Editora: Clube de Literatura Clássica
ISBN: 978-65-8703-620-5
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 690
Link para compra: Clique aqui
Sinopse: Ver Parte
I
“No
entanto, a expedição atravessara violentíssima crise. Tivera cerca de mil
homens, 947, entre mortos e feridos, e estes, com os caídos nos recontros
anteriores, reduziam-na consideravelmente. Impressionavam-na, ademais, os
resultados imediatos do acometimento. Três comandantes de brigadas, Carlos
Teles, Serra Martins e Antonino Néri, que viera à tarde com a 7.ª, estavam fora
de combate. Numa escala ascendente, avultavam baixas de oficiais menos
graduados e praças. Alferes e tenentes haviam, com desassombro incrível,
malbaratado a vida em toda a linha. De alguns citavam-se, depois, os arrojados
lances: Cunha Lima, estudante da Escola Militar de Porto Alegre, que, ferido em
pleno peito numa carga de lanceiros, concentrara os últimos alentos no último
arremesso da lança caindo, em cheio, sobre o inimigo, feito um dardo;
Wanderley, que, precipitando-se a galope pela encosta aspérrima da última
colina, fora abatido ao mesmo tempo que o cavalo no topo da escarpa, rolando
por ela abaixo em queda prodigiosa, de titã fulminado; e outros, baqueando
todos, valentemente – entre vivas retumbantes à República –, haviam dado à
refrega um traço singular de heroicidade antiga, revivendo o desprendimento
doentio dos místicos lidadores212 da média idade. O paralelo é
perfeito. Há nas sociedades retrocessos atávicos notáveis; e entre nós os dias
revoltos da República tinham imprimido, sobretudo na mocidade militar, um
lirismo patriótico que lhe desequilibrara todo o estado emocional,
desvairando-a e arrebatando-a em idealizações de iluminados. A luta pela
República, e contra os seus imaginários inimigos, era uma cruzada. Os modernos
templários, se não envergavam a armadura debaixo do hábito e não levavam a cruz
aberta nos copos da espada, combatiam com a mesma fé inamolgável.213
Os que daquele modo se abatiam à entrada de Canudos tinham todos, sem excetuar
um único, colgada214 ao peito esquerdo em medalhas de bronze, a
efígie do marechal Floriano Peixoto e, morrendo, saudavam a sua memória – com o
mesmo entusiasmo delirante, com a mesma dedicação incoercível e com a mesma
aberração fanática com que os jagunços bradavam pelo Bom Jesus misericordioso e
milagroso...
Ora,
esse entusiasmo febril, à parte as precipitações desastrosas decorrentes, no
dia 18 de julho foi a salvação...
Uma
tropa exclusivamente robustecida pela disciplina, que se desorganizasse daquela
maneira, estaria perdida. Mas os soldados rudes, em cujo ânimo combalido
penetravam desalentos e incertezas, imobilizaram-se sob o hipnotismo da coragem
pessoal dos chefes, ou dominados pelo prestígio de oficiais que, gravemente
feridos, alguns mal sustendo a espada, avançavam em cambaleios para as linhas
de fogo – moribundos e desafiando a morte.
Ficaram
de algum modo sitiados entre eles e os jagunços.”
212. Lutadores, guerreiros. Os “místicos lidadores”
que o autor tem em mente são os cruzados. 213.
Inquebrantável. 214. Pendurada,
pendente.
“O
jagunço não era afeito à luta regular. Fora até demasia de frase caracterizá-lo
inimigo, termo extemporâneo,217 esquisito eufemismo suplantando o
“bandido famigerado” da literatura marcial das ordens do dia. O sertanejo
defendia o lar invadido, nada mais. Enquanto os que lho ameaçavam permaneciam
distantes, rodeava-os de ciladas que lhes tolhessem o passo. Mas, quando eles,
ao cabo, lhe bateram às portas e lhas arrombaram a coices de armas,
aventou-se-lhe, como único expediente, a resistência a pé firme, afrontando-os
face a face, adstrito à preocupação digna da defesa e ao nobre compromisso da
desforra. Canudos só seria conquistado casa por casa. Toda a expedição iria
despender três meses para a travessia de cem metros, que a separavam da abside218
da igreja nova. E no último dia de sua resistência inconcebível, como bem
poucas idênticas na história, os seus últimos defensores, três ou quatro
anônimos, três ou quatro magros titãs famintos e andrajosos, iriam queimar os
últimos cartuchos em cima de 6 mil homens!”
218. Recinto semicircular ou poligonal, que se
encontra na extremidade da nave das igrejas.
“É
que um bom senso sólido, blindado da frieza que o libertava de quaisquer
perturbações, fizera que ele apanhasse, de um lance, as exigências reais da
luta. Destas – compreendeu-o logo – a menos valiosa era, de certo, a acumulação
de um maior número de combatentes no conflito. Estes, penetrando a região
conflagrada, agravariam antes o estado dos companheiros, que pretendessem
auxiliar, se lá fossem compartir as mesmas provações, reduzir-lhes os recursos
escassos no concorrerem à mesma penúria. O que era preciso combater a todo o
transe, e vencer, não era o jagunço, era o deserto. Fazia-se imprescindível dar
à campanha o que ela ainda não tivera: uma linha e uma base de operações.
Terminava-se por onde devia começar-se. E foi essa a empresa impulsionada com sucesso
pelo ministro. Atraído durante toda a estadia na Bahia por sem número de
questões de pormenores – equipamento dos batalhões que chegavam e acomodações
para as turmas incessantes de feridos – o seu espírito superpunha-lhes sempre
aquele objetivo capital, condição preponderante, e talvez única, do sério
problema a resolver. Venceu-o, por fim, num destruir tenaz de numerosas
dificuldades.
Nos
últimos dias de agosto organizara-se, afinal, definitivamente, um corpo regular
de comboios, atravessando continuamente os caminhos e ligando de modo efetivo,
com breves intervalos de dias, o exército em operações a Monte Santo.
Este
resultado pressagiava o desenlace próximo da contenda. Porque desde o começo,
revelam-no as expedições antecedentes, as causas do insucesso em grande parte
repousavam no insulamento em que cegamente se encravaram os expedicionários
perdendo-se na região estéril, isolando-se diante do inimigo em espetaculosas
diligências policiais, onde não havia rastrear-se os mínimos preceitos da estratégia.
O
marechal Bittencourt fez, pelo menos, isto: transmudou um conflito enorme em
campanha regular. A que até então se fizera traduzira-se num prodigalizar
inútil da bravura, mas o heroísmo e abnegação mais rara não a impulsionaram.
Cristalizara num assédio platônico e dúbio, recortado de fuzilarias inúteis, em
que se jogava nobre e estupidamente a vida. E este prolongar-se-ia,
indeterminado, até que o arraial sinistro absorvesse, um a um, os que o
acometiam. Em tal caso a simples substituição dos que ali tombavam – oito a dez
por dia – por outros, tornava-se um círculo vicioso crudelíssimo. Além disto,
numerosos assaltantes eram uma agravante. Circulariam todo o povoado,
trancar-lhe-iam todas as saídas, mas teriam, passados poucos dias, latentes em
roda, as linhas do outro cerco intangível e formidável – o deserto recretado,
das caatingas, pondo-os nas aperturas crescentes e inelutáveis da fome.
Previu-o
o marechal Bittencourt.
Um
estrategista superior, atraído pela forma técnica e alta da questão, gizaria
rasgos estupendos de tática e não a resolveria. Um lidador brilhante idearia
novas arrancadas impetuosas, que esmagassem de vez a rebeldia, e
extenuar-se-ia, inútil, a marche-marche pelas caatingas. O marechal
Bittencourt, indiferente a tudo isto – impassível dentro da impaciência geral
–, organizava comboios e comprava muares...
De
feito, aquela campanha cruenta e na verdade dramática só tinha uma solução, e
esta singularmente humorística.
Mil
burros mansos valiam na emergência por 10 mil heróis. A luta com todo o seu
cortejo de combates sangrentos descambava, deploravelmente prosaica, a um plano
obscuro.
Dispensava
o heroísmo, desdenhava o gênio militar, excluía o arremesso das brigadas, e
queria tropeiros e azêmolas.283 Esta maneira de ver implicava com o
lirismo patriótico e doía, feito um epigrama284 malévolo da
História, mas era a única. Era forçada a intrusão pouco lisonjeira de tais
colaboradores em nossos destinos. O mais caluniado dos animais ia assentar,
dominadoramente, as patas entaloadas em cima de uma crise, e esmagá-la...
Ademais,
somente eles podiam dar às operações a celeridade exigida pelas circunstâncias.
É o caso que a guerra só podia delongar-se por mais dois meses, no máximo. Mais
três meses seriam – e não havia remover a conclusão inabalável – a derrota, o
abandono de quanto se havia feito, a paralisação obrigada.
Ia
entrar, em novembro, sobre aquela zona, o regímen torrencial e dele decorreriam
consequências insanáveis.
Nos
leitos, até então secos, dos regatos, acachoariam rios de águas barrentas, e o
Vaza-Barris, intumescido de repente, transmudar-se-ia em onda enorme e
dilatada, rolando transbordante, intransponível, cortando todas as
comunicações.
Depois,
quando as caudais se extinguissem, rápidas – porque o turbilhão das águas,
derivando para o S. Francisco e para o mar, se esgota com a mesma celeridade
com que se forma – despontariam entraves mais graves. Sob a adustão dos dias
ardentíssimos, cada banhado, cada lagoa efêmera, cada caldeirão encovado nas
pedras, cada poça de água – é um laboratório infernal, destilando a febre que irradia
latente nos germens do impaludismo,285 profusamente disseminados nos
ares, ascendendo em número infinito de cada ponto em que bata um raio de sol e
descendo sobre as tropas, milhares de organismos em que as fadigas criavam
receptividade mórbida funesta.
Era
preciso liquidar a pendência antes dessa quadra perigosa, dispondo as coisas
para um sítio real e firme determinando a rendição imediata. E, vencido o
inimigo que podia ser vencido, recuar incontinente ante o inimigo invencível e
eterno – a terra desolada e estéril. Mas para tal era indispensável garantir-se
a subsistência do exército que, com os recentes reforços, montaria cerca de 8
mil homens.
Conseguiu-o
o ministro da Guerra.”
283. Bestas de carga. 284. Pequeno poema satírico, de linguagem incisiva e mordaz. Por extensão: zombaria. 285. Malária.
“QUEIMADAS: UMA FICÇÃO GEOGRÁFICA. FORA DA
PÁTRIA.
Queimadas,
povoado desde o começo deste século, mas em plena decadência, fez-se um
acampamento ruidoso O casario pobre, desajeitadamente arrumado aos lados da
praça irregular, fundamente arado pelos enxurros – um claro no matagal bravio
que o rodeia – e, principalmente, a monotonia das chapadas que se desatam em
volta, entre os morros desnudos, dão-lhe um ar tristonho completando-lhe o
aspecto de vilarejo morto, em franco descambar para tapera em ruínas.
Prendiam-se-lhe,
ademais, recordações penosas. Ali tinham parado todas as forças anteriormente
envolvidas na luta, no mesmo prolongamento do largo aberto para a caatinga
cujos tons pardos e brancacentos, de folhas requeimadas, sugeriam a denominação
da vila. Acervos repugnantes de farrapos e molambos; trapos multicores e
imundos, de fardamentos velhos; botinas e coturnos acalcanhados; quepes e
bonés; cantis estrondados; todos os rebotalhos de caserna, esparsos em área
extensa, em que branqueavam restos de fogueiras, delatavam a passagem dos
lutadores, que lá armaram as tendas, a partir da expedição Febrônio. Naquele
chão batido dos rastros de 10 mil homens, haviam turbilhonado na vozeria dos
bivaques3 – paixões, ansiedades, esperanças, desalentos
indescritíveis.
Transposta
acessível ondulação, via-se, recortando o cerrado dos arbustos, um sulco largo
de roçada, retilíneo e longo, que um alvo extremava – a linha de tiro, onde se
exercitara a divisão Artur Oscar. Perto, ao lado, a capela exígua e baixa, como
um barracão murado. E nas suas paredes, cabriolando4 doudamente, a
caligrafia manca e a literatura bronca do soldado. Todos os batalhões haviam
colaborado nas mesmas páginas, escarificando-as a ponta de sabre ou tisnando-as
a carvão, no gravarem as impressões do momento. Eram páginas demoníacas aqueles
muros sacrossantos: períodos curtos, incisivos, arrepiadores; blasfêmias
fulminantes; imprecações, e brados, e vivas calorosos, rajavam-nas em todo o
sentido, profanando-as, mascarando-as, em caracteres negros espetados em pontos
de admiração, compridos como lanças.
Dali
para baixo, no descair de insensível descida, uma vereda estreita e mal afamada
– a estrada de Monte Santo, por onde tinham abalado, esperançosas, três
expedições sucessivas, e de onde chegavam, agora, sucessivamente, bandos
miserandos de foragidos. Vadeado o Jacurici, volvendo águas rasas e mansas, ela
enfiava, inflexa, pelas chapadas fora, ladeada, em começo, por uma outra que
demarcavam os postes da linha telegráfica recentemente estabelecida.
A
linha férrea corre no lado oposto. Aquele liame do progresso passa, porém, por
ali, inútil, sem atenuar sequer o caráter genuinamente roceiro do arraial.
Salta-se do trem; transpõe-se poucas centenas de metros entre casas deprimidas;
e topa-se para logo, à fímbria da praça – o sertão...
Está-se
no ponto de tangência de duas sociedades, de todo alheias uma à outra. O
vaqueiro encourado emerge da caatinga, rompe entre a casaria desgraciosa, e estaca
o campião junto aos trilhos, em que
passam, vertiginosamente, os patrícios do litoral, que o não conhecem.
Os
novos expedicionários ao atingirem-no perceberam esta transição violenta.
Discordância absoluta e radical entre as cidades da costa e as malocas de telha
do interior, que desequilibra tanto o ritmo de nosso desenvolvimento evolutivo
e perturba a unidade nacional. Viam-se em terra estranha. Outros hábitos.
Outros quadros. Outra gente. Outra língua mesmo, articulada em gíria original e
pinturesca. Invadia-os o sentimento exato de seguirem para uma guerra externa.
Sentiam-se fora do Brasil. A separação social completa dilatava a distância
geográfica; criava a sensação nostálgica de longo afastamento da pátria.
Além
disto, a missão que ali os conduzia frisava, mais fundo, o antagonismo. O
inimigo lá estava, para leste e para o norte, homiziado nos sem-fins das
chapadas, e no extremo delas, ao longe, se desenrolava um drama formidável...
Convinha-se
em que era terrivelmente paradoxal uma pátria que os filhos procuravam armados
até os dentes, em som de guerra, despedaçando as suas entranhas a disparos de
Krupps, desconhecendo-a de todo, nunca a tendo visto, surpreendidos ante a
própria forma da terra árida, e revolta, e brutal, esvurmando espinheiros, tumultuando
em pedregais, esboroando em montanhas derruídas, escanceladas em grotões,
ondeando em tabuleiros secos, estirando-se em planuras nuas, de estepes...
O que
ia fazer-se era o que haviam feito as tropas anteriores – uma invasão – em
território estrangeiro. Tudo aquilo era uma ficção geográfica. A realidade,
tangível, enquadrada por todos os sucessos, ressaltando à observação mais
simples, era aquela. Os novos campeadores sentiam-na dominadoramente. E como
aquele povo desconhecido de matutos lhes devolvia, dia a dia, mutilados e
abatidos, os companheiros que meses antes tinham avançado robustos e
altaneiros, não havia ânimo varonil que atentasse impassível para as bandas do
sertão misterioso e agro...”
1. Entortados com o andar, gastos. 2. Estourados, arrebentados. 3. Acampamentos provisórios, a céu
aberto. 4. Volteando, ondulando.
“(Antônio
Conselheiro) Estava rígido e frio, tendo aconchegado do peito um crucifixo de
prata.
Ora,
este acontecimento – capital na história da campanha – e de que parecia dever
decorrer o seu termo imediato, contra o que era de esperar aviventou a
insurreição. É que, gizada talvez pelo espírito astucioso de algum cabecilha,
que prefigurara as consequências desastrosas do fato, ou, o que se pode também
acreditar, nascida espontaneamente da hipnose coletiva, logo que a beataria
impressionada notou a falta do apóstolo, embora este nos últimos tempos
aparecesse raras vezes – se divulgou extraordinária notícia.
Relataram-na
depois, ingenuamente, os vencidos:
Antônio
Conselheiro seguira em viagem para o céu. Ao ver mortos os seus principais
ajudantes e maior o número de soldados, resolvera dirigir-se diretamente à
Providência. O fantástico embaixador estava àquela hora junto de Deus. Deixara
tudo prevenido. Assim é que os soldados, ainda quando caíssem nas maiores
aperturas, não podiam sair do lugar em que se achavam. Nem mesmo para se irem
embora, como das outras vezes. Estavam chumbados às trincheiras. Fazia-se
mister que ali permanecessem para a expiação suprema, no próprio local dos seus
crimes. Porque o profeta volveria em breve, entre milhões de arcanjos, descendo
– gládios71 flamívomos coruscando na altura – numa revoada olímpica,
caindo sobre os sitiantes, fulminando-os e começando o Dia do Juízo...”
71. Espadas.
“A
degolação era, por isto, infinitamente mais prática, dizia-se nuamente. Aquilo
não era uma campanha, era uma charqueada.50 Não era a ação severa
das leis, era a vingança. Dente por dente. Naqueles ares pairava ainda, a
poeira de Moreira César, queimado; devia-se queimar. Adiante, o arcabouço
decapitado de Tamarindo; devia-se degolar. A repressão tinha dois polos – o
incêndio e a faca.
Justificavam-se:
o coronel Carlos Teles poupara certa vez um sertanejo prisioneiro. A ferocidade
dos sicários51 retraíra-se diante da alma generosa de um herói...
Mas
este pagara o deslize imperdoável de ser bom. O jagunço, que salvara, conseguira
fugir e dera-lhe o tiro que o removera do teatro da luta. Acreditava-se nestas
coisas. Inventavam-nas. Eram antecipados recursos absolutórios. Exageravam-se,
calculadamente, outras: os martírios dos amigos trucidados, caídos nas tocaias
traiçoeiras, ludibriados depois de cadáveres e postos como espantalhos à orla
dos caminhos...A selvageria impiedosa amparava-se à piedade pelos companheiros
mortos. Vestia o luto chinês da púrpura52 e, lavada em lágrimas,
lavava-se em sangue.
Ademais,
não havia temer-se o juízo tremendo do futuro. A História não iria até ali.
Afeiçoara-se
a ver a fisionomia temerosa dos povos na ruinaria majestosa das cidades vastas,
na imponência soberana dos coliseus ciclópicos, nas gloriosas chacinas das
batalhas clássicas e na selvatiqueza épica das grandes invasões. Nada tinha que
ver naquele matadouro.
O
sertão é o homizio.53 Quem lhe rompe as trilhas, ao divisar à beira
da estrada a cruz sobre a cova do assassinado, não indaga do crime. Tira o
chapéu, e passa.
E lá
não chegaria, certo, a correção dos poderes constituídos. O atentado era
público. Conhecia-o, em Monte Santo, o principal representante do governo, e
silenciara. Coonestara-o54 com a indiferença culposa. Desse modo a
consciência da impunidade, do mesmo passo fortalecida pelo anonimato da culpa e
pela cumplicidade tácita dos únicos que podiam reprimi-la, amalgamou-se a todos
os rancores acumulados, e arrojou, armada até aos dentes, em cima da mísera
sociedade sertaneja, a multidão criminosa e paga para matar.
Canudos
tinha muito apropriadamente, em roda, uma cercadura de montanhas. Era um
parêntesis; era um hiato. Era um vácuo. Não existia. Transposto aquele cordão
de serras, ninguém mais pecava.55
Realizava-se
um recuo prodigioso no tempo; um resvalar estonteador por alguns séculos
abaixo.
Descidas
as vertentes, em que se entalava aquela furna enorme, podia representar-se lá
dentro, obscuramente, um drama sanguinolento da idade das cavernas. O cenário
era sugestivo. Os atores, de um e de outro lado, negros, caboclos, brancos e
amarelos, traziam, intacta, nas faces, a caracterização indelével e multiforme
das raças – e só podiam unificar-se sobre a base comum dos instintos inferiores
e maus.
A
animalidade primitiva, lentamente expungida pela civilização, ressurgiu,
inteiriça. Desforrava-se afinal. Encontrou nas mãos, ao invés do machado de
diorito e do arpão de osso, a espada e a carabina. Mas a faca relembrava-lhe
melhor o antigo punhal de sílex lascado. Vibrou-a. Nada tinha a temer. Nem
mesmo o juízo remoto do futuro.
Mas
que entre os deslumbramentos do futuro caia, implacável e revolta; sem
altitude, porque a deprime o assunto; brutalmente violenta, porque é um grito
de protesto; sombria, porque reflete uma nódoa – esta página sem brilhos...”
50. Abatedouro (onde se abatem os bois se prepara
o charque). 51. Assassinos de
aluguel. 52. Porque,
tradicionalmente, a cor do luto na China era o vermelho, e não o preto. A
púpura aqui refere-se ao sangue. 53.
Abrigo de criminosos. 54.
Legitimara-o. 55. Paráfrase da já
mencionada expressao de Gaspar Baléu, ultra
aequinoctalien non peccari.
“Por
toda a banda realizavam-se idênticos arremessos e idênticos recuos. O último
estortegar111 dos vencidos quebrava a musculatura de ferro das
brigadas.
Entretanto,
pouco antes de nove horas, alentou-as a ilusão arrebatadora da vitória. Ao
avançar um dos batalhões de reforço, um cadete do 7.° cravara nas junturas das
paredes estaladas da igreja a bandeira nacional. Ressoaram dezenas de cornetas
e um viva à República saltou, retumbando, de milhares de peitos. Surpreendidos
com o inopinado da manifestação, os sertanejos amorteceram e cessaram o
tiroteio. E a praça, pela primeira vez, desbordou de combatentes. Muitos
espectadores desceram, rápidos, as encostas. Desceram os três generais. Ao
passarem pela baixada da linha negra, viram às encontroadas entre quatro
praças, dois jagunços presos. Adiante e aos lados – agitando os chapéus,
agitando as espadas e as espingardas, cruzando-se, correndo, esbarrando-se,
abraçando-se, torvelinhando pelo largo – combatentes de todos os postos em
delírios de brados e ovações estrepitosas.
Terminara
afinal a luta crudelíssima...
Mas
os generais seguiam com dificuldades, rompendo pela massa tumultuária e
ruidosa, na direção da latada, quando, ao atingirem grande depósito de cal que
a defrontava, perceberam surpreendidos, sobre as cabeças, zimbrando112
rijamente os ares, as balas...
O
combate continuava. Esvaziou-se, de repente, a praça.
Foi
uma vassourada.
E
volvendo de improviso às trincheiras, volvendo em corridas para os pontos
abrigados, agachados em todos os anteparos, esgueirando-se cosidos às barrancas
protetoras do rio, retransidos de espanto, tragando amargos desapontamentos,
singularmente menoscabados na iminência do triunfo, chasqueados113
em pleno agonizar dos vencidos – os triunfadores, aqueles triunfadores, os mais
originais entre todos os triunfadores memorados pela História, compreenderam
que naquele andar acabaria por devorá-los, um a um, o último reduto combatido.
Não lhes bastavam 6 mil mannlichers e 6 mil sabres; e o golpear de 12 mil
braços, e o acalcanhar de 12 mil coturnos; e 6 mil revólveres; e vinte canhões,
e milhares de granadas, e milhares de schrapnels;
e os degolamentos, e os incêndios, e a fome, e a sede; e dez meses de combates,
e cem dias de canhoneio contínuo; e o esmagamento das ruínas; e o quadro
indefinível dos templos derrocados; e, por fim, na ciscalhagem das imagens
rotas, dos altares abatidos, dos santos em pedaços – sob a impassibilidade dos
céus tranquilos e claros – a queda de um ideal ardente, a extinção absoluta de
uma crença consoladora e forte...
Impunham-se
outras medidas. Ao adversário irresignável as forças máximas da natureza,
engenhadas à destruição e aos estragos. Tinham-nas, previdentes. Havia-se
previsto aquele epílogo assombroso do drama. Um tenente, ajudante de ordens do
comandante geral, fez conduzir do acampamento dezenas de bombas de dinamite.
Era justo; era absolutamente imprescindível. Os sertanejos invertiam toda a
psicologia da guerra: enrijavam-nos os reveses, robustecia-os a fome,
empedernia-os a derrota.
Ademais
entalhava-se o cerne de uma nacionalidade.
Atacava-se
a fundo a rocha viva da nossa raça. Vinha de molde a dinamite. Era uma
consagração.
Cessaram
as fuzilarias; e desceu sobre todas as linhas um grande silencio de expectativa
ansiosa... Logo depois correu um frêmito pela cercadura do sítio; espraiou-se
pela periferia dilatada; passou, vibrátil, pelo acampamento; passou, num súbito
estremeção, pelas baterias dos morros; e avassalou a redondeza, num trêmulo
vibrante de curvas sismais114 cruzando-se pelo solo. Tombaram os
dentilhões despegados das igrejas; desaprumaram-se paredes, caindo; voaram
tetos e tetos; tufou um cumulus de poeira espessando a afumadura dos ares; e,
dentre centenares de exclamações irreprimidas, de espanto, retumbou a atroada
de explosões fortíssimas. Parecia tudo acabado. O último trecho de Canudos
arrebentava todo.
Os
batalhões, embolados pelos becos, fora da zona mortífera das traves e cumeeiras
que zuniam, em estilhas, sulcando para toda a banda o espaço, aguardavam que se
diluísse aquele bulcão115 de chamas e pó, para o derradeiro
acontecimento.
Mas
não o executaram. Houve ao contrário um recuo repentino. Batidos de descargas
que não se compreendia como e eram feitas daqueles braseiros e entulhos, os
assaltantes acobertaram-se em todas as esquinas, esgueiraram-se pelas abas dos
casebres e pularam, na maioria, para trás dos entrincheiramentos.
Adiante
atordoava-os assonância indescritível de gritos, lamentos, choros e
imprecações, refletindo do mesmo passo o espanto, a dor, o exaspero e a cólera
da multidão turturada que rugia e chorava. Via-se indistinto entre lumaréus116
um convulsivo pervagar de sombras: mulheres fugindo dos habitáculos em fogo,
carregando ou arrastando crianças e entranhando-se, às carreiras, no mais fundo
do casario; vultos desorientados, fugindo ao acaso para toda a banda; vultos
escabujando por terra, vestes presas das chamas, ardendo; corpos esturrados,
estorcidos, sob fumarentos... E, dominantes, sobre este cenário estupendo,117
esparsos, sem cuidarem de ocultar-se, saltando sobre os braseiros e
aprumando-se sobre os colmos ainda erguidos, os últimos defensores do arraial.
Ouviam-se as suas apóstrofes rudes, distinguiam-se vagamente os seus perfis
revoluteando por dentro da fumarada; e por toda a parte, salteadamente, a dois
passos das linhas de fogo, aparecendo improvisas fisionomias sinistras, laivadas118
de mascarras,119 bustos desnudos chamuscados, escoriados,
embatendo-as, em assaltos temerários e doudos...
Vinham
matar os adversários sobre as próprias trincheiras. Estes esmoreciam.
Verificaram a inanidade do bombardeio, das cargas repetidas e do recurso
extremo da dinamite. Desanimavam. Perderam a unidade de ação e do comando. Os
toques das cornetas contrabatiam-se, discordes, interferentes nos ares, sem que
ninguém os entendesse. Não havia obedecê-los, variando as condições táticas a
cada minuto e a cada passo. As seções de uma mesma companhia avançavam,
recuavam ou imobilizavam-se; subdividiam-se em todas as esquinas; misturavam-se
com as de outros corpos; embatiam com as casas ou contornavam-nas, ou
dispersavam-se aliando-se a outros grupos e reeditando, dados alguns passos, as
mesmas avançadas e os mesmos recuos, e a mesma dispersão. De sorte que, por
fim, se agitavam em bandos desorientados, em que se amalgamavam praças de todos
os batalhões.
Aproveitando
este tumulto, os jagunços fuzilaram-nos a salvo e sem piedade. A breve trecho
os combatentes, que não tinham o anteparo dos espaldões, acumularam-se às abas
das vivendas ainda intactas, ou alongaram-se, distanciados, pelos becos da
parte conquistada – evitando a zona perigosa. Esta, porém, alastrava-se.
Baqueavam combatentes para além das trincheiras; caíam inteiramente fora da
órbita flamejante do combate e, como nos maus dias da primeira semana do
assédio, a mínima imprevidência e o mais rápido afastamento daqueles abrigos
frágeis eram uma temeridade.
O
capitão-secretário do comando da 2.ª coluna, Aguiar e Silva, quando lhe passava
por perto um pelotão em marcha, retirou-se por um instante do cunhal que o
acobertava e, para animar o ataque, tirou entusiasticamente o chapéu,
levantando um viva à República. Mas não pronunciou as últimas sílabas. Varou-o
uma bala, em pleno peito, derrubando-o.
O
comandante do 25.°, major Henrique Severino, teve idêntico destino. Era uma
alma belíssima, de valente. Viu em plena refrega uma criança a debater-se entre
as chamas. Afrontou-se com o incêndio. Tomou-a nos braços; aconchegou-a do
peito – criando com um belo gesto carinhoso o único traço de heroísmo que houve
naquela jornada feroz – e salvou-a.
Mas
expusera-se. Baqueou, malferido, falecendo poucas horas depois.
E
assim por diante. O combate transformara-se em tortura inaturável para os dous
antagonistas.”
111. Contorção de dor. 112. Açoitando. 113.
Zombados. 114. O mesmo que
“sísmicas”. 115. Nuvem espessa. 116. Madeira em chamas. 117. Assombroso, monstruoso. 118. Sujas, manchadas. 119. Fuligem.
“A
entrada dos prisioneiros foi comovedora. Vinha solene, na frente o Beatinho,
teso o torso desfibrado, olhos presos no chão, o com o passo cadente e tardo
exercitado desde muito nas lentas procissões que compartira. O longo cajado
oscilava-lhe à mão direita, isocronamente, feito enorme batuta, compassando a
marcha verdadeiramente fúnebre. A um de fundo, a fila extensa, tracejando
ondulada curva pelo pendor da colina, seguia na direção do acampamento,
passando ao lado do quartel da primeira coluna e acumulando-se, cem metros
adiante, em repugnante congérie de corpos repulsivos em andrajos.
Os
combatentes contemplavam-nos entristecidos. Surpreendiam-se; comoviam-se. O
arraial, in extremis, punha-lhes adiante, naquele armistício transitório, uma
legião desarmada, mutilada, faminta e claudicante, num assalto mais duro que o
das trincheiras em fogo. Custava-lhes admitir que toda aquela gente inútil e
frágil saísse tão numerosa ainda dos casebres bombardeados durante três meses.
Contemplando-lhes os rostos baços, os arcabouços esmirrados e sujos, cujos
mulambos em tiras não encobriam lanhos, escaras e escalavros – a vitória tão
longamente apetecida decaía de súbito. Repugnava aquele triunfo. Envergonhava.
Era, com efeito, contraproducente compensação a tão luxuosos gastos de
combates, de reveses e de milhares de vidas, o apresamento daquela caqueirada
humana – do mesmo passo angulhenta e sinistra, entre trágica e imunda,
passando-lhes pelos olhos, num longo enxurro de carcaças e molambos...
Nem
um rosto viril, nem um braço capaz de suspender uma arma, nem um peito
resfolegante de campeador domado: mulheres, sem número de mulheres, velhas
espectrais, moças envelhecidas, velhas e moças indistintas na mesma fealdade,
escaveiradas e sujas, filhos escanchados nos quadris desnalgados, filhos
encarapitados às costas, filhos suspensos aos peitos murchos, filhos afastados
pelos braços, passando; crianças, sem número de crianças; velhos, sem número de
velhos; raros homens, enfermos opilados, faces túmídas e mortas, de cera,
bustos dobrados, andar cambaleante.
Pormenorizava-se.
Um velho absolutamente alquebrado, soerguindo por alguns companheiros,
perturbava o cortejo. Vinha contrafeito. Forçava por se livrar e volver atrás
os passos. Voltava-se, braços trêmulos e agitados, para o arraial onde deixara
certo os filhos robustos, na última refrega. E chorava. Era o único que
chorava. Os demais prosseguiam impassíveis. Rígidos anciãos, aquele desfecho
cruento, culminando-lhes a velhice, era um episódio somenos entre os transes da
vida nos sertões. Alguns respeitosamente se desbarretavam ao passarem pelos
grupos de curiosos. Destacou-se, por momentos, um. Octogenário, não se lhe
dobrava o tronco. Marchava devagar e de quando em quando parava. Considerava
por instantes a igreja e reatava a marcha; para estacar outra vez, dados alguns
passos, voltar-se lançando novo olhar ao templo em ruínas e prosseguir,
intermitentemente, à medida que se escoavam pelos seus dedos as contas de um
rosário. Rezava. Era um crente. Aguardava talvez ainda o grande milagre
prometido...
Alguns
enfermos graves vinham carregados. Caídos logo aos primeiros passos, passavam,
suspensos pelas pernas e pelos braços, entre quatro praças. Não gemiam, não
estortegavam; lá se iam imóveis e mudos, olhos muito abertos e muito fixos,
feito mortos. Aos lados, desorientadamente, procurando os pais que ali estavam
entre os bandos ou lá embaixo mortos, adolescentes franzinos, chorando,
clamando, correndo. Os menores vinham às costas dos soldados agarrados às
grenhas despenteadas há três meses daqueles valentes que havia meia hora ainda
jogavam a vida nas trincheiras e ali estavam, agora, resolvendo
desastradamente, canhestras amas-secas, o problema difícil de carregar uma
criança. Uma megera assustadora, bruxa rebarbativa e magra – a velha mais
hedionda talvez destes sertões – a única que alevantava a cabeça espalhando
sobre os espectadores, como faúlhas, olhares ameaçadores; e nervosa e agitante,
ágil apesar da idade, tendo sobre as espáduas de todo despidas, emaranhados, os
cabelos brancos e cheios de terra – rompia, em andar sacudido, pelos grupos
miserandos, atraindo a atenção geral. Tinha nos braços finos uma menina, neta,
bisneta, tataraneta talvez. E essa criança horrorizava. A sua face esquerda
fora arrancada, havia tempos, por um estilhaço de granada; de sorte que os
ossos dos maxilares se destacavam alvíssimos, entre os bordos vermelhos da
ferida já cicatrizada... A face direita sorria. E era apavorante aquele riso
incompleto e dolorosíssimo aformoseando uma face e extinguindo-se
repentinamente na outra, no vácuo de um gilvaz.133”
125. A intervalos iguais. 126. Cortes. 127.
Crostas de ferimentos. 128.
Arranhões. 129. Quadris muito
estreitos e magros. 130. Que sofre
de opilação (espécie de verminose); amarelados, inchados. 131. Sangrento. 132.
Descobriam a cabeça, em sinal de respeito. 133.
Ferimento na face.
“Não
há relatar o que houve a 3 e a 4.
A
luta, que viera perdendo dia a dia o caráter militar, degenerou, ao cabo,
inteiramente. Foram-se os últimos traços de um formalismo inútil: deliberações
de comando, movimentos combinados, distribuições de forças, os mesmos toques de
cornetas, e por fim a própria hierarquia, já materialmente extinta num exército
sem distintivos e sem fardas.
Sabia-se
de uma coisa única: os jagunços não poderiam resistir por muitas horas. Alguns
soldados se haviam abeirado do último reduto e colhido de um lance a situação
dos adversários. Era incrível: numa cava quadrangular, de pouco mais de metro
de fundo, ao lado da igreja nova, uns vinte lutadores, esfomeados e rotos,
medonhos de ver-se, predispunham-se a um suicídio formidável. Chamou-se aquilo
o “hospital de sangue” dos jagunços. Era um túmulo. De feito, lá estavam, em
maior número, os mortos, alguns de muitos dias já, enfileirados ao longo das
quatro bordas da escavação e formando o quadrado assombroso dentro do qual uma
dúzia de moribundos, vidas concentradas na última contração dos dedos nos
gatilhos das espingardas, combatiam contra um exército.
E
lutavam com relativa vantagem ainda.
Pelos
menos fizeram parar os adversários. Destes os que mais se aproximaram lá
ficaram, aumentando a trincheira sinistra de corpos esmigalhados e sangrentos.
Viam-se, salpintando o acervo de cadáveres andrajosos dos jagunços, listras
vermelhas de fardas e entre elas as divisas do sargento-ajudante do 39.°, que
lá entrara, baqueando logo. Outros tiveram igual destino. Tinham a ilusão do
último recontro feliz e fácil: romperam pelos últimos casebres envolventes,
caindo de chofre sobre os titãs combalidos, fulminando-os, esmagando-os...
Mas
eram terríveis lances, obscuros para todo o sempre. Raro tornavam os que os
faziam. Aprumavam-se sobre o fosso e sopeava-lhes o arrojo o horror de um
quadro onde a realidade tangível de uma trincheira de mortos, argamassada de
sangue e esvurmando pus, vencia todos os exageros da idealização mais ousada. E
salteava-os a atonia do assombro...
Fechemos
este livro.
Canudos
não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento
completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia
5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram.
Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos
quais rugiam raivosamente 5 mil soldados.
Forremo-nos
à tarefa de descrever os seus últimos momentos. Nem poderíamos fazê-lo. Esta
página, imaginamo-la sempre profundamente emocionante e trágica; mas cerramo-la
vacilante e sem brilhos.
Vimos
como quem vinga uma montanha altíssima. No alto, a par de uma perspectiva
maior, a vertigem...
Ademais,
não desafiaria a incredulidade do futuro a narrativa de pormenores em que se
amostrassem mulheres precipitando-se nas fogueiras dos próprios lares,
abraçadas aos filhos pequeninos...”