da pobreza de ninguém. O processo que torna algumas pessoas ricas é, ao contrário, o corolário do processo que aumenta a satisfação das necessidades de muitos.”

 

 

“Literatura não é conformismo e sim dissidência.”

 

 

“As pessoas não se esforçam e se afligem a fim de obter a felicidade perfeita, mas a fim de eliminar ao máximo as dificuldades que se apresentam e, assim, tornarem-se mais felizes do que eram antes. O homem que compra um televisor deixa evidente o fato de que a posse desse aparelho aumentará seu bem-estar e o tornará mais contente do que antes. Caso contrário, ele não o teria comprado. A tarefa do médico não é a de tornar o paciente feliz, mas sim de eliminar a dor e deixá-lo em melhor disposição para que possa atingir o objetivo principal de todo ser, isto é, a luta contra todos os fatores nocivos à sua vida e ao seu bem-estar.”

 

 

“A pobreza das nações atrasadas é devida ao fato de que sua política de expropriação, taxação discriminatória e controle da moeda estrangeira impede o investimento do capital estrangeiro, enquanto sua política interna evita a acumulação do capital nativo.”

 

 

“A única fonte de geração de bens de capital adicionais é a poupança. Se todos os bens produzidos são consumidos, nenhum novo capital é gerado. Mas, se o consumo se situa abaixo da produção e o excedente de bens recentemente produzidos sobre os consumidos é utilizado em novos processos de produção, esses processos são a partir daí conduzidos com o auxílio de mais bens de capital. Todos os bens de capital são bens intermediários, etapas do percurso que vai desde o primeiro emprego dos fatores originais de produção, isto é, dos recursos naturais e do trabalho humano, até o acabamento final das mercadorias prontas para o consumo. Todos eles são perecíveis. São, mais cedo ou mais tarde, gastos nos processos de produção. Se todos os produtos são consumidos sem a reposição dos bens de capital que foram utilizados em sua produção, o capital acaba. Se isto acontece, a nova produção será provida por uma quantidade menor de bens de capital e irá, portanto, apresentar um rendimento menor por unidade de recursos naturais e de trabalho empregado. Para evitar este tipo de prejuízo e de perda de investimento, deve-se aplicar uma parte do esforço produtivo na manutenção do capital, na reposição dos bens de capital absorvidos na produção de bens utilizáveis.

O capital não é uma dádiva gratuita de Deus ou da natureza. É o resultado de uma prudente restrição do consumo por parte do homem. É criado e aumentado pela poupança e mantido pela abstenção dos gastos.

Nem o capital nem os bens de capital têm o poder de elevar a produtividade dos recursos naturais e do trabalho humano. Somente se os frutos da poupança forem adequadamente empregados ou investidos é que poderão aumentar o rendimento do insumo dos recursos naturais e do trabalho. Se isso não acontece, eles são dissipados ou perdidos.

A acumulação de novo capital, a manutenção do capital previamente acumulado e a utilização do capital para aumentar a produtividade do esforço humano são os frutos da atividade humana intencional. Resultam da conduta de pessoas prósperas que poupam e se abstêm de gastar, isto é, os capitalistas que ganham juros; e das pessoas que são bem-sucedidas ao utilizar o capital disponível para a melhor satisfação possível das necessidades dos consumidores, isto é, os empresários que ganham lucros.”

 

 

“Qual dos dois fatores, trabalho ou capital, provocou o aumento da produtividade? Mas, se colocarmos a questão exatamente dessa forma, a resposta será: o capital. O que faz com que o rendimento total nos Estados Unidos de hoje seja mais elevado (por indivíduo da força de trabalho empregada) do que o rendimento de épocas passadas ou do que o de países economicamente atrasados — como, por exemplo, a China — é o fato de o trabalhador norte-americano contemporâneo estar apoiado por uma quantidade maior e melhor de ferramentas. Se os bens de capital (por operário) não fossem mais abundantes do que eram há trezentos anos ou do que são hoje na China, o rendimento (por operário) não seria mais elevado. O que é preciso para elevar, na ausência de aumento do número de operários empregados, a quantidade total do rendimento industrial da América é o investimento de capital adicional que só pode ser acumulado através de nova poupança. A multiplicação da produtividade da força de trabalho total é devida ao crédito que se der à poupança e ao investimento.”

 

 

“O empregador não está fazendo um favor aos seus empregados. Ele os contrata como um meio indispensável ao sucesso de seus negócios, da mesma forma pela qual adquire matéria-prima e equipamento industrial.”

 

 

“As civilizações da China, Japão, Índia e dos países muçulmanos do oriente próximo não podem ser consideradas incultas pelo simples fato de, tendo existido muito antes, não terem tido contato com as formas de vida ocidental. Esses povos, há muitas centenas ou até mesmo milhares de anos, realizaram feitos maravilhosos nas artes industriais, na arquitetura, na literatura, na filosofia e no progresso das instituições educacionais. Fundaram e organizaram poderosos impérios. Porém, mais tarde, seus esforços diminuíram, suas culturas tornaram-se entorpecidas e inertes, e eles perderam a capacidade de lidar adequadamente com problemas econômicos. Seus intelectuais e artistas desapareceram. Seus artistas e autores copiaram cegamente modelos tradicionais. Seus teólogos, filósofos e advogados entregaram-se a invariáveis exposições de trabalhos antigos. Os monumentos erigidos por seus ancestrais desmoronaram. Seus impérios ruíram. Seu povo perdeu o vigor e a energia e tornou-se apático diante da decadência e do empobrecimento progressivos.

As antigas obras da filosofia e da poesia oriental podem comparar-se às mais valiosas obras do ocidente. Mas durante muitos séculos o oriente não produziu nenhum livro importante. A história intelectual e literária da época moderna não registra o nome de um autor oriental. O oriente deixou de contribuir para o esforço intelectual da humanidade. Os problemas e as controvérsias que agitaram o ocidente permaneceram desconhecidos do oriente. Na Europa, havia excitação; no oriente, estagnação, indolência e indiferença.

O motivo é óbvio. Faltava ao oriente a coisa principal, a ideia de liberdade do estado. O oriente jamais desfraldou o estandarte da liberdade e nunca tentou enfatizar os direitos do indivíduo contra o poder dos legisladores. Nunca levantou a questão da arbitrariedade dos tiranos. Consequentemente, nunca constituiu a estrutura legal que protegeria a riqueza particular do cidadão em relação ao confisco por parte dos déspotas. Ao invés disso, iludidos pela ideia de que a fortuna dos ricos é o motivo da miséria dos pobres, todos aprovaram as atitudes dos governantes que desapropriaram os homens de negócios bem-sucedidos. Isso impediu a acumulação de capital em larga escala e as nações deixaram de desfrutar dos progressos que exigem considerável investimento de capital. Nenhuma “burguesia” pôde se desenvolver e, consequentemente, não houve público para encorajar e patrocinar autores, artistas e inventores. Aos jovens, todas as oportunidades de se destacarem pessoalmente estavam confinadas, exceto uma. Podiam fazer carreira servindo aos príncipes. A sociedade ocidental era uma comunidade de indivíduos que podiam lutar pelos maiores prêmios. A sociedade oriental era um aglomerado de vassalos totalmente dependentes das boas graças dos soberanos. A juventude alerta do ocidente encara o mundo como um campo de ação no qual pode ganhar fama, destaque, reputação e riqueza; nada parece difícil para a sua ambição. A humilde prole dos pais orientais só sabe seguir a rotina de seu meio ambiente. A nobre autoconfiança do homem ocidental encontrou uma expressão triunfante nos ditirambos tais como o hino de Antígona na tragédia de Sófocles a respeito do homem e de seu espírito de aventura e como a Nona Sinfonia de Beethoven. Nunca se ouviu nada semelhante no oriente.

Será possível que os descendentes dos construtores da civilização do homem branco devam renunciar à sua liberdade e voluntariamente entregar-se à suserania de um governo onipotente? Que devam procurar a alegria num sistema no qual sua única tarefa será a de servir como uma peça a mais numa grande máquina projetada e manipulada por um planejador todo-poderoso? Devem as mentalidades das civilizações reprimidas destruir os ideais pelos quais milhares e milhares de seus antepassados sacrificaram a vida?

Ruere in servitium, eles mergulharam na escravidão, observou tristemente Tácito ao falar dos romanos da época de Tibério.”

 

 

“A inútil arrogância dos escritores e dos artistas boêmios considera as atividades dos homens de negócios como pouco intelectuais e enriquecedoras. A verdade é que os empresários e os organizadores de empresas comerciais demonstram maior capacidade intelectual e intuitiva do que o escritor e o pintor médio. A inferioridade de muitos intelectuais se manifesta exatamente no fato de eles não reconhecerem o quanto de capacidade e raciocínio é necessário para desenvolver e fazer funcionar com sucesso uma empresa comercial.

O surgimento de uma classe numerosa desses frívolos intelectuais é um dos fenômenos menos desejáveis da era do capitalismo moderno. Sua atividade importuna impede a discriminação das pessoas. São uma praga. Seria desejável que algo fosse feito para refrear sua confusão ou, melhor ainda, eliminar totalmente suas rodas e grupos sociais.”

 

 

“Um movimento “antiqualquer-coisa” demonstra uma atitude puramente negativa. Não tem a menor chance de sucesso. Suas críticas acerbas virtualmente promovem o programa que atacam. As pessoas devem lutar por algo que desejam realizar e não simplesmente evitar um mal, por pior que seja. Devem, sem quaisquer restrições, apoiar o programa da economia de mercado.”