Editora: Paulus
ISBN: 978-85-349-4081-8
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 268
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Sinopse: Ver Parte
I
“Puntel parte de uma tese básica: o empreendimento teórico, que já no início
de uma tradição de mais de dois mil anos se denominou filosofia, sempre se
interpretou a partir de sua intenção, de sua autocompreensão e de suas
produções como um saber abrangente e de caráter universal, o que não é mais o
caso no pensamento contemporâneo que, antes, caracteriza-se por ser
fragmentário. Seu objetivo fundamental é retomar esse caráter sistemático da
filosofia, ou seja, articular a teoria filosófica como uma teoria da totalidade
do ser, como uma concepção global da realidade, que possui, por isso, duas
características básicas: a completude da temática e a demonstração das conexões
entre todos os componentes temáticos.
Isso
será feito, contudo, não através de um simples retorno a uma das formas em que
o saber abrangente se articulou em nossa tradição de pensamento, mas a partir
de uma posição estritamente sistemática, no sentido de que enfrenta as questões
em si mesmas e não simplesmente através de referências à história do
pensamento, e que, ao mesmo tempo, pretende pôr-se no nível teórico que
atingimos em nossos dias, o que permite à filosofia recuperar sua tarefa
originária própria e desenvolver plenamente suas potencialidades.
O
enfrentamento dessa problemática é levado a cabo por Puntel a partir de uma
afirmação fundamental: a filosofia é um tipo específico de teoria. Puntel
distingue três atitudes originárias do ser humano perante seu mundo: a teoria,
a prática e a estética. Uma teoria é uma espécie de entidade abstrata que de
alguma forma mostra um relacionamento com o mundo (ou com uma parte ou um
fenômeno do mundo). Na formulação de Wittgenstein podemos dizer que uma teoria
explicita como o mundo se comporta. Normalmente se diz que uma teoria diz algo
sobre o mundo, explica algo sobre o mundo, articula algo sobre o mundo ou algo
no mundo. (...)
Ora, as
teorias enquanto tais efetivam, para ele, uma redução da linguagem humana a um
de seus objetivos fundamentais, ou seja, à apresentação do mundo, que constitui
precisamente o específico da teoria em relação às outras duas dimensões
fundamentais da vida humana. Se toda atividade humana tem uma conexão com o
mundo, trata-se, no caso específico da teoria, de uma relação que antes de tudo
se articula no seio da linguagem com uma meta determinada: a apresentação do
mundo. Para a compreensão adequada desse objetivo, faz-se necessário atender à
distinção entre linguagens naturais –
normais, utilizadas pelos diversos grupos humanos, e que são caracterizadas em
primeiro lugar como processos de comunicação – e linguagens artificiais – as construídas, que
possuem como objetivo central a apresentação descritiva ou teórica do mundo.
As
linguagens naturais contêm, certamente, também de modo muito parcial ou
reduzido, a dimensão da apresentação do mundo e com isso possuem, pelo menos
implicitamente, elementos teóricos. Todos esses elementos estão aqui, contudo,
submetidos à finalidade específica dessas linguagens, que é a comunicação
intersubjetiva. No nível das teorias, no sentido estrito, sucede a
transformação: apesar de nelas estarem presentes elementos de comunicação, sua
finalidade própria é a apresentação do mundo. O que justamente especifica a
teoria é uma linguagem centralizada na apresentação do mundo, e a diferença se manifesta
no fato de que uma linguagem em que há primazia da dimensão comunicativa se
centraliza na relação com os outros parceiros. Na teoria, é a “coisa” que passa
para o primeiro plano. (...)
A compreensão do papel que a linguagem ocupa
na filosofia é o resultado, como vimos, de uma consideração por parte de Puntel
da reviravolta pós-transcendental que a filosofia analítica realizou e que pôs no
centro da filosofia a lógica, a linguagem etc. Assim, a linguagem não só tem um
papel importante, mas central, o que constitui uma das teses básicas do
pensamento contemporâneo. Daí por que uma das primeiras tarefas de uma
filosofia sistemática consiste em desenvolver explicitamente o conceito de uma
linguagem filosófica e de seus traços básicos.
Filosofia é entendida aqui estritamente
enquanto teoria, mas antes de tudo é necessário esclarecer a dimensão teórica
em geral e a concepção de uma teoria filosófica em particular. Nesse contexto,
uma das questões básicas é a tese de que toda formulação de um problema, toda
interrogação teórica, todo enunciado teórico, toda argumentação, toda teoria só
é compreensível e avaliável no contexto de um “quadro teórico”, e do contrário
tudo permanece vago e indeterminado.
Um quadro teórico implica sempre uma
diferença específica entre dois lados ou aspectos: a diferença entre o quadro
referencial em cujo centro está o conceito de “estrutura” (a dimensão
estrutural), e aquilo que o quadro contém ou representa. A relação entre essas
duas dimensões, que constitui a ideia básica da filosofia
sistemático-estrutural, não é entendida aqui como no caso de um sistema formal
não interpretado: um quadro teórico científico ou filosófico “é, antes, um
instrumento que permite apreender, compreender e explicar algo (um nexo, um
domínio objetual...). A formação de uma teoria filosófica consiste em trabalhar
a interconexão entre a dimensão dos dados e a dimensão das estruturas de tal
forma que as estruturas afinal emergem como estruturas dos dados, ou os dados
são incluídos na dimensão das estruturas. Dentro de ou por intermédio de um
quadro teórico se faz referência a algo”.90
Esse “algo” é aqui, num primeiro momento,
denominado “dado” num sentido técnico, ou seja, o que no início de um
empreendimento teórico é expresso por sentenças pré-teóricas ou
incoativo-teóricas. Dessa forma temos, de um lado, a imensa dimensão das
estruturas (com tudo o que a ela pertence: subjetividade, conhecimento,
conceito, espírito, linguagem, entidades ideais, teorias etc.), e, do outro
lado, o mundo dos dados, o mundo objetivo, o ser objetivo que constitui o
enorme campo dos entes individuais, dos campos de entes de todos os tipos.
Esses dados são, enquanto tais, ainda teoricamente indeterminados ou
subdeterminados. Sua maior determinação ocorre precisamente através de sua integração
numa conexão estrutural. Nesse nível da exposição, a dimensão estrutural e a
dimensão dos dados emergem como os dois polos de uma relação. Daí por que um
quadro referencial teórico científico ou filosófico contém elementos que não
são de natureza puramente formal, mas também elementos “materiais”, isto é, com
conteúdo.
A cada quadro teórico pertencem, enquanto
momentos constitutivos, uma linguagem, com sua sintaxe e sua semântica; uma
ontologia; uma teoria do ser; uma lógica e uma conceitualidade, com todos os
componentes que constituem um aparato teórico. Ora, há, de fato, uma
pluralidade de quadros teóricos, e cada quadro teórico possibilita sentenças
verdadeiras, mas não no mesmo nível. São verdades relativas ao quadro teórico
em questão, e, para Puntel, essa relatividade constitui uma forma específica de
um relativismo moderado e isento de contradições.
Se a filosofia se caracteriza por um tipo específico
de teoria, o que constitui sua forma própria de teoria? Enquanto ser
espiritual, o ser humano se distancia de tudo e se situa na esfera da universalidade, enquanto nomeia,
conceitua, objetiva, distingue seus objetos em partes e elementos e os
sintetiza. H. G. Gadamer91 exprime isso
dizendo que não existe um campo fechado do que se pode dizer, ao lado do campo
do indizível, porque a linguagem é oniabrangente. Nada existe que se subtraia
ao poder ser dito: os limites da linguagem ocorrem no seio da própria
linguagem.
Por poder distanciar-se de tudo, o ser humano
se revela, então, não como a simples coincidência com o ser enquanto tal, mas
antes como o ente da pergunta pela totalidade do ser como a instância de
expressão da inteligibilidade universal. Essa é uma tese básica da tradição da
filosofia ocidental. Assim, Aristóteles92
afirma, a respeito do espírito ou do pensamento, que ele de certo modo é tudo.
“O espírito é correlativo ao ser como totalidade inteligível”,93 sua estrutura própria se constitui pela
abertura ilimitada ao ser: pensar, como já viram os gregos, significa sempre
pensar tudo (πάντα νοειfiν). Tudo é em princípio pensável, inteligível,
cognoscível, assim que se deve dizer que a totalidade do ser é simplesmente
dada com o estatuto ontológico do
espírito humano, isto é, do ser subjetivo enquanto ser espiritual e, enquanto
tal, ela constitui a condição de possibilidade do conhecimento de qualquer entidade.
Aqui a própria formulação já manifesta a superação
radical do dualismo articulado por Kant e ainda hegemonicamente presente em boa
parte da filosofia contemporânea. No horizonte da superação da dicotomia, como
Puntel articula, compete ao sujeito enquanto espírito uma co-extensionalidade intencional com o universo ou com o ser,94 com aquele “todo que abrange
simplesmente tudo”,95 não só com o
universo existente, pois a potencialidade do espírito vai além do existente, na
medida em que inclui todas as possibilidades de infinitos outros universos não
realizados precisamente enquanto são inteligíveis.
Ora, o ser humano é e, enquanto tal, pertence
também ao universo. E, se pertence ao universo, ao mundo, ao ser, então,
pertence também ao ser tudo o que ele faz, tudo o que ele realiza.96 Assim, o conhecimento e a ação humanos
não são em primeiro lugar algo realizado por um sujeito, mas um estado de
coisas no mundo; são, portanto, partes do mundo, da natureza, do universo.
Evidentemente, de nenhuma forma se nega aqui que o conhecimento seja algo
também produzido por um sujeito, mas que ele consista primária ou
fundamentalmente nessa efetivação subjetiva. Em sua significação originária, o
conhecimento é, na realidade, um modo de manifestação, de expressão do mundo,
do ser.
Isso implica precisamente a superação da
dicotomia total entre o sujeito (o cognoscente, o teórico) e a natureza, o
mundo, o ser em sua totalidade. Essa tese tem implicações de grande
importância, porque na realidade constitui uma mudança radical de perspectiva,
uma reviravolta da “reviravolta copernicana” de Kant, da postura
transcendental, que levou à centralidade do sujeito no pensamento filosófico.
Nesse horizonte, toda a dimensão teórica (conceitos, teorias etc.) se revela então
como sendo uma parte do universo, como parte do Ser em sua totalidade: a teoria
também é, é ser, é parte do ser em seu todo, ela é uma forma de manifestação do
ser.
A mudança em relação à concepção da
subjetividade que daqui decorre é radical, já que na medida em que ela é
coextensiva ao ser em seu todo, ela se revela como uma subjetividade universal,
a instância em que o todo se expressa. Se o ser em sua universalidade é
expressável, então a essa universalidade deve corresponder uma instância de sua
expressão igualmente universal (linguagem, espírito, sujeito): só a partir
daqui se tem uma concepção adequada da subjetividade e de seu lugar no universo.
Esta é a resposta de Puntel ao grande desafio
articulado por McDowell como a questão central do pensamento contemporâneo:
ultrapassar a separação entre pensar e ser, já que o grande empecilho para a exposição
do mundo enquanto totalidade do ser, tarefa própria da filosofia, é, no
pensamento contemporâneo, precisamente esse abismo insuperável entre a dimensão
do sujeito e a dimensão da realidade. Isso leva a concentrar toda a esfera do
conhecimento, do conceitual, no polo subjetivo dessa dualidade.
A filosofia crítica de Kant se radica nessa
dicotomia rígida que tem suas raízes na escolástica tardo-medieval97 e que continua hegemônica no pensamento
contemporâneo.”
90. Cf. PUNTEL,
L. B. Estrutura e Ser. Op. cit., p. 29.
91. Cf.
GADAMER, H. G. “Mensch und Sprache“.
In: Gesamte Werke II. Tübingen: Mohr,
1986, p. 152. Tradução em português de: Maia-Flickinger, M. em: ALMEIDA, C. L.
de; FLINCKINGER, H.-G.; ROHDEN, L. (orgs.).
Hermenêutica Filosófica. Nas Trilhas de Hans-Georg Gadamer. Porto Alegre: Edipucrs,
2000, p. 125.
92. Cf. De anima III. 8. 431 b 21: “ή ψυχή τά όντα πωfiς
έÃστι πάντα”. E que o sábio sabe tudo. Met. A 2 982 a 8. Cf. a respeito:
MÜLLER, M. Philosophische Anthropologie.
Op. cit., p. 43 e ss. Para Leibniz, o
ser humano é uma mônada, cuja especificidade consiste em espelhar ou
representar o todo. Cf. LEIBNIZ, G. W.
Monadologie. Französisch/Deutsch. Stuttgart: Reclam, 1998, p. 62-63; 83.
93. Cf. LIMA VAZ, H. C. de. Antropologia Filosófica I. Op.
cit., p. 211. Lima Vaz procura mostrar aí as origens platônicas dessa afirmação.
Daí a tensão fundamental que marca o ser humano. Cf. HERRERO, F. J. “A
recriação da tradição na antropologia filosófica de Pe. Vaz”. Síntese. Revista de Filosofia, v. 30, n.
96, 2003, p. 8: “Pois o ser do homem surge numa tensão entre a finitude e
limitação da situação (eîdos), por um
lado, e a infinitude ou ilimitação que aparece no ato de afirmação pela qual o
sujeito se põe (thésis) a si mesmo no
horizonte ilimitado do ser”.
94. Cf. PUNTEL, L. B.
“A Totalidade do Ser, o Absoluto e o tema ‘Deus’”. Rev. port. de Filosofia, 60, 2004, p. 306-309.
96. Cf. PUNTEL, L. B.
Estrutura e Ser. Op. cit., p. 535.
97. Cf. LIMA VAZ, H. C. de. Raízes da modernidade. São Paulo: Loyola, 2002.
“A
conclusão que se pode tirar de tudo o que foi dito até agora é que a linguagem
tem um lugar simplesmente central numa teoria filosófica. Apel trata dessa
problemática no contexto do desafio da transformação da filosofia
transcendental, que para ele consiste basicamente numa mudança de seu esquema
básico. Trata-se para Apel da passagem de uma filosofia da consciência, baseada
na relação sujeito- objeto, para uma filosofia da linguagem, cujo centro é a
relação sujeito-sujeito. Transforma-se a compreensão do conhecimento, que agora
é entendido enquanto produto de um processo interativo do entendimento
linguisticamente mediado, ou seja, trata-se no fundo de uma nova concepção de
verdade, entendida, então, como a formação intersubjetiva de consenso na base
de um entendimento linguístico (argumentativo).
No
entanto, o elemento decisivo nesse processo de transformação é a mudança na
própria compreensão da linguagem em relação a toda a tradição do pensamento
ocidental, e é isso precisamente que vai exigir essa transformação da
filosofia. Segundo Apel a tradição ocidental pensou a linguagem precisamente
como um instrumento, um meio de designação e comunicação de um conhecimento
realizado sem ela. O que constitui em última análise a reviravolta linguística
é a compreensão de que a linguagem não se reduz a um instrumento de comunicação,
mas constitui a mediação fundamental de nosso acesso ao mundo. Dessa forma a
linguagem não é simplesmente um objeto empiricamente dado a ser analisado como
qualquer outro objeto, mas a esfera em que todos os objetos nos são dados, ou seja,
ela é condição de possibilidade e validade da compreensão e da autocompreensão
e com isso do pensamento conceitual, do conhecimento de objetos e da ação
sensata.112
Assim,
todo conhecimento e toda ação no mundo são mediados linguisticamente, o que
significa dizer que a linguagem articula todo o âmbito da experiência humana.
Numa palavra, a linguagem é a condição, o pressuposto de todo conhecimento
possível e válido, e a aceitação desta tese configura, para Apel, a articulação
de um terceiro quadro fundamental para a filosofia, em substituição aos dois
anteriores, ou seja, a filosofia do ser (metafísica) e a filosofia da consciência
(filosofia transcendental anterior à reviravolta linguística).
Puntel
defende também a tese da centralidade da linguagem na filosofia a partir,
porém, de uma postura pós-transcendental. A filosofia enquanto teoria é uma
exposição, uma articulação de saber, o que só pode ocorrer através de sinais
palpáveis. Já foi dita a razão que justifica essa tese básica: o que possa ser
aquela dimensão que se costuma denominar mundo/realidade/coisa mesma, ela
possui de qualquer forma uma expressabilidade plena, sem a qual a teoria seria
destituída de sentido. Ora, a expressabilidade só pode ser concebida como uma
relação que implica uma relação inversa: a relação de expressar o que, por sua
vez, implica uma instância que expressa – que é precisamente a linguagem que,
assim, revela-se como um sistema semiótico da expressabilidade universal do
mundo. Essa instância expressante contém tanto símbolos como conceitos, ou
seja, o que é expresso por esses símbolos. Então, deve-se dizer que a expressabilidade
universal do ser implica a dimensão do linguístico e do conceitual, que dessa
forma se revelam como não sendo algo fora da dimensão do ser.
Dessa
forma, tudo o que é conteúdo conceitual é articulado no seio da linguagem. Isso
implica também como em Apel, embora em sentido fundamentalmente diferente,
ocorre uma mudança radical na concepção de linguagem. Linguagem não é entendida
como um meio para exposição ou expressão de conteúdos conceituais que de algum
modo “existem” ou são “possuídos” independentemente da linguagem. Antes,
linguagem constitui meio indispensável da
expressão ou exposição, uma vez que, se compreendidos adequada e rigorosamente, os assim chamados “conteúdos conceituais”
não existem sem sua articulação linguística. Isso significa dizer que os
conteúdos conceituais, embora entidades não linguísticas, são dependentes da
linguagem na medida em que são articuláveis; portanto, sua articulação
linguística é um ingrediente essencial dos conteúdos conceituais.”
112. Cf. APEL, K.-O. Der transzendentalhermeneutische Begriff der
Sprache. Op. cit., p. 333.
“5.1 “VISÃO DE CONJUNTO DA PROPOSTA DA FILOSOFIA SISTEMÁTICO-ESTRUTURAL
A
filosofia se caracteriza por ser uma teoria das estruturas universais do
“universo do discurso” ilimitado, o que implica integralidade da temática e a
demonstração do nexo entre todos os componentes temáticos; ou seja, ela é
fundamentalmente uma teoria geral da realidade como um todo. Dessa forma, sua
primeira tarefa vai consistir no esclarecimento do conceito de teoria em geral
e da teoria propriamente filosófica, ou seja, trata-se da sistemática da teoricidade
como a dimensão da exposição filosófica. O conceito central nesse
esclarecimento é justamente o conceito de “quadro referencial teórico” (ou
modelo teórico, Theorierahmen),
inspirado no conceito de quadro linguístico (linguistic framework) de Carnap, uma vez que todo enunciado
teórico, toda formulação de um problema, toda argumentação, toda teoria, só são
compreensíveis e avaliáveis no contexto de um quadro teórico. Trata-se aqui
especificamente da proposta de trabalho de um quadro teórico para a filosofia
enquanto saber sistemático, ou seja, enquanto teoria das estruturas universais
do “universo do discurso” ilimitado – portanto, da totalidade do ser.
O
objetivo de um projeto teórico é exprimir a compreensão de algo, ou seja, do
conteúdo, da coisa em questão que, no caso da filosofia, recebeu diferentes
denominações através da história do pensamento ocidental: ser, realidade,
natureza, universo, mundo etc. Para Puntel, como vimos, justamente aqui se
encontra um possível critério de classificação das diferentes posições
filosóficas, uma vez que elas podem ser diferenciadas a partir da forma como
pensam a relação entre a esfera do conceitual e a coisa a ser conceituada. A
pergunta, então, é se o conceitual é determinado a partir da coisa a ser
conceituada ou, ao contrário, a partir de duas posições extremas – que
normalmente não encontramos nessa formulação radical de contraposição, mas em
geral em formas mistas –, o que se pode mostrar até mesmo no pensamento de
Kant, que em seu cerne se alicerça na dicotomia sujeito/objeto.
A proposta
de uma filosofia estrutural parte da compreensão de que, no começo do
empreendimento teórico, a dimensão da coisa a ser conceituada é vazia, enquanto
que nos é disponibilizada em primeiro lugar a dimensão do conceitual, pois tudo
o que fazemos em nível teórico já se situa nela, sem o que nada pode ser
articulado. Por essa razão a investigação dessa dimensão, a tematização de seus
momentos constitutivos, enquanto o quadro para a conceituação da coisa em si
mesma, é a primeira tarefa da filosofia. Puntel denomina a dimensão do
conceitual de “dimensão estrutural” e nesse contexto ele entende “estrutura”185 como uma conexão diferenciada e
ordenada, consequentemente enquanto relação e ação recíproca de elementos de
uma entidade, de uma região ou de um processo. A estruturalidade implica a
negação do simples ou da falta de conexão, e, nesse sentido intuitivo
originário, estrutura constitui o conceito originário ou o fator primeiro de
qualquer empreendimento teórico.
O quadro
referencial teórico abrangente é constituído por dois tipos de estruturas: as
estruturas formais e as estruturas de conteúdo. As estruturas constituem o
cerne do quadro teórico e são o resultado da tematização dos três componentes
essenciais que constituem um quadro teórico: a lógica, a linguagem (a
semântica) e a relação à realidade (a ontologia). As estruturas formais são as
estruturas lógicas e as matemáticas, e as estruturas de conteúdo são as
semânticas e as ontológicas. Essa diferenciação foi compreendida na tradição
moderna como manifestação da dicotomia entre linguagem e realidade.
No
contexto de uma filosofia sistemático-estrutural, uma vez eliminada a
dicotomia, ela é interpretada como distinção entre níveis estruturais, isto é,
entre o nível mais universal – as estruturas lógicas e matemáticas que
constituem a textura interna de cada discurso e de cada realidade – e o mais
concreto – as estruturas semânticas e ontológicas. As estruturas formais,
lógico-matemáticas, constituem o “expressum”
de sentenças lógico-matemáticas; portanto, constituem o conteúdo dessas
sentenças, nesse caso um conteúdo formal.
Pode-se
exprimir toda essa problemática, segundo Puntel, numa fórmula curta, afirmando
que “tudo é estrutura”, porém não no mesmo degrau, o que implica dizer que há
estruturas intermediárias entre os extremos. A questão fundamental que se põe
aqui é: qual é o quadro estrutural fundamental para a conceituação da
totalidade do ser, do universo ilimitado do discurso, ou seja, que estruturas
uma linguagem filosófica tem de ter? Que estruturas exprimem a inteligibilidade
da totalidade do ser? Numa palavra, quais são as estruturas fundamentais lógico-matemáticas,
semânticas e ontológicas que constituem o quadro de expressão da inteligibilidade
da totalidade do ser?
Os dois
tipos de estruturas, as formais (lógicas e matemáticas) e as de conteúdo
(semânticas e ontológicas), constituem a dimensão estrutural fundamental e
incluem tudo aquilo que na linguagem filosófica usual hoje é designado por
conceitos como linguagem, aparato conceitual, aparato teórico, instrumental
teórico etc. As estruturas constituem a dimensão da expressabilidade do
universo. Dessa forma, o eixo de uma teoria filosófica é constituído pelas
estruturas semânticas, porque sua especificidade é a configuração da relação
linguagem-mundo: as expressões linguísticas significam e expressam algo.
Linguagem é sempre linguagem de algo, e o mundo é sempre mundo que se expressa
na linguagem, a instância de sua expressabilidade. Daí o papel fundamental que
a linguagem tem numa teoria filosófica, e compete à filosofia esclarecer as
implicações da linguagem para o tratamento dos problemas filosóficos. Entre as
implicações mais importantes estão justamente as implicações ontológicas.”
185. Cf. PUNTEL, L. B. Estrutura e Ser. Op. cit.,
p. 34.
“Como se deve entender, tematizar, conceitualizar, compreender, articular
“ser” enquanto a dimensão originária, como a conexão abarcante de
pensamento/espírito/linguagem e mundo/universo/ser,193
como a dimensão primordial? A primeira tarefa consiste em explicar o ser
enquanto tal. A proposta de Puntel é que se leve em consideração como a
dimensão do ser foi metodologicamente introduzida como dimensão primordial.
Quais são os pressupostos e as implicações dessa introdução? É a resposta a
essa questão que torna possível esclarecer os traços fundamentais do ser
enquanto tal. O ponto de introdução se revela como relacionamento do espírito
humano ao ser enquanto tal. Há três formas básicas de relacionamento do espírito
humano com o ser enquanto tal: a relação teórica, a prática e a estética. No
espírito humano correspondem a esses relacionamentos três faculdades: o
intelecto, a vontade e a faculdade estética. A essas três formas de
relacionamento e respectivamente a essas três faculdades correspondem, no ser
enquanto tal, momentos estruturais ou características fundamentais.
À
faculdade do intelecto correspondem três momentos estruturais. O primeiro é a expressabilidade universal do ser que
resulta da centralidade da linguagem numa teoria filosófica. Na exposição da
proposta da filosofia sistemático-estrutural, o universo do discurso emergiu em
última instância como o ser enquanto tal. Ora, o universo do discurso pressupõe
que ele seja expressável, articulável. O segundo momento é a inteligibilidade absolutamente
universal, que é, assim, coextensiva com o ser enquanto tal. A palavra
inteligibilidade, nesse contexto, exprime os diferentes modos do conceituar, do
compreender, do explicar o ser e, assim, o momento conceituável, compreensível e
explicável do ser. Todo empreendimento teórico só tem sentido se seu objeto for
inteligível.
A
dimensão do ser se manifesta como a conexão universal que inclui toda a
dimensão do pensamento/espírito/linguagem. Seria, por isso, impensável que ela
se situasse fora do pensamento/espírito/linguagem. Enquanto o ser enquanto tal
se manifesta essencialmente enquanto essa constelação, ele é acessível a
pensamento/espírito/linguagem. É precisamente esse “ser-acessível-a” o que constitui
a inteligibilidade da dimensão do ser: o ser é, por isso, conceituável,
explicável, compreensível. É esse o sentido da tese da tradição da identidade entre
ser e pensar;194 e, assim, a dimensão
originária é compreensível, conceituável, cognoscível – portanto, princípio
universal da inteligibilidade de tudo.195
Essa é a razão por que todo ou qualquer ente é, em princípio e na medida mesma
em que é, inteligível, portador de um logos, de uma estruturalidade imanente.
Por fim, na medida mesma em que a dimensão originária é a inteligibilidade
originária e a conexão originária entre tudo, então ela é a coerência universal, a estruturalidade
universal, raiz de toda e qualquer estruturação, a estrutura originária e
abrangente, pois conceber, compreender, articular, explicar algo significa essencialmente
captar a conexão e com isso a coerência em que esse algo se encontra. Nesse
sentido, coerência significa sistematicidade.
Uma
quarta característica fundamental, imanente, estrutural, distingue-se das que
foram apresentadas, já que elas se revelaram a partir da explicação do ser
primordial com respeito ao intelecto. Agora emerge uma quarta característica à
medida que se explica o ser primordial com respeito à outra faculdade humana equioriginária
ao intelecto, ou seja, a vontade. Para designar esse momento estrutural, a grande
tradição metafísica196 usou as palavras “bem”
ou “bom”; esse momento foi considerado a partir da vontade como seu objeto formal,
isto é, como o ponto de vista a partir do qual a vontade se relaciona com todos
os seus objetos. Sob o ponto de vista do ser, a bondade foi considerada como aquele momento estrutural que corresponde
à vontade. Numa palavra, o que quer que queira a vontade em cada caso, ela o
faz sempre a partir da perspectiva do bem, pois é justamente esse relacionamento
ao bem o que define a vontade enquanto vontade. Assim, o quarto momento
estrutural do ser pode ser designado como “bondade
universal“; a dimensão originária é, então, a fonte de toda e qualquer amabilidade
dos entes, ou seja, o fundamento de todo e qualquer bem197
e o princípio imanentemente presente em qualquer bem e, igualmente, transcendente
a tudo.
Na
tradição metafísica, um quinto momento estrutural foi denominado beleza. Esse momento estrutural foi
determinado a partir da ideia de consonância dos outros momentos estruturais do
ser, o que é uma forma de pensar a unidade dos momentos estruturais.
A partir
daqui surge a questão da compreensão da totalidade
enquanto tal, ou seja, de uma explicação holístico-argumentativa-conceitual
da totalidade do ser, do ser em seu todo, o que vai conduzir a uma compreensão da
totalidade como constituída por uma dupla dimensão: uma dimensão absoluta (ou
absolutamente necessária) e uma dimensão não absoluta, isto é, contingente. Num
passo seguinte se revela que a dimensão absolutamente necessária tem de ser pensada
como ser espiritual ou pessoal absolutamente necessário e, por isso, deve ser
pensada mais precisamente como liberdade absoluta, de tal modo que a questão
aqui é de como deve ser compreendida a relação entre o ser livre absolutamente
necessário e a dimensão contingente dos entes. A dimensão contingente é,
enquanto tal, totalmente dependente da dimensão absolutamente necessária.
Isso
significa dizer que os entes contingentes não são necessariamente, eles não são
a partir de si mesmos, o que significa dizer que o fato de que “eles são” não é
explicável a partir deles mesmos. Se os entes contingentes não vieram a ser a partir
de si mesmos ou através de si mesmos, eles vieram a ser a partir de outro fator
que só pode ser de acordo com tudo o que já foi dito: o ser absolutamente
necessário. Sendo o ser absolutamente necessário a “liberdade absoluta”, a
dimensão contingente do ser veio a ser através da liberdade absoluta do ser
absolutamente necessário.
“O absoluto-pôr-no-ser-efetuado-pelo-ser-absolutamente-necessário-livre-visando-à-dimensão-contingente,
no sentido esclarecido, é o que significa a ideia da criação adequadamente
articulada.”198 Determinações maiores
dessa esfera primordial são possíveis, para Puntel, na medida em que a
filosofia se volta para a história, para a história da humanidade e de modo
muito especial para a história das religiões, que manifestam a pretensão de
articular as ações livres da dimensão absolutamente necessária na história
humana.”
193. Cf.
PUNTEL, L. B. Estrutura e Ser. Op. cit., p. 550 e ss.
194. O que, no ser finito, é apenas identidade relativa, intencional;
isso significa que aqui o conhecer é fazer emergir o outro na interioridade do
sujeito, numa identificação formal e não real com ele. Cf. CORETH, E. Metaphysik. Eine methodisch-systematische Grundlegung.
Innsbruck/Viena/Munique, 1964, 2ª ed., p. 358.
194. LIMA
VAZ, H. C. de. Antropologia. Op. cit.,
p. 223: “No homem o espírito é formalmente
idêntico ao ser universal, sendo capaz de pensá-lo. Mas é realmente distinto dos seres na sua
perfeição existencial : a eles pode livremente inclinar-se, mas não realmente
identificar-se com eles, o que configura o paradoxo profundo da contemplação e
do amor”. OLIVEIRA, M. A. de. “Filosofia
enquanto autorreflexão da razão”. In: A
Filosofia na Crise da Modernidade. São Paulo, 1989, p. 135: “A realidade se
manifesta aqui na interioridade do sujeito, pois o processo do conhecimento, a
teoria, aparece essencialmente como um processo de interiorização da realidade [...]. Essa dimensão é antes de tudo
uma dimensão de manifestação, pois é à medida que algo se interioriza que ele
manifesta o próprio sentido [...]”.
195. ARISTÓTELES. De Anima, III, 431b 21. Cf. AQUINO, T.
de. De Veritate, q.1 a 1c. MARC, A. La Dialectique de l’Affirmation: essai de Métaphysique
réflexive. Paris, 1952. CORETH, E. Op.
cit., p. 354. LIMA VAZ, H. C.
Antropologia Filosófica II. São Paulo, 1992, p. 104: “Presença que se descobre
[...] transcendental, porque nessa e
por essa intuição da presença do ser, a inteligência vê aberto o horizonte de
inteligibilidade ilimitada no qual o ser se manifesta, e vê igualmente que é
situado nesse horizonte que todo e qualquer ente particular pode ser
conhecido”. Para J. B. Lotz, o ser é verdade, ou a razão formal da verdade é o ser; daí por que todo ente, porque e
enquanto a ele compete o ser, é verdadeiro. Cf. LOTZ, J. B. Ontologia. Op. cit., p. 118.
196. Cf. PLATÃO. República
(sobretudo o livro VI). ARISTÓTELES, Met. I, 7; Et. Nic. I, 6; VIII, 2-5.
Para Tomás de Aquino, o bem é o perfeito. Cf. Cont. Gent. I, 37: “Naturaliter
enim uniuscujusque bonum est actio et perfectio”. S.th. I, 5 3: “Perfectum
habet rationem appetibilis et finis”.
197. Em De Ver. 24,
7, Tomás chama esse fundamento absoluto de: “ipsum universale bonorum principium”.
198. Cf.
PUNTEL, L. B. Ser e Deus. Op. cit., p. 229

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