Editora: Editora da UFSCar / Francisco Alves
ISBN: 978-85-2650-356-4
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 160
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Sinopse: As histórias de A Palavra Nunca trazem uma força e uma
originalidade que capturam, de imediato, a atenção do leitor. São histórias que
pedem, convidam uma leitura atenta. Eric Nepomuceno prefere, em seus contos,
desarticular a realidade, partindo de dentro dela. Prefere dizer menos e sugerir
mais. Sua literatura bebe em outras fontes. A longa e intensa convivência com
seus colegas da América espanhola se traduz numa influência indireta, e se
reflete em contos de temática não muito comum na nossa literatura. Aparece,
então, uma literatura abrangente, que não é só do Brasil ou dos demais países
latino-americanos, mas do mundo todo. São contos intensos, tensos: trata-se de
resultado de um trabalho de grande apuro, no qual não se mede as palavras. O
que nos impressiona em Nepomuceno é o modo de narrar, o modo de conduzir o
texto, de nos envolver no conteúdo. Nestes contos de A Palavra Nunca,
Eric Nepomuceno mostra mais uma vez sua capacidade de capturar a essência das
histórias.
Conforme observou o crítico chileno Jaime Valdivieso, na
literatura de Eric Nepomuceno acontece ‘o contrário do que acontece nas
matemáticas: o mais é menos, e o menos é mais. A ordem dos fatores altera o
produto. Tendo por base uma linguagem direta, ele consegue nos submergir numa
atmosfera que nasce do centro da realidade, uma realidade que se quebra, se
fragmenta, dispersa em múltiplas direções’.
“TELEFUNKEN
Pelo buraco redondo coberto com o pano
amarelinho que fica bem no meio da caixa de madeira com o nome Telefunken
escrito em letrinhas brancas sai a voz de uma mulher brava. Tem que ser brava
porque tem a voz fininha e vive brava. A mãe tem a voz fininha e vive
brava.
Essa gente que canta no rádio não muda de
assunto. É sempre essa coisa de amor pra cá, amor pra lá, e não falam em outra
coisa. E falam cantando claro, porque são cantores e tudo, e tem uma porção de
gente diferente. É fácil perceber isso porque as vozes são diferentes e porque
eles cantam em uma porção de línguas.
Outro dia mesmo tinha um homem gordo cantando
em alemão. Eu sei que era alemão porque a mãe disse, e sei que era um homem
gordo porque tinha um vozeirão, igual ao Miguel Italiano, que é gordo. Mas acho
que o Miguel Italiano não vai cantar no rádio nunca, porque eu nunca vi ele
cantando. Acho que ele não deve gostar de cantar.
Quando eu era pequeno, achava que dentro do
rádio tinha uns homens e umas mulheres bem pequeninos, e que a gente fazia a voz
deles sair dando umas voltas no ponteiro.
A gente quando é pequeno pensa numa porção de
bobagens. Agora que eu cresci um pouco, quer dizer, que sou muito maior do que
quando eu era pequeno, sei como é isso do rádio. Os homens e mulheres em outra
casa, longe daqui, e a voz deles vem pela tomada. A gente liga o fio do rádio
na tomada, e daí aparece a voz deles. Por isso é que tem tanto fio na rua: a
luz e o rádio vêm pelos fios que estão pendurados nos postes.
A gente até que tem um rádio bacana em casa,
e a mãe às vezes põe uma toalhinha em cima dele e um vasinho com uma flor
dentro, e depois passa um pano para tirar o pó; quando eu crescer e tiver uma
casa e uma mulher, vou logo pedir pra ela cuidar bem do rádio, igual a mãe.
Eu vou querer um rádio parecido com o nosso.
Só não quero de madeira escura: vou querer um rádio branco. Não sei se isso é
bom; rádio branco deve ser que nem calça branca: suja muito. Por isso, é melhor
não deixar ninguém chegar perto do rádio.
Vou gostar tanto do meu rádio que se minha
mulher tiver um filho que nem minha mãe teve eu, vou dizer para ela não deixar
ele mexer no rádio.
A gente casando sempre pega filho. Quer
dizer, a vizinha Eulália casou há muito tempo, minha mãe disse outro dia não
sei para quem que a Eulália leva mais de dez anos de casada, e eu nem tenho dez
anos ainda, por isso não sei quando ela casou, mas dez anos é muito.
A vizinha Eulália não é mãe de ninguém. Vai
ver que eu caso e minha mulher também não vira mãe de ninguém. Porque eu sei
que se minha mulher virar mãe, morro depois de dois meses.
Aqui em casa aconteceu isso: eu nasci e meu
pai morreu dois meses depois. A mãe vive falando para todo mundo que foi só eu
nascer para meu pai morrer. E diz também, quando fica brava, que eu sou um
peste endiabrado, e coisa bonita isso não deve ser, porque ela diz também “coisa
ruim” para mim. A mãe vive brava.
Eu acho melhor não ter filho nenhum, senão eu
morro depois de dois meses e minha mulher vai dizer “coisa ruim” para ele e ele
vai ficar triste e não vai querer nem ouvir rádio nem nada, porque eu gosto de
ouvir rádio mas de repente aparece uma mulher com a voz fininha e eu lembro da
mãe. E fico pensando que está cheio de gente de voz fininha pelo mundo e deve
ser tudo gente brava.
O Ivan não tem rádio mas o Ivan tem pai. Ele
disse para mim que o pai tem uma voz grossa e conversa com ele, mas não é
gordo.
Eu acho que preferia ter pai do que ouvir
rádio. Mas não sei isso direito, porque eu gosto tanto de ouvir rádio e de
repente arranjava um pai bravo, daí não sei.
O Ivan quando vem aqui em casa fica ouvindo
rádio comigo e ele sabe ler mais depressa e fala Telefunken mais depressa do
que eu.
Quando eu casar vou comprar um rádio branco e
ficar ouvindo as histórias que contam de noite. E daí, se minha mulher pegar um
filho e eu achar que só levo mais dois meses de vida, pego e vendo o rádio para
não deixar para ele.
Se minha mulher pegar um filho e eu achar que
só tenho dois meses de vida, levo o rádio comigo.”
(1973)
“AS CARTAS
Agora, já não. Mas teve uma época em que
escrevíamos cartas. Era um tempo bom, e me lembro. Jamais pude vencer a memória: ela continua viva, e devolve
as coisas quando quer. Devolve, por exemplo, o tempo das cartas.
Eram cartas
estranhas, escritas por uma moça estranha. Eu recortava trechos das
cartas da moça, e depois colava esses trechos em folhas de papel, e depois ia
recortando as folhas e colando os recortes em outras folhas, armando mosaicos. No fim, não sabia mais em
que ordem tinham sido recortadas, e do mosaico nasciam outras cartas, que eu
então respondia.
De tudo o que ela me escreveu naqueles meses
todos fiz cartas que falavam de ruas e
esquinas, igrejas e rostos e
luzes, e uma desesperança infinita aparecia de vez em quando, principalmente
nos trechos em que surgiam coisas que não fizemos nunca. As cartas que armei
das cartas que ela me mandou nos devolveram a areais sem fim e a noites de chuva, nos devolveram a quartos de janelas abertas e nos
devolveram a camas desconhecidas,
e nas cartas que armei das cartas que ela me escreveu venci batalhas em que eu era sempre jovem e percorri laranjais com meu avô e bosques de eucalipto
em tardes de um outono sem chuvas.
Um dia fiquei esperando. Foi minha, a última carta: a resposta não chegou
nunca.
Era um mês de maio em Madri e eu queria armar uma estranha carta definitiva onde caminharíamos juntos, cheios de
preguiça, perseguindo um sol
esbranquiçado em esquinas de ruas com nomes como os das ruas da
infância: ruas que se chamavam da Amargura,
do Peixe Voador, dos Perigos, da Lua.
Passou um tempinho e mandei duas linhas para o endereço de sempre, dando o nome de uma
cidade da fronteira e um número de telefone.
Certa madrugada ela chamou. Pedi a ela que fosse me ver na fronteira. Das cartas,
não dissemos nada: seu tempo começava a ser morto e não se fala de tempos
mortos. Pedi a ela que fosse até a fronteira e ela não viajou daquela vez, nem
viajou nas outras, quando eu chamava por telefone no meio da noite.
Um dia, disse: “Penélope quis ser Ulisses, não conseguiu.”
Nos vimos muitos meses depois, almoçamos e dissemos que tudo ia bem, e
depois ela pediu que fôssemos até sua casa. Eu queria nascer e crescer dentro
dela.
Deixei-a caminhar na minha frente e era bom ver seu caminhar. Eu diminuía o
passo para vê-la mergulhar no meio das pessoas. De repente, em uma esquina, ela
parou e deu a volta para ver onde eu tinha ficado. Atrás dela ficou o sol e
jogou uma luz estranha em seus
cabelos e atravessou, impune, sua saia. Ela sorriu à minha espera.
Ainda sorria quando cheguei ao seu lado. Continuamos
caminhando um pouco mais. E então ela disse: “Foi bom ver você.”
E eu entendi que nunca mais. Quando voltei
para a fronteira, recortei as folhas onde tinha colado os recortes de outras
folhas com recortes das cartas, e armei enfim uma carta cheia de fúria e
tristeza, que naquela mesma tarde pus no correio.
Isso tudo aconteceu pouco antes do verão,
aquele verão de chuva e caminhadas pela praia, caminhadas solitárias, aquele
mesmo verão em que eu estava caminhando pela praia quando Eduardo chegou
correndo para dizer que ela tinha disparado uma pequena Beretta contra o
queixo.”
(1982)
“Foi mais ou menos naquela época, há uns dez
ou doze anos, que passei a dedicar uma atenção cada vez maior a meus gestos,
minha maneira de escolher a roupa, de apurar com cuidado quase místico as
gravatas, aparar com rigor os cabelos, de reparar cuidadosamente no ciclo de
cada camisa para evitar repetições, falhas imperdoáveis.
Descobri, enfim, que a elegância pode ser,
mais do que qualquer outra coisa, a melhor defesa, o disfarce mais eficaz para
a decadência.”
(1982)
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