Editora: Paulus
ISBN: 978-85-349-4081-8
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 268
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Sinopse: Ver Parte
I
“A esta altura surge uma questão decisiva: depois de tudo que foi dito, como
pode ser um discurso sobre o ente? Duas dificuldades emergem aqui: 1) a questão
da apresentação do ente como tal. É necessário haver tal apresentação? Tudo
indica que o ente esteja compreendido em tudo o que uma apresentação apresenta,
mas não é concebível que ele possa apresentar-se enquanto ente; 2) se a ontologia é uma situação, ela admite um modo
de “conta-por-um”, ou seja, uma estrutura. Mas a “conta-por-um” do ente não nos
reconduz às aporias em que ente e um são reciprocáveis? Mas se o um é apenas o
resultado da “conta-por-um”, não se faz necessário dizer que o ente não é um?
A grande
tentação das ontologias aqui, para Badiou, é afirmar que a ontologia não é uma
situação, e que, portanto, o ente não pode significar no múltiplo estruturado.
A única saída, então, consistiria em afirmar que somente uma experiência
situada além de toda estrutura nos abre acesso ao velamento de sua presença, o
que se manifesta conceitualmente, por exemplo, nas teologias negativas que
instituem o um do ente arrancado ao múltiplo, e nomeável unicamente como o
“outro absoluto”. Esse tipo de ontologia Badiou denomina “ontologia da
presença” (ontologia não matemática, poética) que é radicalmente contraposta a
seu projeto de ontologia, uma vez que a presença é exatamente o contrário da
apresentação que é o ser múltiplo tal como efetivamente exposto. Do ponto de
vista linguístico, a linguagem poética é a mais adequada para a ontologia da
presença.
Conceitualmente,
para Badiou uma ontologia existe no regime positivo da predicação e até da
formalização, ou seja, na experiência da invenção dedutiva. Assim, a
contraposição à ontologia da presença vai consistir no “rigor do subtrativo em
que o ente não é dito senão por ser inconjecturável por toda presença e por
toda experiência”.65 Daí sua tese central
em contraposição às ontologias da presença: a ontologia só pode ser uma “teoria
das multiplicidades inconsistentes enquanto tais”.
Ela é,
assim, a ciência do múltiplo enquanto múltiplo, o que significa dizer que seu
tema axial é a multiplicidade inconsistente. Uma questão permanece aqui em
aberto: onde está o ponto de ser absolutamente inicial? Para Badiou, aqui se
põe precisamente a questão explicitada por Leibniz: por que existe algo e não
nada? De que múltiplo primeiro se afirma a existência? Esse constitui para
Badiou o problema central da sutura subtrativa da teoria dos conjuntos, e para
ele isso implica afirmar que a primeira multiplicidade apresentada tem de ser
múltipla de nada, que é justamente o nome da inapresentação na apresentação,
pois do contrário ela seria múltipla de alguma coisa que, enquanto tal, estaria
na posição do um: “[...] o inapresentável não pode vir à linguagem senão como o
que é ‘múltiplo’ de nada”.66
O nada
nomeia precisamente o indizível da apresentação,67
que é tanto da estrutura, da consistência, quanto o nada do múltiplo puro, isto
é, da inconsistência. Enquanto tal ele é uma sutura ao ente, uma sutura
ontológica, a existência de um inexistente. Portanto, qualquer composição só
pode ser feita a partir desse “múltiplo- de-nada”, ou seja, do “vazio”, que
assim se constitui como o nome próprio do ente e como sua segunda categoria
fundamental. Numa palavra, “o único termo de que se tecem as composições sem
conceito é forçosamente o vazio”.68
Esta é
também uma lei de toda apresentação, ou seja, a errância do vazio, a
inapresentabilidade como não encontro, o que significa afirmar que a ontologia
é obrigada a propor uma teoria do vazio. Daí a afirmação: “[...] toda
apresentação estruturada inapresenta ‘seu’ vazio, no modo desse ‘não um’ que
nada mais é do que a face subtrativa da conta”.69
A ontologia é a teoria do múltiplo inconsistente de qualquer situação, numa
palavra, do múltiplo subtraído a toda lei particular, a toda “conta-por-um”.
Como diz Madarasz: “Para Badiou, torna-se necessária a identificação entre
ontologia e matemática. A razão é que a multiplicidade sem unidade quebra a
série unificadora entre infinito, um e absoluto”.70
Ora, o
modo próprio como a inconsistência vagueia no todo de uma situação é o nada, e
o modo como ela se inapresenta é a subtração à conta, o “não um”, o vazio.
“[...] O vazio é esse ponto insituável que revela que ‘o-que-se-apresenta’
vagueia na apresentação sob a forma de uma subtração à conta”.71 Dessa forma, o tema absolutamente
primeiro da ontologia é o vazio, ela não pode contar como existente senão o
vazio que se caracteriza por sua onipresença: “O vazio, a que nada pertence,
inclui-se por isso mesmo no todo”,72 o
que se articula no teorema de que o conjunto vazio seja um subconjunto de não
importa que conjunto supostamente existente. De tudo o que não é apresentável
se pode inferir que ele é apresentado em toda parte em sua falta como inclusão,
ou seja, o vazio está em situação de inclusão universal.
Isso
implica dizer que há duas relações possíveis entre múltiplos, o que para Badiou
constitui uma distinção conceitual crucial: a relação de “pertença” (Î) (um
múltiplo é contado como elemento na apresentação de um outro, o que permite
pensar o múltiplo puro sem recorrer ao Um) e a relação de “inclusão” (Ì) (um
múltiplo é um subconjunto de um outro). Elas dizem respeito a dois operadores
de conta distintos, e não a duas maneiras de pensar o ente do múltiplo. Um
termo de uma situação é o que essa situação apresenta e conta por um. Pertencer
a uma situação significa ser apresentado por essa situação, ser um dos
elementos que ela estrutura. Estar incluído numa situação quer dizer ser
contado pelo estado da situação.
Nesse
contexto, Badiou demonstra o que ele denomina o “teorema do ponto de excesso”
(a terceira categoria do ente): o múltiplo dos subconjuntos compreende
forçosamente ao menos um múltiplo que não pertence ao conjunto inicial. Isso
significa dizer que nenhum múltiplo está em condições de “fazer-um” de tudo o
que inclui, ou seja, o recurso imanente de um múltiplo apresentado ultrapassa a
capacidade de conta da qual ele é o “resultado-um”. Daí a necessidade para
numerar esse recurso da introdução de uma potência de conta que não é ele
mesmo. O excesso é a reduplicação representativa da estrutura da apresentação.
Em toda
essa consideração está sempre pressuposta a “apresentação”, que é, para Badiou,
a palavra primitiva da meta-ontologia, pois ela é o ser múltiplo como
efetivamente exposto e, por isso, é reciprocável com a multiplicidade
inconsistente. Por sua vez, Badiou denomina um termo como “normal” quando ele é
ao mesmo tempo apresentado na situação e representado pelo estado da situação.
Assim, um termo normal pertence à situação e também está incluído nela.
Enquanto tal, a normalidade é um atributo essencial do ser natural. A
“natureza” (quarta categoria do ente) é a normalidade recorrente, ela é a forma
de estabilidade e de homogeneidade do manter-se múltiplo, um equilíbrio maximal
entre apresentação e representação, entre a pertença e a inclusão, entre a situação
e o estado de situação.
Ora, a
tese dos modernos é que “a natureza é infinita”, o que significa dizer que, em
contraposição ao pensamento grego que dava à infinitude a função de
distribuição das regiões do ente em seu todo (Deus e a natureza criada),73 a infinitude na modernidade passa a ser
uma característica do ente enquanto ente sob a forma da noção de conjunto
infinito, que decide a expansão do múltiplo natural além de seu limite grego.
Dessa forma, o ente é infinito, pois nenhum limite imanente determina a
multiplicidade enquanto tal sob pena de se reintroduzir a unidade.74 Somente o ente é infinito, e o finito é
útil para se pensar as diferenças empíricas, ou seja, os entes
intrassituacionais. Essa é, para Badiou, a quinta categoria do ente. Essa
ontologização matemática do infinito (ontologia do infinito) o separa
absolutamente do um, o que significa dizer que há necessariamente múltiplos
infinitos, e isso ao infinito. Numa palavra, a tese da infinidade é
necessariamente uma decisão ontológica, isto é, um axioma.
Com a
matematização da ontologia, Badiou toca numa questão básica da história da
filosofia ocidental. O fundamental aqui é ter presente que essa história foi
sempre marcada por uma determinada concepção da relação entre estruturas lógico-
matemáticas e estruturas ontológicas. A característica básica dessa concepção é
a tese da dicotomia entre as estruturas lógico-matemáticas – que nessa
concepção se referem à esfera da linguagem, no sentido de que elas têm a ver
com a formulação de modelos abstratos da realidade (do mundo), mas que não se
referem diretamente à própria realidade – e as estruturas ontológicas que se
referem ao mundo.
Badiou,
matematizando a ontologia, rompe com essa dicotomia, uma vez que, para ele, as
matemáticas constituem o discurso em que o ente, enquanto ente, é dito; portanto,
as estruturas matemáticas são diretamente ontológicas, possuem em si mesmas um
caráter ontológico, ou seja, as matemáticas são os fatores de configuração da
própria realidade. No entanto, duas questões podem ser levantadas aqui em
relação à sua proposta de matematização da ontologia. A primeira é decorrente
de sua não tematização da problemática da teoricidade, ou seja, do caráter
teórico da filosofia enquanto tal.75
A
teoricidade é aquela dimensão em que teorias são desenvolvidas, ou seja, ela é
a forma de discurso metódico e rigorosamente ordenado que é configurado através
de sentenças puramente declarativas. Filosofia é entendida estritamente
enquanto teoria, de forma que, antes de tudo, é necessário esclarecer a
dimensão teórica em geral e a concepção de uma teoria filosófica em particular.
Portanto, a primeira tarefa da filosofia consiste no esclarecimento de toda a
dimensão da teoricidade, ou seja, de seus componentes irrenunciáveis.
Esse objetivo
se cumpre, para Puntel,76 em primeiro
lugar pela introdução do conceito de “quadro referencial teórico”, que é a
totalidade dos fatores que preenchem esses requisitos necessários. Isso
significa dizer que qualquer afirmação nossa, qualquer concepção e, de modo
especial, qualquer teoria só tem sentido, ou seja, um status determinado e claro, na medida em que se encontra situada no
seio de um quadro teórico. Isso tem consequências fortes para a filosofia:
antes do tratamento de qualquer questão filosófica, temos de dispor de uma
linguagem, de uma lógica, de uma semântica, de uma conceitualidade ontológica
fundamental; numa palavra, temos de ter clareza de todos os componentes de um
quadro teórico adequado.
Badiou
não empreendeu uma análise adequada dos elementos constitutivos de um quadro
teórico que ele na realidade faz coincidir pura e simplesmente com a estrutura
formal matemática, e sua consideração se reduz a ela. Por essa razão, falta
aqui a compreensão de que as estruturas matemáticas, embora ontológicas,
constituem ainda um nível extremamente abstrato do dizer a realidade, pois são
as estruturas mais gerais, as irrestritamente universais, “já que elas
constituem, por assim dizer, a ‘textura’ interna de cada discurso e, desse modo, também de cada ‘item’ ontológico”.77 Na medida em que toda a esfera da teoricidade é
considerada, vê-se que se deve falar de um processo de determinação que vai das
estruturas mais abstratas, as estruturas formais, às mais concretas, as
estruturas ontológicas, que desse modo constituem o ponto final do discurso
teórico-filosófico. A simples identificação de matemática e ontologia tem o
mérito de entender o caráter ontológico da matemática, mas não exprime a
dimensão ontológica em sua abrangência.
Outra
questão é a da teoria matemática que aqui é considerada adequada para dizer o
ente enquanto ente: a teoria dos conjuntos. Uma análise das estruturas
semânticas e das estruturas ontológicas, como componentes irrenunciáveis de uma
teoria, e uma crítica radical da semântica e da ontologia composicionais, a que
ainda está ligada a teoria dos conjuntos, teria mostrado a sua inadequação como
instrumento formal para a expressão do real.78 R.
Nierenberg e D. Nierenberg defendem a tese de que a base matemática sobre que
Badiou constrói sua ontologia é apenas convencional, o que tem como
consequência que também sua ontologia é convencional.79
Além disso, a ontologia implícita nos axiomas de Zermelo e Fraenkel, em que se
baseia Badiou, é extremamente restrita e incapaz, por essa razão, de constituir
a base de uma ontologia geral. Esses axiomas só admitem objetos e conjuntos de
alguns tipos: números, estruturas e aqueles objetos que são sempre os mesmos e
não afetáveis por qualquer tipo de acontecimento, como, por exemplo, as mônadas
de Leibniz ou os fatos atômicos no espaço lógico do Tractatus de Wittgenstein.
Tal
ontologia tem, então, de afirmar que os objetos matemáticos são os únicos
reais, e a matemática é o único conhecimento real.80
No entanto, não se pode negar que mesmo nos níveis mais baixos as entidades são
afetadas por interações e resistem a ser reduzidas a números imutáveis. Por
essa razão, a rejeição do afetável é catastrófica para a ontologia geral, pois
ela nos priva da maior parte de nossos pensamentos – o que significa dizer, de
nossa humanidade.”
65. Cf.
BADIOU, A. O Ser e o Evento. Op. cit., p. 32.
66. Cf. BADIOU, A. O
Ser e o Evento. Op. cit., p. 61.
67. Para R. Nierenberg e D. Nierenberg, a solução que
Badiou apresenta aqui é simplesmente uma assunção, uma escolha, e não algo
matemática e logicamente necessário. Cf. NIERENBERG, R.; NIERENBERG, D. “Badiou’ s Number: A Critique of
Mathematics as Ontology”. Critical
Inquiry, 37.4, 2011, p. 591: “The
important point to note here is that the ‘solution’ Badiou presents to the
question ‘is there something rather than nothing’, the ‘verification’ of the
‘unpresentable alone as existing’, is an assumption, a matter of a choice, not
of mathematical or logical necessity”.
68. Cf. BADIOU, A. O
Ser e o Evento. Op. cit., p. 53.
70. Cf. MADARASZ, N. R. O múltiplo sem um. Op. cit.,
p. 38.
71. Cf. BADIOU, A. O
Ser e o Evento. Op. cit., p. 402.
73. Cf. BADIOU, A. O
Ser e o Evento. Op. cit., p. 120:
“Foi da óptica da hipótese, não de um ser infinito, mas de múltiplos números
infinitos, que a revolução intelectual dos séculos XVI e XVII provocou no
pensamento a ruptura arriscada da interrogação sobre o ser, e o abandono
irreversível da montagem grega”.
74. Cf. DIAS, B. M. F. P. Acontecimento, Verdade e Sujeito. Op. cit., p. 56.
75. Cf. PUNTEL, L. B. Estrutura
e ser. Op. cit., p. 228 e ss.
76. Cf. PUNTEL, L. B. Estrutura
e ser. Op. cit., p. 11 e ss.
77. Cf. idem. Ser e
Deus. Um enfoque sistemático em confronto com M. Heidegger, É. Lévinas e J.-L
Marion. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2011, p. 157.
78. Cf. PUNTEL, L. B. Estrutura
e ser. Op. cit., p. 353-356;
566-572.
79. Cf. NIERENBERG, R.; NIERENBERG, D. Badiou’ s Number. Op. cit., p. 599: “In short,
the mathematical basis which Badiou builds is conventional, and therefore whatever ontology results will
be similarly conventional, even if it be a purely mathematical ontology, let alone the more general ontology Badiou proposes”.
80. Cf. ibidem,
p. 606-607: “An ontology that takes ZF
set theory as its basis must deny reality to that which is affected; it must
take math as the only real knowledge and the mathematical objects as the only
real beings, as Badiou himself repeatedly asserts”.
“4.3.1.1 O paradigma do
saber fundamental no pensamento ocidental
A
filosofia do acaso articulada por K. Utz112
se apresenta como um projeto teórico que tem como pretensão básica articular, a
partir de um único pensamento, os traços fundamentais de uma ontologia, de uma
epistemologia e de uma teoria da práxis humana; numa palavra, articular a
configuração própria da filosofia enquanto empreendimento teórico.113 Isso significa, do ponto de vista da
ontologia, uma proposta de uma ontologia monocategorial114
e, do ponto de vista da filosofia como um todo, a articulação de uma filosofia
sistemática no sentido de que a partir da categoria básica de acaso são
tematizados os conteúdos que constituem o objeto da reflexão filosófica e suas
conexões fundamentais, suas ordenações determinadas.115
A
reflexão encontra seu ponto de partida naquilo que o autor denomina o “traço redutivo”
da ciência e da filosofia: o procedimento do conhecimento consiste
fundamentalmente na recondução da variedade de fenômenos e dados a algo mais
simples, mais abrangente, mais universal – numa palavra, a um fundamento. Esse
procedimento não é algo específico do saber científico, mas ocorre em nossa
vida cotidiana em cada pergunta “por que”, e consiste basicamente na busca de
algo que supere o imediatamente dado e ao qual este possa ser reconduzido, ou
seja, possa exprimir-se em sua inteligibilidade.
Essa
forma de o ser humano estar no mundo encontrou um alargamento numa dupla
direção: a) na medida em que foi efetivado de maneira consciente e metódica no
conhecimento científico; 2) na medida em que foi estendido até as questões
últimas e fez-se busca de um fundamento último, de algo que tudo abrange, de
algo absolutamente simples. O conhecimento que tematizou essas perguntas foi
considerado a ciência suprema e última, e denominado, em nossa tradição, de
“metafísica”116 enquanto ciência do
“último” e do “primeiro”. O que é o último, o primeiro, o fundamento último, é
a pergunta central da metafísica.
Para
Utz, nossa tradição encontrou dois conceitos básicos como resposta a essa
questão: a metafísica pode, em primeiro lugar, significar a recondução de toda
a multiplicidade das coisas e suas manifestações a algo que lhes é comum, de
que todos participam. Aqui a metafísica se faz ciência do ser, “ontologia”,
pois o ser é o que é comum a todos os entes. Mas a recondução pode também ser
entendida como abstração de toda particularidade, de tudo o que distingue um do
outro. Aqui a metafísica se faz “ciência do uno”, “henologia”.
De
qualquer forma o que caracteriza essa forma de interpretar o conhecimento
humano é que ele é fundamentalmente busca de fundamento, quer seja busca dos fundamentos
dos fenômenos nas ciências, quer seja busca do fundamento último na metafísica.117 Tendo aceitado o axioma fundamental de
que todo contingente tem uma causa, essa causa não pode ser outro contingente,
pois isso só repõe a pergunta pela causa suficiente, uma vez que nenhum
contingente é causa suficiente de sua existência, e que a série de causas não
pode continuar indefinidamente; então, tem de haver algo absolutamente
necessário como fundamento suficiente último de tudo.
Numa
palavra, o fundamento é o que sustenta o ser do fundado; sem o fundamento o
fundado é nada. Porque o contingente existe, então tem de haver o ser
necessário como fundamento do contingente. Essa é a formulação de Tomás de
Aquino daquilo que constitui o cerne da metafísica ocidental.118 Dessa forma, a pergunta pela causa119 de qualquer conteúdo com que nos
deparamos é plena de sentido e promete ter sucesso inclusive na persecução da
corrente de fundamentos até o fundamento último.
Para a
metafísica, a relação de fundamento é em certo sentido paradoxal: por um lado,
o que fundamenta é, de certa forma, encontrável no fundado, é-lhe imanente, mas
por outro lado lhe é transcendente numa relação que é essencialmente
assimétrica; na medida em que o fundamento supera o fundado, ele nunca é
completamente encontrável no fundado. Daí por que a recondução só funciona numa
direção: o fundado é reconduzido ao fundante, mas o contrário nunca pode
ocorrer plenamente.”
112. Cf. UTZ, K. Philosophie des Zufalls. Ein Entwurf.
Paderborn/Munique/Viena/Zurique: Ferdinand Schöningh, 2005.
113. Cf.
a respeito do debate contemporâneo sobre o conceito de teoria e da
especificidade de uma teoria filosófica: PUNTEL, L. B. Estrutura e ser: um quadro referencial teórico para uma filosofia
sistemática. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2008, p. 159-186.
114. Toda
a problemática é apresentada aqui no contexto do que nesse livro se chamou de
ontologia no sentido estrito, ou seja, de uma “teoria dos entes” (e não do ser,
no sentido de Heidegger, ou no de Utz, para quem ser é sinônimo de existência);
mais especificamente, teoria dos entes e do Ente Supremo como seu fundamento de
modo que a problemática do ser necessário entraria para Heidegger no que ele
denominou de “onto-teo-logia” como característica fundamental do pensamento
ocidental.
115. Cf.
UTZ, K. Philosophie des Zufalls. Op. cit., p. 80.
116. M.
Müller interpreta a metafísica desde Aristóteles como sendo fundamentalmente
“arqueologia”, busca do primeiro, a verdade, e “escatologia”, busca do último,
a salvação. Cf. MÜLLER, M. “Das Erste und Das Letzte (Wahrheit und Heil)”. In: Erfahrung und Geschichte. Grundzüge einer
Philosophie der Freiheit als transzendentale Erfahrung. Friburgo/Munique:
Karl Alber Verlag, 1971, p. 17-42.
117. Pensar
o fundamento é para Heidegger a essência da metafísica. Cf. HEIDEGGER, M. “A
constituição onto-teo-lógica da metafísica”. In: Escritos e Conferências. Trad. de E. Stein. São Paulo: Nova
Cultural, 1996, p. 193: “A metafísica pensa o ser do ente, tanto na unidade
exploradora do mais geral, quer dizer, do que em toda parte é indiferente, como
na unidade fundante da totalidade, quer dizer, do supremo acima de tudo. Assim
é previamente pensado o ser do ente como fundamento fundante. Por isso toda a
metafísica é, basicamente, desde o fundamento, o fundar que presta contas do
fundamento, que responde a ele e, por fim, exige-lhe contas”.
118. A
respeito de uma consideração crítica ao argumento de Tomás de Aquino, cf.
PUNTEL, L. B. Ser e Deus. Um enfoque
sistemático em confronto com M. Heidegger, É. Lévinas e J. L. Marion. São
Leopoldo: Editora Unisinos, 2011, p. 53-57.
119. Que
a tradição pensou a relação entre o ser contingente e o ser absolutamente
necessário a partir do conceito de causalidade é uma questão indiscutível. Isso
não significa, contudo, dizer que esse enfoque é indispensável e muito menos
que é o enfoque adequado para o tratamento dessa problemática. Cf. ibidem, p. 230-231.
“4.3.1.3
A lógica como a metafísica depois da virada paradigmática
Hegel —125 na esteira da virada kantiana em que se eliminou a
pergunta pelo fundamento último do ser e se passou para as ordenações de
relação – articulou uma nova pergunta, a pergunta pela origem da ordenação, da
mediação e da determinação. Sua ideia básica é que, se a necessidade não mais
se apresenta num imediato, mas em formas de relação e mediação, então a mesma
pergunta que fora dirigida ao imediato se dirige agora à mediação: a que são
redutíveis as ordenações de relação? Como é a redução suprema das formas de
relação? Qual é a condição suficiente para a mediação determinada e
determinante? Qual é a origem da determinação? Essas são as perguntas da nova
“filosofia primeira”, da nova metafísica.
Numa
palavra, quando todo conteúdo e toda necessidade se põem nas ordenações de
relação, então a pergunta fundamental é pela possibilidade do ser mediado, ou
seja, a pergunta pelo que é precisamente a determinação. Essa é a nova pergunta
da metafísica depois de Kant, e, enquanto tal, essa nova metafísica é lógica,
porque a lógica contém as ordenações de relação últimas, intranscendíveis e que
determinam tudo.
Nesse
sentido, a lógica se constitui como a “esfera suprema de redução”, na compreensão
moderna da ciência, e dessa forma ela se constitui como a “ciência primeira”
num tempo pós-metafísico, capaz de eliminar de forma radical qualquer ordem do
ser – como ainda ocorreu com Kant, que conservou a “ordem do ser” do sujeito,
uma vez que a ordenação do aparato do conhecimento se situava no sujeito real.
Na lógica desaparece a referência a qualquer ordem de sujeito,126 o que significa dizer que a ideia
básica de redução se conservou no novo paradigma, e o que mudou é justamente a
esfera da redução.
No
entanto, faz-se necessário ter clareza de que a lógica enquanto ciência
primeira se distingue radicalmente do que hoje denominamos lógica formal, que
se entende a si mesma como a ordenação universal, não temporal e
intranscendível. A lógica de Hegel é uma “lógica da determinação”, que é aquilo
através de que algo pode entrar numa relação específica com outro. A pretensão
de Hegel na lógica é apresentar a totalidade dos conceitos fundamentais de
nosso pensamento, em sua determinação, e seu lugar no sistema dos conceitos.
Sua lógica não teve, contudo, o sucesso que pretendia; em primeiro lugar, por
sua pretensão de absolutidade; mas também porque nem sempre se compreendeu o
que Hegel realmente pretendia, ou não se entendeu verdadeiramente que sua
pergunta constituía um problema a ser levado a sério. O resultado é que o
problema da determinação permaneceu amplamente desconsiderado.”
125. Cf.
UTZ, K. Die Notwendigkeit des Zufalls.
Hegels spekulative Dialektik in der “Wissenschaft der Logik”.
Paderborn/Munique/Viena/Zurique: Ferdinand Schöningh, 2001.
126. Com isso se atinge o cerne do esquema transcendental
de pensar. Cf. OLIVEIRA, M. A. “A crítica hegeliana à Filosofia da
Subjetividade”. Antropologia Filosófica
Contemporânea. Op. cit., p.
108-115.
“As diferentes posições filosóficas40
podem ser classificadas a partir de como elas pensam a relação entre o
compreender e a coisa a ser compreendida. A pergunta básica aqui é, então, se o
compreender se determina a partir da coisa a ser compreendida ou ao contrário.
Para a primeira posição,41 nós não
criamos, produzimos ou constituímos o mundo efetivo, mas, antes, o encontramos:
o mundo efetivo nos é pré-dado, ou seja, apreendemos a realidade sem conceito,
sem linguagem,42 sem teorias, o que se
mostra em muitas experiências. Uma coisa é a apreensão da realidade; outra, sua
compreensão.
Nesse
caso, a verdadeira tarefa de uma atividade teórica consiste em descobrir o
mundo, aprendê-lo, descrevê-lo e explicá-lo como ele é para além de nossos
esquemas conceituais, e independente deles. O mundo, portanto, situa-se fora do
conceitual e possui suas leis próprias: isso constitui o cerne do realismo.
Essa tese fundamental é retomada hoje pelo chamado “novo realismo”. Assim, M.
Ferraris, em seu Manifesto del Nuovo
Realismo, afirma que os pós-modernos se caracterizam por confundir a
ontologia com a epistemologia, ou seja, confundem o que é com o que conhecemos
acerca do que é. É claro que, para conhecer que água é H2O, precisamos de
linguagem, esquemas e categorias. Mas o que a água é, ela o é independentemente
se a conheço ou não, e para além de nossos esquemas categoriais.43
A
posição contraposta – normalmente é denominada “idealista” pelos realistas, mas
hoje se fala mais de antirrealismo – procura revelar a ingenuidade dessa
primeira posição apontando para a mediação inevitável de um sistema conceitual
em toda atividade teórica, de tal modo que uma realidade completamente isenta
de esquemas conceituais constitui uma impossibilidade. Realidade, mundo,
universo, só tem sentido no interior de um esquema conceitual por nós
articulado. Nós distinguimos os objetos através da introdução deste ou daquele
esquema conceitual. Nós já sempre estamos em relação com o mundo pela atividade
conceitual, de modo que, fora desta relação a um esquema conceitual, o mundo é
simplesmente ininteligível. Falar de independência do mundo não significa falar
que ele se situe fora da esfera conceitual.
Nessa
ótica, os antirrealistas articularam uma crítica radical à concepção clássica
empirista do conhecimento, como também à sua reformulação no Círculo de Viena,
que concebe o conhecimento como a combinação de lógica e dado empírico. Uma primeira
questão acentuada aqui, já antes da reviravolta linguística, é a do caráter
criativo do trabalho científico, ou seja, da formação de nossos conceitos e de
nossos projetos teóricos. Como acentua Einstein,44
não se pode esquecer, como faz o empirismo, que nossos conceitos são criações
livres do pensamento que não podem simplesmente vir indutivamente de nossas
vivências sensíveis. O costume de vincular determinados conceitos a
determinadas vivências nos pode levar a esquecer o enorme abismo entre
conceitos e vivências, entre o mundo dos conceitos e sentenças e o mundo das
vivências sensíveis.”
40. Cf.
PUNTEL, L. B. Estrutura e ser. Op. cit.,
p. 206.
41. Cf. PUNTEL, L. B.
Grundlagen einer Theorie der Wahrheit. Berlim/Nova York: de Gruyter, 1990,
p. 266 e ss.
42. Há filósofos que distinguem entre significado
linguístico e conteúdos mentais. Cf. MILLER, A. Filosofia da Linguagem. São Paulo: Paulus, 2010, p. 208: “Filósofos
chamam estados mentais, tais como crenças, desejos, vontades, intenções,
esperanças, e assim por diante, de atitudes
proposicionais. Podemos dizer que, enquanto sentenças possuem significado
linguístico, atitudes proposicionais possuem conteúdo mental”. Cf. a respeito: BRANQUINHO, J. “Atitude proposicional”.
In: BRANQUINHO, J.; MURCHO, D.; GOMES, N. G. (orgs.). Enciclopédia de Termos Lógico-filosóficos. São Paulo: Martins
Fontes, 2006, p. 72- 78.
43. Cf. FERRARIS, M. Manifesto
del Nuovo Realismo. Roma: Ed. Laterza, 2013, 6ª ed.
44. Cf. EINSTEIN, A. “Bemerkungen zu Bertrand Russells
Erkenntnistheorie”. In: SCHILPP, P. A. (org.).

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