terça-feira, 23 de dezembro de 2025

Um copo de cólera, de Raduan Nassar

Editora: Companhia das Letras

ISBN: 978-85-7164-243-0

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 88

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Sinopse: Um marco no ensino da Filosofia no Brasil, de uma das mais prestigiadas intelectuais brasileiras. Por meio de uma linguagem acessível, trata de forma contextualizada os temas importantes da reflexão filosófica, conduzindo à profundidade dos grandes pensadores. Um exuberante exercício do pensamento que fomenta a reflexão crítica e amplia os horizontes do leitor. Principais diferenciais da obra: o livro discute os grandes temas da Filosofia, como razão, verdade, conhecimento, ciência, lógica, ética, política, arte, religião e metafísica; a autora contempla questões relacionadas à cidadania, à democracia, aos direitos humanos, às novas tecnologias e às posturas éticas de seu tempo; mais de mil questões com respostas no Manual do Professor possibilitam uma revisão eficiente de cada capítulo.



 

““Pra julgar o que digo e o que faço tenho os meus próprios tribunais, não delego isso a terceiros, não reconheço em ninguém — absolutamente em ninguém — qualidade moral pra medir meus atos”.”

 

 

“Já foi o tempo em que via a convivência como viável, só exigindo deste bem comum, piedosamente, o meu quinhão, já foi o tempo em que consentia num contrato, deixando muitas coisas de fora sem ceder contudo no que me era vital, já foi o tempo em que reconhecia a existência escandalosa de imaginados valores, coluna vertebral de toda ‘ordem’; mas não tive sequer o sopro necessário, e, negado o respiro, me foi imposto o sufoco; é esta consciência que me libera, é ela hoje que me empurra, são outras agora minhas preocupações, é hoje outro o meu universo de problemas; num mundo estapafúrdio — definitivamente fora de foco — cedo ou tarde tudo acaba se reduzindo a um ponto de vista, e você, que vive paparicando as ciências humanas, nem suspeita que paparica uma piada: impossível ordenar o mundo dos valores, ninguém arruma a casa do capeta; me recuso pois a pensar naquilo em que não mais acredito, seja o amor, a amizade, a família, a igreja, a humanidade; me lixo com tudo isso! me apavora ainda a existência, mas não tenho medo de ficar sozinho, foi conscientemente que escolhi o exílio, me bastando hoje o cinismo dos grandes indiferentes...”.”

 

 

““Me sinto hoje desobrigado, é certo que teria preferido o fardo do compromisso ao fardo da liberdade; não tive escolha, fui escolhido, e, se de um lado me revelaram o destino, o destino de outro se encarregou de me revelar: não respondo absolutamente por nada, já não sou dono dos meus próprios passos, transito por sinal numa senda larga, tudo o que faço, eu já disse, é pôr um olho no policial da esquina, o outro nas orgias da clandestinidade” “não posso descuidar que ele logo decola com o verbo... corta essa de solene, desce aí dessas alturas, entenda, ô estratosférico, que essa escalada é muito fácil, o que conta mesmo na vida é a qualidade da descida; não me venha pois com destino, sina, karma, cicatriz, marca, ferrete, estigma, toda essa parafernália enfim que você bizarramente batiza de ‘história’; se o nosso metafísico pusesse os pés no chão, veria que a zorra do mundo só exige soluções racionais, pouco importa que sejam sempre soluções limitadas, importa é que sejam, a seu tempo, as melhores; só um idiota recusaria a precariedade sob controle, sem esquecer que no rolo da vida não interessam os motivos de cada um — essa questãozinha que vive te fundindo a cuca — o que conta mesmo é mandar a bola pra frente, se empurra também a história co’a mão amiga dos assassinos; aliás, teus altíssimos níveis de aspiração, tuas veleidades tolas de perfeccionista tinham mesmo de dar nisso: no papo autoritário dum reles iconoclasta — o velho macaco na casa de louças, falando ainda por cima nesse tom trágico como protótipo duma classe agônica... sai de mim, carcaça!” e logo ela tachava minha performance de catártica (“pura catarse” ela engrolou), palavra c’um terrífico poder demolidor e que — pelo uso imprudente, ou pelo abuso — transformava o próprio cérebro da pilantra num cogumelo nuclear.”

 

 

““Desde já é fácil de prever o teu futuro: além de jornalista exímia, você preenche brilhantemente os requisitos como membro da polícia feminina; aliás, no abuso do poder, não vejo diferença entre um redator-chefe e um chefe de polícia, como de resto não há diferença entre dono de jornal e dono de governo, em conluio, um e outro, com donos de outros gêneros” “não é comigo, solene delinquente, mas com o povo que você há de se haver um dia” “pense, pilantra, uma vez sequer nessa evidência, ainda que isso seja estranho ao teu folclore, ainda que a disciplina das tuas orelhas não se preste a tanta dissonância: o povo nunca chegará ao poder!” “louquinho da aldeia!... entrou de vez em convulsão, sabe-se lá o que ainda vem desse transe paroxístico...” “o povo nunca chegará ao poder! não seria pois com ele que teria um dia de me haver ofendido e humilhado, povo é só, e será sempre, a massa dos governados; diz inclusive tolices, que você enaltece, sem se dar conta de que o povo fala e pensa, em geral, segundo a anuência de quem o domina; fala, sim, por ele mesmo, quando fala (como falo) com o corpo, o que pouco adianta, já que sua identidade jamais se confunde com a identidade de supostos representantes, e que a força escrota da autoridade necessariamente fundamenta toda ‘ordem’, palavra por sinal sagaz que incorpora, a um só tempo, a insuportável voz de comando e o presumível lugar das coisas; claro que o povo pode até colher benefícios, mas sempre como massa de manobra de lideranças emergentes; por isso vá em frente, pilantra — com o povo na boca, papagueando sua fala tosca, sem dúvida pitoresca, embora engrossando co’arremedo a sufocante corda dos cordeiros, exatamente como o impassível ventríloquo que assenta paternalmente os miúdos sobre os joelhos, denunciando inclusive trapaças com sua arte, ainda que trapaceando ele mesmo ao esconder a própria voz; mas não se preocupe, pilantra, você chega lá... montadinha, é claro, numa revolta usurpada, montadinha numa revolta de segunda mão; quanto a este tresmalhado, ou delinquente, te digo somente que ninguém dirige aquele que Deus extravia! não aceito pois nem a pocilga que está aí, nem outra ‘ordem’ que se instale, olhe bem aqui...” eu disse chegando ao pico da liturgia, e foi pensando na suposta subida do meu verbo que eu, pra compensar, abaixei sacanamente o gesto “tenho colhão, sua pilantra, não reconheço poder algum!” “hosana! eis chegado o macho! Narciso! sempre remoto e frágil, rebento do anarquismo!... há-há-há... dogmático, caricato e debochado... há-há-há...” “entenda, pilantra, toda ‘ordem’ privilegia” “entenda, seu delinquente, que a desordem também privilegia, a começar pela força bruta” “força bruta sem rodeios, sem lei que legitime” “estou falando da lei da selva” “mas que não finge a pudicícia, não deixa lugar pro farisaísmo, e nem arrola indevidamente uma razão asséptica, como suporte” “pois vista uma tanga, ou prescinda mesmo dela, seu gorila” “dispenso a exortação, fique aí, no círculo da tua luz, e me deixe aqui, na minha intensa escuridão, não é de hoje que chafurdo nas trevas: não cultivo a palidez seráfica, não construo com os olhos um olhar pio, não meto nunca a cara na máscara da santidade, nem alimento a expectativa de ver a minha imagem entronada num altar; ao contrário dos bons samaritanos, não amo o próximo, nem sei o que é isso, não gosto de gente, para abreviar minhas preferências; afinal, alguém precisa, pilantra — e uso aqui tua palavrinha mágica — ‘assumir’ o vilão tenebroso da história, alguém precisa assumi-lo pelo menos pra manter a aura lúcida, levitada sobre tua nuca; assumo pois o mal inteiro, já que há tanto de divino na maldade, quanto de divino na santidade; e depois, pilantra, se não posso ser amado, me contento fartamente em ser odiado”.”

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