domingo, 21 de agosto de 2016

Uma história da guerra (Parte II) – John Keegan

Editora: Companhia de Bolso
ISBN: 978-85-3590-798-8
Tradução: Pedro Maia Soares
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 544
Sinopse: Ver Parte I

“Os meios militares sozinhos não eram suficientes para deter a devastação provocada pelos vários atacantes dos séculos IX e X. A Europa ocidental tinha necessidade, como a China diante dos nômades da estepe, de alguma força cultural com que pudesse neutralizar o niilismo deles e assimilá-los ao mundo governado. Os sarracenos não podiam ser assimilados: atacavam e pilhavam com a garantia moral dos ghazi, guerreiros de fronteira islâmicos. Porém, os vikings e magiares pagãos ainda viviam no mundo primitivo de deuses vingativos ou distantes ao qual pertenciam os povos teutônicos e da estepe antes de ouvirem a palavra de Cristo ou Maomé. A Igreja cristã já realizara um extraordinário trabalho de pacificação na Europa ocidental, começando com a conversão dos francos em 496, e trouxera progressivamente todos os invasores das terras romanas para uma única fé. Fizera também com que respeitassem as instituições cristãs — papado, episcopado, fundações monásticas — que tinham sobrevivido a Roma e, mediante uma missão heroica, levara o cristianismo romano para o Norte e o Leste, até os germânicos e eslavos. A conversão foi muitas vezes imposta pela ponta da espada, mas os cristãos, tal como o inglês são Bonifácio, apóstolo dos germânicos, também morreram como mártires no esforço de implantar o evangelho entre povos selvagens. Foi graças a esses meios que os magiares foram convertidos no final do século X, fazendo da Hungria um bastião de resistência contra as invasões da estepe, e os escandinavos, nos séculos XI e XII.
Com efeito, uma Europa pós-romana sem a Igreja romana teria sido um lugar bárbaro; os remanescentes das instituições civis de Roma eram fracos demais para proporcionar uma base para a reconstituição da ordem e, na ausência de exércitos disciplinados, todo o continente poderia ter passado o limite do “horizonte militar” para entrar em conflitos endêmicos sobre direitos territoriais e tribais.”


“Na fundação de ordens militares, podemos perceber as origens dos exércitos regimentados que surgiram na Europa no século XVI. Pode-se dizer que a dissolução das ordens monásticas nos países protestantes durante a Reforma levou para os exércitos estatais — através dos monges-guerreiros que se secularizaram para se tornarem soldados laicos — o sistema de hierarquia, de comandos e suas unidades subordinadas que fizeram das ordens os primeiros corpos de luta autônomos e disciplinados que a Europa conheceu desde o desaparecimento das legiões romanas. Isso, porém, estava ainda por acontecer. A influência imediata dos hospitalários e templários no campo de batalha foi levar outros guerreiros cristãos, como os que lutavam contra os sarracenos na Espanha e os que travavam guerra contra os prussianos e lituanos pagãos, a criar ordens similares. Dessas, a mais importante foi a dos Cavaleiros Teutônicos que fundaram na Prússia conquistada um regime militar de cujas propriedades secularizadas Frederico, o Grande, quinhentos anos depois, recrutou o núcleo de seu corpo de oficiais.
O declínio e a extinção dos reinos cruzados no final do século XIII foram graduais demais para marcar um divisor de águas no guerrear europeu. Fizeram-se Cruzadas demais que acabaram em vitória dos muçulmanos para que ocorresse um clímax de retaliação e, de qualquer forma, os reis europeus estavam com as mãos cheias de suas próprias guerras domésticas. Todavia, as Cruzadas deixaram mudanças no mundo militar europeu que não se apagaram mais. Elas restabeleceram a presença dos Estados latinos (católicos romanos) no Mediterrâneo oriental, não só na Palestina e na Síria, mas de forma mais duradoura na Grécia, em Creta, em Chipre e no Egeu, o que permitiu às cidades do Norte da Itália, em especial Veneza (onde a vida e o comércio urbano não tinham morrido completamente), reabrir um próspero comércio com o Oriente Médio e, mais tarde, com o Extremo Oriente, e reviver o transporte seguro de bens entre portos de todo o Mediterrâneo. O dinheiro que ganharam com isso financiou a maioria das guerras travadas durante o século XV entre elas e, mais tarde, entre a França e os Habsburgo do Sacro Império Romano pelo domínio ao sul dos Alpes. Elas deram um poderoso impulso para fortificar a libertação da Espanha do islã (a Reconquista), bem como a ampliação para leste da fronteira cristã, na direção da Rússia e da estepe. Tendo debilitado os bizantinos, nada fizeram para deter o avanço dos turcos otomanos nos Bálcãs; no início do século XV, eles já tinham chegado ao Danúbio, conquistando no processo o reino cristão da Sérvia e ameaçando o da Hungria. Em compensação, os cruzados tinham confrontado os reis belicosos da Europa e seus turbulentos vassalos com a ideia de um objetivo mais amplo para a guerra que as querelas intermináveis sobre direitos. Eles reforçaram a autoridade da Igreja em seus esforços para conter o impulso guerreiro dentro de uma estrutura ética e legal e, por mais paradoxal que pareça, ao ensinar à classe cavaleira europeia as disciplinas da guerra útil, assentaram os alicerces para a ascensão de reinos efetivos. Com a afirmação do poder central dentro de suas fronteiras, esses reinos deram finalmente à luz uma Europa onde o conflito deixou de ser uma condição endêmica da vida cotidiana e se tornou um empreendimento ocasional e, depois, externo.
O desenvolvimento desse padrão teria sido difícil de perceber para os coetâneos dos confusos séculos XIV e XV. Na grande disputa por direitos que levou à Guerra dos Cem Anos entre França e Inglaterra (1337-1457), na guerra entre Habsburgo, Wittelsbach e Luxemburgo pela coroa do Sacro Império Romano e dos imperadores para controlar seus súditos rebeldes da Boêmia e da Suíça, e nas guerras das cidades italianas, qualquer ideia de que o domínio social e político, sem falar do militar, do homem a cavalo poderia estar chegando ao fim teria parecido fantasiosa. Contudo, era esse o caso. A guerra montada entre homens encouraçados, travada na crença de que recuar do golpe na linha de batalha era uma ofensa, não só ao dever, mas à honra pessoal, acabou se revelando tão autodestruidora quanto o código da falange na Grécia antiga. Com efeito, há provas consideráveis de que mesmo em seu auge, no século XV, a guerra entre cavaleiros não era o que parece para nós ou o que seus devotos acreditavam que deveria ser na época. As armaduras cada vez mais pesadas e impenetráveis usadas pelos guerreiros montados (placas em vez de malha depois da metade do século XIV) estavam mais adequadas ao artificialismo das justas que às exigências do campo de batalha. Da mesma forma que a guerra moderna de investidas-relâmpago encouraçadas e ataques aéreos precisos atinge sua perfeição teórica apenas nos campos de treinamento, é bem possível que a armadura brilhante do guerreiro do século XV alcançasse seu objetivo teórico de proteção diante da lança do adversário em um torneio e não contra uma flecha ou espada no campo de batalha. O senso comum, qualidade que permitiu a Victor Hanson desvelar o mistério da falange, deveria persuadir-nos da improbabilidade de qualquer outra coisa.
     As batalhas medievais, como observou R. C. Smail, o mestre da historiografia das Cruzadas, desafiam uma reconstrução a partir de indícios. Mas nas três batalhas da Guerra dos Cem Anos das quais temos conhecimento detalhado — Crécy (1346), Poitiers (1356) e Agincourt (1415) —, os cavaleiros ingleses lutaram desmontados e apoiados por arqueiros nos três casos, e o grosso dos franceses desmontou nas duas últimas. A ideia de que cavaleiros encouraçados, cavalgando joelho contra joelho, lanças em riste, em densas ondas de fileiras sucessivas, poderiam ter atacado uns aos outros sem que ocorresse uma catástrofe instantânea para ambos os lados no momento do impacto é uma afronta à inteligência.
A guerra de ferro da Idade Média, tal como a dos gregos, era um “negócio horrível” e sangrento, tornado pior por sua recorrência e pela coragem sanguinária daqueles que se prendiam a ela. Apesar de todos os altos motivos envolvidos — independência cívica entre os gregos, fidelidade e cavalheirismo com os cavaleiros —, certo primitivismo ocultava-se sob a superfície. Os gregos lutaram até a exaustão pela lógica de seus próprios métodos; o eclipse do modo cavalheiresco de guerrear teve uma causa externa: a chegada da pólvora. Mas em ambos os casos o poder do ferro, esse metal comum, barato e enganador, tinha se esgotado.”


“As raízes culturais da resistência da aristocracia montada à revolução da pólvora penetravam fundo no passado. Como vimos, os gregos da época da falange foram os primeiros guerreiros de quem temos conhecimento detalhado que deixaram de lado a atitude evasiva da guerra primitiva e enfrentaram face a face seus inimigos de mesma mentalidade. Os gregos da época clássica buscavam resolver uma questão da forma mais direta e rápida possível. Os romanos da República aceitaram também a lógica dos métodos gregos, tendo provavelmente aprendido com os colonizadores helênicos do Sul da Itália. Pode-se supor que o hábito de lutar face a face lhes foi também transmitido progressivamente nos confrontos com os gauleses e os povos teutônicos do outro lado do Reno. Os romanos deixaram testemunhos de que os povos setentrionais lutavam dessa forma, pois, embora desprezassem suas táticas grosseiras e individualistas, nunca negaram que fossem corajosos e dispostos a lutar corpo a corpo. “Muitos dos helvécios”, observou César sobre um episódio em que seus legionários tinham bombardeado os escudos dos inimigos com lanças, “depois de alguns esforços vãos para se desvencilharem, preferiram largar os escudos e lutar sem proteção para seus corpos.” Foi somente quando “os ferimentos e a exaustão da batalha [se tornaram] demais para eles [que] começaram a se retirar”. Porém, parece claro que os gauleses lutavam face a face antes mesmo de encontrarem os romanos, se é que as grandes espadas da cultura hallstattiana oferecem alguma indicação, e parece que os germânicos, cuja natureza corajosa e belicosa tanto impressionou Tácito, também se comportavam assim antes de encontrarem os romanos junto ao Reno, no século I. Se lembrarmos que foi somente depois da chegada dos dórios à Grécia que se desenvolveu a guerra de falange e aceitarmos que os dórios vinham provavelmente do outro lado do Danúbio, então talvez possamos localizar ali um ponto comum de origem desse “modo ocidental de guerrear”, como Victor Hanson o chama, e uma linha de divisão entre essa tradição de batalha e o estilo indireto, evasivo de combate característico da estepe e do Oriente Médio e Próximo. A leste da estepe e sudeste do mar Negro, os guerreiros continuavam a manter distância dos inimigos; a oeste da estepe e sudoeste do mar Negro, os guerreiros aprenderam a abandonar a precaução e entrar em contato próximo.
Tudo o que se pode dizer é que, se existe algo como o “horizonte militar”, há também uma linha divisória do combate “face a face”, e que os ocidentais pertencem por tradição a um dos lados dela e a maioria dos outros povos, ao outro.
A força dessa tradição da luta frente a frente provocou a crise guerreira do século XVI. A atitude de Bayard, chevalier sans peur et sans reproche, em relação aos besteiros é bem conhecida: mandava executá-los quando feitos prisioneiros, afirmando que a arma deles era covarde e seu comportamento, traiçoeiro. Armado com uma besta, um homem poderia, sem o longo aprendizado de armas necessário para formar um cavaleiro ou o esforço moral exigido de um lanceiro a pé, matar qualquer um deles à distância sem se colocar em perigo.”


“A verdade é que todos os Estados em luta tinham submetido seus soldados a um excesso de provações. O sofrimento fora tão auto-infligido quanto imposto. As populações que haviam abraçado a guerra em 1914 com tanto entusiasmo mandaram seus jovens para as frentes de batalha na crença de que iriam obter não apenas vitórias, mas glória, e que a volta deles com os louros justificaria toda a confiança que tinham investido na cultura do serviço militar universal e do comprometimento com o reino dos guerreiros. A guerra explodiu essa ilusão. “Cada homem um soldado”, a filosofia que sustentava a política da conscrição, baseava-se numa incompreensão fundamental da potencialidade da natureza humana.
Os povos guerreiros podem ter feito de cada homem um soldado, mas tinham tomado o cuidado de lutar apenas em condições que evitavam o conflito direto ou sustentado com o inimigo, admitiam a ruptura de contato e o recuo como respostas permissíveis e razoáveis à resistência resoluta, não faziam um fetiche da coragem desesperada e mediam com muito cuidado a utilidade da violência. Os gregos tinham mostrado uma frente mais audaz e destemida; mas, ao mesmo tempo que inventavam a instituição da batalha face a face, não levaram sua ética de guerra ao ponto de exigir a derrubada clausewitziana como seu resultado necessário. Seus descendentes europeus limitaram também os objetivos de suas guerras; os romanos procuraram consolidar e, depois, garantir uma fronteira defensiva para sua civilização — em essência, a mesma filosofia militar dos chineses —; por sua vez, os sucessores dos romanos lutaram, ainda que incessantemente, com o objetivo principal de gozar de direitos dentro de territórios bastante circunscritos. Em uma forma diferente, as batalhas por direitos também caracterizaram as guerras dos Estados da Idade da Pólvora. Embora suas lutas tenham se exacerbado pelas diferenças religiosas expressas na Reforma, os protestantes agiram antes para desafiar direitos preexistentes que para derrubar novos. Ademais, em nenhuma dessas pelejas os combatentes entregaram-se à ilusão de que toda a população masculina deve ser mobilizada para dar prosseguimento à disputa. Mesmo que isso fosse materialmente possível, o que era desaconselhado pela necessidade de mão-de-obra intensiva da agricultura, para não falar da incapacidade fiscal, nenhuma sociedade pré-1789 considerava o serviço militar uma ocupação, exceto uma minoria. A guerra era considerada corretamente como um negócio brutal demais para qualquer um, exceto para aqueles preparados para ela pela posição social ou levados a se alistar pela falta de qualquer posição social. Mercenários e soldados regulares, pobres, desempregados, com frequência proscritos criminalmente eram julgados adequados para a guerra porque a vida pacífica não lhes oferecia nada, senão dificuldades equivalentes.
A exclusão dos industriosos, dos habilidosos, dos letrados e dos donos de propriedades modestas do serviço militar refletia uma apreciação sensível de como a natureza da guerra exercia pressão sobre a natureza humana. Seus rigores não eram para serem suportados por homens de hábitos confortáveis, regulares e produtivos. Em seu afã de igualar, a Revolução Francesa pôs essa percepção grosseiramente de lado, buscando conceder à maioria o que até então fora o privilégio de uma minoria — o direito à plena liberdade legal representado pelo estatuto de guerreiro dos aristocratas. A Revolução não estava totalmente errada ao fazer isso. Muitos homens respeitáveis cujos pais teriam se esquivado do serviço militar revelaram-se excelentes soldados, tanto em postos altos como baixos: Murat, o mais arrojado dos marechais de Napoleão, tinha estudado para ser padre, Bessières fora estudante de medicina, Brune, editor de jornal. É verdade que o seminário e o jornal também estavam no passado respectivamente de Stalin e Mussolini, mas eles foram homens de temperamento selvagem numa época posterior. Em seu tempo, Murat, Bessières e Brune passavam por respeitáveis bourgeois, e foi por mero acaso que seus temperamentos se adequaram à disciplina e ao perigo da vida militar. Até mesmo no exército de Napoleão eles constituíam exceções. Cem anos depois, não o seriam mais. Os exércitos da Primeira Guerra Mundial eram compostos quase que do topo até a base de representantes de todas as posições e ocupações da sociedade, e muitos dos que foram poupados da morte e de ferimentos serviram por dois, três ou até quatro anos com paciente firmeza. Mas 200% ou 300% de baixas na infantaria e mais de 1 milhão de mortes serão suficientes para quebrar o ânimo de uma nação. Em novembro de 1918, a França tinha perdido 1,7 milhão de jovens de uma população de 40 milhões, a Itália, 600 mil de uma população de 36 milhões, o Império britânico 1 milhão, dos quais 700 mil vinham dos 50 milhões de habitantes das Ilhas Britânicas.
A persistência até o fim da Alemanha, apesar da perda de mais de 2 milhões de uma população anterior à guerra de 70 milhões, é ainda mais notável. Ela pagou o preço emocional, embora numa moeda diferente da que circulou nas nações vitoriosas. Nestas, o custo foi considerado alto demais para jamais ser pago novamente. “Estou começando a esfregar meus olhos diante da perspectiva de paz”, escreveu Cynthia Asquith, esposa de um ex-primeiro-ministro britânico, em outubro de 1918. “Acho que será preciso mais coragem do qualquer outra coisa que tenha acontecido antes [...] finalmente vai-se reconhecer que os mortos não estavam mortos apenas enquanto durava a guerra.” Evidentemente, novembro de 1918 significou para milhões de famílias o fim da apreensão de que um carteiro pudesse trazer o telegrama da morte, mas o sentimento dela estava correto. As listas de baixas tinham deixado vazios em quase todos os círculos familiares e a agonia da perda perdurava enquanto aqueles que a tinham sentido continuassem vivos. Ainda hoje, as colunas “In Memoriam” dos jornais ingleses trazem lembranças de pais ou irmãos que morreram nas trincheiras ou em terra de ninguém há oitenta anos. Ferimentos psíquicos dessa profundidade não saram com o primeiro embotamento da memória. Eles inflamam-se na consciência coletiva, e a consciência nacional dos ingleses e franceses, diante das consequências da guerra, rebelava-se ao pensar numa repetição do sofrimento.
Em 1919, por sugestão de Winston Churchill, ex-ministro da Marinha e secretário de Estado para Guerra e Ar, adotou-se a decisão de que “para o objetivo de enquadrar as estimativas [de defesa], [deve-se supor] que em qualquer data considerada não haverá guerra importante por dez anos”; essa “regra dos dez anos” foi renovada ano após ano até 1932; mesmo depois, apesar da ascensão de Adolf Hitler ao poder na Alemanha em 1933, decidido a reverter o resultado da Primeira Guerra Mundial, a Inglaterra não tomou medidas substantivas de rearmamento até 1937. Enquanto isso, Hitler reintroduzira o recrutamento universal e começara a recriar uma vez mais uma cultura guerreira na nova geração alemã.
Para Hitler, a Primeira Guerra Mundial fora “a maior de todas as experiências”. Da mesma forma que uma minoria de veteranos de todos os exércitos, ele achara a excitação e até os perigos das trincheiras engrandecedores e enaltecedores. Sua bravura lhe dera medalhas e a opinião favorável de seus oficiais, enquanto sua admissão a um círculo de camaradagem, depois de anos de vida como um derrotado nas ruelas de Viena, reforçara sua ardente crença na superioridade da nação germânica sobre todas as outras. E ele estava tomado por uma ira destruidora em face da humilhação da Alemanha na paz de Versalhes, cujos termos — incluindo perda de território, redução de seu exército a uma força de 100 mil, privação de sua marinha de vasos de guerra modernos e abolição total de sua força aérea — foram aceitos pelo governo alemão somente porque o bloqueio naval dos Aliados, obtendo finalmente o efeito que não conseguira nos anos de guerra, não lhe deixava outra opção. A ira de Hitler equivalia à de um número de veteranos suficiente para proporcionar-lhe o núcleo de um partido político, quando em 1921 adotou posições de extrema direita.”


“Chamada de Blitzkrieg, “guerra relâmpago”, termo de um jornalista, mas bastante descritivo, ela concentrava os tanques das divisões panzer numa falange ofensiva, apoiada por esquadrões de caças de mergulho agindo como “artilharia voadora”, que quando direcionada para um ponto fraco de uma linha de defesa — qualquer ponto era, por definição, fraco diante de uma tal força — a rompia e prosseguia espalhando confusão em sua esteira. A técnica era a mesma introduzida por Epaminondas em Leuctra, usada por Alexandre contra Xerxes em Gaugamelos e empregada por Napoleão em Marengo, Austerlitz e Wagram. A Blitzkrieg, porém, obteve resultados negados a comandantes anteriores, cuja habilidade para explorar o sucesso no ponto de assalto estava limitada pela velocidade e resistência do cavalo, fosse um instrumento de força ou um meio de levar mensagens e relatórios. O tanque não somente deixava para trás a infantaria, como podia manter um ritmo de avanço de cinquenta, até oitenta quilômetros em 24 horas, desde que suprido de combustível ou peças sobressalentes, ao mesmo tempo que seu aparelho de rádio permitia ao quartel-general receber informações e transmitir ordens com a mesma velocidade que as operações pediam, um desdobramento que veio a ser conhecido durante a guerra como “tempo real”.”


“Aqueles que depositam sua confiança na expectativa de que a ONU conseguirá perpetuar suas funções pacificadoras — não se oferece instrumento melhor — têm, no entanto, um longo caminho a percorrer até que essa expectativa se cumpra. O homem tem uma potencialidade para a violência: isso não pode ser negado, mesmo que se admita que apenas uma minoria de qualquer sociedade pode transformar essa potencialidade em ato. Ao longo dos 4 mil anos de existência de exércitos organizados, o homem aprendeu a identificar nessa minoria aqueles que serão soldados, para treiná-los e equipá-los, para fornecer os fundos de que precisam para sua subsistência, e a aprovar e aplaudir seu comportamento nos momentos em que a maioria se sente ameaçada. Devemos ir além: um mundo sem exércitos — disciplinados, obedientes e cumpridores da lei — seria inabitável. Exércitos dessa qualidade são um instrumento e uma marca de civilização e sem a existência deles a humanidade teria de se resignar a uma vida primitiva, abaixo do “horizonte militar”, ou ao caos sem lei de massas em guerra. Como diria Hobbes, “todos contra todos”.
Para nos afastarmos da pregação de Clausewitz, não precisamos acreditar, como Margaret Mead, que a guerra é uma “invenção”. Nem precisamos estudar os meios de alterar nossa herança genética, um processo que leva intrinsecamente ao fracasso. Não precisamos buscar a libertação de nossas circunstâncias materiais. A humanidade já domina o mundo material em um grau que o mais otimista de nossos ancestrais de apenas dois séculos atrás teria considerado impensável. Tudo que precisamos aceitar é que, depois de 4 mil anos de experiência e repetição, a guerra tornou-se um hábito. No mundo primitivo, esse costume estava circunscrito por rituais e cerimônias. No mundo pós-primitivo, a engenhosidade humana desmembrou rituais de cerimônias, bem como as restrições que impunham à guerra, da prática guerreira, permitindo que os homens da violência empurrassem os limites de tolerância desses rituais e cerimônias a um extremo — e às vezes ultrapassando-o. “A guerra”, disse Clausewitz, o filósofo, “é um ato de violência levado aos seus limites máximos.” Clausewitz, o guerreiro prático, não conjecturou sobre os horrores a que sua lógica filosófica conduzia, mas nós os vimos de relance. Os costumes dos primitivos — devotados à restrição, diplomacia e negociação — merecem ser reaprendidos. Se não desaprendermos os costumes que ensinamos a nós mesmos, não sobreviveremos.”

Uma história da guerra (Parte I) – John Keegan

Editora: Companhia de Bolso
ISBN: 978-85-359-0798-8
Tradução: Pedro Maia Soares
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 544
Sinopse: O que é a guerra? Por que o homem luta contra o homem? Que diferenças há entre um guerreiro ianomâmi, um bárbaro das hostes de Átila e um soldado entrincheirado da Segunda Guerra Mundial? Como foi possível a humanidade chegar à beira da autodestruição total?
Conhecedor profundo de tudo o que diz respeito à história militar, John Keegan aborda neste livro essas e muitas outras questões ligadas à guerra, oferecendo uma visão abrangente da História da humanidade a partir das formas de guerrear e do progresso da tecnologia bélica. Ao mesmo tempo, não esquece que a história da guerra acompanha a história do homem e que a guerra é um testemunho permanente da força de instintos e emoções que o coração humano faz tudo para camuflar.

“A guerra não é a continuação da política por outros meios. O mundo seria mais fácil de compreender se essa frase de Clausewitz fosse verdade. O mais famoso livro sobre a guerra — chamado justamente Da guerra —, na verdade escreveu que a guerra era a “continuação das relações políticas” “com a entremistura de outros meios”. O original alemão expressa uma ideia mais complexa e sutil que a tradução mais frequentemente citada. Nas duas formas, no entanto, o pensamento de Clausewitz está incompleto. Ele implica a existência de Estados, de interesses de Estado e de cálculos racionais sobre como eles podem ser atingidos. Contudo, a guerra precede o Estado, a diplomacia e a estratégia por vários milênios. A guerra é quase tão antiga quanto o próprio homem e atinge os lugares mais secretos do coração humano, lugares em que o ego dissolve os propósitos racionais, onde reina o orgulho, onde a emoção é suprema, onde o instinto é rei. (...)
Na verdade, Clausewitz parecia perceber a política como uma atividade autônoma, o local de encontro das formas racionais e forças emocionais, na qual razão e sentimento são determinantes, mas onde a cultura — o grande carregamento de crenças, valores, associações, mitos, tabus, imperativos, costumes, tradições, maneiras e modos de pensar, discurso e expressão artística que lastreia toda sociedade — não desempenha um papel determinante. (...)
Russell Weigley sustenta que a guerra se mostrou não como “uma continuação eficaz da política por outros meios [...] mas como a falência da política”. A frustração engendrada pelo fracasso em conseguir um resultado decisivo levou, deduz ele, ao “apelo calculado e espontâneo a crueldades maiores e mais torpes” com o correr do tempo, “ao saque das cidades e destruição dos campos, ambos em busca de vingança e na esperança geralmente vã de que crueldades maiores abalariam o espírito do inimigo”.”


“Em sua velhice, o general William Tecumseh Sherman, que incendiara Atlanta e pusera fogo numa grande faixa do Sul dos Estados Unidos, exorcizou com amargura esse mesmo pensamento, em palavras que se tornaram quase tão famosas quanto às de Clausewitz: “Estou farto da guerra. Sua glória é pura quimera [...] A guerra é o inferno”.”


“O verdadeiro trabalho da guerra na época de Clausewitz era realmente de matadouro. Os soldados ficavam silenciosos e inertes em fileiras para serem abatidos, às vezes durante horas; em Borodino, diz-se que os corpos de infantaria de Ostermann-Tolstoi ficaram diante do fogo à queima-roupa da artilharia por duas horas, “durante as quais o único movimento era a agitação das linhas provocada pelos corpos que caíam”. Sobreviver à matança não significava o fim do matadouro. Larrey, o cirurgião mais antigo de Napoleão, realizou duas centenas de amputações na noite seguinte a Borodino, e seus pacientes eram felizardos. Eugène Labaume descreveu “o interior das valas” que entrecruzavam o campo de batalha: “quase todos os feridos, por um instinto natural, tinham se arrastado para lá em busca de proteção [...] empilhados uns sobre os outros e nadando desamparadamente no próprio sangue, alguns pediam aos que passavam que os livrassem de sua miséria”.
Essas cenas de matadouro eram o resultado inevitável de uma forma de guerrear que fazia os povos que Clausewitz considerava selvagens, como os cossacos, fugirem quando ameaçavam envolvê-los, mas, se não as tivessem testemunhado, rirem quando alguém as descrevia. O treinamento europeu, quando demonstrado pela primeira vez por Takashima, o reformador militar japonês, a alguns samurais de alta patente em 1841, provocou escárnio; o mestre da artilharia disse que o espetáculo de “homens levantando e manipulando suas armas todos ao mesmo tempo e com o mesmo movimento parecia que estavam participando de alguma brincadeira de criança”. Era a reação de guerreiros que lutavam corpo a corpo, para quem lutar era um ato de auto-expressão pelo qual um homem exibia não apenas sua coragem, mas também sua individualidade. Osklephts gregos — meio bandidos, meio rebeldes contra o domínio turco, cujos simpatizantes, filelenos franceses, alemães e britânicos, muitos deles ex-oficiais das guerras napoleônicas, tentaram instruir em exercícios de ordem unida no início da guerra de independência da Grécia, em 1821 — também reagiram com zombaria, mas antes com descrença que com desprezo. Seu estilo de luta — muito antigo, encontrado por Alexandre, o Grande, em sua invasão da Ásia menor — era construir pequenos muros no lugar mais provável de encontro com o inimigo e então provocá-lo à ação com motejos e insultos; quando o inimigo atacava, fugiam. Sobreviviam para lutar outro dia, mas não para ganhar a guerra, objetivo que não conseguiam entender. Os turcos também tinham uma maneira própria de lutar: avançavam numa carga desconexa com desdém fanático pelas baixas. Os filelenos argumentavam que, se os gregos não enfrentassem os turcos, jamais ganhariam uma batalha; os gregos objetavam que, se fizessem frente ao inimigo à maneira europeia, peito aberto aos mosquetes turcos, seriam todos mortos e perderiam a guerra de qualquer modo.”


“Todos nós achamos difícil tomar distância suficiente de nossa própria cultura para perceber como ela faz de nós, como indivíduos, o que somos.”


“A guerra abarca muito mais que a política, que é sempre uma expressão de cultura, com frequência um determinante de formas culturais e, em algumas sociedades, é a própria cultura.”


“E, contudo, o deus da guerra não é um arremedo. Quando os regimentos de recrutas da Europa marcharam para a guerra, em 1914, carregando sua retaguarda de reservistas, a guerra que os enredou foi, de longe, a pior que os cidadãos pudessem esperar. Na Primeira Guerra Mundial, a “guerra real” e a “guerra verdadeira” logo se tornaram indistintas; as influências moderadoras que Clausewitz, como observador desapaixonado dos fenômenos militares, declarara sempre entrarem em ação para ajustar a natureza potencial e o propósito real da guerra reduziram-se à invisibilidade; alemães, franceses, ingleses e russos descobriram-se aparentemente travando uma guerra pela guerra. Os objetivos políticos da guerra — já difíceis de definir desde o início — foram esquecidos, as restrições políticas foram atropeladas, os políticos que apelavam para a razão foram execrados, a política, mesmo nas democracias liberais, logo se reduziu a uma mera justificação de batalhas maiores, listas de baixas mais longas, orçamentos mais caros, um excesso de miséria humana.
A política não desempenhou papel algum digno de menção na condução da Primeira Guerra Mundial. Essa guerra foi, ao contrário, uma aberração cultural monstruosa, a consequência de uma decisão inadvertida de europeus no século de Clausewitz — que começou com seu retorno da Rússia em 1813 e terminou em 1913, o último ano da longa paz europeia — de transformar a Europa numa sociedade de guerreiros.”


“Em nosso tempo, a guerra não tem sido apenas um modo de resolver disputas entre Estados, mas também um veículo por meio do qual os amargurados, os esbulhados, os descamisados, as massas famintas ansiosas por respirar com liberdade expressam sua raiva, seu ciúme e seu impulso encurralado à violência.”


“O conceito de transformação cultural tem armadilhas para o incauto. As expectativas de que mudanças benignas — padrões de vida melhores, alfabetização, medicina científica, a disseminação do bem-estar social — iriam alterar o comportamento humano para melhor foram tantas vezes frustradas que pode parecer irrealista prever a chegada de atitudes efetivamente antibélicas ao mundo.”


“As causas subjacentes à ação dos fatores “permanentes” e “contingentes” sobre a guerra podem, portanto, ser consideradas extremamente complexas. O homem guerreiro não é agente de uma vontade irrestritamente livre, mesmo que na guerra rompa os limites que a convenção e a prudência material impõem normalmente ao seu comportamento. A guerra é sempre limitada, não porque o homem escolha fazê-la assim, mas porque a natureza determina que assim seja. O rei Lear, atacando seus inimigos, pode ter ameaçado “fazer coisas — as quais ainda não sei o que são —, mas que serão os terrores da terra”; mas, como outros potentados passando dificuldades descobriram, os terrores da terra são difíceis de conjurar. Faltam recursos, o tempo piora, a estação muda, a vontade de amigos e aliados fraqueja, a própria natureza pode se revoltar contra as dificuldades exigidas pela porfia.
Metade da humanidade — a metade feminina — é, de qualquer modo, muito ambivalente em relação à guerra. As mulheres podem ser causa e pretexto da guerra — o roubo de esposas é a principal fonte de conflitos nas sociedades primitivas — e podem ser as instigadoras de violência em sua forma extrema: lady Macbeth é um tipo reconhecido universalmente; elas podem também ser mães de guerreiros notavelmente empedernidas, algumas preferindo aparentemente as dores da perda à vergonha de aceitar a volta de um covarde. Ademais, as mulheres podem constituir líderes guerreiros messiânicos, obtendo, com a interação da química complexa da feminilidade com reações masculinas, um grau de fidelidade e auto sacrifício de seus seguidores masculinos que um homem é bem capaz de não conseguir. Apesar disso, a guerra é uma atividade humana da qual as mulheres, com exceções insignificantes, sempre e em todos os lugares ficaram excluídas. As mulheres procuram os homens para protegê-las do perigo e censuram-nos amargamente quando eles não conseguem defendê-las. As mulheres têm seguido os tambores, cuidado dos feridos, lavrado os campos e pastoreado os rebanhos quando o homem da família vai atrás de seu líder; elas até mesmo cavaram trincheiras para os homens defenderem e trabalharam nas oficinas para mandar-lhes armas. As mulheres, porém, não lutam. Elas raramente lutam entre si e jamais, em qualquer sentido militar, lutam com os homens. Se a guerra é tão antiga quanto a história e tão universal quanto a humanidade, devemos agora acrescentar a limitação mais importante: trata-se de uma atividade inteiramente masculina.”


“Há indicações, a partir dos instrumentos de pedra encontrados, de que seus habitantes tinham começado a colher ervas silvestres e a moer os grãos extraídos para comer; há indicações mais sutis de que tinham pelo menos começado a domesticar e a cuidar de animais dos quais dependiam para viver. Estavam à beira do pastoreio e da agricultura, as duas atividades que transformam a relação do homem com seu habitat. Caçadores e coletores podem ter “território”; os pastores têm locais de pasto e água; os agricultores têm terra. Depois que investe suas expectativas em um retorno periódico de seus esforços sazonais em um determinado lugar — de criar, pastorear, plantar, colher —, o homem desenvolve rapidamente os sentimentos de direitos e propriedade. Em relação aos que invadem os lugares onde investe seu tempo e esforço, ele pode, da mesma forma, desenvolver rapidamente o sentimento de hostilidade que o usuário e ocupante tem em relação ao usurpador e intruso. Expectativas arraigadas favorecem reações arraigadas. O pastoreio e mais ainda a agricultura favorecem a guerra.”


“Evidentemente, a força militar já estava estabelecida como um princípio antes da chegada dos povos montados mas como recurso disponível apenas para os governos e as populações sedentárias que dirigiam, além de limitada pela produção das economias que controlavam.
Exércitos alimentados com excedentes agrícolas e limitados em alcance de manobra pelo ritmo e resistência da marcha a pé simplesmente não podiam empreender campanhas amplas de conquista. Nem precisavam disso: os inimigos, com restrições semelhantes, podiam ameaçá-los com derrotas em batalhas, mas não com uma Blitzkrieg.
Os povos montados eram diferentes. Átila mostrara uma capacidade de mudar seu centro estratégico de ação — Schwerpunkt, como a doutrina do Estado-maior prussiano denominou-o mais tarde — do Leste da França para o Norte da Itália, numa distância de oitocentos quilômetros em linha reta e muito maior na prática, pois estava operando ao longo de linhas externas. Uma manobra estratégica como essa jamais fora tentada nem seria possível antes. Essa escala de liberdade de ação estava no centro da “revolução da cavalaria”.
Os povos montados lutavam sem constrangimentos ainda em outro sentido: não queriam, como os godos, herdar ou se adaptar às civilizações entendidas pela metade que invadiam. E, apesar da sugestão de que Átila pensou em se casar com a filha do imperador romano do Ocidente, também não queriam superar a autoridade política dos outros. Queriam os despojos de guerra sem laços. Eram guerreiros por amor à guerra, pelo butim, pelos riscos, as emoções, a satisfação animal do triunfo. Oitocentos anos depois da morte de Átila, Gengis Khan, ao perguntar a seus companheiros de armas mongóis sobre o maior prazer da vida e receber como resposta que era a falcoaria, retrucou: “Vocês se enganam. A maior fortuna do homem é perseguir e derrotar seu inimigo, tomar todas as suas posses, deixar sua esposa chorando e gemendo, montar seu capão [e] usar os corpos de suas mulheres como camisola e apoio”. Átila poderia ter dito a mesma coisa; com certeza, agia dentro desse espírito.
Juntas, a crueldade humana e a equina transformaram assim a guerra, fazendo dela, pela primeira vez, “uma coisa em si mesma”. Podemos a partir de então falar de “militarismo”, um aspecto das sociedades no qual a mera capacidade de guerrear, rápida e lucrativamente, se torna um motivo em si mesmo para fazê-lo.”


“Todos os povos montados que abriram uma trilha de conquistas das estepes até as terras civilizadas travavam “guerras verdadeiras” segundo todos os critérios — falta de limites no uso da força, singularidade de objetivo e nenhuma disposição de aceitar menos que a vitória total. Contudo, sua guerra não tinha objetivo político no sentido clausewitziano e nenhum efeito transformador cultural. Não se tratava de um meio de progresso material ou social; na verdade, era exatamente o contrário, um processo pelo qual obtinham a riqueza para sustentar um modo de vida imutável, para permanecer exatamente como eram desde que seus ancestrais atiraram uma flecha de cima de uma sela pela primeira vez.”


“Os povos cavaleiros, tais como os aurigas antes deles, trouxeram para a guerra o conceito elétrico de fazer campanhas de longa distância e, quando a campanha se resolvia em batalha, de manobrar em campo com velocidade — pelo menos cinco vezes mais veloz que homens a pé. Como protetores de seus rebanhos e manadas contra predadores, preservavam também o espírito do caçador, perdido pelos agricultores, com exceção da classe senhorial; de seu modo costumeiro de cuidar dos animais — reunir, conduzir, apartar, abater para comer — tiravam lições sobre como massas de gente a pé, ou mesmo de cavaleiros inferiores, podiam ser perseguidas, flanqueadas, encurraladas e finalmente mortas sem risco. Eram práticas que os caçadores primitivos, com sua relação empática com a caça e respeito místico pela presa atingida, teriam julgado intrinsecamente estranhas. Para os povos montados, equipados com o arco composto, ele mesmo um produto de tecidos animais, que sustentava seu modo de vida, matar à distância — tanto física quanto emocional — constituía uma segunda natureza.
Era o desprendimento emocional dos guerreiros montados, manifestado cabalmente em sua prática deliberada de atrocidades, que os povos sedentários achavam tão aterrorizante. Isso todavia desgastou-os. Com as duas características da guerra “primitiva” que persistiram por muito tempo no desenvolvimento da civilização — o caráter tentativo do choque e a associação de ritual e cerimônia com combate e seu resultado —, os povos montados não tinham nada a ver. Podem ter tornado um hábito recuar diante de um inimigo que procurasse a luta, mas tratava-se apenas de uma manobra para tirar o adversário de sua posição, desorganizar suas fileiras e expô-lo a um contra-ataque arrasador. De forma alguma revelavam a falta de disposição do guerreiro primitivo de chegar à luta de fato. Quando se aproximava para o golpe final, a horda a cavalo matava sem compaixão. Ademais, não havia sinal de rito ou cerimônia nas ações de uma horda montada. Elas lutavam para vencer — completamente, com rapidez e sem heroísmo. Com efeito, abster-se de exibições de heroísmo era quase uma regra dos nômades. O próprio Gengis, embora tenha sido ferido por uma flecha nos primórdios de sua ascensão ao poder, era fisicamente tímido e deixou depois de se expor nas batalhas em que estava nominalmente no comando. Os guerreiros ocidentais achavam absolutamente desconcertante não poder identificar a posição do líder na formação em crescente típica da tática dos nômades, uma vez que ele ficava discretamente longe do centro, comportamento oposto ao de um Alexandre ou Ricardo Coração de Leão.”


“Sobretudo, ele não leva em conta o fascínio que a vida de guerreiro exerce sobre a imaginação masculina. Essa é uma falha comum dos acadêmicos que se interessam por assuntos militares, mas jamais saem de seu ambiente universitário. (...)
É a admiração dos outros soldados que o satisfaz — se ele puder conquistá-la; a maioria dos soldados fica contente apenas com a companhia dos outros, com o desprezo compartilhado por um mundo mais suave, com a libertação da materialidade estreita trazida pela caserna e pela linha de marcha, com os confortos rudes do bivaque, com a competição na resistência, com a perspectiva do répos du guerrier junto às mulheres que os esperam.
A excitação da trilha da guerra ajuda a explicar o ethos do guerreiro primitivo. O sucesso no combate explica também por que alguns primitivos se tornaram povos guerreiros. As recompensas do êxito — se não conquista direta, apropriação de território e sujeição dos outros, então saque ou ao menos o direito de ditar os termos do comércio — são suficientes em si mesmas para validar a rejeição dos meios conciliatórios. Contudo, é importante não exagerar os impulsos para a vida guerreira. Como vimos, muitos primitivos buscavam conter o impulso à violência, enquanto até os povos mais ferozes erguiam suas pirâmides de crânios nas pegadas mais experimentais de outros; Tamerlão não teria sido o que foi se povos montados anteriores não tivessem testado os limites do poder de resistência da civilização. Aldous Huxley disse que um intelectual era uma pessoa que tinha descoberto algo mais interessante que o sexo. Um homem civilizado, pode-se dizer, é alguém que descobriu algo mais satisfatório que o combate. Depois que o homem superou o estágio primitivo, a proporção dos que preferiram outra coisa a lutar — arar o solo, fazer ou vender coisas, construir, ensinar, pensar ou tratar com outro mundo — aumentou tão rapidamente quanto permitiram os recursos da economia. Não se deve idealizar; os menos afortunados viram-se presos ao serviço ou até à servidão, enquanto os privilegiados, como observa Andreski, sempre basearam sua posição no poder das armas, exercido pessoalmente ou por fiéis subordinados. Porém o homem pós-primitivo dava um valor particular à vida não violenta, exemplificada pela do artista, do estudioso e, sobretudo, do homem e mulher santos. Foi por esse motivo que as atrocidades dos vikings, saqueadores de mosteiros e conventos, provocaram tanta repulsa no mundo cristão; até mesmo Tamerlão, que tinha recebido com respeito o grande sábio árabe Ibn Khaldun, não desceu ao nível sanguinário deles.”


“Retrospectivamente, é fácil ver que a principal contribuição de Roma para a compreensão da humanidade de como a vida pode ser tornada civilizada foi sua instituição de um exército disciplinado e profissional. Evidentemente, os romanos não tinham esse fim em vista quando começaram suas campanhas de expansão na Itália e travaram as guerras contra Cartago; o exército foi transformado de uma milícia de cidadãos em uma força expedicionária de longo alcance devido às exigências do campo de batalha, não por decisão consciente. Sua adoção de um sistema de alistamento regular, oferecendo “uma carreira aberta aos talentos” igualmente a cidadãos e não-cidadãos de todo o Império, originou-se na necessidade; as reformas de Augusto apenas racionalizaram uma situação já existente. No entanto, como se estivesse em ação uma mão invisível, a evolução do exército serviu exatamente à da própria civilização romana. Ao contrário da Grécia clássica, Roma foi uma civilização da lei e da realização física, não de ideias especulativas e criatividade artística. A imposição de suas leis e a incansável ampliação de sua extraordinária infraestrutura física exigia menos esforço intelectual que energia ilimitada e disciplina moral. Era dessas qualidades que o exército era a fonte última e, com frequência, em particular na engenharia de obras públicas, o instrumento direto. Portanto, era inevitável que o declínio dos poderes do exército — mesmo se provocado tanto por fracassos administrativos e econômicos internos quanto por crises militares nas fronteiras — trouxesse consigo o do próprio Império, e que o colapso do exército significasse a queda do Império do Ocidente.
Os reinos que se sucederam no Ocidente não aprenderam quão valiosa era a instituição que tinham destruído e como seria difícil substituí-la. Todavia, a autoridade moral na Europa pós-romana não perdeu completamente seu lar: ela migrou para as instituições da Igreja cristã, firmemente estabelecidas em sua forma romana, em vez de nestoriana, graças à conversão dos francos em 496; na Igreja, a ideia, se não a substância, do Império encontrou uma continuidade. Porém, sem espadas, os bispos não podiam dar força ao pacto cristão; e embora seus protetores reais tivessem espadas, usavam-nas antes para guerrearem-se uns aos outros que para estabelecer e manter uma paz cristã.”

sábado, 6 de agosto de 2016

Fidel Castro: História e imagem do líder máximo – Valéria Manferto de Fabianis (org.)

Editora: Escrituras

ISBN: 978-85-7531-254-4

Tradução: Maurício Santana Dias

Texto: Luciano Garibaldi

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 274

Sinopse: O selo Escrituras apresenta a primeira fotobiografia de um dos mais importantes e controversos personagens da História, Fidel Castro Ruiz, reunindo mais de 300 fotos de sua trajetória pessoal e política.

Fidel Castro – história e imagem do líder máximo mostra sua vida, da infância até os anos mais recentes, revelando os fatos que o influenciaram e de que forma esses eventos conduziram sua longa e polêmica carreira política.

Trata-se de uma longa lista de arquivos históricos oficiais e privados, fotos conduzidas por texto conciso que recorda as múltiplas voltas de Castro: estudante de Direito na Universidade de Havana e fervoroso apaixonado pela vida política acadêmica; jovem ativista do Partido Ortodoxo, fundado por seu mentor, Eduardo Chibas, primeiro-ministro de Cuba que subiu ao poder em 1959, após ter conduzido com sucesso a revolução que levou à queda de Fulgencio Batista.

Por meio da imagem, o leitor se torna testemunha do enorme poder de um líder que levou seu próprio país a passar por anos difíceis na crise militante cubana da Baía dos Porcos e, sucessivamente, pela troca de cultura, devida ao acordo com a União Soviética. As fotografias mostram Castro, enquanto abraça o primeiro-ministro soviético, Nikita Kruschev, ou lendo um jornal que traz na primeira página o título “Atentado contra Castro”, fornecendo ao leitor uma nova imagem do fascínio que este líder mundial exerce. Retratado brandindo um taco de beisebol, conversando com seu amigo Ernesto Che Guevara ou durante uma pausa com seu inseparável charuto, durante um comício ou enquanto discute política com um chefe de Estado, as imagens procuram captar o carisma, a paixão e a intensidade que permitiram a Castro reinar por quase cinquenta anos.

“[Fidel Castro] tem a convicção quase mística de que a maior conquista do ser humano é a boa formação de sua consciência, e que os estímulos morais, mais que os materiais, são capazes de mudar o mundo e impulsionar a História. Creio que ele é um dos grandes idealistas do nosso tempo, e que talvez esta seja sua maior virtude, ainda que, para ele, tenha sido o maior perigo.” – Gabriel García Márquez


 

“Nascidos em uma família marcadamente católica, os jovens Castro receberam educação católica dos jesuítas, primeiramente no colégio La Salle e Dolores em Santiago, e depois no célebre Colégio de Belén, escola administrada pelos jesuítas de Havana. Impossível reconstituir onde, quando e como se formaram na mente do garoto Fidel as ideias contestadoras e revolucionárias que mais tarde germinariam e perdurariam durante toda sua vida. Talvez com a ajuda de algum instrutor de túnica, decididamente inclinado às classes favorecidas – não são casos incomuns. O fato é que, já aos treze anos de idade, no início de 1940, Fidel tentou organizar uma greve de plantadores de cana-de-açúcar contra o próprio pai*. O motivo? Recebiam muito pouco – coisa que, na imaginação do adolescente Fidel, devia-se menos ao pai infeliz do que aos exploradores americanos da United Fruit Company, a sociedade comercial norte-americana a quem Angel Castro vendia o produto de suas terras.

No garoto Fidel já havia, em embrião, aquela personalidade que muitos anos mais tarde Gabriel García Márquez retrataria com as seguintes palavras: “O Fidel Castro que acredito conhecer é um homem de costumes austeros e de ilusões insaciáveis, com uma educação formal ao estilo antigo, de palavras ponderadas e modos delicados, incapaz de conceber uma ideia que não seja extraordinária. (...) Tem a convicção quase mística de que a maior conquista do ser humano é a boa formação de sua consciência, e que os estímulos morais, mais que os materiais, são capazes de mudar o mundo e impulsionar a História. Creio que ele é um dos grandes idealistas do nosso tempo e que talvez esta seja sua maior virtude, ainda que para ele tenha sido o maior perigo”.”

*: Angel Castro tornara-se um homem rico: possuía 1.800 hectares de plantações de cana-de-açúcar e de frutas em Birán, criava gado, ovelhas, porcos e patos, construía casas que depois alugava e dava emprego a 600 trabalhadores e camponeses.

 

 

“Aos 19 anos Fidel inscreveu-se na Faculdade de Direito da Universidade de Havana (viria a se formar em 1950). Ele realmente queria ser advogado? A propósito de sua escolha, dirá em entrevista: “Pergunto-me por que escolhi estudar Direito. Não sei. Em parte, atribuo a opção ao hábito de discutir e polemizar. Foi assim que me convenci pela advocacia”. De fato, a palavra nunca lhe faltou e ele sempre foi um extraordinário orador.”

 

 

“Fulgêncio Batista retornou a Cuba e derrotou o governo legítimo, instaurando na prática uma nova ditadura militar. Fidel reagiu com força, denunciando Batista à magistratura por violação da Constituição, mas sua denúncia foi rejeitada.

Uma decisão fatal. O jovem revolucionário não digeriu a derrota e reagiu à mão armada, organizando com seus companheiros o ataque ao quartel de Moncada, em Santiago, buscando apropriar-se do arsenal e dar uma demonstração de força ao ditador que voltara ao poder. O dia 26 de julho de 1953 foi a data fatídica. Fidel e seus companheiros partiram ao alvorecer. Do interior do quartel, no entanto, partiu peremptoriamente um fogo cerrado contra os invasores. Talvez algum infiltrado tivesse denunciado a operação. Foi uma carnificina. Os sobreviventes, setenta rapazes, na maioria estudantes, foram feitos prisioneiros, torturados e quase todos fuzilados no local. Mas Fidel foi poupado. Ferido e também torturado, foi encarcerado na penitenciária da ilha dos Pinheiros e lá permaneceu à espera do processo que, segundo as previsões mais razoáveis, deveria culminar com a pena capital. Mas as coisas não tomaram este rumo.

As audiências começaram em dezembro. Fidel teve o direito de autodefesa e pronunciou um discurso que se tornaria célebre. Talvez intuísse que não o condenariam à morte. Talvez tivesse sido avisado de que o arcebispo de Havana estaria articulando para salvar da forca um ex-aluno dos jesuítas, filho de pais muito ligados à Igreja. Ao término de um duríssimo ataque – que durou horas – contra o capitalismo, a exploração do trabalho, as tendências bélicas do Ocidente, concluiu com as seguintes palavras: “Sei bem que a prisão para mim será dura como sempre o foi para qualquer outro, cheia de ameaças vis e de horríveis torturas. Mas eu não temo a prisão, assim como não temo a fúria do miserável tirano que tirou a vida de setenta irmãos meus. Condenem-me, não me importa. A História me absolverá”. Seus companheiros de cárcere olhavam-no perplexos e arrasados. Foi condenado a 15 anos de reclusão e libertado em maio de 1955, após uma anistia geral, depois exilou-se no México.”

 

 

“Dois meses depois de os revolucionários terem tomado o poder em Cuba, Fidel fez uma visita a Nova York, onde foi acolhido com triunfo. A multidão o aplaudiu como sempre se aplaude a um herói. Um grupo de italianos, acreditando que lhe prestava uma homenagem, fez a saudação romana. Fidel respondeu de pronto: “Meu modelo é Garibaldi, não Mussolini”.”

 

 

“Foi nas aulas universitárias em Havana que o jovem Fidel começou a respirar o perfume da rebelião. Ali ocorriam frequentes assembleias estudantis, e aquela jovem e intrépida turma de Direito logo pôs à prova sua excepcional habilidade oratória. Ele sabia entusiasmar quem o escutava, utilizava a modulação e as palavras certas para inflamar a plateia. É, sem dúvida, um orador nato. O espírito de solidariedade cristã com os mais pobres, que ele respirou nos muitos anos passados com os jesuítas, deixou uma marca. Fidel quer igualdade, odeia os privilégios, despreza os capitalistas que – em seu juízo – são capazes apenas de explorar o trabalho dos humildes. Rapidamente, chegará à condenação da propriedade privada em nome da coletivização.”

 

Comentário

Destaco desta biografia fotográfica as fotos das páginas 6, 40, 69, 71, 72, 73, 74, 75, 79, 80, 90-91, 92, 94, 98, 100, 114-115, 125, 147, 152, 154-155, 163, 178, 180, 191, 212, 262.

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Os Caminhos da Liberdade: Com a morte na alma – Jean-Paul Sartre

Editora: Nova Fronteira / Saraiva de bolso
ISBN: 978-85-2093-147-9
Tradução: Sérgio Milliet
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 376
Sinopse: Em junho de 1940, soldados franceses se veem abandonados e desmoralizados, na iminência da derrota, temendo e, ao mesmo tempo, desejando o armistício. O quadro se completa – dias antes da entrada dos alemães na França. Os personagens centrais da trilogia voltam, seguindo rumos diferentes devido a suas opções no momento.



“Voltou-se; cinquenta telas de Mondrian nas paredes brancas daquela clínica: pintura esterilizada numa sala climatizada; nada de suspeito; estava-se ao abrigo dos micróbios e da paixão.”


“– Minha opinião – disse Ritchie – é que a arte não foi feita para suscitar questões incômodas. Suponha que alguém venha me perguntar se desejei a minha mãe: eu o boto para fora, a menos que seja um pesquisador científico. Nessas condições, não vejo porque autorizariam os pintores a interrogar-me publicamente sobre meus complexos. Sou como todo mundo – acrescentou em tom conciliatório. – Tenho meus problemas. Só que no dia em que eles me atormentam, não vou ao museu: telefono para o psicanalista. Cada qual tem seu ofício: o psicanalista me inspira confiança porque começou por se fazer analisar. Enquanto os pintores não fizerem a mesma coisa, podem dizer o que quiserem, mas não lhes pedirei que me ponham perante mim mesmo.
– O que pede a eles? – perguntou Gomez distraidamente.
Inspecionava o quadro com uma obstinação melancólica. Pensava: “não significa nada.”
– Peço-lhes inocência – disse Ritchie. – Esta tela...
– Que tem ela?
– É seráfica – afirmou ele em êxtase. – Nós, americanos, queremos pintar pra gente feliz ou que tenta sê-lo.
– Não sou feliz – retorquiu Gomez – e, seria um salafrário se o tentasse ser, quando todos os meus companheiros estão presos ou foram fuzilados.
A língua de Ritchie estalou de novo:
– Meu caro – disse –, compreendo muito bem suas inquietações de homem. O fascismo, a derrota dos Aliados, a Espanha, sua mulher, seu filho: evidente! Mas é bom de vez em quando erguer-se acima de tudo isso.
– Nem um só minuto! – replicou Gomez. – Nem um só minuto!
Ritchie corou um pouco.
– O que você pintava então? – indagou, magoado. – Greves? Massacres? Capitalistas de cartola? Soldados atirando no povo?
Gomez sorriu.
– Sabe que nunca acreditei muito na arte revolucionária. E agora deixei de acreditar por completo.
– Então – disse Ritchie – estamos de acordo.
– É possível; só que subitamente me pergunto se não deixei de acreditar na arte simplesmente.
– E na Revolução simplesmente?
Gomez não respondeu e Ritchie sorriu novamente:
– Vocês, intelectuais europeus, vocês me divertem: têm um complexo de inferioridade diante da ação.
Gomez virou-se bruscamente e agarrou Ritchie pelo braço:
– Vamos. Já vi demais. Conheço esse Mondrian de cor, posso perfeitamente engendrar um artigo. Vamos subir.
– Aonde?
– Ao primeiro andar, quero ver os outros.
– Que outros?
Atravessaram as três salas de exposição. Gomez empurrava Ritchie à sua frente sem olhar para nada.
– Que outros? – repetiu Ritchie de mau humor.
– Todos os outros. Klee, Rouault, Picasso: os que fazem questionamentos incômodos.”


“Sem dúvida, ele condenava severamente a tristeza, mas quando se cai nela, é um inferno para sair.”


“Não sou bastante covarde para ter medo de fazer sofrer quando é preciso.”


“Reiniciaram a caminhada para alcançar a estrada; a partida deles provocou uma rápida fenda no frescor da tarde; uma lasca de tempo passou pela brecha, os alemães deram um passo para a frente, cinco dedos de ferro crisparam-se no coração de Mathieu. E depois a sangria parou, o tempo parou de novo, havia apenas um parque por onde passeavam anjos. “Que vazio!”, pensou Mathieu. Algo imenso retirara-se bruscamente, deixando a Natureza guardada por soldados de segunda classe. Uma voz se extingue sob um sol antigo: Pã morreu, eles sentiram a mesma ausência. Quem morreu, desta vez? A França? A cristandade? A esperança? A terra e os campos retornavam docemente à sua primitiva inutilidade. No meio dos campos que não podiam nem cultivar nem defender, estes homens tornavam-se gratuitos. Tudo parecia novo e, no entanto, a tarde já se debruava com os contornos da noite próxima; no coração desta noite, um cometa se jogaria contra a Terra. Bombardearão? Aguardava-se a cerimônia para dentro em pouco. Seria o primeiro dia do mundo ou o último? Os trigais, as papoulas que escureciam rapidamente, tudo parecia nascer e morrer ao mesmo tempo. Mathieu percorreu com o olhar aquela tranquila ambiguidade e pensou: “É o paraíso do desespero”.”


“É de mim que tenho raiva, pensou. Mas censurava-se por isso porque era uma forma de se colocar acima dos outros. Indulgente com todos, severo consigo: mais uma armadilha do orgulho. Inocente e culpado, severo demais e demasiado indulgente, imponente e responsável, solidário com todos e rejeitado por cada um, perfeitamente lúcido e totalmente iludido, escravo e senhor: sou como todo mundo, afinal.”


““Será difícil”. “O que será difícil?” “Adquirirmos uma consciência. Não somos uma classe. Quando muito um rebanho. Poucos operários: camponeses e pequeno-burgueses. Não trabalhamos sequer: somos abstratos.” “Não se aflija”, diz Brunet sem querer, “nós trabalharemos”. “Certamente. Mas como escravos. Não é um trabalho que emancipe e não passaremos nunca de um complemento. Que ação comum você pode exigir de nós? Uma greve dá aos grevistas a consciência da sua força. Mas, mesmo se todos os prisioneiros franceses cruzassem os braços, a economia alemã não perderia grande coisa.”


“Moûlu procura conciliar: “Falar de amor de vez em quando não é crime, faz a gente mudar de ideia.” “São os imponentes que falam de amor”, diz Brunet. “O amor a gente faz quando pode.” “E quando não se pode?” “Fica-se calado”, responde Brunet.”


“A inteligência não é tão importante assim, mas torna as relações mais agradáveis.”