quarta-feira, 16 de julho de 2025

A guerra do fim do mundo (Parte II), de Mario Vargas Llosa

Editora: Alfaguara

ISBN: 978-85-60281-49-7

Opinião: ★★★★☆

Tradução: Paulina Wacht e Ari Roitman

Páginas: 608

Link para compra: Clique aqui

Sinopse: Ver Parte I



— Foi uma surpresa ver este jovem chegar com o senhor — sorriu o barão, apontando para o míope. — Ele lhe contou que já trabalhou para mim? Naquele tempo admirava Victor Hugo e queria ser dramaturgo. Falava muito mal do jornalismo, na época.

— Ainda falo — disse a vozinha antipática.

— Pura mentira! — exclamou o barão. — Na verdade, sua vocação é a bisbilhotice, a influência, a calúnia, o ataque rasteiro. Era protegido meu, e quando passou para o jornal do meu adversário, transformou-se no mais vil dos meus críticos. Tome cuidado, coronel. É perigoso.

O jornalista míope estava radiante, como se lhe tivessem feito um elogio.

— Todos os intelectuais são perigosos — concordou Moreira César. — Fracos, sentimentais e capazes de usar as melhores idéias para justificar as piores safadezas. O país precisa deles, mas deve tratá-los como os bichos fazem com estranhos.

O jornalista míope começou a rir com tanta alegria que a baronesa, o doutor e Olímpio de Castro olharam para ele. Sebastiana servia o chá. O barão pegou Moreira César pelo braço e levou-o até um armário:

— Tenho um presente para o senhor. É um costume do sertão: oferecer um presente aos hóspedes. — Tirou uma garrafa de brandy empoeirada e mostrou a etiqueta, com uma piscadela: — Já sei que o senhor quer extirpar toda influência européia no Brasil, mas imagino que seu ódio não inclui também o brandy.

Depois que se sentaram, a baronesa serviu uma xícara de chá ao coronel e pôs dois torrões de açúcar.

— Meus fuzis são franceses e meus canhões, alemães — disse Moreira César, tão sério que os outros interromperam a conversa. — Não odeio a Europa, nem o brandy. Mas como não bebo álcool, não vale a pena desperdiçar assim um presente com alguém que não pode apreciá-lo.

— Guarde de lembrança, então — interveio a baronesa.

— Odeio os latifundiários locais e os mercadores ingleses que mantiveram esta região na pré-história — prosseguiu o coronel, num tom gelado. — Odeio quem se interessa mais pelo açúcar do que pelo povo do Brasil.

A baronesa servia seus convidados, imutável. O dono da casa, em compensação, tinha parado de sorrir. Mas sua voz continuou cordial:

— Os comerciantes norte-americanos que o Sul recebe de braços abertos se interessam pelo povo, ou só pelo café? — perguntou.

Moreira César tinha a resposta pronta:

— Com eles chegam as máquinas, a técnica e o dinheiro que o Brasil necessita para progredir. Porque progresso quer dizer indústria, trabalho, capital, como os Estados Unidos da América do Norte demonstraram. — Seus olhinhos frios piscaram ao acrescentar: — Isto é uma coisa que os donos de escravos nunca hão de entender, barão de Canabrava.

No silêncio que se seguiu a estas palavras ouviram-se as colherzinhas batendo nas xícaras e os goles do jornalista míope, que parecia fazer gargarejos.

— Não foi a República, foi a monarquia que aboliu a escravidão — recordou a baronesa, risonha como se tivesse dito uma piada, enquanto oferecia biscoitos aos convidados. — A propósito, sabia que nas fazendas do meu marido os escravos foram libertados cinco anos antes da lei?

— Não sabia — replicou o coronel. — Coisa louvável, sem dúvida.

Sorriu, forçado, e bebeu um gole. O ambiente agora estava tenso e não se relaxava com os sorrisos da baronesa, o súbito interesse do doutor Souza Ferreiro pelas borboletas da coleção, ou a história do capitão Olímpio de Castro sobre um advogado do Rio assassinado pela esposa. (...)

— Agradeço a sua franqueza — murmurou o barão. Sem dar um passo, viu-o sair do gabinete e, depois, aparecer lá fora. Viu-o montar no cavalo branco que seu ordenança segurava e partir, seguido pela escolta, em meio a uma nuvem de poeira.”

 

 

“— Conheço muito bem esses pobres-diabos de Canudos — disse, sentindo que suas mãos estavam úmidas. — São ignorantes, supersticiosos, e um charlatão pode fazê-los acreditar que está chegando o fim do mundo. Mas são também uma gente corajosa, sofrida, com um instinto preciso da dignidade. Não é absurdo? Vão ser sacrificados por serem monarquistas e anglófilos, eles que confundem o imperador Pedro II com um dos apóstolos, eles que não têm ideia de onde fica a Inglaterra e esperam que o rei Dom Sebastião saia do fundo do mar para defendê-los.”

 

 

“Pensava assim, que, aqui, algo diferente da razão comandava as coisas, os homens, o tempo, a morte, algo que seria injusto chamar de loucura e excessivamente genérico chamar de fé, superstição, desde a tarde em que ouviu pela primeira vez o Conselheiro, no meio de uma multidão que, ao escutar aquela voz profunda, alta, estranhamente impessoal, optou por uma imobilidade granítica, um silêncio em que se podia tocar. Mais que pelas palavras ou o tom majestoso do homem, o jornalista sentiu-se tocado, abalado, invadido por aquela quietude e silêncio em que o escutavam. Era como... era como... Buscou desesperadamente a semelhança com algo que sabia estar lá no fundo da memória, porque, com certeza, se viesse à consciência, poderia esclarecer o que estava sentindo. Sim: o candomblé. Uma vez, naqueles humildes terreiros dos negros de Salvador, ou nos becos atrás da estação da Calçada, assistindo aos ritos frenéticos daquelas seitas que cantavam em línguas africanas já perdidas, captou uma organização da vida, um conluio entre as coisas e os homens, o tempo, o espaço e a experiência humana tão totalmente prescindente da lógica, do senso comum, da razão como este que, na noite veloz que começava a desmanchar as silhuetas, sentia agora nesses seres que recebiam consolo, forças e sentido daquela voz profunda, cavernosa, dilacerada, tão despojada das necessidades materiais, tão orgulhosamente concentrada no espírito, em tudo o que não se come nem se veste nem se usa, os pensamentos, as emoções, os sentimentos, as virtudes. Enquanto ouvia, o jornalista míope pensou intuir o porquê de Canudos e por que perdurava essa aberração que era Canudos. Mas, quando a voz silenciou e se dissolveu o êxtase das pessoas, sua confusão voltou a ser a mesma de antes.”

 

 

— Vejo que a morte desse homem, lá no Rio, deixou o senhor muito impressionado — o jornalista míope tornou a tirá-lo de suas reflexões. — Mas todas as outras, não. Porque houve outras mortes, lá em Canudos.

Em que momento o visitante tinha se levantado? Agora estava em frente às estantes de livros, inclinado, torto, um quebra-cabeça humano, olhando-o, com fúria?, por trás de seus grossos óculos.

— É mais fácil imaginar a morte de uma pessoa que a de cem ou de mil — murmurou o barão. — Multiplicado, o sofrimento fica abstrato. Não é fácil comover-se por coisas abstratas.

— A menos que se veja passar de um a dez, a cem, a mil, a vários milhares — disse o jornalista míope. — Se a morte de Gentil de Castro foi absurda, em Canudos morreu muita gente por motivos não menos absurdos.

— Quanta gente? — murmurou o barão. Ele sabia que nunca haveria resposta, sabia que, como todo o resto da história, o número de mortos seria uma informação que historiadores e políticos reduziriam e aumentariam ao compasso de suas doutrinas e do proveito que pudessem tirar. Mas não pôde deixar de perguntar:

— Tentei saber — disse o jornalista, aproximando-se do outro com seu andar dúbio e desabando na poltrona. — Não há cálculo exato.

— Três mil? Cinco mil mortos? — sussurrou o barão, procurando seus olhos.

— Entre vinte e cinco e trinta mil.

— Está contando os feridos, os doentes? — objetou o barão.

— Não incluí os mortos do Exército — disse o jornalista. — Sobre eles, sim, há estatísticas precisas. Oitocentos e vinte e três, considerando as vítimas de epidemias e acidentes.

Houve um silêncio. O barão baixou os olhos. Serviu-se um pouco de suco, que mal provou e deixou de lado, porque estava morno e parecia um caldo.

— Em Canudos não podia haver trinta mil almas — disse. — Nenhum povoado do sertão pode abrigar essa quantidade de gente.

— O cálculo é relativamente simples — disse o jornalista. — O general Oscar mandou contar as casas. Não sabia? Está nos jornais: 5.783. Quanta gente vivia em cada casa? No mínimo, cinco ou seis. Quer dizer, entre vinte e cinco e trinta mil mortos.

Houve outro silêncio, longo, só interrompido pelo zumbido das mutucas.

— Em Canudos não houve feridos — disse o jornalista. — Os chamados sobreviventes, essas mulheres e crianças que o Comitê Patriótico do seu amigo Lélis Piedades distribuiu pelo Brasil, não estavam em Canudos, mas em localidades vizinhas. Do cerco só escaparam sete pessoas.

— Como sabe disso? — o barão levantou os olhos.

— Eu era um dos sete — disse o jornalista míope. E, como se quisesse evitar uma pergunta, emendou rapidamente: — A estatística que preocupava os jagunços era outra. Quantos morreriam de bala e quantos de faca.

Ficou em silêncio por bastante tempo; espantou um inseto com a cabeça.

— É um cálculo que não há maneira de fazer, naturalmente — continuou, espremendo as mãos. — Mas uma pessoa poderia nos dar pistas. Um homem interessante, barão. Participou do regimento de Moreira César e depois voltou com a quarta expedição, no comando de uma companhia do Rio Grande do Sul. O alferes Maranhão.

O barão o fitava, quase adivinhando o que ia dizer.

— Sabia que degolar é uma especialidade gaúcha? O alferes Maranhão e seus homens eram especialistas. Nele, a destreza se aliava com o gosto pela coisa. Com a mão esquerda pegava o jagunço pelo nariz, levantava a cabeça e com a outra fazia o corte. Um talho de vinte e cinco centímetros, que abria a carótida: a cabeça caía como se fosse de um fantoche.

— Está tentando me comover? — perguntou o barão.

— Se o alferes Maranhão nos dissesse quantos ele e seus homens degolaram, poderíamos saber quantos jagunços foram para o céu e quantos para o inferno — espirrou o míope. — A degola tinha esse outro problema. Despachava a alma para o inferno, ao que parece.”

 

 

— Mas não apenas viam o que não existia — acrescentou o jornalista míope. — Ainda por cima, ninguém viu o que havia lá de verdade.

— Frenólogos? — murmurou o barão. — Anarquistas escoceses?

— Padres — disse o jornalista míope. — Ninguém os menciona. E estavam lá, espionando para os jagunços ou lutando ombro a ombro ao seu lado. Mandando informações ou levando remédios, contrabandeando salitre e enxofre para fabricar explosivos. Não é surpreendente? Não era importante?

— Tem certeza? — o barão se interessou.

— Conheci um deles, quase posso dizer que fomos amigos — confirmou o jornalista míope. — O padre Joaquim, vigário de Cumbe.

O barão examinou seu hóspede:

— Aquele padre cheio de filhos? Aquele bêbado, praticante dos sete pecados capitais, estava em Canudos?

— É um bom indício do poder de persuasão do Conselheiro — afirmou o jornalista. — Além de transformar ladrões e assassinos em santos, catequizou os padres corrompidos e simoníacos do sertão. Homem inquietante, não é mesmo?

Aquela velha história subiu à memória do barão, chegando do fundo do tempo. Ele e Estela, seguidos por um pequeno séquito de homens armados, entravam em Cumbe e se dirigiam imediatamente à igreja, obedecendo aos sinos que chamavam para a missa de domingo. O famoso padre Joaquim, apesar dos seus esforços, não conseguia esconder as marcas do que devia ter sido uma noite em claro cheia de música, cachaça e saias. Lembrou-se da contrariedade da baronesa diante dos esquecimentos e erros do padre, as náuseas que este sentiu em plena cerimônia e sua fuga precipitada para vomitar. Tornou a ver, até, o rosto da sua concubina: não era, por acaso, aquela moça que chamavam de “fazedora de chuva”, porque sabia detectar cacimbas subterrâneas? De maneira que o padre farrista também tinha virado conselheirista.

— Sim, conselheirista e, de certa forma, herói — o jornalista soltou uma gargalhada que produziu o efeito de um deslizamento de pedrinhas na sua garganta; como costumava ocorrer, dessa vez o riso também terminou em espirros.

— Era um padre pecador, mas não era burro — refletiu o barão. — Quando estava sóbrio, podia-se conversar com ele. Homem lúcido e até com leituras. Não posso acreditar que também tenha caído sob o feitiço de um charlatão, como os analfabetos do sertão...

— A cultura, a inteligência, os livros não têm nada a ver com a história do Conselheiro — disse o jornalista míope. — Mas isto é o de menos. O mais surpreendente não é que o padre Joaquim tenha virado jagunço. É que o Conselheiro fez dele um valente, logo ele, que sempre foi covarde — piscou, aturdido. — É a conversão mais difícil, a mais milagrosa. Posso afirmar. Eu sei o que é o medo. E o padre de Cumbe era um homem com imaginação suficiente para saber sentir pânico, para viver no terror. E, no entanto...

Sua voz ficou oca, sem substância, e seu rosto fez uma careta. O que lhe havia acontecido, de repente? O barão percebeu que seu hóspede lutava para se acalmar, para vencer alguma coisa que o prendia. Tentou ajudar:

— E, no entanto...? — animou-o.

— E, no entanto, passou meses, talvez anos, viajando pelos povoados, fazendas, minas, comprando pólvora, dinamite, espoletas. Inventando mentiras para justificar essas compras que deviam chamar tanto a atenção. E, quando o sertão ficou cheio de soldados, sabe como arriscava a pele? Escondendo barricas de pólvora no baú dos objetos de culto, entre o sacrário, o cálice das hóstias, o crucifixo, a casula, os paramentos. Passava nas barbas da Guarda Nacional, do Exército. Dá para imaginar o que significa agir assim sendo covarde, tremendo, suando frio? Dá para imaginar a convicção que é preciso ter?

— O catecismo está cheio de histórias parecidas, meu amigo — murmurou o barão. — Os flechados, os devorados por leões, os crucificados, os... Mas, de fato, não é fácil imaginar o padre Joaquim fazendo essas coisas pelo Conselheiro.

— É preciso ter uma convicção profunda — repetiu o jornalista míope. — Uma segurança íntima, total, uma fé que, sem dúvida, o senhor nunca sentiu. Nem eu...

Balançou outra vez a cabeça como uma galinha inquieta e se alçou com seus longos braços ossudos até a poltrona de couro. Brincou alguns segundos com as mãos, suspicaz, antes de continuar:

— A Igreja condenou formalmente o Conselheiro como herético, supersticioso, agitador e perturbador de consciências. O arcebispo da Bahia proibiu os padres de deixá-lo predicar nos púlpitos. É preciso ter uma fé absoluta para, sendo padre, desobedecer à própria Igreja, ao próprio arcebispo, e correr o risco de se condenar para ajudar o Conselheiro.

— O que o deixa tão angustiado? — perguntou o barão. — A suspeita de que o Conselheiro fosse de fato um novo Cristo, que veio pela segunda vez redimir os homens?

Disse isto sem pensar e, assim que falou, ficou constrangido. Tinha pretendido fazer uma piada? Mas nem ele nem o jornalista míope sorriam. Viu o outro negar com a cabeça, o que podia ser uma resposta ou sua maneira de afugentar uma mosca.

— Até nisso pensei — disse o jornalista míope. — Se era Deus, se Deus o enviou, se Deus existia... Não sei. Seja como for, desta vez não ficaram discípulos para propagar o mito e levar a boa-nova aos pagãos. Só restou um, que eu saiba; duvido que seja suficiente...

Deu outra gargalhada e os espirros o ocuparam por um bom tempo. Quando terminou, estava com o nariz e os olhos irritados.

— Porém, mais que na sua possível divindade, pensei no espírito solidário, fraterno, no vínculo indestrutível que ele conseguiu forjar entre aquela gente — disse o jornalista míope, num tom patético. — Assombroso, comovente. A partir de 18 de julho, só estavam abertos os caminhos de Chorrochó e de Riacho Seco. O que seria lógico? Que o povo tentasse sair de lá, fugir por esses trajetos antes que também fossem cortados, não é mesmo? Mas foi ao contrário. As pessoas queriam entrar em Canudos, continuavam chegando de todos os lados, desesperadas, apressadas, para se meter na ratoeira, no inferno, antes que os soldados fechassem o cerco. Percebe? Lá nada era normal.

— O senhor falou de padres no plural — interrompeu o barão. Aquele assunto, a solidariedade e a vontade de imolação coletiva dos jagunços, deixava-o perturbado. Tinha surgido várias vezes no diálogo, e ele sempre o evitava, como agora.

— Não conheci os outros — respondeu o jornalista, parecendo também aliviado por mudar de assunto. — Mas existiam, o padre Joaquim recebia informações e ajuda deles. E, afinal, talvez até estivessem lá, espalhados, perdidos na massa de jagunços. Alguém me falou de um tal padre Martins. Sabe quem é? O senhor o conheceu, faz anos, muitos anos. A filicida de Salvador, isso lhe recorda alguma coisa?

— A filicida de Salvador? — perguntou o barão.

— Eu assisti ao julgamento quando ainda usava calças curtas. Meu pai era defensor público, advogado de pobres, e a defendeu. Eu a reconheci, apesar de não vê-la, apesar de já terem passado vinte ou vinte e cinco anos. O senhor lia jornais, não lia? Todo o Nordeste se apaixonou pelo caso de Maria Quadrado, a filicida de Salvador. O imperador transformou sua pena de morte em prisão perpétua. Não se lembra? Pois ela também estava em Canudos. Vê como é uma história sem fim?

— Disso eu já sei — disse o barão. — Todos os que tinham contas com a justiça, com a própria consciência ou com Deus encontraram refúgio em Canudos. Era natural.

— Que se refugiassem lá, sim, mas não que se tornassem pessoas diferentes.

 

 

“— Você sabe quem é Pajeú, não é mesmo, filha? Já ouviu, certamente, as coisas que contam dele. (...) É tudo verdade, e até menos que a verdade — acrescentou, do mesmo modo desanimado. — As violências, mortes, roubos, saques, vinganças, as ferocidades gratuitas, como cortar orelhas, narizes. Uma vida de loucura e inferno. E, entretanto, aí está, ele também, como João Abade, como Taramela, Pedrão e os outros... O Conselheiro fez o milagre, transformou o lobo em ovelha, colocou-o no redil. E por transformar lobos em ovelhas, por fazer mudarem de vida pessoas que só conheciam o medo e o ódio, a fome, o crime, a pilhagem, por espiritualizar a brutalidade destas terras, mandam exércitos e exércitos atacá-los, exterminá-los. Que confusão tomou conta do Brasil, do mundo, para que se cometa uma injustiça dessas? Não seria o caso de dar razão, também nisso, ao Conselheiro e pensar que, de fato, Satanás tomou conta do Brasil, que a República é o Anticristo?

 

 

“— Mas não podemos dizer a ele de repente. Não é preciso magoá-lo. A suscetibilidade de gente como Pajeú é uma doença terrível. Outra coisa que sempre me surpreendeu é esse senso da honra tão exagerado. São uma chaga viva. Não têm nada, mas lhes sobra honra. É sua riqueza.”

 

 

— História de doidos — disse, entre os dentes. — O Conselheiro, Moreira César, Gall. Canudos enlouqueceu meio mundo. O senhor também, naturalmente.

Mas um pensamento calou a sua boca: “Não, eles já eram loucos antes. Só Estela perdeu a razão por causa de Canudos”. Precisou fazer um esforço para conter as lágrimas. Não se lembrava de ter chorado quando era criança ou rapaz. Mas, desde o que houve com a baronesa, chorava muitas vezes, em seu gabinete, durante as noites de insônia.

— Mais que de doidos, é uma história de mal-entendidos — voltou a corrigir o jornalista míope. — Quero saber uma coisa, barão. E lhe peço que me diga a verdade.

— Desde que me afastei da política, quase sempre digo a verdade — sussurrou o barão. — O que quer saber?

— Se houve contatos entre o Conselheiro e os monarquistas — respondeu o jornalista míope, espiando sua reação. — Não falo do grupinho de saudosos do Império que tinham a ingenuidade de proclamar-se publicamente, como Gentil de Castro. E sim de gente como vocês, os autonomistas, monarquistas de coração que, não obstante, ocultavam o fato. Tiveram contatos com o Conselheiro? Vocês o instigaram?

O barão, que ouvira aquilo com um ar zombeteiro, começou a rir.

— Não descobriu nesses meses em Canudos? Viu políticos baianos, paulistas, cariocas entre os jagunços?

— Já lhe disse que não vi grande coisa — respondeu a voz antipática. — Mas ouvi dizer que o senhor mandou milho, açúcar, rebanhos de Calumbi.

— Então, também deve saber que não foi por minha própria vontade, mas forçado — disse o barão. — Todos os fazendeiros da região tiveram que fazer isso, para não queimarem as fazendas. Não é a maneira certa de lidar com os bandidos do sertão? Se você não pode matá-los, tem que alugá-los. Se eu tivesse a menor influência sobre eles, não teriam destruído Calumbi e minha mulher estaria bem. Os fanáticos não eram monarquistas, nem sabiam o que era o Império. É fantástico que o senhor não tenha entendido isto, apesar de...

O jornalista míope tampouco o deixou prosseguir esta vez:

— Não sabiam, mas mesmo assim eram monarquistas, se bem que de um modo que nenhum monarquista entenderia — disse, depressa e piscando. — Eles sabiam que a monarquia aboliu a escravidão. O Conselheiro elogiava a princesa Isabel por ter dado a liberdade aos escravos. Parecia convencido de que a monarquia caiu porque aboliu a escravidão. Em Canudos todos acreditavam que a República era escravagista, que queria restaurar a escravidão.

— Acha que eu e meus amigos incutimos essas ideias no Conselheiro? — tornou a sorrir o barão. — Se alguém nos propusesse tal coisa, pensaríamos que era um imbecil.

— No entanto, isso explica muitas coisas — levantou a voz o jornalista. — Por exemplo, o ódio ao censo. Eu espremia os miolos, tentando entender, e aí está a explicação. Raça, cor, religião. Para que a República podia querer saber a raça e a cor das pessoas, a não ser para escravizar os negros novamente? E para que saber a religião, a não ser para identificar os fiéis antes da matança?

— É esse mal-entendido que explica Canudos? — disse o barão.

— Um deles — respirou com dificuldade o jornalista míope. — Eu sabia que os jagunços não tinham sido enganados por nenhum politiqueiro. Mas queria ouvir o senhor dizer.

— Pois já ouviu — disse o barão. O que diriam os meus amigos se tivessem antevisto uma maravilha dessas? Homens e mulheres humildes do sertão levantando-se em armas para atacar a República, com o nome da infanta dona Isabel nos lábios! Não, era irreal demais para que algum monarquista brasileiro pudesse cogitar isso, até mesmo em sonhos.

 

 

— É triste que as crianças tenham que matar e morrer lutando — ouviu-o murmurar. — Atanásio tem quatorze anos, Joaquinzinho ainda não fez treze. E estão há um ano matando, deixando-se matar. Não é triste?

— É — balbuciou o jornalista míope. — Sim. É sim. Eu adormeci. Como está a guerra, padre?

— Estão bloqueados na São Pedro — disse o padre de Cumbe. — A barricada que Antônio Vilanova construiu esta manhã.

— Quer dizer, aqui, dentro da cidade? — perguntou o míope.

— A trinta passos daqui.

São Pedro. A rua que cortava Canudos do rio até o cemitério, paralela à Campo Grande, uma das poucas que merecia o nome de rua. Agora era uma barricada, e lá estavam os soldados. A trinta passos. Sentiu frio. O rumor das preces subia, baixava, desaparecia, voltava, e o jornalista míope pensou que nas pausas se ouviam, lá fora, a voz rouca do Conselheiro ou a vozinha aflautada do Beatinho, respondidas, em um coro de ave-marias, pelas mulheres, os feridos, os velhos, os agonizantes, os jagunços que estavam atirando. O que os soldados pensariam dessas orações?

— Também é triste que um padre tenha que empunhar o fuzil — disse o padre Joaquim, tocando na arma que usava na altura dos joelhos à moda dos jagunços. — Eu não sabia atirar. Era como o padre Martins, nem para matar uma corça.

Seria aquele velhinho o mesmo homem que o jornalista míope tinha visto choramingar, morto de pânico, diante do coronel Moreira César?

— O padre Martins? — perguntou.

Adivinhou a desconfiança do padre Joaquim. Então havia mais religiosos em Canudos. Imaginou-os municiando a arma, apontando, atirando. Por acaso a Igreja não estava com a República? O Conselheiro não tinha sido excomungado pelo arcebispo? Não foram lidas condenações ao fanático, herético e demente de Canudos em todas as paróquias? Como podia haver padres matando pelo Conselheiro?

— Está ouvindo? Escute, escute só: Fanáticos! Sebastianistas! Canibais! Ingleses! Assassinos! Quem veio até aqui matar crianças e mulheres, degolar pessoas? Quem obrigou crianças de treze e quatorze anos a virarem guerreiros? Você está aqui, vivo, não é mesmo?

O terror o invadiu dos pés à cabeça. O padre Joaquim ia entregá-lo à vingança e ao ódio dos jagunços.

— Porque você veio com o Cortapescoços, não é mesmo? — continuou o padre. — E no entanto lhe deram teto, comida, hospitalidade. Será que os soldados também se comportariam assim com um homem de Pedrão, de Pajeú, de João Abade?

Com a voz estrangulada, balbuciou:

— Sim, sim, tem toda razão. Estou muito agradecido por ter me ajudado tanto, padre Joaquim. Eu juro, juro.

— Morrem às dezenas, às centenas — o padre de Cumbe apontou para a rua. — Por quê? Por acreditar em Deus, para adequar suas vidas à lei de Deus. A matança dos inocentes, outra vez.”

 

 

“— É preciso entender essas coisas — dizia agora o jornalista míope, com convicção, com energia, com raiva. — Eu quase não podia vê-las, naturalmente. Muito menos entendê-las.

— De que está falando? — disse o barão. — Eu me distraí, perdi o fio da meada.

— Das mulheres e dos párvulos — resmungou o jornalista míope. — Eram chamados assim. Párvulos. Quando os soldados tomaram as aguadas, eles iam com as mulheres, à noite, roubar umas latas de água, para que os jagunços pudessem continuar lutando. Eles, só eles. E faziam o mesmo, também, com aqueles restos imundos que chamavam de comida. Ouviu bem?

— Devo me assombrar? — disse o barão. — Ficar admirado?

— Deve tentar entender — murmurou o jornalista míope. — Quem dava essas ordens? O Conselheiro? João Abade? Antônio Vilanova? Quem decidiu que só as mulheres e crianças se arrastariam até a Fazenda Velha para roubar água, sabendo que os soldados estavam esperando nas aguadas para brincar de tiro ao alvo, sabendo que de cada dez só voltariam um ou dois? Quem decidiu que os combatentes não deviam tentar esse suicídio menor, pois se reservavam para a forma superior de suicídio que era morrer lutando? — O barão viu-o, de novo, buscando os seus olhos com angústia. — Imagino que não foi o Conselheiro, nem os chefes. Eram decisões espontâneas, simultâneas, anônimas. De outro modo, não as teriam respeitado, não teriam ido para o matadouro com tanta convicção.

— Eram fanáticos — disse o barão, consciente do desprezo que havia em sua voz. — O fanatismo faz as pessoas agirem assim. Nem sempre são motivos elevados, sublimes, que explicam o heroísmo. Também o preconceito, a estreiteza mental, as ideias mais estúpidas.”

A guerra do fim do mundo (Parte I), de Mario Vargas Llosa

Editora: Alfaguara

ISBN: 978-85-60281-49-7

Opinião: ★★★★☆

Tradução: Paulina Wacht e Ari Roitman

Páginas: 608

Link para compra: Clique aqui

Sinopse: Este é um dos livros mais importantes de Mario Vargas Llosa, um épico latino-americano em que ele reconta a Guerra de Canudos — conflito que está entre os mais dramáticos da história do Brasil — , com toda a genialidade que o consagrou como um dos grandes autores de língua espanhola da atualidade. A pesquisa para o livro demandou um esforço concentrado. Impressionado com a leitura de Os sertões, de Euclides da Cunha, Vargas Llosa se embrenhou em arquivos históricos no Rio de Janeiro e em Salvador, viajou pelo sertão da Bahia e de Sergipe e criou um a obra que, hoje, é reconhecida como o seu tour de force. "Peregrinei por todas as vilas onde, segundo a lenda, o Conselheiro pregou", escreve ele, "e nelas ouvi os moradores discutindo ardorosamente sobre Canudos, como se os canhões ainda trovejassem no reduto rebelde e o Apocalipse pudesse acontecer a qualquer momento naqueles desertos salpicados de árvores sem folhas, cheias de espinhos". Em A guerra do fim do mundo, o autor dá uma nova dimensão à figura de Antônio Conselheiro, esse homem de túnica roxa e olhos que “flamejavam com um fogo perpétuo”, capaz de levar uma multidão de fiéis até os limites da loucura e, finalmente, à morte.



“O homem era alto e tão magro que parecia estar sempre de perfil. Sua pele era escura, seus ossos, proeminentes, e seus olhos flamejavam com um fogo perpétuo. Usava sandálias de pastor e a túnica roxa que lhe caía sobre o corpo lembrava o hábito daqueles missionários que, vez por outra, visitavam as vilas do sertão batizando multidões de crianças e casando os pares amancebados. Era impossível saber sua idade, sua procedência, sua história, mas havia algo na sua expressão tranquila, nos seus costumes frugais, na sua imperturbável seriedade que, antes mesmo de começar a dar conselhos, atraía as pessoas.

Aparecia de repente, a princípio sozinho, sempre a pé, coberto da poeira do caminho, de tantas em tantas semanas, ou meses. Sua silhueta longilínea se recortava na luz crepuscular ou nascente quando atravessava a única rua do povoado, a passos largos, com uma espécie de urgência. Avançava decidido entre cabras que chocalhavam, entre cachorros e crianças que abriam passagem e o observavam com curiosidade, sem responder aos cumprimentos das mulheres que já o conheciam e faziam reverências e corriam para lhe trazer jarros de leite de cabra e pratos de farinha e feijão. Mas ele não comia nem bebia nada antes de chegar à igreja da vila e constatar, mais uma vez, uma de tantas vezes, que estava em ruínas, descascada, com as torres semidestruídas, as paredes esburacadas, os pisos levantados, os altares roídos pelos vermes. Seu rosto se ensombrecia com uma dor de retirante a quem a seca matou os filhos e animais e privou de bens, e agora precisa abandonar sua casa, os ossos dos seus mortos, para fugir, fugir, sem saber para onde. Às vezes chorava, e no pranto o fogo negro dos seus olhos recrudescia em terríveis cintilações. Começava logo a rezar. Mas não como rezam os outros homens ou mulheres: deitava-se de bruços na terra ou nas pedras ou nas lajes lascadas, bem diante de onde era ou tinha sido ou deveria ser o altar, e orava, às vezes em silêncio, às vezes em voz alta, uma, duas horas, observado com respeito e admiração pelos moradores. Rezava o credo, o pai-nosso e as ave-marias conhecidos, e também outras rezas que ninguém tinha ouvido antes mas que, ao longo dos dias, dos meses, dos anos, as pessoas iriam memorizando. Onde está o padre?, ouviam-no perguntar, por que não há um pastor aqui para o rebanho? Pois não encontrar um sacerdote nas vilas o afl igia tanto como o abandono das moradas do Senhor.

Só depois de pedir perdão ao Bom Jesus pelo estado de sua casa ele aceitava comer e beber alguma coisa, apenas uma amostra do que os moradores do lugar insistiam em oferecer, mesmo nos anos de escassez. Aceitava dormir embaixo de um teto, em alguma das moradias que os sertanejos punham à sua disposição, mas raramente era visto deitado na rede, no catre ou no colchão de quem lhe oferecia hospedagem. Deitava-se no chão, sem nenhuma coberta, e, apoiando no braço sua fervilhante cabeleira cor de azeviche, dormia algumas horas. Sempre tão poucas, que era o último a se deitar e, quando os vaqueiros e pastores mais madrugadores saíam para o campo, já o viam, trabalhando na restauração das paredes e dos telhados da igreja.

Dava seus conselhos ao entardecer, quando os homens voltavam da roça, as mulheres tinham terminado seus afazeres domésticos e as crianças já estavam dormindo. Falava nos descampados lisos e pedregosos que há em todos os povoados do sertão, no cruzamento das ruas principais, e que poderiam ser chamados de praças se tivessem bancos, coretos, jardins ou se ainda conservassem os que tiveram algum dia e foram destruídos pelas secas, pelas pragas, pela negligência. Falava na hora em que o céu do Norte do Brasil, antes de fi car escuro e estrelado, cintila entre fl ocosas nuvens brancas, cinzentas ou azuladas e se vê lá no alto, sobre a imensidão do mundo, um vasto fogo de artifício. Falava na hora em que se acendem as fogueiras para espantar os insetos e fazer a comida, quando o calor sufocante diminui e sopra uma brisa que deixa as pessoas com mais ânimo para suportar a doença, a fome e os padecimentos da vida.

Falava de coisas singelas e importantes, sem olhar especialmente para nenhuma das pessoas que o cercavam, ou melhor, olhando, com seus olhos incandescentes, através da aglomeração de velhos, mulheres, homens e crianças, para algo ou alguém que só ele podia ver. Coisas que se entendiam, porque eram obscuramente sabidas desde tempos imemoriais e absorvidas junto com o leite materno. Coisas atuais, tangíveis, cotidianas, inevitáveis, como o fim do mundo e o Juízo Final, que podiam acontecer, talvez, antes que o povoado reconstruísse a capela desmoronada. Como ia ser quando o Bom Jesus visse o desleixo com que cuidaram da sua casa? O que diria do comportamento dos pastores que, em vez de ajudar os pobres, raspavam seus bolsos cobrando pelos serviços da religião? Será que as palavras de Deus podiam ser vendidas, não deviam ser dadas de graça? Que desculpa dariam ao Pai os religiosos que, apesar do voto de castidade, fornicavam? Podiam, por acaso, inventar mentiras para Aquele que lê pensamentos como o rastreador lê na terra as pegadas da onça? Coisas práticas, cotidianas, familiares, tais como a morte, que leva à felicidade se entrarmos nela de alma limpa, como numa festa. Os homens eram animais? Se não fossem, deviam atravessar essa porta engalanados com seu melhor traje, em sinal de reverência Àquele que iam encontrar. Falava do céu e também do inferno, a morada do Cão, forrada de brasas e cascavéis, e de como o Demônio podia se manifestar em inovações de aparência inofensiva.

Os vaqueiros e peões do interior o ouviam em silêncio, intrigados, atemorizados, comovidos, e da mesma maneira o ouviam os escravos e os libertos dos engenhos do litoral e as mulheres, pais e filhos de uns e de outros. Ocasionalmente, alguém — mas era raro, porque sua seriedade, sua voz cavernosa ou sua sabedoria os intimidava — o interrompia para esclarecer alguma dúvida. O século iria terminar? O mundo chegaria a 1900? Ele respondia sem olhar, com uma segurança tranquila e, muitas vezes, com enigmas. Em 1900 as luzes se apagariam e choveriam estrelas. Mas, antes, iam ocorrer fatos extraordinários. Um silêncio acompanhava a sua voz, e nele se ouviam o crepitar das fogueiras e o zumbido dos insetos que as chamas devoravam, enquanto os presentes, prendendo a respiração, faziam um esforço antecipado de memória para recordar o futuro. Em 1896 mil rebanhos correriam da praia para o sertão, e o mar viraria sertão e o sertão, mar. Em 1897 o deserto se cobriria de grama, pastores e rebanhos se misturariam e, a partir de então, haveria um único rebanho e um único pastor. Em 1898 os chapéus aumentariam e as cabeças diminuiriam, e em 1899 os rios ficariam vermelhos e um novo planeta cruzaria o espaço.

Era preciso, então, preparar-se. Tinham que restaurar a igreja e o cemitério, a construção mais importante depois da casa do Senhor, pois era a antecâmara do céu ou do inferno, e destinar o tempo restante ao essencial: a alma. Por acaso o homem ou a mulher iam para o outro lado usando saias, vestidos, chapéus de feltro, sapatos de cordão e todos aqueles luxos de lã e de seda que o Bom Jesus nunca vestiu?

Eram conselhos práticos, singelos. Quando o homem ia embora, falavam dele: que era santo, que tinha feito milagres, que tinha visto a sarça ardente no deserto, como Moisés, e que uma voz lhe revelara o nome impronunciável de Deus. E comentavam seus conselhos. Assim, antes do final do Império e depois de proclamada a República, os habitantes de Tucano, Soure, Amparo e Pombal os ouviam; e, mês após mês, ano após ano, foram ressuscitando das ruínas as igrejas do Bom Conselho, de Geremoabo, de Massacará e de Inhambupe; e, seguindo seus ensinamentos, surgiram muros e nichos nos cemitérios de Monte Santo, de Entre Rios, de Abadia e de Barracão, e a morte foi celebrada com enterros dignos em Itapicuru, Cumbe, Natuba, Mocambo. Mês após mês, ano após ano, as noites de Alagoinhas, Uauá, Jacobina, Itabaiana, Campos, Itabaianinha, Geru, Riachão, Lagarto, Simão Dias foram se povoando de conselhos. Todos consideravam que eram bons conselhos, e por isso, a princípio em um, depois noutro e afinal em todos os vilarejos do Norte, o homem que os dava, embora seu nome fosse Antônio Vicente e seu sobrenome Mendes Maciel, começou a ser chamado de Conselheiro.”

 

 

Quando Lelis Piedades, o advogado do barão de Canabrava, mandou um ofício ao tribunal de Salvador informando que a fazenda de Canudos tinha sido invadida por meliantes, o Conselheiro já estava lá havia três meses. Pelo sertão correu a notícia de que nesse lugar, cercado de morros pedregosos, chamado de Canudos por causa dos cachimbos de caniço que o povo do lugar fumava no passado, o santo que tinha peregrinado mundo afora durante um quarto de século estava instalado agora. O local era conhecido pelos boiadeiros, pois os rebanhos costumavam pernoitar às margens do (rio) Vaza-Barris. Nas semanas e meses seguintes viram-se grupos de curiosos, de pecadores, de doentes, de vagabundos, de fugitivos que, vindo do norte, do sul, do leste e do oeste, dirigiam-se a Canudos com o pressentimento ou a esperança de que ali encontrariam perdão, refúgio, saúde, felicidade.

Na manhã seguinte à sua chegada, o Conselheiro começou a construir um Templo que, disse, seria todo de pedra, com duas torres muito altas, e consagrado ao Bom Jesus. Decidiu que fosse erigido em frente à velha igreja de Santo Antônio, capela da fazenda, “Que os ricos levantem as mãos”, dizia, pregando à luz de uma fogueira, no povoado incipiente. “Eu levanto. Porque sou filho de Deus, Ele me deu uma alma imortal que pode merecer o céu, a verdadeira riqueza. Levanto porque o Pai me fez pobre nesta vida para ser rico na outra. Que os ricos levantem as mãos!” Nas sombras crepitantes emergia então, dentre os farrapos e os couros e as blusas puídas de algodão, um bosque de braços. Rezavam antes e depois dos conselhos e faziam procissões entre as moradias inacabadas e os refúgios de lona e tábuas em que dormiam, e a noite sertaneja os ouvia aclamando a Virgem e o Bom Jesus e gritando abaixo o Cão e o Anticristo. Um homem de Mirandela que soltava fogos de artifício nas feiras — Antônio Fogueteiro — foi um dos primeiros romeiros, e a partir de então se queimavam castelos de fogos e se estouravam rojões nas procissões de Canudos.

O Conselheiro dirigia os trabalhos do templo, assessorado por um mestre-pedreiro que o ajudara a restaurar muitas capelas e a construir, desde os alicerces, a igreja do Bom Jesus, em Crisópolis, e escolhia os penitentes que iriam quebrar pedras, peneirar areia ou buscar madeira. Ao entardecer, depois de um jantar frugal — se não estivesse jejuando — que consistia numa côdea de pão, alguma fruta, um punhado de farinha e uns goles d’água, o Conselheiro dava boas-vindas aos recém-chegados, exortava os outros a serem hospitaleiros e, após o credo, o pai-nosso e as ave-marias, sua voz eloqüente pregava a austeridade, a mortificação, a abstinência, e compartilhava visões que se pareciam com as histórias dos trovadores. O fim estava próximo, podia-se ver isto como se via Canudos lá do Alto da Favela. A República ia continuar mandando hordas com fardas e fuzis para tentar prendê-lo e impedir que se dirija aos necessitados; por mais sangue que fizesse correr, porém, o Cão não morderia Jesus. Haveria um dilúvio, depois um terremoto. Um eclipse deixaria o mundo em trevas tão absolutas que tudo teria que ser feito no tato, como fazem os cegos, enquanto a batalha retumbava ao longe. Milhares de pessoas morreriam de pânico. Entretanto, ao se dissiparem as brumas, num amanhecer diáfano, as mulheres e os homens veriam ao seu redor, nas colinas e montanhas de Canudos, o exército de dom Sebastião. O grande rei teria derrotado as ninhadas do Cão, limpando o mundo para o Senhor. Eles veriam dom Sebastião, com sua armadura faiscante e sua espada; veriam seu rosto bondoso, adolescente, que sorriria do alto da sua cavalgadura ajaezada de ouro e diamantes, e o veriam afastar-se, cumprida a missão redentora, para voltar com seu exército ao fundo do mar.

Os curtidores, os lavradores, os curandeiros, os mascates, as lavadeiras, as parteiras, as mendigas que tinham chegado a Canudos após muitos dias e noites de viagem, trazendo seus bens numa carroça ou no lombo de um jegue, e que agora estavam ali, encolhidos na sombra, ouvindo e querendo acreditar, sentiam os olhos úmidos. Rezavam e cantavam com a mesma convicção que os peregrinos mais antigos; aqueles que não sabiam aprendiam rapidamente as preces, os cantos, as verdades. (...)

Não faltava o que comer. Havia cereais, legumes, carnes, e, como o Vaza-Barris tinha água, podia-se plantar. Os que chegavam traziam provisões, e de outros povoados costumavam receber aves, coelhos, porcos, grãos, cabritos. O Conselheiro pediu a Antônio Vilanova que armazenasse os mantimentos e controlasse sua distribuição entre os necessitados. Sem instruções específicas, mas de acordo com os ensinamentos do Conselheiro, a vida foi se organizando, mas não sem tropeços. O Beatinho se encarregava de instruir os romeiros que chegavam e de receber seus donativos, desde que não fossem em dinheiro. Tinham que ir gastar em Cumbe ou Juazeiro os réis da República, escoltados por João Abade ou Pajeú, que sabiam brigar, comprando coisas para o Templo: pás, picaretas, fios de prumo, madeira de qualidade, imagens de santos e crucifixos. A mãe Maria Quadrado guardava numa urna os anéis, brincos, broches, colares, prendedores de cabelo, moedas antigas ou simples enfeites de barro e osso que os romeiros ofereciam, e esse tesouro era exibido na igreja de Santo Antônio toda vez que o padre Joaquim, de Cumbe, ou algum outro pároco da região ia rezar missa, confessar, batizar ou casar os moradores. Esses dias eram sempre de festa. Dois foragidos da justiça, João Grande e Pedrão, os homens mais fortes do lugar, dirigiam as equipes que arrastavam pedras das canteiras dos arredores até o Templo. Catarina, a esposa de João Abade, e Alexandrinha Correa, uma mulher de Cumbe que tinha fama de fazer milagres, preparavam comida para os trabalhadores da construção. A vida estava longe de ser perfeita e sem complicações. Embora o Conselheiro pregasse contra o jogo, o cigarro, o álcool, havia gente que jogava, fumava e bebia cachaça e, quando Canudos começou a crescer, surgiram confusões por um rabo-de-saia, roubos, bebedeiras e até facadas. Mas essas coisas aconteciam em escala menor que em outras partes e na periferia desse centro ativo, fraterno, fervilhante, ascético que eram o Conselheiro e os seus discípulos.

O Conselheiro não proibia as mulheres de se enfeitarem, mas disse inúmeras vezes que quem cuida muito do corpo pode descuidar da alma e que, como Lúcifer, a aparência bonita costuma ocultar um espírito sujo e nauseabundo: as cores foram desaparecendo dos vestidos das jovens e das velhas, os vestidos foram se alongando até os tornozelos, subindo até os pescoços e se alargando até parecerem hábitos de freiras. Além dos decotes, desapareceram os enfeites e até as fitas que prendiam os cabelos, que agora ficavam soltos ou escondidos embaixo de lenços. Às vezes havia incidentes com as “madalenas”, as perdidas que, apesar de terem chegado a Canudos à custa de muitos sacrifícios e de terem beijado os pés do Conselheiro implorando perdão, eram hostilizadas por muitas mulheres intolerantes que queriam obrigá-las a usar pentes com espinhos, como prova de arrependimento.

Mas, de modo geral, a vida era pacífica e reinava um espírito de colaboração entre os moradores. Uma fonte de problemas era o inaceitável dinheiro da República: se surpreendessem alguém utilizando-o em qualquer transação, os homens do Conselheiro lhe tiravam tudo o que tivesse e expulsavam de Canudos. O comércio era feito com as moedas que tinham a efígie do imperador dom Pedro ou da sua filha, a princesa Isabel, mas, como elas eram escassas, generalizou-se a permuta de produtos e de serviços. Trocavam-se alpargatas por rapadura, galinhas por tratamentos de ervas, farinha por ferraduras, telhas por tecidos, redes por facões e o trabalho, em roças, casas, currais, era retribuído com trabalho. Ninguém cobrava pelo tempo e o esforço dedicados ao Bom Jesus. Além do templo, também se construíam as moradias que depois seriam chamadas de casas de saúde, onde davam alojamento, comida e cuidados aos doentes, anciãos e órfãos. A princípio Maria Quadrado comandava essa tarefa, mas quando foi construído o Santuário — uma casinha de barro, dois quartos, teto de palha —, para que o Conselheiro pudesse descansar por algumas horas dos romeiros que o acossavam sem parar, e a Mãe dos Homens se dedicou exclusivamente a ele, as casas de saúde ficaram por conta das Sardelinhas — Antônia e Assunção —, mulheres dos Vilanova. Houve pendências pelas terras cultiváveis, próximas ao Vaza-Barris, que os romeiros já estabelecidos em Canudos foram ocupando e que eram disputadas por outros. Antônio Vilanova, o comerciante, dirimia essas rivalidades. Ele, por orientação do Conselheiro, distribuiu lotes para fazer as casas dos recém-chegados, mandou cercar terras para os animais que os fiéis mandavam ou traziam de presente, e fazia as vezes de juiz quando surgiam conflitos sobre bens e propriedades. Não havia muitos, na verdade, porque as pessoas não iam para Canudos atraídas pela cobiça ou pela ideia de prosperidade material. A comunidade vivia entregue a ocupações espirituais: orações, enterros, jejuns, procissões, a construção do templo do Bom Jesus e, principalmente, os conselhos do entardecer, que podiam se prolongar até tarde da noite, durante os quais tudo se interrompia em Canudos.”

 

 

“Na minha carta anterior eu lhes falei, companheiros, de uma rebelião popular no interior do Brasil cuja existência soube por uma testemunha preconceituosa (um capuchinho). Hoje posso fazer um relato melhor sobre Canudos, pelo depoimento de um homem que veio da revolta e está percorrendo a região, sem dúvida, com a missão de recrutar adeptos. Posso, também, dar uma notícia animadora: houve um choque armado e os jagunços derrotaram cem soldados que pretendiam chegar a Canudos. Não estão se confirmando os indícios revolucionários? De certo modo, sim, mas de maneira relativa, a julgar por esse homem, que transmite uma impressão contraditória sobre esses irmãos: intuições certeiras e ações corretas convivem neles com superstições inverossímeis.

Escrevo de uma vila cujo nome não devem saber, uma terra onde as servidões morais e físicas das mulheres são extremas, pois são oprimidas pelo patrão, pelo pai, pelos irmãos e pelo marido. Aqui, o fazendeiro escolhe as esposas dos seus empregados e as mulheres são surradas no meio da rua por pais irascíveis ou maridos bêbados, diante da indiferença geral. Um motivo de reflexão, companheiros: é importante que a revolução não suprima apenas a exploração do homem pelo homem, mas também a exploração da mulher pelo homem, e estabeleça, junto com a igualdade de classes, a igualdade de sexos.

Soube que o emissário de Canudos tinha chegado a este lugar por intermédio de um guia que é também onceiro, ou caçador de suçuaranas (belos trabalhos: explorar o mundo e acabar com os predadores do rebanho), graças ao qual também consegui vê-lo. O encontro ocorreu num curtume, entre couros secando ao sol e crianças que brincavam com lagartixas. Meu coração bateu forte ao ver o homem: baixo e maciço, com a palidez entre amarela e cinzenta que os mestiços herdaram dos seus ancestrais indígenas e uma cicatriz na cara que me revelou, à simples vista, seu passado de capanga, bandido ou criminoso (em todo caso, vítima, pois, como explicou Bakunin, a sociedade prepara os crimes e os criminosos são apenas os instrumentos para executá-los). Usava uma roupa de couro — como fazem os boiadeiros para cavalgar na campina espinhenta —, estava de chapéu e com uma espingarda. Seus olhos eram fundos e astutos, e suas maneiras, oblíquas, evasivas, como é frequente aqui. Ele não quis conversar a sós. Tivemos que falar diante do dono do curtume e de sua família, que comiam no chão, sem olhar para nós. Eu disse a ele que sou um revolucionário e que há muitos companheiros no mundo que aplaudem o que eles fizeram em Canudos, isto é, tomar as terras de um senhor feudal, estabelecer o amor livre e derrotar uma tropa. Não sei se me entendeu. As pessoas do interior não são como na Bahia, onde a influência africana deu loquacidade e exuberância ao povo. Aqui os rostos são inexpressivos, máscaras cuja função parece ser ocultar os sentimentos e os pensamentos.

Perguntei se eles estavam preparados para novos ataques, pois a burguesia reage com ferocidade quando alguém atenta contra a sacrossanta propriedade privada. O homem me deixou gelado ao murmurar que o dono de todas as terras é o Bom Jesus e que, em Canudos, o Conselheiro está construindo a maior igreja do mundo. Tentei explicar que não era por construírem igrejas que o poder tinha mandado soldados atacá-los, mas o homem respondeu que sim, que era justamente por isso, pois a República quer exterminar a religião. Estranha diatribe a que ouvi, companheiros, contra a República, proferida com uma tranquila segurança, sem sombra de paixão. A República quer oprimir a Igreja e os fiéis, acabar com todas as ordens religiosas como já fez com a Companhia de Jesus, e a prova mais flagrante desse projeto é o fato de ter instituído o casamento civil, coisa escandalosa e ímpia quando já existe o sacramento do matrimônio criado por Deus.

Imagino a decepção de muitos leitores e suas suspeitas, ao lerem o parágrafo anterior, de que Canudos, como a Vendée durante a Revolução, é um movimento reacionário, inspirado pelos padres. Não é tão simples, companheiros. Já sabem, pela minha última carta, que a Igreja condena o Conselheiro e Canudos e que os jagunços tomaram as terras de um barão. Perguntei ao homem de cicatriz se os pobres do Brasil viviam melhor durante a monarquia. Ele respondeu no ato que sim, pois a monarquia tinha abolido a escravidão. E me explicou que o Diabo, por intermédio dos maçons e dos protestantes, derrubou o imperador Pedro II para restaurá-la. Isso mesmo: o Conselheiro inculcou em seus homens a ideia de que os republicanos são escravagistas. (Uma maneira sutil de ensinar a verdade, certo?, pois a exploração do homem pelos donos do dinheiro, base do sistema republicano, não é menos escravista que a feudal.) O emissário foi categórico: “Os pobres sofreram muito, mas agora acabou: nós não vamos responder às perguntas do censo porque o que eles querem é identificar os libertos para acorrentá-los de novo e devolvê-los aos seus donos. Em Canudos ninguém paga os impostos da República porque não a reconhecemos e não admitimos que ela assuma as funções que são de Deus.” Que funções, por exemplo? “Casar as pessoas ou receber o dízimo”. Perguntei como faziam em Canudos com o dinheiro e ele confirmou que só aceitavam as cédulas com o rosto da princesa Isabel, isto é, dinheiro do Império, porém, como quase não existem mais, na verdade a moeda está desaparecendo. “Não precisamos, porque em Canudos os que têm dão aos que não têm e os que podem trabalhar trabalham pelos que não podem”.

Eu disse a ele que abolir a propriedade e o dinheiro e estabelecer uma comunidade de bens, seja em nome do que for, mesmo em nome de abstrações estimulantes, é uma coisa ousada e valiosa para os deserdados do mundo, um começo de redenção para todos. E que essas medidas vão desencadear, mais cedo ou mais tarde, uma dura repressão contra eles, pois a classe dominante jamais permitirá que tal exemplo se estenda: neste país há pobres suficientes para ocupar todas as fazendas. O Conselheiro e seus seguidores têm consciência das forças que estão instigando? Olhando nos meus olhos, sem piscar, o homem recitou frases absurdas, uma das quais reproduzo como amostra: os soldados não são a força e sim a fraqueza do governo; quando for necessário as águas do rio Vaza-Barris se transformarão em leite e suas barrancas em cuscuz de milho, e os jagunços mortos ressuscitarão para estar vivos quando chegar o exército do rei Dom Sebastião (um rei português que morreu na África, no século XVI).

Não serão esses diabos, imperadores e fetiches religiosos peças de uma estratégia que o Conselheiro usa para impulsionar os humildes no caminho de uma rebelião que, se vamos aos fatos — e não às palavras —, é acertada, pois levou-os a se insurgirem contra a base econômica, social e militar da sociedade classista? Não serão os símbolos religiosos, míticos, dinásticos etc. os únicos capazes de sacudir a inércia das massas, submetidas durante séculos à tirania supersticiosa da Igreja, e por isso o Conselheiro os utiliza? Ou tudo isso será uma simples obra do acaso? Nós sabemos, companheiros, que o acaso não existe na história e que, por mais arbitrária que pareça, sempre há uma racionalidade encoberta atrás da aparência mais confusa. Será que o Conselheiro tem ideia do transtorno histórico que está provocando? Trata-se de um intuitivo ou de um espertalhão? Nenhuma hipótese é descartável, muito menos a de um movimento popular espontâneo, não premeditado. A racionalidade está gravada na cabeça de todo homem, mesmo na do mais inculto, e, em certas circunstâncias, pode levá-lo, por entre as nuvens dogmáticas que turvam seus olhos ou os preconceitos que obscurecem seu vocabulário, a agir na direção da história. Alguém que não era um dos nossos, Montesquieu, escreveu que a ventura ou a desventura consistem numa certa disposição dos nossos órgãos. Pois a ação revolucionária também pode nascer desse mandato dos órgãos que nos governam, antes mesmo que a ciência eduque a mente dos pobres. Será isto o que está acontecendo no sertão baiano? Só vai ser possível verificar na própria Canudos. Até a próxima, ou até sempre.”

 

 

O Conselheiro parecia, por ora, mais preocupado em apressar a construção do Templo do Bom Jesus do que com a guerra. Continuava dirigindo os trabalhos desde o amanhecer, mas estes se atrasavam por culpa das rochas: era preciso trazê-las de pedreiras cada vez mais distantes, e subi-las nas torres era tarefa difícil, durante a qual, às vezes, as cordas arrebentavam e os enormes blocos esmagavam andaimes e operários. E, às vezes, o santo mandava derrubar um muro já acabado e construí-lo mais à frente, ou retificar umas janelas porque uma inspiração lhe dizia que não estavam orientadas na direção do amor. Era visto andando entre as pessoas, cercado pelo Leão de Natuba, o Beatinho, Maria Quadrado e as beatas do Coro, que não paravam de bater palmas para espantar as moscas que o perturbavam. Diariamente chegavam a Canudos três, cinco, dez famílias ou grupos de peregrinos, com seus minúsculos rebanhos de cabras e suas carroças, e Antônio Vilanova conseguia um espaço vazio naquele labirinto de casas para que construíssem a sua. Toda tarde, antes dos conselhos, o santo recebia os recém-chegados no Templo ainda sem telhado. Eram levados pelo Beatinho, através da massa de fiéis, e, embora o Conselheiro não concordasse, dizendo “Deus é outro”, todos se jogavam aos seus pés para beijá-los ou tocar na sua túnica enquanto ele os abençoava, com um olhar que dava a impressão de estar sempre olhando para o além. Em dado momento, interrompia a cerimônia de boas-vindas, levantava-se, e então lhe abriam passagem até a escadinha que levava aos andaimes. Pregava com uma voz rouca, sem se mexer, falando sobre as questões de sempre: a superioridade do espírito, as vantagens de ser pobre e frugal, o ódio aos infiéis e a necessidade de salvar Canudos para que fosse refúgio dos justos.

Todos o ouviam ansiosos, convencidos. Agora a religião preenchia seus dias. À medida que surgiam, as ruazinhas tortuosas eram batizadas numa procissão com o nome de algum santo. Havia, por toda parte, nichos e imagens da Virgem, do Menino, do Bom Jesus e do Espírito Santo, e cada bairro e cada ofício construía altares para seu santo protetor. Muitos dos recém-chegados mudavam de nome, para simbolizar assim a nova vida que iam começar. Mas às vezes costumes duvidosos se enxertavam nas práticas católicas, como plantas parasitas. Por exemplo, alguns mulatos ficavam dançando enquanto rezavam e se dizia que, sapateando com frenesi na terra, acreditavam que expulsariam os pecados com o suor. Os negros foram se agrupando no setor norte de Canudos, um quarteirão de choças de barro e sapê que, mais tarde, seria conhecida como Mocambo. Os índios de Mirandela, que inesperadamente vieram se instalar em Canudos, preparavam à vista de todos umas infusões de ervas que exalavam um cheiro forte e os deixavam em êxtase. Além dos romeiros, vieram, naturalmente, milagreiros, mascates, aventureiros, curiosos. Nos barracos encaixados uns nos outros viam-se mulheres que liam as mãos, velhacos que se jactavam de falar com os mortos e cantadores que, como aqueles do Circo do Cigano, ganhavam a vida cantando romanceiros ou enfiando alfinetes no corpo. Certos curandeiros apregoavam a cura de todos os males com beberagens de jurema e manacá, e alguns beatos, tomados pelo delírio de contrição, declamavam seus pecados em voz alta e imploravam penitências aos ouvintes. Um grupo de Juazeiro começou a praticar em Canudos os ritos da Irmandade dos Penitentes daquela cidade: jejum, abstinência sexual, flagelações públicas. Embora o Conselheiro estimulasse a mortificação e o ascetismo — o sofrimento, dizia, robustece a fé —, afinal ficou alarmado e pediu ao Beatinho que filtrasse os romeiros para evitar que com eles entrassem a superstição, o fetichismo ou qualquer sacrilégio disfarçado de devoção.

A diversidade humana coexistia em Canudos sem violência, em meio a uma solidariedade fraternal e um clima de exaltação que os escolhidos não conheciam até então. Sentiam-se verdadeiramente ricos por serem pobres, filhos de Deus, privilegiados, como lhes dizia toda tarde o homem de túnica esburacada. Em seu amor por ele, aliás, desapareciam todas as diferenças que podiam separá-los: quando se tratava do Conselheiro, essas mulheres e homens, que a princípio eram centenas e começavam a ser milhares, tornavam-se um único ser, submisso e reverente, disposto a dar tudo o que tinham por aquele que soube se aproximar da sua prostração, da sua fome e dos seus piolhos para infundir esperanças e deixá-los orgulhosos do próprio destino. Apesar da multiplicação de habitantes, a vida não era caótica. Os emissários e romeiros traziam gado e provisões, os currais estavam tão repletos quanto os depósitos e o Vaza-Barris, felizmente, tinha água para as hortas. Enquanto João Abade, Pajeú, José Venâncio, João Grande, Pedrão e outros preparavam a guerra, Honório e Antônio Vilanova administravam a cidade: recebiam as oferendas dos romeiros, distribuíam lotes, alimentos e roupas, e cuidavam das casas de saúde para os doentes, anciãos e órfãos. Eram eles que recebiam as denúncias quando havia disputas por questões de propriedade.”