quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Rio-Paris-Rio, de Luciana Hidalgo

Editora: Rocco

ISBN: 978-85-325-2989-3

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 160

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Sinopse: Maria e Arthur se encontram em Paris no início de 1968. Ela estuda filosofia na Sorbonne, ele é poeta e artista de rua. Juntos vivem os excessos daqueles anos de revoluções e utopias e fogem da ditadura no Brasil, divididos entre o deslumbramento pelo que o Velho Mundo lhes oferece e a permanente sensação de que são intrusos na grande festa que é Paris. Maria passa o dia lendo Descartes e tenta seguir à risca as orientações do professor de filosofia sobre métodos de simetria e perfeição na condução de sua vida. Arthur é um libertário, idealista e sonhador, inimigo da rotina e artista nato. A realidade do Brasil, imerso numa ditadura violenta, é a sombra que permeia a relação dos dois, e também o apartamento ao lado, onde outro brasileiro, conhecido como “Marechal”, reúne estrangeiros que passam pelo mesmo problema em seus países e articulam um modo de resistir ao poder brutal das armas. Duas vezes ganhadora do prêmio Jabuti, Luciana Hidalgo narra em seu segundo romance uma história de amor, sonhos e desilusões, tendo como pano de fundo um período conturbado da história, tanto na Europa quanto no Brasil, com uma prosa poética e potente. Neste livro, a autora reforça outra característica sua, bem presente nas obras anteriores: a identificação com aqueles que vivem à margem, os que se opõem ao sistema e não se permitem levar a vida certinha que lhes oferecem, os que lutam contra injustiças e pagam com a própria vida, os chamados loucos, com suas realidades essencialmente próprias, personagens sempre capazes de proporcionar uma rica literatura.




A construção que abriga a Sorbonne é bonita e marrom. Os prédios em Paris são todos de um bege amarronzado, quase preto, como se deprimidos pela poeira do progresso. Rodeada por tons pastéis, Maria conclui: a mudança recente de cidades, Rio-Paris, tem sido, antes de tudo, uma mudança de cor.

Em volta, pessoas passam em trajes escuros, introspectivas. Talvez o inverno exija mesmo certo luto, pela ausência do sorriso fácil dos trópicos, pela morte do calor, que é um pouco a morte do calor humano, o baixo índice de humanidade.”

 

 

Arthur aproveita para contar vantagens, peripécias, andanças pelo mundo. Ele se pretende um herói expatriado a rodar por continentes, girar nos calcanhares, atravessar oceanos. Mas aí, ao lado de Maria, parece pequeno diante de tantas histórias, geografias e solidões que insinua. Tudo bem, pensa ela, a verdade agora não tem a menor importância.”

 

 

Maria ao volante, ele lê:

– O deserto é aquele em que se fala para o vazio, mas não se cala, aquele aonde se retira o santo, o perseguido pelos demônios, o doente da humanidade, o sôfrego de Deus. O deserto é onde não corre o tempo, e é, no entanto, o domínio do Tempo. Ele abole a história e a bússola, o cronômetro aqui não terá muito o que marcar. No deserto, homens em caravanas desconhecem o norte e o sul, têm a sabedoria de nunca chegar a parte alguma. O vento apaga e enterra diariamente pegadas e traços. Um punhado de areia que se joga para o alto modifica o deserto.”

 

 

Para ele, pouco importa Maria em sua pré-história, raízes ou heranças. Importa o destino que compõem os dois a cada frase que silenciam, na memória que recalcam. Fatos familiares se perdem no caminho de um até o outro. Eles se inventam aí onde faltam.

Ela aceita o método de Arthur, convincente e conveniente. Falam pouco do passado, enterrado num cemitério de famílias. Basta criar um futuro dissociado da genealogia, os dois concordam. Jogam uma pá de cal no pretérito, desprezam vícios de gerações. Ingenuamente se acreditam maiores do que tudo aquilo que os formou.

Ele faz isso sozinho há mais tempo, petulante, chutando todo e qualquer risco. E ela o acompanha, avessa aos abusos do passado. Afinal, ninguém escolhe a infância e é quase uma obrigação apagá-la, inventar outra no lugar. Pais manipulam filhos como marionetes no seu teatro doméstico, restando aceitar os papéis que lhes cabem. Até que a adolescência chega, estraga o espetáculo, e vai cada um para o seu lado. É o que ela pensa, mas não fala. Odeia se mostrar pessimista (mesmo quando é).”

 

 

“(...) sem notar o quanto Arthur aos poucos se torna o seu método, nada cartesiano, pouco confiável, o antimétodo. Divaga cada vez menos sobre si mesma, mais sobre ele. Um defeito disso a que chamam paixão?, ela se questiona, jovem demais para compreender que se trata afinal da maior qualidade disso a que chamam paixão. Distrair-se do eu com um outro, quem não quer.”

 

 

“Para apagar a impressão do sonho ruim, ela acende a luz e um cigarro que pouco fuma. Enquanto a brasa cresce, pensa em Arthur: por onde anda, a que velocidade. Está a cada dia mais impressionada com ele, isto é, com eles.

Já percebeu, são muitos os tipos que o habitam e, somados, o totalizam. Tem o que escreve e o que flana, o que passa o dia entre castelos de areia e o que fabrica teorias sólidas sobre tudo, o que acorda ao seu lado e não volta, o que dorme com ela e na madrugada se manda.

É até divertido assistir a eles, aos daimons que o circundam, soprando maus conselhos em seus ouvidos. O que um cala o outro diz, o que um guarda o outro revela. Mas a pior disputa é, sem dúvida, entre o que persegue um método e o que endoidece.

Verdade seja dita: cada louco monta a sua própria lógica, é o cristo da sua religião, o napoleão da sua guerra íntima. Maria, perdida entre tanta imaginação e tanto ímpeto, às vezes se pergunta se ele não seria assim meio doido. Mas em volta outros vivem também dessa forma, intensos, à margem dos sistemas, e tem até quem os rotule: hippies. Arthur odeia ser chamado assim, por isso mantém o cabelo reto, que o distinga.”

 

 

“– Milico é milico em qualquer lugar do mundo: inimigos em tempos de guerra, cúmplices e conspiradores em tempos de paz. Eu é que não me iludo.”

 

 

“(...) Concordam os dois, todo estrangeiro se corrompe um pouco todos os dias. Quando, por exemplo, pede une baguette s’il vous plaît na padaria, forçando os músculos do rosto para acertar as vogais internas da língua francesa e agradar o padeiro (que pouco liga). Quando adota códigos sociais que não os seus contra a vontade. Quando fala pela primeira vez uma gíria estrangeira, fingindo uma intimidade com a linguagem que não tem, nunca terá, soando artificial e colonizado.

Maria passou por tudo isso. Como todo recém-chegado, logo viu que quanto mais rápido se adaptasse ao novo país, mais integrada estaria, o que de imediato significaria: menos solidão. E tome mimetismo, mudança gradual das roupas, do estilo das roupas, das cores das roupas, até se misturar sem ser notada e só então ser bem-vinda, até mesmo querida, por gentilhommes como Luc. Nesse longo processo, forasteiros como ela podem não perder totalmente a identidade, mas se corrompem.”

 

 

Ah, a juventude. É toda feita de instantes assim: certezas absolutas, conclusões inéditas, grandes epifanias em minutos e que, minutos depois, valem nada. Importa nelas apenas a grande descoberta, ou melhor, a doce ilusão da grande descoberta.”

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