Editora: Record
ISBN: 978-85-0105-991-8
Tradução: Lya Luft
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 420
Sinopse: Günter
Grass, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1999, mescla sonho e
realidade, passado, presente e futuro, nesta fascinante e bela história. Em A
Ratazana, Grass, um dos maiores escritores modernos da atualidade, resgata
seus personagens mais famosos para conviverem com um rato que tenta demonstrar,
através de diálogos bastante convincentes, que sua espécie irá dominar a Terra,
dando início a uma nova era. Tudo começa quando o narrador, o próprio Grass,
ganha uma ratazana de presente de Natal. Desde esse dia ela entra
definitivamente na sua vida e na sua imaginação.
Em A Ratazana, Grass escreve histórias dentro de
outras histórias. Sua própria história real e a do rato. A de um grupo de
mulheres em uma viagem de pesquisa pelo oceano, reclamando e lamentando aos
berros enquanto tricotam. A de nosso velho amigo de Tambor, Oscar
Matzerath, já com 60 anos, careca, com problemas na próstata e dono de uma
grande produtora. O rato entra em todas essas histórias, criando suas próprias,
desafiando o narrador em seus sonhos e em suas realidades, discutindo com ele,
interrompendo e desafiando. Durante o aniversário de 107 anos da avó de Oscar,
por exemplo, é exibido um vídeo sobre o reflorestamento da Alemanha. Este, é
conduzido por personagens das fábulas do Irmãos Grimm e pelos próprios Grimm,
que aparecem na história como ministros do meio ambiente do governo de Bonn. Lá
também está o rato.
O narrador por sua vez, luta para preservar a espécie
humana, escrevendo suas memórias. Enquanto escreve sobre seu próprio passado,
imagina um futuro apocalíptico e terrível. Em A Ratazana, Grass
desenvolve todo seu senso de observação e interpretação, e divaga sobre a
condição humana e dos animais. Um romance erudito e assustador.
“É cada vez mais difícil presentear. Tudo foi
realizado. O que falta, dizemos, é a carência, como se a quiséssemos
transformar em desejo nosso. E continuamos presentando sem piedade. Ninguém
mais sabe o que quando de quem lhe demonstra afeto. Sentia-me saciado e carente
quando, indagado, pedi um rato como presente de natal.”
“Histórias de ratos! A Ratazana conhece
montes! Não só em zonas mais quentes, até nos iglus dos esquimós haveria ratos.
Conseguiram migrar para a Sibéria com os exilados. Acompanhando exploradores
dos Polos, ratos de navio descobriram o Ártico e a Antártida. Nenhum ermo lhes
era inóspito demais. Atrás de caravanas entraram no deserto de Góbi. Seguindo
peregrinos devotos, puseram-se a caminho de Meca e Jerusalém. Viam-se ratos
lado a lado em fileiras cerradas migrando com os povos migratórios da espécie
humana. Com os godos foram até o mar Negro, com Alexandre para as Índias, com
Aníbal atravessaram os Alpes, e seguiram os vândalos até Roma. Atrás dos
exércitos de Napoleão foram a Moscou, e voltaram. Os ratos também atravessaram
o Mar Vermelho sem se molhar, com Moisés e o povo de Israel, para saborearem
maná celeste no deserto de Zin; desde o começo sempre houve lixo suficiente.”
“– Ainda bem que os homens sumiram. Eles só
emporcalhavam tudo. Sempre imaginavam coisas, nas suas cabeças lá em cima.
Mesmo quando a superabundância ameaçava de os sufocar, não estavam satisfeitos,
nunca tinham o bastante. Se fosse preciso, inventavam uma carência. Empanturrados
e famintos! Sabichões e burros! Sempre divididos. Com medo na cama, procuravam
perigo lá fora. Enjoados dos velhos, estragavam seus filhos. Escravos
escravagistas. Devotos hipócritas! Exploradores! Desnaturados! Por isso cruéis.
Pregaram o único filho do seu próprio Deus. Abençoam suas armas. Bem bom que
sumiram! (...) Esses humanos pensavam que o sol haveria de hesitar em aparecer
e se pôr depois que eles se evaporassem, se derretessem ou se queimassem,
depois que batessem as botas, essa espécie falhada, depois do “acabou-se” para
essa espécie humana. Nada disso fez sequer comichões na lua, nem nos astros.
Nem maré cheia ou vazante cessaram, ainda que os mares também cozinhassem aqui
e ali, ou buscassem outras praias. Desde então, silêncio. O seu ruído se foi
com eles. E o tempo passa como se nunca tivesse sido calculado nem trancafiado
em calendários.”
“– Você nos passou a perna. Os homens ainda
têm a mão no gatilho. Só eles têm a palavra de comando, ainda que a gente
esteja correndo cada vez mais depressa para o abismo. E naquela ocasião nós
pensamos: agora será a vez da causa das mulheres, o inteligente domínio das
mulheres. Negativo.”
“A Oceanóloga tira suas luvas. Joga sobre a
amurada e aponta em sequência na direção de Pelzerhaken, Neustadt, Scharbeuz:
– Ficavam ali, eram três navios. Eu usava
trancinhas com laços e tinha doze anos quando o “Thielbeck”, o “Cap Arcona” e o
“Alemanha” ancoraram aqui. Tínhamos sido evacuados de Berlim. Tínhamos sido
bombardeados duas vezes. Foi em abril de quarenta e cinco, pouco antes do fim.
Os navios estavam ali todas as manhãs, quando eu ia para a escola. Pareciam
pintados. Eu também os pintei, na mesa da cozinha. Com lápis de cor, todos os
três. Os adultos disseram: “Ali dentro tem prisioneiros de campos de
concentração.” Quando em três de maio minha mãe me mandou mais uma vez para a
cidade, porque se podia comprar açúcar com cartões, da praia eu vi que alguma
coisa estava acontecendo com os navios. Estavam fumegando. Estavam sendo
atacados. Hoje a gente sabe mais. Os prisioneiros vinham de Neuengamme e
algumas centenas eram de Stutthof. E os navios estavam sendo atacados por
Typhoons ingleses. Com foguetes. Parecia bonito, ali da praia, como uma
manobra. Seja como for, o “Cap Arcona” pegou fogo e mais tarde soçobrou. O
“Alemanha”, no qual não havia prisioneiros, foi afundado. O “Thielbeck”, no
qual prisioneiros tinham içado lençóis como bandeiras brancas, emborcou, em
chamas, e foi afundado. Naturalmente da praia não se via o que estava
acontecendo no bojo dos navios. Quase nem se pode imaginar. Mesmo que mais
tarde eu ainda ficasse muito tempo desenhando navios em chamas com lápis de
cor, ah meu Deus! Antes do ataque havia cerca de nove mil prisioneiros a bordo
do “Arcona” e do “Thielbeck”. Destes, bem uns trezentos morriam de fome todo
dia. E cerca de cinco mil e setecentos prisioneiros – poloneses, ucranianos,
alemães e naturalmente judeus – foram queimados, afogaram-se ou, se chegavam a
nado, simplesmente fuzilados. Por homens da SS e fuzileiros navais. Eu vi isso
quando tinha doze anos. Estava ali parada com minhas tranças olhando. Também
havia muitos adultos de Neustad ali vendo os prisioneiros serem fuzilados mal
saíam da água, tremendo. Naturalmente até hoje todo mundo diz que não viu nem
ouviu nada. Na Inglaterra também nem um porco comenta o assunto. Foi um
acidente, acabou. Durante dois anos ainda chegavam cadáveres carregados pelas
ondas, perturbando o banho nas praias. Logo depois se fez a paz.”
“Como gralhas na floresta morta, um dia o
engano tem de alçar voo, mesmo que ainda esteja bem cotado. Ah, as mentiras não
andam sobre pernas curtas, mas a bom passo!”
“O ser humano está cansado de documentários.
Realidade demais cansa. E de qualquer modo ninguém mais acredita em fatos. Só
sonhos da caixa mágica produzem fatos esclarecedores. Não nos iludamos: a
verdade se chama Pato Donald, e Mickey Mouse é o seu profeta!”
“Mas o meu rato-de-natal não tem nenhum
interesse em atualidades. Por toda parte, problemas não resolvidos. Parece que
só as crises vão crescer; e o meu rato jovem, que sem rabo tem mais ou menos o
comprimento de um indicador, cresce como as crises que, por estarem tão juntas,
se enovelam umas com as outras ao crescer e – falando de forma figurada –
formam o chamado Rei dos Ratos.”
“– No tempo dos humanos aconteciam as mesmas
coisas terríveis entre poloneses e alemães, sérvios e croatas, ingleses e
irlandeses, turcos e curdos, negros e negros, amarelos e amarelos, cristãos e
judeus, judeus e árabes, cristãos e cristãos, índios e esquimós. Eles se
apunhalaram e exterminaram, se mataram de fome, se apagaram. Tudo isso primeiro
germinava em suas mentes. E porque o ser humano arquitetou seu fim e depois o
realizou conforme planejara, por isso a humanidade não existe mais. Talvez os
seres humanos apenas quisessem provar para si mesmos que não eram capazes de
coisas extremas apenas em pensamento. Admitimos: prova muito bem-sucedida!
Também é possível que os humanos tenham deixado definhar aquela outra
capacidade sua, que nós ratos sempre tivemos, a vontade de viver. Em suma, não
tinham mais prazer nisso. Desistiram e, apesar do ódio e das brigas,
concordaram em acabar com tudo. “Os humanos causaram o seu próprio fim”,
exclamou a Ratazana em dialeto. (...) Os humanos sempre tinham nos parecido
capazes de qualquer coisa, e também do contrário. Assim os conhecíamos:
desconcentrados porque absortos, correndo atrás de desejos ou de perdas,
carentes de amor, desejosos de vingança, indeciso entre Bem e Mal.”
“Assim vocês humanos criavam coragem – disse
a Ratazana –. Intimidando-se mutuamente, expulsavam pouco a pouco o medo. Ele
era proibido, não deveria aparecer em parte alguma. Ninguém queria ser visto
com ele. No fim os humanos eram covardes demais para terem medo, quem o
mostrava abertamente era marginalizado. (...) Vocês queriam se livrar do medo,
como queriam ser livres de preocupações, livres de pecados, de dívidas, desde
sempre livre de responsabilidades, de inibições, de escrúpulos, livres dos
ratos, dos judeus. Mas o ser humano que não tem medo é particularmente
perigoso. Nós estávamos vendo que essa ausência de medo os deixava cegos,
depois burros. Nenhum sacrifício pela liberdade é grande demais para nós, era a
frase heroica escrita em um dos cartazes; mas há muito vocês tinham sacrificado
sua liberdade ao ídolo chamado Segurança. Eram prisioneiros de sua técnica
abrangente que absorveu as suas últimas dúvidas, e no final, liberados de
responsabilidades, vocês foram aniquilados. Idiotas! O último restinho de Razão
servindo de pasto, em migalhinhas, para computadores insaciáveis, para que eles
assumissem a responsabilidade.”
“– Mas, se pudéssemos ter-lhes ensinado
alguma coisa, a primeira lição teria sido a seguinte: a partir de agora a educação da espécie humana não admite mais
essa conversa fiada de imortalidade. O ser humano vive enquanto vive. Depois da
morte não há nada. E nada sobrará dele senão o seu lixo. Portanto, tenham medo,
humanos, angustiem-se, sejam mortais como nós ratos, e talvez vivam um
pouquinho mais.”
“– Como as bombas seletivas liquidaram apenas
os seres vivos, no centro e no porto não apenas todos os edifícios, continuavam
de pé, mas também veículos e utensílios estavam intactos. (...) Mas nós
encontrávamos os humanos em toda a parte. Em casas, ruelas e igrejas, em
bondes, trens de subúrbio, no trem expresso que partia de Varsóvia. Cadáveres
ressequidos como couro, pretos de fuligem desde aquele tempo trevoso das
tempestades de pó. Estavam deitados, acocorados, agachados, enovelados uns com
os outros como se no fim tivessem buscado o exemplo da nossa ninhada ainda
grudada, chamada Rei dos Ratos. Nas cabines dos navios, em cada convés, ao
longo das instalações dos cais na cantina do Estaleiro Lenin, por toda parte
todo o sangue dos humanos fora extraído, o muco, a água, os últimos sucos.
Estavam reduzidos ao tamanho de anões, e quando os removemos eram bem levinhos.
Muitos – obviamente turistas – agarrados às suas câmeras fotográficas. E mesmo
assim – acredite! – em seus resquícios o ser humano era belo. Todos os membros
retorcidos num gestual insano, fazendo caretas, mas belo. Sem o rubor dos
lábios nem o brilho dos olhos, sem o tímido sorriso, sem sua voz doce ou
perigosa, sem o hábil jogo de dedos e sem o andar ereto, mesmo assim o ser
humano era belo. Nem mesmo aquela camada negra e viscosa que jazia sobre tudo e
que tínhamos de soltar com cautela e paciência reduzia sua beleza. Não
queríamos nos separar daqueles belos restos de antiga magnificência. Mas não
foi só a fome que nos obrigou a remover os dessorados; os tempos pós-humanos
teriam de pertencer inteiramente e unicamente a nós, os ratos, os
sobreviventes.”
“– Bom, não teremos nada de muito profundo a
nos dizer. Você conhece essas reuniões de família. Muita agitação e pouca
intimidade.”
As belas palavras
Nunca mais dizer alívio.
Nenhuma língua se move falando com melancolia.
Nunca mais vozes que nos anunciem felicidade.
Tanta dor sem palavras.
Adeus às palavras que dizem que o homem na Terra de Oz
saiu nu do ventre de sua mãe.
(...)
Adeus às palavras que pediram a dádiva matinal,
o pão das vésperas e a santa ceia.
Quem nos dirá adeus, adeus,
quem há de sussurrar já fiz a tua cama?
Nada quer nos apaziguar abrigar assistir
e nos reconhecer, como o Anjo prometeu
à Virgem.
Emudecidas pelo adeus
as palavras nos abandonam.
“Não reconheço mais partidos políticos, vejo
apenas interesses.”
“A nós a política deu muitas datas
comemorativas, mas pouca felicidade.”
“– Como veem, o mundo não tem muita coisa
nova a nos oferecer, de qualquer modo somos rearranjados assim ou assado ou
surpreendentemente de ainda outro jeito, como aqueles anõezinhos com que as
crianças brincam entretidas. Isso mesmo! Nós somos anões pré-fabricados, que
numa produção especial – nem tudo tem de vir de Hong Kong! – foram produzidos
em medida adulta, para encontrarem seu papel em mais de mil filmes, trajados
ora de um modo, ora de outro; aqui em roteiros divertidos, muitas vezes
idiotas, ali tristes, em geral trágicos, numa tensão doida, depois em ações
monótonas e cansativas, tudo coisas que julgamos serem reflexo da vida real,
embora tenham sido pré-produzidas. São vida filmada que nós imitamos,
medrosamente cuidando de não perder nem uma cena de beijo nem de surra. O que
estou dizendo: há pouca novidade! É tudo café frio muitas vezes requentado! Já
a minha pobre mamãe Agnes sempre exclamava quando se reuniam amigos em torno de
sua mesa para um joguinho de cartas a dinheiro: A vida parece um filme!”
“Feiticeira, enfeitiçar, enfeitiçado.
Não se misturam três pelos moídos
nem plantas soníferas.
Nem grãos ao vento nem excesso de gotas,
nem a palavra mágica ou libertadora
é necessária.
Nós sabemos e aprendemos
a acasalar abóbora com cebola,
rato com gato.
Dois genes aqui, quatro genes ali; nós manipulamos.
Que importa a natureza?! Hábeis em tudo,
nós corrigimos Deus.
Em velhos dicionários estão apenas
quimeras inferiores.
Logo conseguiremos o homem superior:
está previsto em nosso programa.
Dia a dia ele se enriquece
armazenado em bancos de genes:
Só não o dotaram de razão.
Mais do que todos os animais
– mais do que o porco –
o rato gosta de aliar-se ao ser humano
para que este se supere.
“Talvez eu tenha sobrevivido a mim mesmo.”
“No começo das notícias disseram que se devia
considerar passageiro o fracasso da reunião de cúpula em Bruxelas; pelo fim do
noticioso, um sucesso: em Uppsala, Suécia, conseguiram isolar e reproduzir
genes velhíssimos de múmias egípcias de dois mil e quatrocentos anos: que
progresso.”
O que nós suportamos, e nos estimulava,
agora é insuportável.
Não querem opor nem mesmo um Não raivoso
ao nosso zeloso Sim;
eles simplesmente se desligam.
Ah, caro amigo, o que nos ensinou
a duvidar assim a vida inteira?
Desde quando erramos com tamanha coerência?
Por que somos possíveis tão sem nenhum sentido?
Que medo sinto pelos meus filhos, por mim mesmo;
pois também as mães, treinadas em compreender tudo,
já não estão entendendo coisa alguma.
“Todo logro toma ares de verdade quando dura
o suficiente.”
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