domingo, 23 de junho de 2013

Clockers: no mundo dos pequenos traficantes – Richard Price

Editora: Rocco

ISBN: 978-85-3250-596-5

Tradutor: Haroldo Netto

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 586

Sinopse: Na periferia de Nova York, um traficante de drogas é assassinado. Um réu improvável confessa o crime. Tem início a via-crúcis de Rocco Klein, o detetive que investiga o caso, e Strike, o suspeito número um. Em Clockers, Richard Price não faz apenas mais um romance policial. Clockers é o retrato sem retoque de um mundo em que violência é sinônimo de sobrevivência.



“A garota de carinha de bebê começou a falar com O Verbo, dizendo qualquer coisa que Strike não era capaz de ouvir mas sabia que era destinada a seduzi-lo, porque O Verbo começou a dançar e a sorrir como um idiota. A garota estava tentando descolar a coca de graça e O Verbo teria cedido em um minuto se Strike não estivesse ali. Sempre tinha que estar ali, sempre. Pensou em dizer a Futon para ir até lá e dizer à garota que ia contar à sua mãe, mas decidiu que não era Jesus Cristo para querer salvar os outros. A garota quer se drogar, este é um país livre. Desde que tenha dez dólares.”

 

 

“Não se pode confiar em ninguém: todo mundo era sério numa hora, trapaceiro no minuto seguinte, sempre falando sobre serem irmãos, sobre não deixar que fossem atacados pelas costas, mas quando chegava a hora da verdade, Strike preferia os inimigos aos amigos. Pelo menos os inimigos a gente sabe o que estão a fim de fazer.”

 

 

“A cada dois blocos um avião qualquer da JFK acenava, reconhecendo Strike, ou gritava seu nome, ou alguma garota viciada dos conjuntos ficava toda alegrinha em vê-lo, se metia por entre os carros e tentava engambelá-lo para conseguir o pó antes que o sinal abrisse. A despeito de sua cautela, havia uma parte nele que adorava a carga de emoção que gerava nos outros: o olhar brilhante dos viciados, a saudação dos viciados, os “clockers” do pedaço. Um dia aquilo seria o seu fim, aquele reconhecimento, aquele poder, mas, a não ser pelo cabo-de-guerra que disputara a vida inteira com a mãe, aquilo era a coisa mais próxima do amor que já experimentara.”

 

 

“Strike suspirou enojado; todo mundo estava mais do que sujo naquele jogo. Os tiras sacaneavam uns aos outros, os traficantes idem, os tiras enganavam os traficantes e vice-versa, os tiras aceitavam suborno e os traficantes deduravam uns aos outros. Ninguém sabia ao certo de que lado os demais estavam; ninguém sabia realmente a quantidade de dinheiro, muita ou pouca, que qualquer outro estava ganhando. Tudo fumaça. Tudo eram telefones públicos no meio da noite. Estar naquele negócio era como caminhar de olhos vendados por um campo minado. Era difícil saber o que fazer ou o que não fazer, mas, para sobreviver, Strike seguia três regras inquebrantáveis: não confiar em ninguém, não ser ganancioso e nunca usar o produto.”

 

 

“Enquanto você não for um pai, não será nada a não ser um filho.”

 

 

“Às vezes, Strike ficava mal-humorado pensando que talvez Crystal gostasse dele mais pelo que não era do que pelo que era: não era viciado em drogas, não estava a fim de bater nela, não tirava o seu dinheiro e não ia lhe transmitir o vírus. Perguntava-se às vezes se a razão por que ela saía com ele não seria o fato de ele preencher um vazio sem causar-lhe dor.”

 

 

“Era estranho andar com um revólver por aí logo depois de ter falado em realmente atirar em alguém. A pequena pistola .25 sempre lhe parecera irreal, alguma coisa entre um brinquedo e um símbolo, mas naquele instante, ao passar por toda aquela gente, a arma dava a impressão de estar respirando encostada na sua barriga, os dentes crescendo. Strike viu-se imaginando pela primeira vez, desde que deixara a casa de Rodney, se teria mesmo dentro de si ou a frieza ou o calor de apontar uma arma para a cabeça de alguém e puxar o gatilho.”

 

 

“Rocco (que junto com outro policial, Mazilli, conversava com o ator Sean Touhey) virou-se para ele e sorriu. – E então, Sean, qual é a história do filme, você sabe, o enredo?

– Hum? Estamos trabalhando nele.

– Então o que é que vocês têm, algo tipo um conceito? – Conceito: Rocco sentiu-se como se estivesse às voltas com uma garota com quem saía pela primeira vez, tentando conversar para melhorar o clima.

Touhey não se deu ao trabalho de responder. Virou-se para Mazilli.

– Vou lhe dar um conceito, você me dá uma resposta, OK?

Mazilli deu de ombros e acendeu um cigarro.

– Reabilitação? – disse Touhey.

– O que é isso? O jogo da palavra? – Mazilli jogou o fósforo em cima da toalha. – Você quer saber em que acredito? Eu acredito em punição, eu acredito em medo e eu acredito em vingança.

Os lábios movendo-se silenciosamente, Touhey inclinou a cabeça e olhou para Mazilli como se quisesse memorizá-lo.

Rocco suspirou, anunciando-se para si mesmo, minha vez.

– Sim, bem. Você diz reabilitação. Você sabe, nós somos humanos, quer dizer, a maioria de nós, e ninguém começa durão. Vim trabalhar há vinte anos. Queria ser tira. Para quê, para espancar as minorias? Não, eu queria ajudar as pessoas. Alguém grita: “Polícia”, sou eu. Saio correndo: branco, preto, amarelo, seja o que for.

Rocco arriscou uma olhada em Mazilli e espantou-se ao ver que ele não estava rolando os olhos para cima.

– Ok? Mas reabilitação... – Rocco fez uma pausa, ganhando fôlego para a História.

– É como quando eu usava uniforme. Na minha primeira semana eu tinha um parceiro, Sapo Phelan. Maz, você se lembra do Sapo?

Mazilli encolheu os ombros.

– Sapo Phelan começou a trabalhar quando Truman era Presidente. Eu tinha vinte e um, vinte e dois anos, e recebemos um chamado. Conjunto habitacional Lafayette, há um garoto gritando dentro de um apartamento, a porta está trancada. O elevador está quebrado, de modo que o Sapo me manda subir sozinho, ele não está a fim de subir seis andares com as suas pernas, de qualquer modo está de porre. Vou até lá em cima, o pessoal do conjunto tinha acabado de pipocar a fechadura. Entramos, lá está um garoto de três anos algemado a um radiador superquente, não tem mais ninguém em casa. A algema é de metal, certo? O metal conduz o calor? Não sei há quanto tempo estava preso daquele jeito, mas o fato é que tinha um anel de carne assada em torno do pulso, OK?

Touhey parecia vidrado.

– Chamamos a ambulância, cortamos a algema, eles levam o garoto para o hospital. O pessoal do conjunto se manda, mas eu fico ali ao lado do radiador. Sentado ali no peitoril da janela. Fico sentado ali quarenta minutos, e finalmente chega a mãe. Seriam mais quarenta minutos em que a criança teria ficado cozinhando se a gente não entra, OK? Ela entra, posso ver nos seus olhos que está chapada de heroína, certo? Ela entra, nada de criança. Olha para mim. Eu olho para ela. O momento passa, e de repente ela se arranca, caço a filha da puta descendo seis lances de escada. Ela consegue chegar no saguão, bate de frente com Pelan, ele a agarra mas ali estou eu, bancando o anjo vingador, a cento e vinte por hora. O Sapo se atira na minha direção. Bum, vou bater nas caixas de correspondência. Minha cara é tipo: “Que merda é essa?”. Ele a leva para fora, a entrega para o outro carro de polícia, eles a levam. Ele volta, me pega. Estamos sentados no carro, ele diz para mim: “Rocco, essa mulher que você ia quebrar a cabeça, vinte anos atrás, quando era uma garotinha, prendi o pai dela por ter espancado o seu irmão menor até a morte. O cara era realmente um merda. Agora que ela é uma mulher adulta, ela é realmente uma merda. O garoto que você salvou hoje, se viver bastante, se chegar a ser um homem adulto, vai ser um outro merda.” “Rocco”, o Sapo me diz “é o ciclo da merda e você não pode fazer nada a respeito. De modo que a solução é ir com calma e fazer o seu trabalho.”

Touhey, pasmo com a história de Rocco, sacudiu a cabeça.

– Uau... uau.

– Você tem o mesmo tipo de experiência vezes sem conta neste trabalho. De modo que quando você diz reabilitação, Sean, o que descobre no correr de todos esses anos é que é preciso toda sua força só para manter o estado de coisas.

– O ciclo da merda – anunciou Mazilli, mas Rocco não conseguiu interpretar o seu tom de voz.

Rocco não tinha a menor ideia do que acontecera com o garoto e estava na dúvida se devia inventar algo quando Mazilli entrou na conversa:

– Hoje ele é prefeito de Dempsy e na semana passada instituiu corte nos salários de todos os detetives da cidade.”

 

 

“Rocco saltou do Chevy e espreguiçou-se. O ar tresandava a matéria em combustão. A fumaça oleosa, as carcaças de metal calcinadas, os montes de cinzas de antigas fogueiras de pneus e o jeito de andar de zumbis daqueles catadores de lixo, tudo aquilo fazia com que se sentisse como se estivesse visitando um importante campo de batalha três dias depois de os soldados terem enterrado seus mortos e debandado.

Ele não sabia muita coisa mais sobre a vida alheia, mas sabia com certeza que aquela gente estava situada no elo mais baixo da cadeia de drogados, fracos demais para reagirem com violência ou reflexos rápidos e doentes demais para sobreviver à prisão. A maioria tinha o vírus, embora Rocco imaginasse que nem um só tivesse se submetido a exame. Ninguém queria saber da doença com certeza, mas todos andavam por ali como se já estivessem mortos, como se nada mais restasse para temer, como se aquela novidade em seus ossos finalmente os tivesse libertado, permitindo que abraçassem sem desculpas ou fingimentos a única coisa que já lhes havia confortado, muito embora fosse a mesma que os matara: as drogas intravenosas.”

 

 

“Strike não teria posto uma tranca se não desconfiasse da amiga de Herman, uma oriental de cinquenta anos que fazia a limpeza e preparava as refeições do velho. Tudo o que Strike sabia sobre orientais é que trabalhavam duro e não riam, mas imaginava que fossem ambiciosos e traiçoeiros como todo mundo.”

 

 

“Já ouviu dizer que quando Deus detesta um cara lhe concede o seu mais profundo desejo?”

 

 

“O apartamento parecia silencioso. Strike examinou os pés da cama, estraçalhados, e lembrou do Doberman que comprara seis meses atrás para guardar a casa. Nunca se dera ao trabalho de treiná-lo e o cão roera toda a mobília do quarto, reduzindo todos os postes de bambu e laterais a gigantescos palitos esfrangalhados. O cachorro, como a maioria das coisas, parecia ser melhor do que era realmente.”

 

 

“A distância mais curta entre dois pontos é a verdade.”

 

 

“Quando o pau levanta a cabeça não pensa mais.”

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Dossiê Fidel Castro: vida, aventuras e desventuras do último grande revolucionário da história – Rodolfo Lorenzato

Editora: Universo dos livros

ISBN: 978-85-99187-96-8

Opinião: ★★☆☆☆

Páginas: 112

Sinopse: Este livro elucida o mistério por trás dessas várias facetas de Fidel Castro, mostrando por que ele, suas ações e sua vida continuarão a ser relatados por muitos anos, seja com admiração, com crítica, ou até com desprezo. Seu conteúdo retrata a infância do filho ilegítimo de um fazendeiro, a juventude como estudante de Direito, os anos, ora aventurosos, ora aborrecidos e cheios de perigo de morte, da guerrilha e da revolução, as relações com companheiros e adversários, e veja por que classificar Fidel Castro vai muito além das palavras “caudilho”, “ditador” ou “revolucionário”.



“Para seus defensores, Fidel foi um estadista corajoso que chegou ao poder por meio de uma luta justa, combatendo de maneira heroica e épica todo o tipo de injustiça e exploração a que Cuba estava sujeita. Foi capaz de implantar mudanças profundas na sociedade cubana, sem se curvar ao império capitalista que usava a ilha como “estância de férias particular” e submetia o povo cubano a suas vontades. Priorizou a saúde e educação do povo, sem discriminar classes sociais, valorizou o cidadão comum e ideais nobres, propiciou acesso à cultura e aos esportes e conseguiu levar a ilha a indicadores sociais de primeiro mundo, destacando-se dos vizinhos caribenhos e latino-americanos. O apoio da maioria do povo cubano legitima os atos de seu governo.

A grande maioria dos problemas cubanos, ainda no entendimento de seus admiradores, advém do embargo econômico imposto pelos Estados Unidos, o que priva a ilha de uma série de produtos essenciais a seu bom funcionamento. A rigidez do regime é necessária para impedir que o capitalismo corrompa a estabilidade adquirida. Cuba (especialmente Havana), era conhecida como uma ilha de belas praias e cassinos, repleta de prostitutas e voltada, exclusivamente, para o entretenimento norte-americano. A imagem do povo cubano estava denegrida e maculada, mas, após Fidel, Cuba passou a se ver como uma nação orgulhosa de suas conquistas, do valor de seu povo e da determinação de seu comandante-em-chefe.”

 

 

“Um fato curioso na infância de Fidel foi relatado por ele próprio. Escreveu uma carta “ao bom amigo” Franklin Roosevelt, então presidente dos Estados Unidos, pedindo um presente, uma nota de dez dólares. Recebeu uma resposta, muito comentada na escola, porém uma resposta padrão, provavelmente redigida por um assessor e dirigida a todos que escrevessem ao presidente. Em entrevista recente, Fidel relembra o episódio com humor:

Disseram-me como piada, que se Roosevelt tivesse me enviado os dez dólares, eu talvez não tivesse causado tantas dores de cabeça aos EUA.

 

 

“No fracassado assalto ao quartel Moncada, apenas seis aliados de Fidel perderam a vida nos combates e cerca de outros 60 foram assassinados posteriormente. Esse provavelmente seria o destino do comandante, caso não conhecesse o tenente Sarriá, responsável por sua captura e por lhe salvar a vida. Não fosse o tenente, Fidel teria morrido em 1953 e a História e o mundo seriam completamente diferentes.

Preso, porém vivo, Fidel passou a ser conhecido e a representar uma ameaça real a Batista. Todos queriam sabem quem era o responsável por aquela ação tão arriscada. Castro foi a julgamento e coube a ele próprio elaborar sua defesa, que culminou em um discurso histórico, de mais de 5 horas, em que fundamentou os ideais que viriam a ser sua bandeira no futuro e encerrou sua defesa com a célebre frase: “Condenai-me, não importa, a História me absolverá!”.

Quando compareceu pela primeira vez ao tribunal, em 21 de setembro de 1953 (Causa 37), o procurador quis saber de Fidel quem era o autor intelectual do ataque ao quartel de Moncada. A resposta, enfatizando que ninguém tinha de se preocupar, era que o único autor do ataque ao Moncada era José Marti (herói da independência cubana). Com declarações contundentes e convincentes argumentos, Fidel passou de acusado a acusador. Em nenhum momento se preocupou em declarar-se inocente, ao contrário, aproveitou a repercussão nacional do julgamento e a presença massiva da imprensa para invocar o princípio da legitimidade de insurgir-se contra um regime ilegal. De forma brilhante, conseguiu com sua defesa transformar o fracasso da ação militar em uma vitória política retumbante.”

 

 

“O povo cubano sentia na pele a força da repressão do governo de Batista e o discurso de Fidel pareceu acender uma esperança de renovação, de mudança de rumo político, com um governo mais democrático e menos corrupto e explorador, algo que parecia até então intangível. Castro passou a representar a personificação de toda essa mudança. Abaixo, um trecho extraído do discurso que serviu de base revolucionária e ajudou a inspirar os cubanos:

Há uma razão, porém, que nos assiste, mais poderosa que todas as outras: somos cubanos. E ser cubano implica em um dever, não cumpri-lo é um crime de traição. Vivemos orgulhosos da história de nossa pátria; aprendemo-la na escola; e crescemos ouvindo falar de liberdade, de justiça e de direitos. Ensinaram-nos a venerar desde cedo o exemplo glorioso de nossos heróis e nossos mártires. (...)

Quanto a mim, sei que a prisão me será mais dura, como nunca foi para qualquer outro. Sei que ela será pesada, de ameaças vis e covardes provocações, mas não a temo, como não temo a fúria do tirano miserável que ceifou a vida de 70 de meus irmãos. Condenai-me, não me importa. A História me absolverá!.

Fidel castro foi condenado a quinze anos de prisão que deveriam ser cumpridos na prisão da ilha de Los pinos. Devido a pressões populares (nacionais e internacionais) e a uma decisão desastrosa de Batista, acabou anistiado em menos de dois anos. (...)

Acuado pelas críticas a seu governo extremamente pró-americano, Fulgencio Batista procurou legitimar seu golpe pelo voto, convocou eleições e, na hora do pleito, foi eleito como candidato único.

O Movimento Revolucionário 26 de julho (MR 26 de Julho – data do assalto ao quartel Moncada) foi batizado oficialmente em uma reunião em 12 de julho de 1955 e tinha como objetivo final a deposição do governo de Batista. Organizou-se sob o comando de Fidel castro em distintas seções, voltadas para a ação armada, finanças, propaganda e ainda preocupações na área sindical e da juventude. (...)

Aproveitando-se da aparente democracia, Fidel foi às rádios e aos periódicos denunciar os crimes praticados por Batista. Mais uma vez os estragos causados por sua afiada oratória foram grandes. O poder de convencimento de Fidel era enorme e ele precisava ser calado. Seu acesso aos meios de comunicação ficou proibido e Batista promoveu uma verdadeira campanha de difamação na tentativa de intimidá-lo. Seu assassinato era algo que passou a ser fortemente considerado pelo governo.

Sentindo o cerco se fechando, Fidel decide partir em direção ao México para organizar o golpe final contra Batista. Seria o mais perigoso, seria o derradeiro. Deixou Cuba em 07 de julho de 1955, disposto a regressar para promover a revolução e para dar a vida à sua luta se preciso fosse. Suas intenções se tornaram claras na mensagem deixada antes de partir:

Estou saindo de Cuba porque todas as portas de uma luta pacífica se fecharam para mim... Como seguidor de Martí, acredito que é chegada a hora de fazer valer os direitos e não de implorar por eles. De lutar, em vez de suplicar por eles. Residirei em algum lugar do Caribe. De viagens como essa a gente não retorna, ou retorna com a tirania decapitada a nossos pés.

 

 

“A derrota praticamente reduziu as forças de Fidel a nada. Muitos rebeldes foram mortos ou acabaram sendo capturados, para serem executados mais tarde. Batista chegou a anunciar publicamente a morte dos irmãos Castro. Do total de 82 tripulantes do iate Grana que partiram do México, apenas quinze conseguiram se reagrupar mais tarde. Batista teria sufocado completamente o levante caso não estivessem entre os que conseguiram escapar Fidel, Raúl, Camilo Cienfuegos e Che Guevara. Os três primeiros eram os principais líderes e praticamente os únicos capazes de reorganizar a revolução, o quarto era simplesmente o que viria a ser chamado por Jean-Paul Sartre de o mais completo ser humano de nossa época.”

 

 

“No começo do ano de 1958, os integrantes urbanos do MR 26 de Julho, responsáveis por abastecer os rebeldes nas montanhas, decidiram que a luta deveria deixar o extremo da ilha e se espalhar pelo país, especialmente pelos grandes centros urbanos. Com o enfraquecimento do já frágil governo de Batista, conclamaram uma greve geral para o dia 09 de abril de 1958, visando paralisar o país e trazer a grande massa das cidades para a pressão contra o governo déspota. Nas montanhas, Fidel considerava que ainda não era hora desta estratégia, preferia que os combates continuassem até um avanço maior sobre as forças de Batista.

No dia 09, apenas alguns setores em Santiago, Camagüey e Santa Clara tiveram paralisações e ainda assim parciais. Sem o apoio do partido comunista, que tinha forte influência nos sindicatos, e com a informação sendo mantida em segredo até a última hora, muitos trabalhadores sequer souberam da greve. O pior é que, para mobilizar as pessoas, os integrantes do MR 26 de Julho tiveram de sair do anonimato. Um dos principais problemas de Batista estava resolvido sem que ele precisasse ter feito nada. Capturar ou eliminar os integrantes da rede urbana que fornecia recursos para os guerrilheiros nas montanhas se tornou uma tarefa mais fácil e Batista não perdeu tempo. Decidiu que seria a hora do ataque que sufocaria de uma vez por todas o levante rebelde.

Desmantelada a rede urbana do MR 26 de Julho, Batista inferiu que os rebeldes estavam isolados nas montanhas. Desta vez, aprendendo com as lições anteriores, respeitando a topografia da região e não subestimando o ainda diminuto Ejército Revolucionario, o ditador mandou o que tinha de mais forte para as montanhas. Cerca de 10.000 homens fortemente armados dispostos em 14 batalhões e sete companhias independentes, apoiados por blindados, tendo a cobertura de aviões com bombas napalm e das fragatas da marinha pelo mar, dirigiram-se para a derradeira investida contra Fidel e seus homens na ação batizada de FF (Fase Final ou Fim de Fidel). Um efetivo deste tamanho não poderia ser derrotado por um grupo de pouco mais de trezentos homens. Não poderia, mas foi.”

 

 

“Em tribunais populares, conhecidos como tribunais revolucionários, os colaboradores de Batista, isto é, os que cometeram as atrocidades contra o povo cubano no regime anterior, foram julgados e muitos condenados à morte. A maior parte das execuções ficaram a cargo de Che Guevara no quartel de Las Cabanas. O governo norte-americano aproveitou para enviar fortes protestos contra os julgamentos.

A esta época o ator norte-americano Errol Flynn, que estava em Cuba, registrou, em forma de um rústico documentário, alguns dos importantes acontecimentos pós-revolução, dentre eles os julgamentos dos criminosos que serviam a Batista, inclusive mostrando o fuzilamento de um deles. O registro mostrou que os julgamentos eram abertos ao público e aos órgãos de imprensa nacionais e internacionais, com direito a defesa por parte dos acusados, o que geralmente não ocorria nos julgamentos do governo anterior. O questionamento dos rebeldes era porquê não havia protestos norte-americanos quando Batista mandava simplesmente eliminar seus adversários políticos. O documentário de Errol Flynn, proibido em muitos países capitalistas por quase cinquenta anos, chama-se A Revolução.

Os primeiros sinais de estremecimento das relações entre Cuba e os Estados Unidos começavam a aparecer. A imprensa norte-americana desenhava um irreal banho de sangue em Cuba, sob o título de Paredón. A intenção era atrair a opinião pública para a destituição de Fidel Castro do poder.”

 

 

“Um grande caminho para tornar Cuba uma nação socialista havia sido percorrido. Fidel Castro enfrentava os interesses norte-americanos com a mesma disposição da época da guerrilha. Tinha um grande apoio da população mais pobre e a coragem de resistir a qualquer agressão a Cuba. A burguesia e os antigos detentores dos meios de produção cubanos se organizavam para reaver suas posses e, com o apoio dos Estados Unidos, preparavam uma contraofensiva ao Governo Revolucionário.

O gigante norte-americano teve seu orgulho ferido e voltaria toda sua força contra aquela pequena ilha. A intenção era retomar um território perdido. Não seria possível resistir a tamanha força. Para enfrentar o poderio do vizinho gigante, maior potência militar e econômica mundial, estava uma população rural e semianalfabeta e à frente dela um comandante decidido. Isto não seria suficiente, não fosse esse mesmo comandante o responsável por derrotar 80.000 soldados de um exército regular, contando, em dado momento, com apenas 15 homens.”

 

 

“Na Guatemala, uma brigada de exilados contrarrevolucionários era treinada pela CIA para um ataque a Cuba. O plano, desenvolvido ainda no governo de Eisenhower (já se estava no governo Kennedy), era desembarcar uma quantidade grande de contrarrevolucionários na Baía dos Porcos e formar ali um governo em armas, que seria liderado pelo antigo primeiro-ministro, José Miró Cardona. Imediatamente o novo Governo seria reconhecido pelos Estados Unidos e poderia pedir uma intervenção militar oficial. Caso conseguissem se estabelecer, todo o poderio bélico norte-americano estaria à disposição dos contrarrevolucionários e um banho de sangue dificilmente seria evitado em Cuba. (...)

No dia 15 de abril de 1961, aviões B-26 vindos da Nicarágua bombardearam as três únicas bases aéreas de Cuba, com o objetivo de aniquilar a pequena força aérea cubana e garantir a supremacia aérea no desembarque dos contrarrevolucionários. O sacrifício dos jovens que manejavam as baterias antiaéreas evitou a destruição total das aeronaves cubanas. A perda de vidas foi grande, especialmente na base aérea de Ciudad Libertad, localizada próxima a uma região densamente povoada. Eduardo Garcia Delgado, um dos jovens que perderam a vida defendendo as bases aéreas, um pouco antes de morrer, enquanto agonizava, escreveu no muro, com o próprio sangue, um emblemático nome: Fidel. Era o resumo mórbido de como a população estava fechada com seu comandante-em-chefe.

Os Estados unidos divulgaram na imprensa que o ataque havia sido comandado por pilotos que desertaram das forças armadas revolucionárias, mas fotos mostraram que a proa dos aviões era diferente dos herdados pelo Governo Revolucionário. Com a farsa descoberta e denunciada no comitê político da Assembleia Geral da ONU, novos ataques contra o que restava da diminuta força aérea cubana foram abandonados por poderem evidenciar uma participação direta norte-americana nos assuntos cubanos. No dia seguinte ao ataque, durante as cerimônias fúnebres, Fidel discursou e acusou de covarde a intervenção estadunidense. Ele disse: “Quando os japoneses atacaram Pearl Harbor, assumiram a responsabilidade, estes senhores, não.” O discurso, de forte cunho patriótico, é considerado histórico porque revelou pela primeira vez a natureza socialista da revolução:

Porque o que os imperialistas não conseguem perdoar é que estejamos aqui, o que os imperialistas não conseguem perdoar é a dignidade, a integridade, o valor, a firmeza ideológica, o espírito de sacrifício e o espírito revolucionário do povo de Cuba. Isto é o que não podem nos perdoar, que estejamos aí no seu nariz, e que tenhamos feito uma Revolução Socialista no próprio nariz dos Estados Unidos... E que defenderemos com nossos fuzis esta Revolução Socialista... Com o valor com que ontem nossas defesas antiaéreas crivaram à bala os aviões agressores... Esta é uma Revolução Socialista e Democrática dos humildes... Não vacilaremos, frente a quem quer que seja, em defendê-la até a última gota de sangue.

 

 

“Fidel resumiu posteriormente como enxergou este ataque:

Kennedy vacilava e, no final, diante das dificuldades dos invasores da Playa Girón, decidiu lhes dar um apoio aéreo, mas quando foram fazer isto, já não havia mercenários, porque em 68 horas o nosso contra-ataque liquidou completamente aquela expedição. Uma dura derrota para o império. E uma grande humilhação.

A incrível participação do povo cubano nos combates evidenciou que Cuba havia se tornado uma nação em armas, disposta a defender sua soberania a qualquer custo e seguir seu comandante em qualquer combate. Fidel Castro personificava aquele sentimento nacionalista insurgente. O intuito norte-americano era de evidenciar um descontentamento do povo cubano com o governo socialista, mas o que se viu foi justamente o oposto. A união da população com a liderança revolucionária se estreitou e dificultou uma justificativa para uma intervenção militar direta dos Estados Unidos na ilha, entretanto, após o fracasso da operação com os cubanos contrarrevolucionários, este parecia ser o único modo de conseguir derrubar o regime socialista.”

 

 

“Os Estados Unidos atuavam ativamente para sufocar os focos revolucionários ao longo do planeta e, precavidos com a experiência cubana, agiam de forma eficiente para blindar a América Latina da influência comunista. No campo econômico, proporcionavam linhas de crédito com juros baixos e longos prazos, o que propiciou índices elevados de crescimento econômico nos países sob sua influência, ao custo de uma dívida externa de dimensões tão ou mais elevadas quanto o crescimento que foi proporcionado. O resultado foi uma estagnação nas décadas seguintes nestes países, mas foi eficiente como propaganda no momento mais crucial da Guerra Fria. No Brasil, esse período foi conhecido como “milagre brasileiro”, um período de grande crescimento na área econômica e pouca liberdade de expressão.”

terça-feira, 30 de abril de 2013

A Ratazana – Günter Grass

Editora: Record
ISBN: 978-85-0105-991-8
Tradução: Lya Luft
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 420
Sinopse: Günter Grass, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1999, mescla sonho e realidade, passado, presente e futuro, nesta fascinante e bela história. Em A Ratazana, Grass, um dos maiores escritores modernos da atualidade, resgata seus personagens mais famosos para conviverem com um rato que tenta demonstrar, através de diálogos bastante convincentes, que sua espécie irá dominar a Terra, dando início a uma nova era. Tudo começa quando o narrador, o próprio Grass, ganha uma ratazana de presente de Natal. Desde esse dia ela entra definitivamente na sua vida e na sua imaginação.
Em A Ratazana, Grass escreve histórias dentro de outras histórias. Sua própria história real e a do rato. A de um grupo de mulheres em uma viagem de pesquisa pelo oceano, reclamando e lamentando aos berros enquanto tricotam. A de nosso velho amigo de Tambor, Oscar Matzerath, já com 60 anos, careca, com problemas na próstata e dono de uma grande produtora. O rato entra em todas essas histórias, criando suas próprias, desafiando o narrador em seus sonhos e em suas realidades, discutindo com ele, interrompendo e desafiando. Durante o aniversário de 107 anos da avó de Oscar, por exemplo, é exibido um vídeo sobre o reflorestamento da Alemanha. Este, é conduzido por personagens das fábulas do Irmãos Grimm e pelos próprios Grimm, que aparecem na história como ministros do meio ambiente do governo de Bonn. Lá também está o rato.
O narrador por sua vez, luta para preservar a espécie humana, escrevendo suas memórias. Enquanto escreve sobre seu próprio passado, imagina um futuro apocalíptico e terrível. Em A Ratazana, Grass desenvolve todo seu senso de observação e interpretação, e divaga sobre a condição humana e dos animais. Um romance erudito e assustador.



“É cada vez mais difícil presentear. Tudo foi realizado. O que falta, dizemos, é a carência, como se a quiséssemos transformar em desejo nosso. E continuamos presentando sem piedade. Ninguém mais sabe o que quando de quem lhe demonstra afeto. Sentia-me saciado e carente quando, indagado, pedi um rato como presente de natal.”


“Histórias de ratos! A Ratazana conhece montes! Não só em zonas mais quentes, até nos iglus dos esquimós haveria ratos. Conseguiram migrar para a Sibéria com os exilados. Acompanhando exploradores dos Polos, ratos de navio descobriram o Ártico e a Antártida. Nenhum ermo lhes era inóspito demais. Atrás de caravanas entraram no deserto de Góbi. Seguindo peregrinos devotos, puseram-se a caminho de Meca e Jerusalém. Viam-se ratos lado a lado em fileiras cerradas migrando com os povos migratórios da espécie humana. Com os godos foram até o mar Negro, com Alexandre para as Índias, com Aníbal atravessaram os Alpes, e seguiram os vândalos até Roma. Atrás dos exércitos de Napoleão foram a Moscou, e voltaram. Os ratos também atravessaram o Mar Vermelho sem se molhar, com Moisés e o povo de Israel, para saborearem maná celeste no deserto de Zin; desde o começo sempre houve lixo suficiente.”


“– Ainda bem que os homens sumiram. Eles só emporcalhavam tudo. Sempre imaginavam coisas, nas suas cabeças lá em cima. Mesmo quando a superabundância ameaçava de os sufocar, não estavam satisfeitos, nunca tinham o bastante. Se fosse preciso, inventavam uma carência. Empanturrados e famintos! Sabichões e burros! Sempre divididos. Com medo na cama, procuravam perigo lá fora. Enjoados dos velhos, estragavam seus filhos. Escravos escravagistas. Devotos hipócritas! Exploradores! Desnaturados! Por isso cruéis. Pregaram o único filho do seu próprio Deus. Abençoam suas armas. Bem bom que sumiram! (...) Esses humanos pensavam que o sol haveria de hesitar em aparecer e se pôr depois que eles se evaporassem, se derretessem ou se queimassem, depois que batessem as botas, essa espécie falhada, depois do “acabou-se” para essa espécie humana. Nada disso fez sequer comichões na lua, nem nos astros. Nem maré cheia ou vazante cessaram, ainda que os mares também cozinhassem aqui e ali, ou buscassem outras praias. Desde então, silêncio. O seu ruído se foi com eles. E o tempo passa como se nunca tivesse sido calculado nem trancafiado em calendários.”


“– Você nos passou a perna. Os homens ainda têm a mão no gatilho. Só eles têm a palavra de comando, ainda que a gente esteja correndo cada vez mais depressa para o abismo. E naquela ocasião nós pensamos: agora será a vez da causa das mulheres, o inteligente domínio das mulheres. Negativo.”


“A Oceanóloga tira suas luvas. Joga sobre a amurada e aponta em sequência na direção de Pelzerhaken, Neustadt, Scharbeuz:
– Ficavam ali, eram três navios. Eu usava trancinhas com laços e tinha doze anos quando o “Thielbeck”, o “Cap Arcona” e o “Alemanha” ancoraram aqui. Tínhamos sido evacuados de Berlim. Tínhamos sido bombardeados duas vezes. Foi em abril de quarenta e cinco, pouco antes do fim. Os navios estavam ali todas as manhãs, quando eu ia para a escola. Pareciam pintados. Eu também os pintei, na mesa da cozinha. Com lápis de cor, todos os três. Os adultos disseram: “Ali dentro tem prisioneiros de campos de concentração.” Quando em três de maio minha mãe me mandou mais uma vez para a cidade, porque se podia comprar açúcar com cartões, da praia eu vi que alguma coisa estava acontecendo com os navios. Estavam fumegando. Estavam sendo atacados. Hoje a gente sabe mais. Os prisioneiros vinham de Neuengamme e algumas centenas eram de Stutthof. E os navios estavam sendo atacados por Typhoons ingleses. Com foguetes. Parecia bonito, ali da praia, como uma manobra. Seja como for, o “Cap Arcona” pegou fogo e mais tarde soçobrou. O “Alemanha”, no qual não havia prisioneiros, foi afundado. O “Thielbeck”, no qual prisioneiros tinham içado lençóis como bandeiras brancas, emborcou, em chamas, e foi afundado. Naturalmente da praia não se via o que estava acontecendo no bojo dos navios. Quase nem se pode imaginar. Mesmo que mais tarde eu ainda ficasse muito tempo desenhando navios em chamas com lápis de cor, ah meu Deus! Antes do ataque havia cerca de nove mil prisioneiros a bordo do “Arcona” e do “Thielbeck”. Destes, bem uns trezentos morriam de fome todo dia. E cerca de cinco mil e setecentos prisioneiros – poloneses, ucranianos, alemães e naturalmente judeus – foram queimados, afogaram-se ou, se chegavam a nado, simplesmente fuzilados. Por homens da SS e fuzileiros navais. Eu vi isso quando tinha doze anos. Estava ali parada com minhas tranças olhando. Também havia muitos adultos de Neustad ali vendo os prisioneiros serem fuzilados mal saíam da água, tremendo. Naturalmente até hoje todo mundo diz que não viu nem ouviu nada. Na Inglaterra também nem um porco comenta o assunto. Foi um acidente, acabou. Durante dois anos ainda chegavam cadáveres carregados pelas ondas, perturbando o banho nas praias. Logo depois se fez a paz.”


“Como gralhas na floresta morta, um dia o engano tem de alçar voo, mesmo que ainda esteja bem cotado. Ah, as mentiras não andam sobre pernas curtas, mas a bom passo!”


“O ser humano está cansado de documentários. Realidade demais cansa. E de qualquer modo ninguém mais acredita em fatos. Só sonhos da caixa mágica produzem fatos esclarecedores. Não nos iludamos: a verdade se chama Pato Donald, e Mickey Mouse é o seu profeta!”


“Mas o meu rato-de-natal não tem nenhum interesse em atualidades. Por toda parte, problemas não resolvidos. Parece que só as crises vão crescer; e o meu rato jovem, que sem rabo tem mais ou menos o comprimento de um indicador, cresce como as crises que, por estarem tão juntas, se enovelam umas com as outras ao crescer e – falando de forma figurada – formam o chamado Rei dos Ratos.”


“– No tempo dos humanos aconteciam as mesmas coisas terríveis entre poloneses e alemães, sérvios e croatas, ingleses e irlandeses, turcos e curdos, negros e negros, amarelos e amarelos, cristãos e judeus, judeus e árabes, cristãos e cristãos, índios e esquimós. Eles se apunhalaram e exterminaram, se mataram de fome, se apagaram. Tudo isso primeiro germinava em suas mentes. E porque o ser humano arquitetou seu fim e depois o realizou conforme planejara, por isso a humanidade não existe mais. Talvez os seres humanos apenas quisessem provar para si mesmos que não eram capazes de coisas extremas apenas em pensamento. Admitimos: prova muito bem-sucedida! Também é possível que os humanos tenham deixado definhar aquela outra capacidade sua, que nós ratos sempre tivemos, a vontade de viver. Em suma, não tinham mais prazer nisso. Desistiram e, apesar do ódio e das brigas, concordaram em acabar com tudo. “Os humanos causaram o seu próprio fim”, exclamou a Ratazana em dialeto. (...) Os humanos sempre tinham nos parecido capazes de qualquer coisa, e também do contrário. Assim os conhecíamos: desconcentrados porque absortos, correndo atrás de desejos ou de perdas, carentes de amor, desejosos de vingança, indeciso entre Bem e Mal.”


“Assim vocês humanos criavam coragem – disse a Ratazana –. Intimidando-se mutuamente, expulsavam pouco a pouco o medo. Ele era proibido, não deveria aparecer em parte alguma. Ninguém queria ser visto com ele. No fim os humanos eram covardes demais para terem medo, quem o mostrava abertamente era marginalizado. (...) Vocês queriam se livrar do medo, como queriam ser livres de preocupações, livres de pecados, de dívidas, desde sempre livre de responsabilidades, de inibições, de escrúpulos, livres dos ratos, dos judeus. Mas o ser humano que não tem medo é particularmente perigoso. Nós estávamos vendo que essa ausência de medo os deixava cegos, depois burros. Nenhum sacrifício pela liberdade é grande demais para nós, era a frase heroica escrita em um dos cartazes; mas há muito vocês tinham sacrificado sua liberdade ao ídolo chamado Segurança. Eram prisioneiros de sua técnica abrangente que absorveu as suas últimas dúvidas, e no final, liberados de responsabilidades, vocês foram aniquilados. Idiotas! O último restinho de Razão servindo de pasto, em migalhinhas, para computadores insaciáveis, para que eles assumissem a responsabilidade.”


“– Mas, se pudéssemos ter-lhes ensinado alguma coisa, a primeira lição teria sido a seguinte: a partir de agora a educação da espécie humana não admite mais essa conversa fiada de imortalidade. O ser humano vive enquanto vive. Depois da morte não há nada. E nada sobrará dele senão o seu lixo. Portanto, tenham medo, humanos, angustiem-se, sejam mortais como nós ratos, e talvez vivam um pouquinho mais.”


“– Como as bombas seletivas liquidaram apenas os seres vivos, no centro e no porto não apenas todos os edifícios, continuavam de pé, mas também veículos e utensílios estavam intactos. (...) Mas nós encontrávamos os humanos em toda a parte. Em casas, ruelas e igrejas, em bondes, trens de subúrbio, no trem expresso que partia de Varsóvia. Cadáveres ressequidos como couro, pretos de fuligem desde aquele tempo trevoso das tempestades de pó. Estavam deitados, acocorados, agachados, enovelados uns com os outros como se no fim tivessem buscado o exemplo da nossa ninhada ainda grudada, chamada Rei dos Ratos. Nas cabines dos navios, em cada convés, ao longo das instalações dos cais na cantina do Estaleiro Lenin, por toda parte todo o sangue dos humanos fora extraído, o muco, a água, os últimos sucos. Estavam reduzidos ao tamanho de anões, e quando os removemos eram bem levinhos. Muitos – obviamente turistas – agarrados às suas câmeras fotográficas. E mesmo assim – acredite! – em seus resquícios o ser humano era belo. Todos os membros retorcidos num gestual insano, fazendo caretas, mas belo. Sem o rubor dos lábios nem o brilho dos olhos, sem o tímido sorriso, sem sua voz doce ou perigosa, sem o hábil jogo de dedos e sem o andar ereto, mesmo assim o ser humano era belo. Nem mesmo aquela camada negra e viscosa que jazia sobre tudo e que tínhamos de soltar com cautela e paciência reduzia sua beleza. Não queríamos nos separar daqueles belos restos de antiga magnificência. Mas não foi só a fome que nos obrigou a remover os dessorados; os tempos pós-humanos teriam de pertencer inteiramente e unicamente a nós, os ratos, os sobreviventes.”


“– Bom, não teremos nada de muito profundo a nos dizer. Você conhece essas reuniões de família. Muita agitação e pouca intimidade.”


As belas palavras
Nunca mais dizer alívio.
Nenhuma língua se move falando com melancolia.
Nunca mais vozes que nos anunciem felicidade.
Tanta dor sem palavras.
Adeus às palavras que dizem que o homem na Terra de Oz
saiu nu do ventre de sua mãe.
(...)
Adeus às palavras que pediram a dádiva matinal,
o pão das vésperas e a santa ceia.

Quem nos dirá adeus, adeus,
quem há de sussurrar já fiz a tua cama?
Nada quer nos apaziguar abrigar assistir
e nos reconhecer, como o Anjo prometeu
à Virgem.

Emudecidas pelo adeus
as palavras nos abandonam.


“Não reconheço mais partidos políticos, vejo apenas interesses.”


“A nós a política deu muitas datas comemorativas, mas pouca felicidade.”


“– Como veem, o mundo não tem muita coisa nova a nos oferecer, de qualquer modo somos rearranjados assim ou assado ou surpreendentemente de ainda outro jeito, como aqueles anõezinhos com que as crianças brincam entretidas. Isso mesmo! Nós somos anões pré-fabricados, que numa produção especial – nem tudo tem de vir de Hong Kong! – foram produzidos em medida adulta, para encontrarem seu papel em mais de mil filmes, trajados ora de um modo, ora de outro; aqui em roteiros divertidos, muitas vezes idiotas, ali tristes, em geral trágicos, numa tensão doida, depois em ações monótonas e cansativas, tudo coisas que julgamos serem reflexo da vida real, embora tenham sido pré-produzidas. São vida filmada que nós imitamos, medrosamente cuidando de não perder nem uma cena de beijo nem de surra. O que estou dizendo: há pouca novidade! É tudo café frio muitas vezes requentado! Já a minha pobre mamãe Agnes sempre exclamava quando se reuniam amigos em torno de sua mesa para um joguinho de cartas a dinheiro: A vida parece um filme!”


“Feiticeira, enfeitiçar, enfeitiçado.
Não se misturam três pelos moídos
nem plantas soníferas.
Nem grãos ao vento nem excesso de gotas,
nem a palavra mágica ou libertadora
é necessária.

Nós sabemos e aprendemos
a acasalar abóbora com cebola,
rato com gato.
Dois genes aqui, quatro genes ali; nós manipulamos.
Que importa a natureza?! Hábeis em tudo,
nós corrigimos Deus.

Em velhos dicionários estão apenas
quimeras inferiores.
Logo conseguiremos o homem superior:
está previsto em nosso programa.
Dia a dia ele se enriquece
armazenado em bancos de genes:
Só não o dotaram de razão.

Mais do que todos os animais
– mais do que o porco –
o rato gosta de aliar-se ao ser humano
para que este se supere.


“Talvez eu tenha sobrevivido a mim mesmo.”


“No começo das notícias disseram que se devia considerar passageiro o fracasso da reunião de cúpula em Bruxelas; pelo fim do noticioso, um sucesso: em Uppsala, Suécia, conseguiram isolar e reproduzir genes velhíssimos de múmias egípcias de dois mil e quatrocentos anos: que progresso.”


O que nós suportamos, e nos estimulava,
agora é insuportável.
Não querem opor nem mesmo um Não raivoso
ao nosso zeloso Sim;
eles simplesmente se desligam.

Ah, caro amigo, o que nos ensinou
a duvidar assim a vida inteira?
Desde quando erramos com tamanha coerência?
Por que somos possíveis tão sem nenhum sentido?

Que medo sinto pelos meus filhos, por mim mesmo;
pois também as mães, treinadas em compreender tudo,
já não estão entendendo coisa alguma.


“Todo logro toma ares de verdade quando dura o suficiente.”

sábado, 13 de abril de 2013

Contos completos – Virginia Woolf

Editora: Cosac Naify

ISBN: 978-85-7503-400-2

Tradução: Leonardo Fróes

Opinião: ★☆☆☆☆

Páginas: 472

Sinopse: Reunindo pela primeira vez os contos completos de Virginia Woolf, o que inclui o inédito no Brasil “Um diálogo no monte Pentélico”, e com uma nova tradução, pelo poeta Leonardo Fróes, este volume se destaca por trazer à tona a rica tessitura literária de uma das maiores autoras inglesas do século XX (1882-1941). Sendo escritora modernista por excelência, Virginia reinventa a narrativa de forma a quase sempre fugir da descrição de uma ação linear.

As falas, os pensamentos e as ações de seus personagens são reembaralhados, e distribuídos de forma original, muitas vezes imbricados às reflexões da narradora. Como no conto “Kew Gardens”, por exemplo, no qual não há sequer uma ação propriamente dita, todo ele se passando durante uma caminhada pelos jardins públicos, preenchida por reflexões e por um olhar desviante desprezados pela narrativa tradicional, como o simples andar de um caramujo pelo chão.


“A madrugada, mesmo quando há melancolia e faz frio, nunca deixa de me varar pelos membros, como se me atirasse flechas de um gelo penetrante e rútilo. Descerro as grossas cortinas e busco o primeiro brilho do céu, que mostra que a vida está a irromper. Rosto colado na vidraça, gosto de imaginar que me comprimo o quanto posso contra a muralha espessa do tempo, que sempre se alteia e estira para permitir que outros espaços da vida venham de encontro a nós. Que a mim pois seja dado saborear o momento, antes que ele se propague pelo restante do mundo! Que eu saboreie o que existe de mais viçoso e mais novo! De minha janela, olho para o cemitério da Igreja, onde estão enterrados tantos dos meus ancestrais, e em minha oração me compadeço desses pobres mortais que eternamente se debatem nas águas recorrentes de outrora; pois que é nos círculos e redemoinhos perpétuos de um lívido caudal que os vejo. E que assim possamos nós, nós que temos o presente por dádiva, dar-lhe uso e desfrutá-lo: isso é parte, confesso, da minha prece matinal.”

 

 

“Minha mãe me diz que a verdade é sempre o que há de melhor.”

 

 

“A vida impõe suas leis, a vida barra a passagem; a vida é um tirano.”

 

 

“Os livros são em sua maior parte indescritivelmente ruins.”