Subtítulo: o novo proletariado de serviços na era digital
Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-629-6
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 328
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“O
sindicalismo brasileiro recente (ou “novo sindicalismo”, como se consagrou na
bibliografia especializada) vem se transformando de modo acentuado; inaugurado
pelas greves de 1978, bem como pelas primeiras articulações
sindicais que se desenvolveram desde meados daquela década, o novo sindicalismo
promoveu mudanças significativas na cultura sindical e política brasileira ao
instituir novas práticas, mecanismos e instituições. Gradativamente,
entretanto, ao longo de mais de três décadas, suas práticas cotidianas de
acentuada (ainda que não exclusivamente) tendência confrontacionista foram sendo substituídas por uma nova pragmática sindical
predominantemente negocial, em que o confronto cedeu espaço para parcerias,
negociações e incentivo aos pactos sindicais etc.[2]
O
desdobramento dessa mutação vem consolidando uma prática sindical que, além de
fetichizar a negociação, transforma os dirigentes em novos gestores que
encontram na estrutura sindical mecanismos e espaços de realização, tais como operar com fundos de pensão, planos de pensão
e de saúde, além das inúmeras vantagens intrínsecas ao aparato burocrático
típico do sindicalismo de Estado vigente no Brasil desde a década de
1930. Isso mudou o perfil das lideranças e das práticas sindicais adotadas até
então. Tais mudanças alteraram também o destinatário do discurso sindical, cujo
ideário vai paulatinamente se deslocando de um
sindicalismo de classe para um sindicalismo cidadão[3].”
[2] Ricardo Antunes, Os
sentidos do trabalho, cit.; Ricardo Antunes e Marco Aurélio Santana, “Para
onde foi o novo sindicalismo? Caminhos e descaminhos
de uma prática sindical”, em Daniel Aarão Reis, Marcelo Ridenti e Rodrigo Patto
Sá Motta (orgs.), A ditadura que mudou o Brasil (Rio de Janeiro, Zahar,
2014), e “The Dilemmas of the New Unionism in Brazil: Breaks and Continuities”,
Latin American Perspectives, Califórnia, v. 41, n. 5, 2014; disponível
em: <http://journals.sagepub.com/doi/full/10.1177/0094582X14541228>;
acesso em 25 dez. 2017; Jair Batista da Silva, Racismo
e sindicalismo: reconhecimento, redistribuição e ação política das centrais
sindicais acerca do racismo no Brasil (1983-2002) (tese de doutorado em
Ciências Sociais, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Estadual de Campinas, 2008), e “Ação sindical, racismo e cidadania no Brasil”,
em Ricardo Antunes (org.), Riqueza e miséria do trabalho
no Brasil, v. 2, cit.
[3] Jair Batista da
Silva, Racismo e sindicalismo, cit.; Ricardo Antunes, O novo
sindicalismo no Brasil, (Campinas, Pontes, 1995); Iram Jácome Rodrigues, Sindicalismo
e política: a trajetória da CUT (São Paulo, Scritta, 1997); Leôncio Martins
Rodrigues e Adalberto Moreira Cardoso, Força Sindical: uma análise
sociopolítica (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1993).
“No que concerne à liderança política, Lula a exercitou de forma exemplar
ao manter relação “direta” com as massas, de fortes traços arbitrais e,
frequentemente, messiânicos. Em uma quadra histórica em que as frações
dominantes não puderam garantir a sucessão presidencial nem em 2002 nem em
2006, Lula se tornou expressão de um governo excepcionalmente favorável a elas,
uma vez que conseguiu articular interlocução com
os pobres, vivência das benesses do poder e garantia de boa vida dos grandes
capitais. Encarnou, dessa forma, uma espécie de semi-Bonaparte,
recatado, cordial, célere diante da hegemonia financeira e hábil no manuseio de
sua base social. Sua nova forma de ser provocou uma consciência invertida de
seu passado e o deslumbramento em relação ao presente.
Como
consequência desse transformismo, seu governo
demonstrou enorme competência em dividir os trabalhadores privados dos trabalhadores
públicos. O mais importante partido de classe das últimas décadas, que
tantas esperanças criou no Brasil e no mundo, exauriu-se como partido de
esquerda transformador da ordem para se qualificar como potente gestor dos
grandes interesses dominantes no país. Converteu-se em um
partido que sonha, enfim, “humanizar o capitalismo”, combinando, quando no
poder central, uma política de parcerias com o grande capital – evidenciando um
traço privatizante que procurou esconder de todo modo – e de incentivo amplo à
transnacionalização dúplice do Brasil (de fora para dentro e vice-versa),
fazendo uso também da força do Estado para incentivar seu desenvolvimento e
expansão e buscando minorar, por meio de políticas
sociais, o pauperismo existente.
O
governo Lula, que poderia ter iniciado o desmonte efetivo do neoliberalismo no
Brasil, acabou se tornando, a princípio, seu prisioneiro e, depois, seu lépido
agente, ainda que sob a forma do social-liberalismo, incapaz de
principiar a desestruturação dos pilares da dominação burguesa. O
desmoronamento do projeto de governo do PT era
questão de tempo. Esse tempo chegou quando a crise atingiu o Brasil em profundidade.”
“Os movimentos sociais, por exemplo, encontram sua vitalidade nas
fortes conexões que os enlaçam à vida cotidiana, mas
por vezes podem ter dificuldades para se tornar longevos, duradouros. Nem
sempre é fácil para eles vislumbrar um outro desenho societal que lhes permita
uma fina calibragem entre vida cotidiana e um novo modo de vida em
sentido amplo e radical.
Os sindicatos,
mais próximos dos interesses imediatos da classe trabalhadora, embora
imprescindíveis, por vezes se perdem em seu
imediatismo, em suas batalhas cotidianas, quando não em seu burocratismo, sem
compreender bem a totalidade e o sentido de pertencimento de classe
ampliado (e não corporativo) que deve plasmar as suas ações. Isso quando não
sofrem disputas políticas que encontram o desinteresse e o distanciamento real
de suas bases.
Os partidos
de esquerda, por sua vez, desenham seus projetos
de futuro, praticam suas ações anticapitalistas, mas com frequência se
desconectam efetivamente da vida cotidiana, do dia a dia dos homens e mulheres
que vivem de seu trabalho e os quais pretendem representar. Não raro, se tornam
prisioneiros dos espaços institucionais conquistados, o que os distancia ainda
mais do ser social que querem efetivamente representar. Devem procurar
compreender melhor as novas dimensões das lutas
sociais, as questões vitais presentes na vida cotidiana que muitas vezes são
desconsideradas pelas ações partidárias tradicionais.
Não é
difícil perceber que, menos do que nas hierarquizações prévias, os desafios
estão em soldar laços de maior organicidade entre essas três ferramentas que
o mundo do trabalho ainda dispõe hoje, de modo que suas ações não sejam
ainda mais pulverizadas ou exauridas nessa fase de
profunda ação destrutiva do capital em relação ao trabalho e à humanidade, em
escala global.
Se
nossas indicações procuram apontar os riscos das hierarquizações prévias, e não
daquelas efetivamente conquistadas nas ações concretas, elas pretendem também
sugerir que nossas ações, lutas e batalhas passam igualmente por esses espaços,
ainda que na direção de uma nova organicidade das
forças sociais do trabalho, para a qual as nossas esquerdas, sociais,
sindicais e políticas, poderão autenticamente contribuir, sempre que
estiverem de fato enraizadas em experiências concretas e façam parte efetiva
das lutas sociais de nosso tempo.”
“Creio que estamos vivendo um período excepcional da nossa história. O
início do século XX também foi um período de grande relevância, tendo começado
com uma grande guerra mundial, quase simultaneamente
à Revolução Russa, seguidas pela iminência de revoluções socialistas na Hungria
e na Alemanha, que não se consubstanciaram em vitórias. Em seguida, tivemos o
advento do fascismo na Itália e, depois, do nazismo na Alemanha, assim como dos
governos de extrema direita na Espanha e em Portugal. Em suma, os anos 1910,
1920 e 1930 consistiram em um período historicamente
muito relevante.
O
século XXI começou também bastante tenso. Fazendo um paralelo com os movimentos
da natureza, as placas tectônicas da história e da sociedade estão se movendo,
friccionando-se. Diante desse quadro, o que podemos e devemos fazer como
intelectuais que não abandonaram a luta pela superação do capitalismo e que,
por isso, estão comprometidos com “um outro mundo”?
Em
primeiro lugar, é necessário desvelar a realidade concreta de que o capitalismo
não é e nunca foi, em ponto algum, uma alternativa para a humanidade.
A
questão ambiental não pode mais ser encarada como um tema para os próximos anos
ou décadas, mas deve ser analisada e assumida como uma questão vital hoje.
A
questão da propriedade intelectual também precisa ser discutida e reavaliada, pois é inadmissível que esse ativo esteja tão
concentrado, como está, nas mãos de grandes grupos transnacionais – a exemplo
dos medicamentos, que são controlados pelos interesses privados e
especulativos.
Se
olharmos a destruição do trabalho em escala global, veremos como a Europa
vivenciou altos níveis de desemprego nas últimas quatro décadas. Até os
trabalhos mais precários – outrora destinados apenas
aos imigrantes – são disputados agora pelos próprios trabalhadores europeus de
forma ferrenha.
Os
Estados Unidos também vêm, ainda mais intensamente desde 2008, no mesmo
caminho. A cidade de Detroit, apenas para dar um exemplo, que havia cinquenta
anos era o símbolo norte-americano, pediu recentemente falência, segundo
informaram os jornais. Trata-se de toda uma cidade (e não só uma ou algumas empresas) que não tem mais condições de
pagar sequer o salário de bombeiros e policiais.
Os
intelectuais críticos, comprometidos com outro modo de vida, devem fazer
uma análise profunda do mundo atual, compreender esses movimentos, as suas
tendências, diferenças, dificuldades, mutações. É necessário, especialmente
para os intelectuais socialistas, entender como é possível reinventar um socialismo para o século XXI que não seja a tragédia
daquele do século XX, que feneceu, com honrosas exceções.
Contudo,
a transformação do mundo não é obra de intelectuais, apesar do seu papel
crítico: a ação decisiva e central está na classe trabalhadora (ou mesmo nas
classes trabalhadoras), nas lutas e nos movimentos sociais, que mantêm uma
dimensão inter-relacional muito profunda entre
trabalho, geração, gênero, etnia, a questão também vital da natureza etc.
Esse
é o desafio que temos pela frente.
O
século XXI tem sido um laboratório social especial, uma vez que estamos vivendo
um momento em que é preciso utilizar todas as energias de análise, de reflexão,
de pensamento crítico e de ação, para que possamos visualizar, em oposição ao
que vivemos nos dias atuais, um novo século dotado de
humanidade.”
“O ano de 1968 foi o que balançou o mundo: os
levantes em Paris e em vários países da Europa; a invasão russa à
Tchecoslováquia; as greves e manifestações de rua no Brasil; o massacre dos
estudantes no México; as greves do autunno caldo (outono quente) na
Itália no ano seguinte, em 1969, mesmo ano do cordobazo na Argentina,
para citar alguns exemplos emblemáticos. Nos anos 1960, adentramos em uma era
de rebeliões que se expandiram por quase todos os
cantos do mundo. Na década seguinte, em um quadro de profunda crise estrutural,
o sistema de dominação do capital, constatada sua crise profunda em todos os
níveis, econômico, social, político, ideológico, valorativo, foi obrigado a
desenhar uma nova engenharia da dominação.
Vieram,
numa sucessão concatenada, a reestruturação produtiva dos capitais, a financeirização
ampliada do mundo e a barbárie neoliberal, e
essa trípode da destruição foi responsável pelo advento da contrarrevolução
burguesa de amplitude global, para recordar a expressão frequentemente
usada pelo sociólogo brasileiro Octavio Ianni.
Uma contrarrevolução
burguesa poderosa, cujo objetivo primeiro foi destruir toda a organização
da classe trabalhadora, do movimento socialista e anticapitalista. Essa reação foi, então, a resposta às lutas
empreendidas pelos polos mais avançados do movimento operário europeu e dos
movimentos sociais que combateram pela emancipação em 1968-1969, que almejavam
nada menos que o controle social da produção, desvencilhado tanto do
enquadramento social-democrático quanto do chamado “modelo soviético”.
Essa contrarrevolução
burguesa descarregou sua profunda verve
antissocial em escala planetária: impulsionou a barbárie neoliberal ainda
dominante e deflagrou uma grandiosa reestruturação produtiva do capital, que
alterou, em muitos elementos, a engenharia produtiva do capital. Essa ação
bifronte esteve sempre sob a hegemonia do capital financeiro. Dela resultou uma
gigantesca ampliação tanto da (super)exploração do trabalho quanto do mundo
especulativo e de seu capital fictício.
Mas é
bom recordar que o capital financeiro não é só o capital fictício que circula e
generaliza as especulações e os saques: o capital fictício é uma parte
prolongada do capital financeiro e este é, como sabemos há muito tempo, uma
fusão complexa entre o capital bancário e o capital industrial (como nos
ensinaram Lênin, Hilferding, Rosa Luxemburgo, entre outros).
Ao
contrário do que prega certa leitura frágil defendida por muitos economistas
pouco críticos, o capital financeiro não é uma alternativa separada e oposta ao
mundo produtivo, mas o controla em grande parte, e só uma fração dele – o
capital fictício – se descola da produção. Em seus núcleos centrais, o capital
financeiro atua na própria esfera produtiva (e a controla). Basta lembrar que,
quando compramos um produto financiado, estamos na
verdade oferecendo um duplo ganho para os capitais: tanto na compra quanto no
financiamento das mercadorias.
Esse
é o lastro material existente, sem o qual o capital financeiro não pode dominar
“eternamente”. Capital fictício sem algum lastro produtivo é uma
impossibilidade quando se pensa em dominação de longo período. Não é por outro
motivo que, na lógica do capital financeiro, o saque,
a exploração e a intensificação do uso da força de trabalho têm de ser levados
cada vez mais ao limite no capitalismo de nosso tempo. É também por isso que os
padecimentos, constrangimentos e níveis de (super)exploração da força de
trabalho atingem níveis de intensidade jamais vistos em fases anteriores, no
Sul e no Norte do mundo global. (...)
Como
sabemos, a pragmática neoliberal significou maior concentração de riqueza e da
propriedade da terra, avanço dos lucros e ganhos do capital, intenso processo
de privatização das empresas públicas, desregulamentação dos direitos sociais e
do trabalho, liberdade plena para os capitais, dos quais resultaram o aumento
da pauperização dos assalariados, a expansão dos
bolsões de precarizados e dos desempregados, entre tantas outras consequências
socialmente nefastas.
No
mundo financeiro latino-americano, basta recordar que muitos bancos
estrangeiros compensaram sua situação quase falimentar nos países de origem com
a ampliação de seus lucros no Brasil, no Chile e em diversos outros países
latino-americanos. O caso do Santander é exemplar. O Brasil, que até poucas décadas atrás tinha um sistema
financeiro majoritariamente nacional e estatal, hoje tem esse setor fortemente
transnacionalizado.”
“Depois
de um período aparentemente estável do pós-guerra, o ano de 1968 chacoalhou a
“calmaria” que parecia vigorar no mundo do welfare State: os levantes em
Paris, que se espalharam por tantas partes do globo, estampavam o novo fracasso
do capitalismo. Os operários, os estudantes, as
mulheres, a juventude, os negros, os ambientalistas, as periferias, as
comunidades indígenas chamavam a atenção para um novo e duplo fracasso.
De um
lado, cansaram de se exaurir no trabalho, sonhando com um paraíso que nunca
encontravam. O capitalismo do Norte ocidental procurava fazê-los “esquecer” a
luta por um mundo novo, alardeando um aqui e agora que lhes
escapava dia após dia.
Por
outro, o chamado “bloco socialista”, originado em uma revolução socialista que
abriu novos horizontes em 1917, havia se convertido, desde a contrarrevolução
do camarada Stálin, em uma ditadura do terror, especialmente contra a classe
operária, que, em vez de se emancipar, se exauria em um emprego infernal em que
o sonho cotidiano principal era praticar o absenteísmo no trabalho.
O ano
que abalou o mundo foi duramente derrotado pelas poderosas forças repressivas
que sempre se aglutinam quando a ditadura do capital é questionada. Das
revoltas na França ao massacre dos estudantes no México e à repressão às greves
do Brasil. Do autunno caldo da Itália ao cordobazo na Argentina,
os aparatos repressivos da ordem conseguiram estancar a era das rebeliões,
impedindo-a de se converter em uma época de
revoluções. Adentrávamos, então, na década de 1970, em uma profunda crise
estrutural: o sistema de dominação do capital chafurdava em todos os níveis:
econômico, social, político, ideológico, valorativo, o que o obrigou a
desenhar uma nova engenharia da dominação.
Foi
nessa contextualidade que começou a se gestar uma trípode profundamente
destrutiva. Esparramaram-se, como praga da pior
espécie, a pragmática neoliberal e a reestruturação produtiva global,
ambas sob o comando hegemônico do mundo das finanças. É bom recordar que
essa hegemonia significou não somente a expansão do capital fictício, mas uma
complexa simbiose entre o capital diretamente produtivo e o bancário, com o
qual se funde de início, criando um monstrengo de novo tipo, uma espécie de
Frankenstein horripilante e desprovido de qualquer
sentimento minimamente anímico.
As
principais resultantes desse processo foram desde logo evidenciadas: deu-se uma
ampliação descomunal de novas (e velhas) modalidades de (super)exploração do
trabalho, desigualmente impostas e globalmente combinadas pela
nova divisão internacional do trabalho na era dos impérios. Para tanto, foi
preciso que a contrarrevolução burguesa de
amplitude global exercitasse sua outra finalidade precípua, qual seja, a de
tentar destruir a medula da classe trabalhadora, seus laços de solidariedade e
consciência de classe, procurando recompor sua nova dominação em todas as
esferas da vida societal. (...)
Na
contraface desse ideário apologético e mistificador, afloraram as consequências
reais no mundo do trabalho: terceirização nos mais diversos setores;
informalidade crescente; flexibilidade ampla (que arrebenta as jornadas de
trabalho, as férias, os salários); precarização, subemprego, desemprego
estrutural, assédios, acidentes, mortes e suicídios. Exemplos se sucedem em
todos os espaços, como nos serviços commoditizados
ou mercadorizados. Um novo precariado desponta nos trabalhos de
call-center, telemarketing, hipermercados, hotéis, restaurantes, fast-food
etc., onde vicejam alta rotatividade, menor qualificação e pior remuneração.
Turbinada
pela lógica das finanças, em que técnica, tempo e espaço se convulsionaram, a
corrosão dos direitos do trabalho se tornou a exigência inegociável das grandes corporações, apesar de seus ideários
apregoarem mistificadoramente “responsabilidade social”, “sustentabilidade
ambiental” (a Samarco e a Vale que o digam), “colaboração”, “parceria” etc.
Na
esfera basal da produção, prolifera o vilipêndio social e, no topo, domina o
mundo financeiro. Capital fictício na ponta do sistema e uma miríade
interminável de formas precárias de trabalho que se
esparramam nas cadeias globais produtivas de valor. Dos Estados Unidos à Índia,
da Europa “unida” ao México, da China à África do Sul, em todos os cantos do
mundo se expande essa pragmática letal ao trabalho e seus direitos. Esse
vilipêndio só é estancado quando há resistência sindical, luta social e
rebelião popular, como na França de hoje e no Chile de ontem.”
“Sabemos que a Consolidação das Leis do Trabalho
se originou em uma conjuntura especial, intimamente vinculada à chamada
“Revolução de 1930”, que foi mais do que um golpe e menos do que uma revolução.
Rearranjo necessário entre nossas classes dominantes – cuja fração cafeeira
começava a perder seu acentuado espaço no poder. E o movimento político-militar
que levou Vargas à Presidência da República recompôs o equilíbrio entre as
distintas frações da oligarquia, cujo resultado mais
expressivo, entretanto, foi o desenvolvimento de um projeto industrializante, nacionalista
e com forte presença estatal. Vargas sabia que a montagem desse novo projeto
não poderia se efetivar sem o envolvimento da classe trabalhadora, que não
encontrava espaço no liberalismo excludente da chamada República do Café.
O
enigma da incorporação da classe trabalhadora por
Vargas pode ser desvendado pelos múltiplos significados presentes quando da
decretação da CLT. Desde logo ela consolidava a totalidade da legislação social
(e sindical) do trabalho iniciada em 1930. Mas faz-se premente enfatizar que
houve um movimento dúplice nessa história: o operariado brasileiro lutava,
desde meados do século XIX, por direitos trabalhistas básicos, mediante greves. Esse movimento se expandiu ao longo das primeiras
décadas do século XX – de que foi exemplo, entre tantos, a grande Greve Geral
de 1917 –, quando os trabalhadores e as trabalhadoras reivindicaram, entre
outras bandeiras, melhores condições de salário e de trabalho, regulamentação
da jornada, direito de férias e descanso semanal etc.
Aqui
o mito encontrou sua origem e densidade: Vargas “converteu”
autênticas demandas operárias em “doações do Estado”, realizadas quase sempre
em atos de Primeiro de Maio oficialistas, nos quais se assumia como responsável
pelo Estado benefactor, para recordar Werneck Vianna[1].
Àquilo
que a classe operária defendia em suas lutas concretas – na primeira metade dos
anos 1930 houve a eclosão de inúmeras greves no Brasil – Vargas respondia como
sendo seu antecipador e criador[2].
Foi assim, oscilando entre luta e outorga, que chegamos à decretação da CLT, em
1943, e à criação do mito do “Pai dos Pobres”.
Do
lado varguista, construía-se a clara percepção de que o projeto industrial
carecia de regulamentação e controle do trabalho. Do lado dos assalariados, um
exame das pautas das greves permitia constatar que os direitos trabalhistas
estavam entre suas principais reivindicações. A
título de exemplo: se para a classe trabalhadora a criação do salário mínimo
nacional era imprescindível para garantir sua reprodução e sobrevivência, para
o projeto industrializante de Vargas era imperioso regulamentar a mercadoria força
de trabalho e, desse modo, consolidar o mercado interno com a implementação
de um salário mínimo basal.”
[1] Luiz Werneck Vianna,
Liberalismo e sindicato no Brasil (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976).
[2] Ricardo Antunes, Classe
operária, sindicatos e partido no Brasil: da
Revolução de 30 até a Aliança Nacional Libertadora (São Paulo, Cortez, 1988).
“Por um novo modo de vida
O
empreendimento socialista não poderá efetivar outro modo de vida se não
conferir ao trabalho algo radicalmente distinto tanto da subordinação
estrutural em relação ao capital quanto de seu sentido heterônomo, subordinado
a um sistema de mando e hierarquia, como se deu durante a vigência do sistema soviético e nos países do chamado “bloco
socialista” ou do “socialismo real”, eufemismo para esconder as mazelas que
impediam a autonomia efetiva e verdadeira do trabalho.
Com
isso, entramos em outro ponto crucial, quando se trata de entender o verdadeiro
significado do trabalho no socialismo e sua profunda diferença em relação à
forma social do trabalho sob o sistema de capital.
Conforme desenvolvemos no livro Os sentidos do trabalho, uma vida cheia
de sentido fora do trabalho supõe uma vida dotada de sentido dentro
do trabalho. Não é possível compatibilizar trabalho assalariado, fetichizado
e estranhado com tempo verdadeiramente livre. Uma vida desprovida de
sentido no trabalho é incompatível com uma vida cheia de sentido fora do
trabalho. Em alguma medida, a esfera fora do trabalho
estará maculada pela desefetivação que se dá no interior da vida
laborativa.
Como
o sistema global do capital, nos dias atuais, abrange intensamente também as
esferas da vida fora do trabalho, a desfetichização da sociedade do
consumo tem como corolário imprescindível a desfetichização no modo de
produção das coisas. O que torna a desfetichização da vida muito mais
difícil, se não se inter-relacionar decisivamente
a ação pelo tempo livre confrontado abertamente à lógica do capital e à
vigência do trabalho abstrato.
Se o
fundamento da ação coletiva for voltado radicalmente contra as formas de
dominação do capital, com suas alienações e seus estranhamentos, a luta
imediata pela redução da jornada ou do tempo de trabalho se torna também
importante e inteiramente compatível com o direito
ao trabalho. Desse modo, a luta contemporânea pela redução da jornada (ou
do tempo) de trabalho e a luta pelo direito ao trabalho, ao invés de serem
excludentes, se tornam necessariamente complementares.
O
empreendimento societal por um trabalho cheio de sentido e pela vida
autêntica fora do trabalho, por um tempo disponível para o trabalho
e por um tempo verdadeiramente livre e autônomo
fora do trabalho – ambos, portanto, desassociados do controle e do comando
opressivos do capital –, se converte em elemento essencial na construção de uma
sociedade socialista não mais regulada pelo sistema de metabolismo social do
capital e seus mecanismos de subordinação, não mais voltada para a destruição
da natureza, mas sim para uma autêntica preservação ambiental,
compatível tanto em relação às reais necessidades
humanas quanto à imperiosa e imprescindível preservação da ecologia.
A
invenção societal de uma nova vida, autêntica e dotada de sentido, recoloca,
portanto, neste início do século XXI, a necessidade premente de construção de
um novo sistema de metabolismo social, de um novo modo de produção
fundado na atividade autodeterminada. Atividade baseada no tempo disponível para produzir valores de uso
socialmente necessários, contra a produção heterodeterminada, que
caracterizou o capitalismo, baseada no tempo excedente para a produção
exclusiva de valores de troca para o mercado e para a reprodução do capital.
Durante
a vigência do capitalismo (e, de modo mais abrangente, do próprio sistema do
capital), o valor de uso dos bens socialmente necessários subordinou-se ao seu valor de troca, que passou a
comandar a lógica do sistema de produção do capital. As funções produtivas
básicas, bem como o controle do seu processo, foram radicalmente
separadas entre aqueles que produzem (os trabalhadores) e aqueles que controlam
(os capitalistas e seus gestores). Como diz Marx, o capital operou a separação
entre trabalhadores e meio de produção, entre “o
caracol e sua concha”[6], aprofundando a
distância entre a produção voltada para o atendimento das necessidades
humano-sociais e aquela direcionada às necessidades de autorreprodução do
capital.
Tendo
sido o primeiro modo de produção a criar uma lógica que não leva em
conta prioritariamente as reais necessidades societais, e que também por isso
se diferenciou de maneira radical de todos os
sistemas anteriores de controle do metabolismo social existentes (que produziam
visando suprir, ainda que de modo bastante desigual, as necessidades de
autorreprodução humana, e não o lucro), o capital instaurou um sistema
voltado para a sua autovalorização que independe das reais necessidades
autorreprodutivas da humanidade[7].
O
novo princípio societal imprescindível é, então, conceber
o trabalho como atividade vital[8], como autoatividade.
O que significa dizer que a nova forma societal socialista deve recusar o
funcionamento com base na separação dicotômica entre tempo de trabalho
necessário para a reprodução social e tempo de trabalho excedente
para a reprodução do capital. Isso porque o tempo disponível[9] será aquele dispêndio de atividade laborativa
autodeterminada, livre, voltado “para atividades
autônomas, externas à relação dinheiro-mercadoria”[10],
e por isso capaz de se contrapor à relação totalizante dada pela
forma-mercadoria e pelo capital. Para além da divisão hierárquica que subordina
o trabalho ao capital hoje vigente.
Se o
mundo atual nos oferece como horizonte imediato o privilégio da servidão,
seu combate e seu impedimento efetivos, então, só
serão possíveis se a humanidade conseguir recuperar o desafio da emancipação.”
[6] Karl Marx, O capital: crítica da economia política,
Livro I: O processo de produção do capital (São Paulo, Boitempo, 2013), p.
433.
[7] István Mészaros, Para
além do capital: rumo a uma teoria da transição (São Paulo, Boitempo,
2002).
[8] Karl Marx, Manuscritos
econômico-filosóficos, cit.; O
capital, Livro I, cit.
[9] Karl Marx, Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858 –
esboços da crítica da economia política (São
Paulo, Boitempo, 2011), p. 590.
[10] Robert Kurz, O
colapso da modernização, cit.

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