sexta-feira, 10 de outubro de 2025

A conspiração lava jato: o jogo político que comprometeu o futuro do país (Parte III), de Luis Nassif

Editora: Contracorrente

ISBN: 978-65-5396-204-0

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 534

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Sinopse: Ver Parte I


 

“O jogo já está desvendado.

1. O Procurador Geral da República Rodrigo Janot vai aos Estados Unidos com a equipe da Lava Jato entregar provas contra a Petrobras ao Departamento de Justiça (DoJ) americano. Com essa manobra, tiraram a Petrobras da condição de vítima, para a de ré. Alertei, na época, que essa jogada ainda irá levar Janot a um tribunal civil, para que responda pelo crime de lesa-pátria.

2. Na nova condição, a Petrobras ficou exposta não apenas a multas bilionárias, como impedida de atuar em novos mercados, vetados pelos Estados Unidos.

3. O dinheiro da multa foi dividido com a Lava Jato, que efetivamente recebeu e depositou em uma agência da Caixa Econômica Federal aguardando a criação da tal fundação destinada a bancar campanhas, palestras e cursos sobre compliance.

4. Os principais integrantes da Lava Jato montaram empresas de evento ou se aposentaram para montar escritórios de advocacia especializados em compliance. Dentre eles, o ex-PGR Rodrigo Janot, a esposa do ex-juiz Sérgio Moro, os procuradores Carlos Fernando dos Santos Lima, Deltan Dallagnol e Roberto Pozzobon.

5. Ao mesmo tempo, a parceria com a nova diretoria da Petrobras abriu espaço para a contratação milionária de escritórios de advocacia americano para trabalhos de compliance, não apenas na Petrobras como na Eletrobras, por centenas de milhões de dólares.

6. A principal beneficiária da indústria do compliance foi Ellen Gracie, ex-Ministra da Supremo Tribunal Federal (STF). Coube a ela ser a interface da Petrobras com a Lava Jato. Nessa condição, procurou pessoalmente a PGR Raquel Dodge, tentando incluir no acordo um edifício da Petrobras em Curitiba – o escritório da Liquigás – para abrigar a Lava Jato. Dodge negou peremptoriamente autorização para a jogada.

Provavelmente no dossiê Intercept haverá menções a autoridades na ativa que impulsionaram os escritórios dos quais se licenciaram na indústria do compliance ou das grandes causas.

Aliás, pelo bem da transparência pública, os Ministros Luiz Edson Fachin e Luís Roberto Barroso deveriam abrir informações sobre a carteira de clientes de seus escritórios que ficaram em nome de familiares.

Antes de ser nomeado para o STF e se tornado um juiz vingador, Fachin tinha um escritório acanhado que rapidamente cresceu a ponto de se tornar um dos maiores do Paraná. E especializado em compliance.

Barroso e Marcelo Bretas, juiz da Lava Jato do Rio, chegaram a ir aos Estados Unidos, em uma turnê sobre compliance, visitando grandes escritórios de advocacia interessados176 em entrar no mercado brasileiro.

Um certo Instituto New Law deu o passo mais atrevido na consolidação do lobby da indústria do compliance no Brasil – uma cadeia improdutiva que tem exposto estatais brasileiras a contratos gigantescos com escritórios de advocacia americanos, visando implementar processos contra corrupção.

De 23 a 26 de abril de 2019 houve a “Missão Nova York – Anticorrupção e compliance”, com a ida de 25 autoridades brasileiras para contatos com escritórios de advocacia, empresas de investigação sediadas em Manhatan e universidades.

Do grupo faziam parte o Ministro Luís Roberto Barroso, do STF (Supremo Tribunal Federal), o juiz Marcelo Bretas, da Lava Jato Rio de Janeiro, e Maurício Valeixo, diretor geral da Polícia Federal.

Dois dos diretores do Instituto eram juízes federais.

Aparentemente, o mercado aberto pela Lava Jato levou a uma perda generalizada de pudor atingindo todas as instâncias.

 

O escândalo do compliance na Eletrobras

O escritório de Ellen Gracie, ex-Ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) foi contratado por R$ 4 milhões para supervisionar os escritórios estrangeiros contratados para o trabalho de compliance na Petrobras. Depois, por mais R$ 700 mil para supervisionar os escritórios de advocacia na Eletrobras.177

Coube a ela a contratação da Baker McKenzie para a Petrobras e a Hogan Lovells para a Eletrobras. Ellen ampliou o escopo inicial das investigações em cinco vezes em relação ao planejamento inicial. Foram contratados mais de cem profissionais.

Segundo levantamento da Broadcast,178 as investigações foram ampliadas para mais nove empresas. No início, era para ser apenas nas usinas Angra 3, Jirau, Belo Monte e Santo Antônio. Ellen ampliou para as usinas Teles Pires, São Manoel, Mauá 3, Simplícia e Tumarin.

Em 26 de janeiro de 2018, o repórter Vinicius Sassine, da revista Época,179 apurou diversos fatos estranhos nos contratos.

As informações sobre o contrato não foram passadas para o mercado – e a Eletrobras é uma companhia de capital aberto. Nada se falou sobre os honorários da Hogan Lovells, nem sobre os valores pagos a empresas de investigação – Kroll e Control Risks – e grandes escritórios brasileiros, subcontratados, como a Wfarias advogados.

Segundo a reportagem,

o valor inicial dos serviços – R$ 6,4 milhões – era inofensivo. Mas depois vieram os reajustes, bem ao estilo dos negócios do setor público. A Eletrobras assinou um novo contrato, 2.956% maior com a Hogan Lovells, fez ainda um aditivo a este contrato sem dar explicações ao mercado e escondeu quanto de fato gastou com a Kroll e outras subcontratadas.

Assim, o acerto com o escritório saltou dos R$ 6,4 milhões iniciais para R$ 235,5 milhões. Não parou aí. Novos gastos vieram. Até setembro do ano passado, o gasto total com as investigações internas já chegava aos R$ 340 milhões – incluía também os honorários dos integrantes da Comissão Independente de Gestão da Investigação, estabelecida para supervisionar os trabalhos da Hogan Lovells e da qual faz parte até a ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Ellen Gracie. No fim de dezembro de 2017, a Eletrobras informou a assinatura de um novo contrato com o escritório americano, de R$ 42,8 milhões. Os gastos com investigação interna vão, assim, se aproximar dos R$ 400 milhões.

As investigações terminaram e foram mantidas em sigilo. Qual a razão?

Nova reportagem, do mesmo Vinicius Sassine e de Leandro Prazeres180 mostrou que as investigações não levaram a nada: R$ 400 milhões que não identificaram nenhum tostão de desvio. Apenas com as delações da Lava Jato conseguiu-se chegar a um montante desviado, R$ 165 milhões, 2,5 vezes menos do que o total pago aos investigadores.

Veja, então, o tamanho do imbróglio.

Conferiu-se a uma pessoa – a ex-Ministra Ellen Gracie – o poder de indicar livremente um escritório de advocacia estrangeiros e, também, o de influenciar na indicação dos escritórios brasileiros subcontratados.

A remuneração da ex-Ministra saía dos honorários do escritório contratado.

Escondeu-se o valor do contrato do mercado e o valor das subcontratações da própria diretoria da empresa.

Manteve-se sob sigilo o resultado das investigações, que não levaram a nada, a ponto de os jornalistas precisarem recorrer ao Tribunal de Contas da União para conseguir os dados.

Nenhuma das irregularidades identificadas foi fruto dos trabalhos do escritório.

O valor levantado, sobre as irregularidades, é 2,5 vezes menor que o valor pago ao escritório norte-americano.

Em país sério, esse episódio mereceria uma investigação ou uma CPI. Ou, no mínimo, uma denúncia de um procurador independente.

Nada aconteceu.

 

O mistério dos negócios da Lava Jato com os grandes bancos

Há muitos caminhos a serem mapeados pelo Conselho Nacional de Justiça para identificar os caminhos do dinheiro da Lava Jato.

Por exemplo, ao fechar o acordo de leniência com a Petrobras – e não com a União, como manda a lei –, a Lava Jato conseguiu o seguinte:

Envolver o Departamento de Justiça americano, que ficou com parte das multas, deixando a outra metade para a Fundação da Lava Jato.

Fazer com que a Petrobras contratasse, sem licitação, o escritório curitibano de Renée Ariel Dotti, apesar de ter um corpo jurídico robusto.

Apesar da grande reputação de seu titular, falecido recentemente, não se poderá escapar de uma análise das contas do escritório.

É um caso clássico de tentativa de peculato, que só parou quando o GGN denunciou a Fundação Lava Jato e o Ministro Alexandre de Moraes proibiu seu funcionamento. Uma tentativa de peculato prevê uma redução de 1/3 na pena, de um golpe de mais de R$ 2 bilhões.”

176. NASSIF, Luís. “Barroso e Bretas vão a NY reforçar o lobby do compliance”. Jornal GGN, abr. 2019. Disponível em: https://qrcd.org/48Qq. Acessado em: 09.05.2024.

177. RAMOS, Murilo. “Escritório de Ellen Gracie é contratado para fiscalizar trabalho na Eletrobras”. Época, set. 2016. Disponível em: https://qrcd.org/3nWK. Acessado em: 09.05.2024.

178. ÉPOCA. “Investigação na Eletrobras se torna cinco vezes maior”. Época, dez. 2015. Disponível em: https://qrcd.org/48Qu. Acessado em: 09.05.2024.

179. SASSINE, Vinicius. “Eletrobras Contratou investigadores americanos por 400 milhões para apurar corrupção”. Época, jan. 2018. Disponível em: https://qrcd.org/3nwm. Acessado em: 09.05.2024.

180. PRAZERES, Leandro; SASSINE, Vinícius. “Auditoria de R$ 400 milhões em obras da Eletrobras só andou após a Lava-Jato”. O Globo, out. 2019. Disponível em: https://qrcd.org/3nWO. Acessado em: 09.05.2024.

 

 

“O episódio é relevante para lembrar que a imprensa tem uma dívida para com o jornalismo: apurar as denúncias que ficaram no ar, em relação à Lava Jato.

Aqui, uma pequena relação, já levantada pelo GGN.

1. “Família Dallagnol recebeu indenização por gleba com sobrepreço estimado em R$ 147 milhões”.183 O INCRA entrou com uma ação para derrubar acordos feitos na Justiça Federal, e que garantiram o sobrepreço.

2. Enquanto o INCRA tentava recuperar o sobrepreço, de repente Dallagnol e família abriram várias empresas e conseguiram a representação de lojas em diversos shoppings. A história foi abordada em “A expansão repentina dos negócios da família Dallagnol”.184

3. Não se ficou nisso. No mesmo período adquiriu um apartamento no prédio de alto padrão onde morava. O apartamento foi adquirido em um leilão judicial, mesmo sendo vedada a participação de pessoas ligadas ao Judiciário da região do leilão. A história foi contada em “A expansão repentina dos negócios da família Dallagnol”.

4. Dallagnol foi contratado para uma palestra pela empresa Neoway, de bigdata. No mesmo evento gravou um comercial para a empresa e tentou utilizar seus sistemas para a base de dados da Lava Jato. A empresa foi citada por corrupção na Petrobras e autuada em Santa Catarina por suborno. “Xadrez de como Dallagnol se tornou lobista de empresa citada na Lava Jato”.185

5. Uma delação de Paulo Roberto, diretor da Petrobras, implicou o lobista carioca Mariano Marcondes Ferraz, do board da Trafigura – uma das maiores comercializadoras de petróleo do mundo, e grande cliente da Petrobras. No meio do caminho, a Trafigura desaparece e Mariano é processado apenas por um bico feito para uma empresa italiana no porto de Suape. A história é contada em “Como a Lava Jato beneficiou a principal concorrente do Brasil na África”.186

6. A Lava Jato do Rio de Janeiro apurou que Dario Messer, o principal doleiro do país, remetia mensalmente 15 mil dólares para supostamente conseguir o silêncio de procuradores de Curitiba. Nada aconteceu com a denúncia, apesar de Messer jamais ter sido investigado pela Lava Jato e de um dos procuradores ter dado um depoimento em sua defesa. “Delação de Dario Messer amplia as suspeitas sobre Lava Jato de Curitiba”.187

7. Na negociação para se apossar-se de 2,5 bilhões para a tal Fundação Lava Jato, reservou-se a metade para indenizar supostos acionistas brasileiros que entrariam com ações contra a Petrobras. Não havia nenhum aliado dos procuradores para conseguir o impeachment de Gilmar Mendes.”

183 LODI, Gabriella. “Família Dallagnol recebeu indenização por gleba com sobrepreço estimado em R$ 147 milhões”. Jornal GGN, 21 jun. 2022. Disponível em: https://encurtador.com.br/fy4dR. Acessado em: 22.06.2024.

184 NASSIF, Luís. “A expansão repentina dos negócios da família Dallagnol”. Jornal GGN, nov. 2021. Disponível em: https://tinyl.io/Asq8. Acessado em: 19.06.2024.

185 NASSIF, Luís. “Xadrez de como Dallagnol se tornou lobista de empresa citada na Lava Jato”. Jornal GGN, set. 2019. Disponível em: https://tinyl.io/AsqE. Acessado em: 19.06.2024.

186 NASSIF, Luís. “Como a Lava Jato beneficiou a principal concorrente do Brasil na África”. Jornal GGN, nov. 2017. Disponível em: https://tinyl.io/AsqH. Acessado em: 19.06.2024.

187 NASSIF, Luís. “Delação de Dario Messer amplia as suspeitas sobre Lava Jato de Curitiba”. Jornal GGN, ago. 2020. Disponível em: https://tinyl.io/AsqL. Acessado em: 19.06.2024.

 

 

Experian-José Serra – No final de sua gestão como governador, José Serra doou para a Serasa-Experian o CADIN (Cadastro dos Inadimplentes), sem nenhuma contrapartida para o Estado. Meses depois, a Experian adquiriu de Verônica Serra a empresa de telemarketing Verid. A empresa deveria valer no máximo R$ 15 milhões. Foi comprada por mais de R$ 100 milhões. Como a Experian tem ações na Bolsa de Londres, solicitamos informações sobre o valor pago. E a resposta foi de que era sigiloso. Com a porta aberta por São Paulo, a Serasa-Experian negociou com vários outros Estados. Empenhada em politizar a Lava Jato, e como, na época, havia uma blindagem ampla sobre o PSDB, nem Ministério Público Estadual, nem estadual, nem a imprensa se interessaram pela denúncia.

A própria casa de Serra, na praça Panamericana, foi esquentada através de um contrato entre sua filha Verônica com a irmã de Daniel Dantas, em um site em Miami que nunca levantou voo. No início, o tal site conseguiu acesso a todos os extratos do Banco do Brasil.”

 

 

Como entender essa blindagem da Trafigura por parte da Lava Jato? Deslumbramento com um lobista internacional, frequentador do alto mundo, da mesma maneira que se deslumbraram com madames cariocas? Desinteresse pelo fato de não ter nada a declarar contra Lula? Displicência? Confirmação de que o único objetivo da Lava Jato era destruir as empresas brasileiras mais competitivas internacionalmente, especialmente as que atuavam na África? Suborno, através da indústria da delação premiada?

Hoje em dia, o portal da Lava Jato esmera-se em apresentar estatísticas sobre a maior Operação anticorrupção do planeta. Não há explicações para o fato de ter estendido a rede, nela caído o principal tubarão da corrupção planetária, e a Lava Jato ter facilitado a sua fuga.

Não há explicações para a dupla vitória da Trafigura com a Lava Jato. De um lado, destruindo a influência brasileira em Angola, as principais concorrentes tanto no setor petrolífero quanto da infraestrutura, criminalizando financiamentos e até ação diplomática. De outro, por tê-la deixado escapar sem uma mancha sequer.

Quanto a Mariano Marcondes Ferraz, saiu inteiro. Pagou uma multa e voltou às suas atividades de lobista. Perdeu o cargo no board da Trafigura, mas manteve-se sócio da empresa. Recentemente, adquiriu uma mansão de R$ 14 milhões.

Agora, a empresa está acertando um acordo com o Departamento de Justiça, em um processo cuja base é a delação da Marcondes Ferraz. No Brasil, as acusações de suborno continuam paradas no ar. O processo está pendente. Os principais acusados não foram interrogados e há uma discussão se o caso é da justiça federal ou eleitoral.”

 

 

Capítulo 3: a poderosa República de Curitiba

A Lava Jato começou em 2014, mas sua equipe – incluindo o procurador Januário Paludo, atuou no caso Banestado. Naquela Operação, os alvos principais foram os doleiros do período.

O maior deles, Dario Messer, saiu incólume. O doleiro detido foi Alberto Yousseff, peixe pequeno perto de Messer. Sua delação mirou um concorrente de Messer, Antônio de Oliveira Claramunt, o Toninho Barcelona.

Yousseff saiu do acordo com um patrimônio entre US$ 20 milhões e US$ 25 milhões. Logo voltou ao mercado. Intrigado com o renascimento rápido do doleiro, o delegado federa Gerson Machado decidiu investigar e indagou dele a razão de ter preservado o patrimônio. Sua resposta foi a de que nenhuma autoridade havia lhe perguntado. Gerson Machado alertou pessoalmente o juiz Sérgio Moro e o procurador Deltan Dallagnol. Nada fizeram. Yousseff continuou na ativa até 2014. Messer permaneceu intocado.

Os anos de cooperação na Banestado, mais a blindagem da mídia, forjaram um grupo de delegados e procuradores com poderes absolutos, que não mais respondiam aos comandos de Brasília. Sem nenhuma espécie de controle externo, sem nenhuma prática de compliance, ser honesto ou não passou a depender da convicção pessoal de cada um, não de modelos de controle e regulação.

Dentro da PF, quem ousasse questionar os métodos do grupo era imediatamente esmagado pela reação da própria PF, dos procuradores e do juiz Sérgio Moro. Foi o que aconteceu com o delegado Gerson Machado, pressionado de tal maneira que soçobrou vítima de uma depressão profunda e de uma tentativa de suicídio.

O mesmo ocorreu no episódio dos dois grampos clandestinos colocados no fumódromo e na cela do doleiro Alberto Yousseff.

Os grampos foram localizados no dia 30 de março de 2014. Houve uma sindicância presidida pelo delegado Maurício Moscardi Grillo que concluiu que o aparelho era antigo e não funcionava. O resultado da sindicância foi aceito pelo juiz Sérgio Moro.

Os grampos foram colocados na cela por ordem do delegado Igor Romário de Paula, chefe da Delegacia Regional ao Crime Organizado e de sua esposa Daniele Gossenheimer Rodrigues, chefe do Núcleo de Inteligência Policial. Quem colocou foi o agente Dalmey Fernando Werlang, 32 anos na PF, especialista em monitoramento.

Quando a história se tornou pública, Dalmey constatou que não havia autorização judicial para a colocação do grampo. Convocado pela CPI da Petrobras, reiterou esse questionamento.

A reação do MPF se deu através do procurador da República do Paraná, Daniel Holzmann Coimbra, um dos responsáveis pelo controle externo da PF. Em vez de investigar as denúncias, Holzmann acusou o delegado Mário Fanton e o agente Dalmey de serem “dissidentes” e de caluniarem colegas de trabalho. A representação foi vazada para o jornal Estado de São Paulo antes mesmo de ser protocolada na 1ª Vara Federal. A denúncia foi rejeitada pelo juiz Danilo Pereira Junior, da 14ª Vara Federal de Curitiba.

A ação da PF contra os delegados profissionais, taxados de “dissidentes” foi extensamente coberta por um trabalho excepcional do repórter Marcelo Auler.217

Os Policiais Federais envolvidos nos dois casos compuseram o comando maior da Polícia Federal de Sérgio Moro.

 

Capítulo 4: a blindagem da mídia

O segundo ponto de blindagem foi o apoio integral dado pela mídia, que se transformou em mera repassadora de releases da Lava Jato.

A denúncia da suspeita de suborno do procurador Januário Paludo, apesar de divulgada pela UOL, por exemplo, foi vetada pelo Globo, Estadão e Folha, porque a Lava Jato se tornou um instrumento de política estreita.

É nesse quadro, de poder absoluto, sem estar submetida a nenhuma forma de controle, até que o Supremo Tribunal Federal se levantasse, que a Lava Jato passou a recorrer abundantemente ao instituto da delação premiada, podendo definir livremente perdão e punição e valor das multas aos réus.

A opinião pessoal dos procuradores poderia fazer uma multa de US$ 15 milhões cair para um terço ou vice-versa. Ou poderia incluir ou excluir suspeitos de um inquérito.

Esse modelo permitiu criar o mais rentável campo da advocacia do período, o dos advogados especializados em delação premiada, cujo único atributo era ter a confiança dos procuradores da Lava Jato. A maior ou menor simpatia por um advogado, o tornaria cobiçado pelos réus, dispostos a pagar honorários milionários para amenizar sua situação.

É nesse clima de absoluta promiscuidade, de falta ampla de transparência, que começaram a vicejar as suspeitas de uso abusivo do poder.

 

Capítulo 5: Messer x Meinl Bank

Segundo o advogado Tacla Duran, Dario Messer tinha acesso direto aos sistemas da Odebrecht, usando o codinome Flexão. Marco Bilinski, Vinícius Borin e Luiz França também eram operadores, através do Meinl Bank. Eles teriam movimentado US$ 2,6 bilhões até 2014, exclusivamente para a Odebrecht. Já Dario Messer teria movimentado US$ 1,6 bilhão para vários clientes.218

Bilinski, Brin e França recebiam 4% sobre as operações da Odebrecht feitas através do banco.219

Com a movimentação de 1,6 bilhão de dólares, a comissão do grupo foi de cerca de 64 milhões de dólares. O banco recebia mais 2% pela movimentação oficial do dinheiro, o que representaria mais 32 milhões. No total, portanto, estima-se que os três, mais Olívio Rodrigues, o quarto sócio – além dos dois sócios ocultos – receberam 96 milhões de dólares de comissão, o que corresponde a 326 milhões de reais.

A Lava Jato de Curitiba multou os proprietários do Meinl Bank em R$ 1 milhão por cabeça, ou R$ 3 milhões no total. E a 8 anos de reclusão da seguinte maneira: 1 ano em regime aberto diferenciado, devendo se recolher em casa das 20h às 6h da manhã; 6 meses em regime aberto, com recolhimento integral apenas nos finais de semana e feriados, mas sem a necessidade de uso da tornozeleira eletrônica; de 3 a 6 anos com prestação de serviços à comunidade à razão de 6 horas por semana. Já a Lava Jato do Rio multou a família Messer em mais de R$ 350 milhões.

A desproporção era evidente.”

217 Disponível em: https://qrcd.org/49DA.

218 GUIMARÃES, Arthur; MARTINS, Marco Antônio. “Doleiro Dario Messer é preso pela Polícia Federal do Rio”. G1, jul. 2019. Disponível em: https://qrcd.org/49Ds. Acessado em: 09.05.2024.

219 NASSIF. Lourdes. “Exclusivo: Banqueiros da Odebrecht omitiram informações em delação da Lava Jato e tiveram multa irrisória”. Jornal GGN, nov. 2017. Disponível em: https://qrcd.org/49Dw. Acessado em: 09.05.2024.

 

 

O caso Zucolotto

O episódio mais grave, e documentado, foi o de Carlos Zucolotto com o advogado Tacla Duran. Zucolotto enviou uma mensagem a Tacla propondo redução de sua multa de US$ 15 milhões para US$ 5 milhões. US$ 5 milhões seriam pagos por fora, a título de honorários.

Dez dias depois da conversa, Tacla recebeu e-mail dos procuradores Carlos Fernando Lima e Roberson Pozzobon, com a proposta de delação.

Segundo Tacla, o esquema seria simples. Na sentença, seria mencionada a multa de US$ 15 milhões e indicada uma conta sem reservas. No acordo estaria definido que, não encontrando fundos na conta, a multa seria reduzida para US$ 5 milhões.

Moro e a esposa Rosangela – que já havia trabalhado no mesmo escritório de advocacia de Zucolotto – saíram publicamente em defesa do amigo.

É nesse quadro de ausência absoluta de compliance que surge o caso Dario Messer, e as suspeitas de suborno a policiais e procuradores, visando fechar os olhos para sua atividade.”

 

 

“Há uma enorme dificuldade em identificar as grandes jogadas públicas no país, devido à ignorância institucional que campeia por todos os poderes. É uma ignorância sólida, inamovível como um bloco de concreto, que paralisa todos os setores institucionais: Supremo, Congresso e mídia.

Cria-se uma onda – no caso, o neoliberalismo radical – e, a partir daí, os votos do Supremo e reportagens da mídia seguem a onda, sem discutir nuances, detalhes, circunstâncias, mecanicamente tal qual uma votação da Lava Jato. A superficialidade suprema é tanta que tratam até a homeschooling – uma aberração proposta pela ultradireita – como pedagogia libertária.

Três ministros deram um by-pass na Constituição, ao deliberar que estatais não podiam ser vendidas sem aprovação do Congresso, mas suas subsidiárias sim: Luís Roberto Barroso, Cármen Lúcia e Alexandre de Moraes.

Ora, uma empresa é a soma das subsidiárias que a compõem. No caso do petróleo, a prospecção, o refino e a distribuição. Pela interpretação do STF, poderiam ser vendidos individualmente a prospecção, o refino e a distribuição, desde que mantivessem uma salinha com uma placa, indicando que era o que restou da Petrobras.

Não apenas isso. Poderiam ser vendidas, também, sem licitação, uma porta aberta para a corrupção mais explícita.

No STF, Cármen Lúcia endossou a interpretação canhestra de que subsidiárias poderiam ser vendidas sem passar pela Câmara. E passou ao largo do modelo de venda. Os dois outros Ministros que sancionaram a venda – Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes – sustentaram que bastaria um referencial de preços do Tribunal de Contas da União.

A refinaria foi vendida por US $1,6 bilhão.

A história a seguir mostra a quantidade de gols que o Supremo toma, devido à ampla desinformação sobre aspectos básicos da economia e dos negócios.

 

Peça 2 – o preço da refinaria

Antes da venda, a Petrobras chegou a avaliar a refinaria em US$ 3 bilhões, mesmo valor a que chegou o INEEP (Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Combustíveis). Em fevereiro, a XP estimou o valor em US $3,5 bilhões e o BTG avaliou em US $2,5 bilhões.

Multiplicaram-se os alertas sobre as consequências da venda.

Pesquisador do INEEP, Eduardo Costa Pinto alertou que, com a venda, o monopólio estatal poderia se transformar em monopólio privado regional e poderia ocorrer apagão de combustíveis, já que a Petrobras deixaria de responder pela coordenação do abastecimento.

Coordenador da Federação Única dos Petroleiros (FUP), Deyvid Bacelar previu aumento imediato dos combustíveis. Como terá o controle de um monopólio regional, tratará de aumentar seus preços para melhorar o retorno.

 

Peça 3 – consequência imediata

Desde o primeiro dia da privatização, a refinaria interrompeu a venda de óleo bunker, destinado ao abastecimento de navios de largo porte,²⁶⁴ para navegação de cabotagem. Segundo levantamento do portal Poder360, cerca de 60 navios acessam o terminal mensalmente.

O Sindinave (Sindicato das Agências de Navegação do Estado da Bahia) foi atrás da Petrobras, que não soube o que responder. Enviou ofício à ANP (Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis) e não obteve resposta.

O jornal procurou todos os órgãos responsáveis pelo setor:

A Antaq (Agência Nacional de Transportes Aquaviários) disse que a responsabilidade do caso é da ANP.

ANP – “está avaliando todas as informações e continua a monitorar o assunto de perto”.

CADE – não respondeu.

Nos dias seguintes, a Acelen (novo nome da refinaria) declarou que não iria seguir a política de preços da Petrobras – que anunciou redução de 3,1% nos preços dos combustíveis.

Enviou um comunicado seco às distribuidoras informando o seguinte:

A redução anunciada pela Petrobras só será praticada nas refinarias que ainda estão sob sua gestão. Como a refinaria baiana foi privatizada, não mais pertencendo à estatal federal, a política de preço da Refinaria Mataripe será independente, uma das consequências da privatização da RLAM, disse o sindicato, em nota.

Ou seja, todas as previsões pessimistas foram confirmadas no primeiro dia de privatização. Antes, levava alguns meses ou anos para que promessas vãs fossem desmentidas pelos fatos. No caso da refinaria, foi em um dia.

 

Peça 4 – as instituições entre a ignorância e a malícia

Millôr Fernandes tinha um dito definitivo sobre situações assim: “Entre um burro e um canalha, não passa o fio de uma navalha”.

Tiremos o burro e o canalha, que são adjetivos fortes, para analisar a privatização da refinaria Landulpho Alves, na Bahia, e fiquemos com a ignorância, a irresponsabilidade e a malícia.

Para o Supremo Tribunal Federal (STF) cabem os dois primeiros adjetivos: ignorância e irresponsabilidade.

Esses senhores são os responsáveis pela venda e, agora, pelos problemas enfrentados pela navegação de cabotagem no Brasil.

Os Ministros do Supremo pelo misto de ignorância com onipotência. Fossem minimamente responsáveis teriam promovido audiências com diversos setores para ter uma ideia das consequências da venda das refinarias.

E não adianta dizer que não cabe ao Supremo analisar consequências, mas simplesmente implementar a Constituição. Eles revogaram a Constituição para permitir a privatização, sem analisar as consequências.

A malícia fica por conta do CADE (Conselho Administrativo de Direito Econômico) e de seu Presidente Alexandre Cordeiro, autor da mais extravagante medida de todo esse processo confuso.

Cordeiro fez a Petrobras assinar um Termo de Ajustamente de Conduta265 (TAC), obrigando-se a vender suas refinarias. E os representantes da Petrobras – indicados pelo governo Bolsonaro – aceitaram a imposição. Nem mídia, nem Supremo, comentaram essa maluquice, de um burocrata público atropelar a Constituição e obrigar a maior empresa nacional a se desfazer de seus ativos. Quando a privatização atrasou um pouco, Cordeiro ameaçou a empresa com retaliações, sob silêncio total do Ministério Público, Supremo e imprensa. Cúmplices? Não, apenas a ignorância velha de guerra, marca principal de um país subdesenvolvido.

Pouco depois, Flávio Bolsonaro, o representante comercial da família deixou suas impressões digitais, lançando a candidatura de Alexandre ao Supremo,266 como alternativa ao candidato terrivelmente evangélico. O que comprova que no Brasil tudo se vende, até a indicação para o Supremo.”

265 VENTURA, Manuel. “Cade deve reabrir investigação contra Petrobras se venda de refinarias for paralisada”. O Globo, fev. 2021. Disponível em: http://tinyurl.com/ysr3vsmc. Acessado em: 10.05.2024.

266 MEGALE, Bela. “Nome de presidente do Cade para Supremo foi apresentado por Flávio Bolsonaro”. O Globo, out. 2021. Disponível em: http://tinyurl.com/ym8wt9bs. Acessado em: 10.05.2024.

 

 

“A crise atual serviu para expor uma das piores heranças culturais do país: o chamado racismo estrutural.

Mas há um outro componente pouco estudado, talvez primo-irmão, o caráter das elites brasileiras e dos setores que ambicionam um lugar na chamada Casa Grande.

A maneira como mídia, Supremo, políticos, corporações públicas ingressaram no golpismo mais explícito, sem a menor preocupação com a imagem ou, melhor, regozijando-se com sua imagem refletida no esgoto, é um fenômeno típico de sociedades sem caráter.

Tenho a impressão de que a necessidade de se identificar com as classes altas seja um resquício da República Velha, na qual as classes de baixo, para se defenderem dos abusos da Justiça e do poder, tinham que se abrigar sob as asas de algum coronel local.

Essa submissão, por sua vez, gerava um sentimento de onipotência quando, por alguma razão, o cidadão normal, através de estudos passava a cumprir o papel de jagunço letrado, tornando-se defensor das demandas da classe superior junto às instituições de Estado – em uma função de jornalista, juiz ou ministro do Supremo. Aí havia o deslumbramento total, dos que supunham ter conseguido a inclusão por cima.

Some-se o fato de uma sociedade historicamente permissiva, que permitia a convivência com traficantes de escravos, bicheiros, doleiros, desde que bem-sucedidos financeiramente. Grandes doleiros, contrabandistas, são aceitos com naturalidade nas sociedades do Rio de Janeiro ou de Brasília, e confraternizam-se com autoridades no paraíso tropical de Miami.

Esse talvez seja o motivo por que, na guerra jurídico-midiática-política mais suja da história, não tenha ocorrido sequer as chamadas objeções de consciência como impeditivo. Por tal, entenda-se a atitude do motorista de um trator, que recebeu a ordem de destruir as casas de famílias sem-terra. Ele se negou a cometer a crueldade. Recorreu à chamada objeção de consciência.

Nada disso se viu no período em que o ódio foi plantado, cevado e colhido. Não houve objeção de consciência por parte dos principais agentes da conspiração e sequer um mínimo de pudor, aquela pequena vergonha que acomete até as mentes mais insensíveis, quando flagradas em grandes malfeitos.

Em países com caráter, quem aderisse ao golpismo seria malvisto ao menos por sua categoria. Uma mídia com caráter denunciaria desvios de condutas, exporia os oportunistas, os excessivamente ambiciosos, os crimes cometidos pelos guardiões da lei.

Nada ocorreu. Pelo contrário, os bárbaros foram celebrados, houve pruridos da mídia até em divulgar o suicídio do reitor da UFSC.

Este foi o Brasil da década de 2010.

Por outro lado, começa a surgir uma onda de liberalização relativa, impulsionada pelos ventos externos. Alguns dos principais responsáveis pelo envenenamento político anterior ressurgem como baluartes da democracia – e nada lhes é cobrado, nem um mínimo de autocrítica.

Por tudo isso, nada espere desse aggiornamento liberal dos porta-vozes dos homens de bens, nem mesmo com as novas ondas que se propagam pelo mundo civilizado, como reação à barbárie da era Trump.

O país sem caráter só se submete a contingências de ordem política, de interesse pessoal e é reativo a movimentos de opinião pública. Jamais assumirá o protagonismo da defesa da civilização.

Portanto, movimentos virtuosos que vierem a surgir, serão externos a esses personagens centrais do golpe.”

A conspiração lava jato: o jogo político que comprometeu o futuro do país (Parte II), de Luis Nassif

Editora: Contracorrente

ISBN: 978-65-5396-204-0

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 534

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Sinopse: Ver Parte I



Xadrez da marcha para a ditadura

Peça 1 – a era da infâmia

Há momentos na história em que toda uma sociedade ingressa na era da infâmia. É quando princípios civilizatórios são derrubados e abre-se espaço para a selvageria institucionalizada.

Foi assim com o nazismo, o Macarthismo, a ditadura do Estado Novo e o Golpe Militar de 1964.

Cria-se um clima que traz à tona o que de pior existe no sentimento coletivo.

Desperta o ódio indeterminado contra inimigos imaginários, estimula a delação, transforma cidadãos pacatos em justiceiros sanguinários, irmana o populacho na dança ritual do ódio, e permite a liberação do assassino que habita algumas mentes doentias, e que era contido pelos julgamentos morais e legais, dos tempos em que a sociedade ainda era saudável.

A tragédia do suicídio de Luiz Carlos Cancellier, ex-reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), vítima de um crime coletivo que envolveu o pior da Polícia Federal, do Judiciário, do Ministério Público Federal, cobriu o Brasil com a marca da infâmia, com os instintos primais liberados pelo discurso de ódio praticado pela mídia e endossado pelo Supremo.

No caso do reitor, o clima criado permitiu a um corregedor desequilibrado montar uma fantasia em tudo semelhante àquelas praticadas pelos chamados dedos-duros do regime militar. Sem filtros, sem checagens, PF, MPF criaram evidências do nada e montaram um show circense, com 120 policiais de todo o país, armados, com coletes à prova de bala, e submetendo professores a humilhações só aplicadas a grandes criminosos e em pretos de periferia.

 

Peça 2 – o Supremo e o caminho para o arbítrio

Sobre todos esses atos, paira a sombra de um ministro de modos afáveis, Luís Roberto Barroso, que sonhava ser um continuador dos grandes juristas liberais – Joaquim Nabuco, Ruy Barbosa e San Tiago Dantas – e passou a ser parte integrante da pior memória autoritária da Justiça brasileira, ao lado de Vicente Rao, Gama Filho, Francisco Campos, consumando seu ato mais ignominioso: a invasão da esfera do Executivo para suspender um ato de indulto natalino, já no governo Temer.

No fragor da Lava Jato, acadêmicos foram perseguidos, universidades ocupadas, censuradas, pesquisas sobre drogas foram criminalizadas, políticos foram presos e humilhados e o Supremo interferiu diretamente nas eleições presidenciais que levaram ao poder Jair Bolsonaro.

Em 2018, no jornal Zero Hora, Barroso disse o seguinte:

Há visões como a minha, que essa é uma oportunidade que não se pode desperdiçar para mudar o patamar ético do país, e há uma visão – que tem sido apelidada de garantista – que é mais tolerante, digamos assim, como esse quadro geral que nos trouxe até aqui.

Em outra entrevista, declarou que “os garantistas se apaixonaram por provas ilícitas”.165

Ou, então, em O Globo, com a retórica da equivalência: se pobre não tem direitos, a maneira de igualar com os ricos é tirar o direito de ambos.166

Então, essa história de punitivismo é balela de quem está tendo que reaprender a trabalhar. Porque o sistema era feito para proteger essas pessoas — avaliou Barroso. — As pessoas estavam acostumadas com um sistema penal que não funcionava, sobretudo para o colarinho branco. Ninguém que ganhasse mais de cinco salários mínimos era condenado no Brasil por coisa alguma. Você tinha uma cultura nessa área em que ninguém jamais era punido.

O discurso reiterado de Barroso alimentou a sanha dos policiais e procuradores que promoveram o linchamento de Cancelier. E espalhou por todos os poros do Judiciário a luta feroz contra direitos básicos. Em nome do Iluminismo, Barroso liderou o processo de desmanche das garantias fundamentais. O “in dubio pro reo” foi trocado pelo “in dubio pro societá”. E Barroso se tornou o líder inconteste da malta togada.

 

Peça 3 – as portas abertas para o autoritarismo

Nos anos 1930, os ventos totalitários chegaram ao Brasil, resultando no Estado Novo, com a adesão da então Corte Suprema dos Estados Unidos do Brasil. Aboliu o habeas corpus, aceitou as prisões arbitrárias e, finalmente, autorizou a expulsão de Olga Benário, companheira do líder comunista Luiz Carlos Prestes, entregue à morte, com aval do Supremo e da mídia, no apogeu da violência policial comandada por Felinto Muller, o Sérgio Moro da época.

Manchete de O Globo saudou sua expulsão, tratando-a e outras prisioneiras políticas como “Evas indesejáveis”.


 

No trabalho “O caso Olga Benario Prestes: um estudo crítico sobre o habeas corpus nº 26.155/1936”, Veyzon Campos Muniz analisa o caso à luz dos avanços no direito após a Constituição de Weimar.167

(…) Em uma simples análise cronológica, um século antes de a França revolucionária proclamar sua Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a Inglaterra, em 1689, pôs fim ao regime monárquico absolutista, com sua Bill of Rights. Dessa sorte, a Lei de Habeas Corpus, de dez anos antes, foi um precedente da necessidade social de libertação do indivíduo frente ao Estado, bem como foi a partir dela que o direito ao habeas corpus passou a ser utilizado não apenas nas situações de prisões eivadas de vícios, mas também a todas as ameaças de constrangimentos à liberdade individual de ir, vir e ficar.

(…) Outrossim, como outro marco jurídico relevante, temos a Constituição de Weimar. Se, de um lado, o Habeas Corpus Act é, inequivocamente, um exemplo de diploma que consagra as liberdades públicas, de outro, a Carta alemã de 1919 demonstra a evolução das instituições políticas no sentido da concreção de um estado de democracia social.

No entanto, a própria Constituição de Weimar tinha um artigo que foi essencial para a ascensão do nazismo, mostrando como o autoritarismo pode se infiltrar nas brechas abertas pelas leis e pela jurisprudência firmada pelo Supremo.

O dispositivo estabelecia que, caso a ordem pública estivesse em risco, o presidente do Reich poderia, sem necessidade de aval do Legislativo, tomar as medidas necessárias para restituir a lei e a ordem.

Para isso, poderia suspender direitos civis como Habeas Corpus, inviolabilidade de domicílio, sigilo de correspondência, liberdade de expressão, direito de reunião e associação e autorizar expropriações.

O artigo 47 foi outro dispositivo relevante para a tomada do Estado alemão por Hitler. Segundo ele, o Presidente era o supremo-comandante das Forças Armadas, poderia nomear os seus oficiais e tinha competência para tomar as “medidas apropriadas” – incluindo usar militares – para combater distúrbios na ordem ou segurança públicas”.

Em cima do flanco aberto pelo Supremo, após o impeachment o estado de exceção ganhou força no Brasil. Temer passou a estender as Operações de Garantia da Lei e Ordem por todo o país, inspirado pelo Ministro da Justiça Alexandre Moraes. Uma das operações atropelou a Constituição, ao entregar a um militar – general Braga Neto – o controle da intervenção no Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, levou a linha dura para dentro do Palácio, nomeando um militar para chefiar a Agência Brasileira de Inteligência. Quebrou o pacto tácito da Constituinte e foi o primeiro Presidente a colocar um militar no comando do Ministério da Defesa. E passou-se a recorrer, cada vez mais, a ainda não extinta Lei de Segurança Nacional.

Em trabalho excepcional sobre o caso Olga Benário,¹⁶⁸ o procurador Vladimir Aras dissecou a posição do Supremo, a adesão ou omissão de ministros ante um clima explícito, liderado por um Ministro da Justiça, Vicente Rao, que entraria para a história como um exterminador de direitos.

E constata como a história, no Supremo, é repleta de versões:

Foi há 77 anos. Hoje, no site do STF, consta que o ministro Edmundo Lins fora homem de “notável saber e grande cultura, honrou a magistratura e, nos cargos que exerceu, legou às futuras gerações os exemplos mais dignificantes de civismo, patriotismo e grandeza moral” (sic). Quanto ao relator Bento de Faria, que sucedeu a Lins na presidência da Corte, diz o site do Supremo: “As notáveis obras, repletas de ensinamentos, que publicou denotam sua alta cultura jurídica e são consideradas por todos os jurisconsultos fontes primorosas da ciência do Direito” (sic). Quão generoso é o biógrafo desses homens.

Ambos foram peças centrais na deportação de Olga Benário, grávida.”

 

 

A DITADURA DO ESTADO NOVO NA NOVA REPÚBLICA

No Brasil do Estado Novo, a democracia foi estuprada por uma corte composta por Bruno de Farias, Carlos Maximiliano, Spindola e Edmundo Pereira Lins, sob inspiração de Vicente Rao, os personagens principais na deportação de Olga Benário.

No Brasil do início do século 21, a democracia foi violentada pela ação continuada de Joaquim Barbosa, Luiz Fux, Luís Roberto Barroso e Luiz Edson Fachin, instrumentalizando o Supremo para a disputa política, e atropelando qualquer forma de garantia aos direitos. Não se tenha dúvida que se as circunstâncias jogassem o destino de Olga Benário nas suas mãos, o resultado teria sido o mesmo.

 

Peça 1 – o caso Cancellier

Os estudiosos do nazi-fascismo, do Estado Novo e outras manifestações autoritárias, são unânimes em descrever dois processos paralelos que levam à perda dos direitos e ao fim das democracias.

O primeiro, a Suprema Corte abrindo espaço para o arbítrio. O segundo, sem os freios do Supremo, o fortalecimento das corporações públicas, especialmente aquelas ligadas a controles e à repressão, disseminando o arbítrio por todos os poros do Estado e do país.

Ambos os fenômenos estão intrinsecamente ligados.

O massacre de Cancellier se deveu à desmoralização do devido processo legal, do “garantismo” alvo de campanhas de Barroso. Condenaram antes de analisar os fatos, inventaram crimes, inventaram provas e levaram o caso inicialmente ao tribunal da mídia, que aceitou passivamente, sem ouvir os réus, para não ser acusada de “bandidolatria”. Transformaram fatos corriqueiros em versões criminosas.

Primeiro, vamos apresentar os atores finais desta trama macabra, as autoridades diretamente envolvidas com a morte de Cancellier.

Corregedor Rodolfo Hickel – com histórico de violência e de desequilíbrio, foi indicado corregedor da UFSC por uma reitora que saía, visando atazanar o sucessor. Produziu um relatório repleto de inverdades que serviu de ponto de partida para a prisão de Cancellier.

Delegada Erika Merena – atuante na Lava Jato, apresentada como heroína em série da Netflix, chegou a Santa Catarina sem holofotes. Para voltar ao centro das atenções, criou o escândalo da UFSC para uma Operação com 120 policiais de todo o país.

Procurador André Bertuol – do Ministério Público Federal. Endossou todas as arbitrariedades e prosseguiu na perseguição a Cancellier mesmo depois de morto, processando o filho.

Juíza Janaina Cassol – juíza substituta que endossou todas as arbitrariedades da PF e do MPF.

Procurador Marcos Aydos – denunciou professores da UFSC pelo simples fato de, na cerimônia em homenagem a Cancellier, não terem impedido faixas de protesto contra a delegada Erika.

 

Peça 2 – as acusações contra Cancellier e o papel da mídia

Lançada, a Operação Ouvidos Moucos falava-se em desvio de R$ 80 milhões das verbas destinadas à educação à distância na UFSC. O valor correspondia a tudo o que foi gasto em anos e anos de cursos. Mas foi sacado pela PF para garantir mídia e justificar uma Operação que envolveu 120 policiais de todo o país.

Logo depois que os professores foram detidos, os valores de desvio foram reduzidos para R$ 500 mil. A maneira como se chegou a esses valores é um dos clássicos modernos da fabricação de provas.

O documentário do GGN169 detalha as principais acusações contra Cancellier e demais funcionários:

1. Foi acusado de tentar atrapalhar as investigações.

As investigações foram conduzidas pelo corregedor da UFSC, indicado pela antiga reitora, notadamente parcial e desequilibrado. Ele manteve as investigações sob sigilo.

Na qualidade de reitor, Cancellier solicitou o acesso ao relatório, algo plenamente dentro de suas atribuições. Foi acusado de boicotar as investigações.

 

2. O curso foi acusado de distribuir bolsas para carteiros e motoristas.

Os personagens em questão, eram o símbolo máximo do que a mídia celebra, de meritocracia. Trabalharam duro em empregos simples e de baixa remuneração e conseguiram completar o mestrado. Serviram de álibi para que Cancellier e professores fossem presos, submetidos a revistas íntimas e colocados em celas com criminosos, porque a PF não podia aceitar que um carteiro fizesse pós-graduação. Nem se deram ao trabalho de analisar que as bolsas eram pagas diretamente pela Capes (do governo federal) a cada bolsista.

Também incluíram como desvios pagamentos de outros serviços necessários para a Operação, como pagamento de gráficas.

 

3. Direcionamento de licitações.

A universidade tem várias empresas credenciadas para transporte de professores. Muitas delas são microempresas cujo dono é o motorista do único veículo. Cabe aos gestores escolher os motoristas e atender às demandas dos professores. Alguns não querem motoristas homens, outros não querem motoristas que correm demais. A escolha dos motoristas foi tratada como crime de corrupção.

Em outros casos, comparou-se uma viagem de ida e volta a determinada cidade com outra, de ida e volta e pernoite, e se considerou que a diferença de preços era sobrepreço criminoso.

Os Relatórios da Controladoria Geral da União (CGU) e do Tribunal de Contas da União (TCU) são a demonstração do clima persecutório irresponsável que perpassou todos os órgãos de controle.

 

Peça 3 – a ditadura das corporações

A academia já começou a estudar as características das corporações públicas brasileiras – especialmente do Ministério Público Federal e Polícia Federal. Algumas conclusões são nítidas:

1. A primazia dos interesses privados (das corporações) sobre os interesses públicos, através da politização.

2. O aparecimento da banda política, funcionários que se especializam na política interna das corporações e que passam a direcionar as atividades na ponta através da cenoura das indicações pessoais a cargos no poder.

No episódio Operação Ouvidos Moucos, os 120 policiais de todo o país, convocados por Erika Marena, engordaram o hollerith do final do mês com diárias, e se fortaleceram perante a corporação.

Depois da Ouvidos Moucos, uma enxurrada de delações e de abusos se espalhou por outros poros da Polícia Federal.

A Polícia Federal de Santa Catarina intimou o professor Mario de Souza Almeida, do departamento de administração da UFSC, para dar explicações sobre críticas que fez a uma investigação policial durante discurso em evento de formatura da turma do curso de ciência da administração, da qual foi paraninfo.

A Associação de Delegados da Polícia Federal pediu a abertura de investigação contra um vereador de Niterói (RJ) por causa de críticas feitas por ele à Operação da PF.

Barroso conseguiu concretizar o receio do Vice-Presidente Pedro Aleixo, quando previu que o AI-5 inaugurou a ditadura dos guardas de presídio.

Depois do silêncio inicial da mídia, a ficha começou a cair sobre os abusos cometidos. Houve algum movimento para uma investigação e punição dos abusos no âmbito de cada corporação.

Nada aconteceu.

Nunca mais se soube do inquérito contra o procurador Aydos.

O inquérito contra Erika Marena terminou em sua absolvição. Mais que isso, a corporação fez um movimento que levou a direção a promovê-la para um cargo de superintendente em Sergipe.

Nem a morte trágica da Cancellier impediu demonstrações de apoio total à delegada, comprovando a extraordinária distorção provocada pela Lava Jato nos aparelhos de controle. (...)

 

O comando de caça aos comunistas

Não se ficou nisso. Segundo reportagem de 26 de outubro de 2018, do The Intercept,170 a caça aos “esquerdistas” já tinha atingido 181 professores.

O início foi quando um membro do Movimento Brasil Livre, o MBL, Luís Felipe Nunes, da Paraíba, se indignou171 com o evento “UFCG contra o fascismo e pela democracia”, na Universidade Federal de Campina Grande e o denunciou ao Tribunal Regional Eleitoral de seu Estado.

O juiz eleitoral Horácio Ferreira de Mello Júnior, então, expediu um mandado de busca e apreensão para a polícia invadir o campus e apreender materiais a favor do candidato Hernando Haddad na Associação dos Docentes da Universidade Federal de Campina Grande.

Um levantamento do The Intercept mostrou que, desde 2011, pelo menos 181 professores universitários se tornaram alvo de ações como fiscalização de aulas, censura, investigações criminais, conduções coercitivas, ações judiciais, sindicâncias, demissões, perseguições, exposição na internet até a ameaças de morte. Foram 12 ocorrências em instituições particulares, 54 em estaduais e 115 em federais envolvendo 101 homens e 80 mulheres. Com as eleições, no entanto, a perseguição atingiu outro patamar.

Na véspera das eleições de 2018, pelo menos mais 20 universidades foram invadidas pela PM, a mando dos Tribunais Regionais Eleitorais de seus respectivos Estados.


Na Universidade Federal Fluminense, fiscais do Tribunal Regional Eleitoral e policiais sem mandado retiraram a faixa “Direito UFF Antifascista” da fachada da faculdade, alegando se tratar de propaganda política. Também no Rio de Janeiro, uma viatura com dois PMs chegou à Universidade Estadual do Rio de Janeiro e ordenou a retirada das faixas em homenagem a vereadora Marielle Franco, assassinada em março, e a Luiz Paulo da Cruz Nunes, morto há 50 anos pela ditadura e símbolo da luta estudantil no Brasil. Segundo os estudantes, nesse caso também não havia mandado e o comandante do batalhão ao qual os policiais pertencem sequer sabia da ação dos PMs. As faixas permanecem no prédio.

 

O macarthismo à solta

Não se ficou nisso. Um levantamento efetuado pelo GGN mostrou abusos de toda sorte e em todos os níveis.

– Juiz proibindo cultos africanos.

– Juíza indiciando cientista que participou de um congresso sobre efeitos medicinais da maconha.

– Delegado invadindo Escola Florestan Fernandes.

– Delegado invadindo casa de filho de Lula com base em denúncia anônima.

– Condução coercitiva em 40 funcionários do BNDES.

– Juiz que proibiu tratamento cardíaco para José Genoíno, preso na Papuda.

– Juíza que aceitou denúncia contra estudantes, por participação em comício contra o impeachment.

– Condução de Sérgio Cabral Filho algemado nas mãos e nos pés.

– Condução coercitiva de Garotinho, arrancado de maca de um hospital.

– Fechamento do Instituto Lula.

– Juiz que multou passeatas.

Foi o pior período da democracia brasileira desde a redemocratização. Antecedeu e foi pior do que o período Bolsonaro, quando a ditadura se manifestou às claras, e um certo pudor conteve os agentes públicos.

E, pairando sobre tudo isso, a figura excêntrica de um Ministro da Suprema Corte sustentando que o “garantismo” era um truque para impedir a punição de poderosos.”

169 TV GGN. “LEVARAM O REITOR” Documentário sobre o caso Cancellier. 13 de dezembro 2021. Disponível em: https://youtu.be/6GOgdEpKUp4. Acessado em: 10.05.2024.

170 SAYURI, Juliana. “O Comando que está Caçando ‘Esquerdistas’ nas Universidades já Perseguiu 181 Professores”. The Intercept, out. 2018. Disponível em: https://qrcd.org/48RQ. Acessado em: 09.05.2024.

171 Disponível em: https://qrcd.org/48RR.