Subtítulo: o novo proletariado de serviços na era digital
Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-629-6
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 328
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Sinopse: O novo livro do sociólogo e professor da Unicamp Ricardo Antunes
apresenta um retrato detalhado da classe trabalhadora hoje, em suas principais
tendências. O estudo apresenta uma análise detalhada das mudanças trabalhistas
que ocorreram na história recente do país, desde a redemocratização até o
impeachment de Dilma Rousseff, e seu eixo está em compreender a explosão do
novo proletariado de serviços, que se desenvolve com o trabalho digital,
on-line e intermitente. Antunes demonstra como estão se manifestando essas
tendências tanto nos países da Europa quanto no Brasil, apresentando elementos
presentes na nova morfologia do trabalho. Os adoecimentos, padecimentos,
precarizações, terceirizações, desregulamentações e assédios parecem tornar-se
mais a regra do que a exceção. Um dos principais estudiosos da sociologia do
trabalho no Brasil, Antunes combina a pesquisa sociológica concreta, rigorosa e
empiricamente fundamentada com um compromisso social intransigente, a saber, a
tomada de partido pelos explorados e oprimidos. “Se o mundo atual nos oferece
como horizonte imediato o privilégio da servidão, seu combate e seu impedimento
efetivos, então, só serão possíveis se a humanidade conseguir recuperar o
desafio da emancipação”, afirma o autor.
“Assim, movida por essa lógica que se expande em escala global, estamos
presenciando a expansão do que podemos denominar uberização do trabalho, que se
tornou um leitmotiv do mundo empresarial. Como o trabalho on-line fez desmoronar a separação entre o tempo de
vida no trabalho e fora dele, floresce uma nova modalidade
laborativa que combina mundo digital com sujeição completa ao ideário e à
pragmática das corporações. O resultado mais grave dessa processualidade é o
advento de uma nova era de escravidão digital, que se combina com a
expansão explosiva dos intermitentes globais.
Tudo
isso se coaduna com a denominada indústria 4.0.
Essa propositura nasceu na Alemanha, em 2011, concebida para gerar um novo e
profundo salto tecnológico no mundo produtivo, estruturado a partir das novas
TICs que se desenvolvem celeremente. Ela significará a intensificação dos
processos produtivos automatizados, em toda a cadeia geradora de valor, de modo
que a logística empresarial seja toda controlada digitalmente.
Sua
principal consequência para o mundo do trabalho será a ampliação do trabalho
morto, tendo o maquinário digital – a “internet das coisas” – como
dominante e condutor de todo o processo fabril, e a consequente redução do trabalho
vivo, através da substituição das atividades tradicionais e mais manuais
por ferramentas automatizadas e robotizadas, sob o comando
informacional-digital.
No capitalismo avançado, a produção tende a ser
cada vez mais invadida por robôs e máquinas digitais, encontrando nas TICs o
suporte fundamental dessa nova fase de subsunção real do trabalho ao capital.
Como consequência dessa nova empresa flexível e digital, os intermitentes
globais tendem se expandir ainda mais, ao mesmo tempo que o processo tecnológico-organizacional-informacional
eliminará de forma crescente uma quantidade
incalculável de força de trabalho que se tornará supérflua e sobrante, sem
empregos, sem seguridade social e sem nenhuma perspectiva de futuro.
Sua
denominação, indústria 4.0, estampa, segundo seus formuladores, uma nova fase
da automação industrial, que se diferencia da Revolução Industrial do século
XVIII, do salto dado pela indústria automotiva do século
XX e também da reestruturação produtiva que se desenvolveu a partir da década
de 1970. A essas três fases anteriores sucederá uma nova, que consolidará,
sempre segundo a propositura empresarial, a hegemonia informacional-digital no
mundo produtivo, com os celulares, tablets, smartphones e assemelhados
controlando, supervisionando e comandando essa nova etapa da ciberindústria do
século XXI.
Não é
difícil antecipar que a divisão internacional do trabalho entre Norte e
Sul, centro e periferia, tenderá a se aprofundar ainda mais, seguindo um
movimento que, sendo desigual e combinado, atingirá de forma diferenciada a
totalidade dos países, aprofundando a expulsão de força de trabalho em um
patamar ainda maior que o atual.
Como
essa lógica que estamos descrevendo é fortemente destrutiva
em relação ao mundo do trabalho, a contrapartida esparramada pelo ideário
empresarial tem de ser amenizada e humanizada. É por isso que o
novo dicionário “corporativo” ressignifica o autêntico conteúdo das palavras,
adulterando-as e tornando-as corriqueiras no dialeto empresarial:
“colaboradores”, “parceiros”, “sinergia”, “resiliência”, “responsabilidade
social”, “sustentabilidade”, “metas”. Quando entram
em cena os enxugamentos, as reestruturações, as “inovações tecnológicas da
indústria 4.0”, enfim, as reorganizações comandadas pelos que fazem a “gestão
de pessoas” e pelos que formulam as tecnologias do capital, o que temos é mais
precarização, mais informalidade, mais subemprego, mais desemprego, mais
trabalhadores intermitentes, mais eliminação de postos de trabalho, menos
pessoas trabalhando com os direitos preservados.
Para tentar “amenizar” esse flagelo, propaga-se em todo canto um novo
subterfúgio: o “empreendedorismo”, no qual todas as esperanças são apostadas e
cujo desfecho nunca se sabe qual será.”
“Nossa hipótese, então, é que estamos presenciando em escala global o
crescimento de novas formas de realização da lei do valor, configurando
mecanismos complexos de extração do mais-valor, tanto nas esferas da produção material quanto nas das atividades imateriais,
estas também crescentemente constitutivas das cadeias globais de produção de
valor. E, mais, mesmo não sendo o elemento dominante, é necessário
reconhecer que o trabalho imaterial vem assumindo papel de relevo na
conformação do valor, não só por ser parte da articulação relacional
entre distintas modalidades de trabalho vivo em interação com trabalho morto como também por ser partícipe do processo de
valorização, ao reduzir o tempo de circulação do capital e, por
consequência, também seu tempo total de rotação.
Visto
que o setor de serviços está cada vez mais totalizado e controlado pela lógica
do capital e de seu processo de mercadorização ou comoditização,
ele também se torna gradualmente mais partícipe das cadeias produtivas de
valor, legando cada vez mais ao passado sua forma improdutiva
para se converter em parte integrante do processo de geração (produtiva)
de valor. As crescentes intersecções entre a indústria, a agricultura e os
serviços, como na agroindústria, na indústria de serviços e nos serviços
industriais, são emblemáticas do que estamos indicando. A introdução do
trabalho on-line, que cresce intensamente desde os
primórdios da reestruturação produtiva na década de 1970, com o seu instrumental
tecnológico-informacional-digital, fez deslanchar essa processualidade, que se
tornou incessante, convertendo a reestruturação produtiva em um processo
permanente, da qual a denominada indústria 4.0 é a mais nova etapa.”
“Classe média ou novo proletariado de serviços?
Partimos
da hipótese de que os trabalhadores e as trabalhadoras em serviços (como
call-centers, telemarketing, indústria de softwares e TICs, hotelaria, shopping
centers, hipermercados, redes de fast-food, grande comércio, entre tantos
outros) encontram-se cada vez mais distanciados daquelas modalidades de
trabalho intelectual que particularizam as classes
médias e, dada a tendência de assalariamento, proletarização e mercadorização, aproximam-se
daquilo que denominamos novo proletariado de serviços.
Sabemos
que a noção marxista de classe média remete a um tema bastante complexo, que
transcende a esfera da materialidade, uma vez que, para compreender as classes
sociais, é necessário apreender uma complexa dimensão relacional entre o mundo da objetividade e o da subjetividade, o que se
opõe à unilateralização que, com frequência, ocorre quando se discute o tema
das classes sociais.
Nessa
direção, começamos indicando que as classes médias (melhor falar no plural)
configuram um conceito amplo: são, desde logo, compostas pelos que exercem
trabalho predominantemente intelectual (não manual), o que essencialmente as
distingue da classe operária. E, mais, as classes
médias buscam uma clara diferenciação em relação à classe operária também na
esfera do consumo, em seu ideário, nos seus valores simbólicos. Em relação às
classes burguesas, o imaginário das classes médias frequentemente transita na
esfera dos valores da classe dominante. Mas, por serem destituídas dos meios
materiais e simbólicos da dominação e da riqueza,
vivenciam um cenário em que a oscilação e a incerteza são mais frequentes do
que a estabilidade e a ascensão.
Assim,
o conceito de classes médias não pode ser determinado nem centralmente nem de
modo exclusivo pela renda percebida, quando a análise é de inspiração
ontológica. As clivagens que as atingem e as particularizam são muito mais
profundas. Se as classes médias mais tradicionais devem ser definidas pelo papel que ocupam no processo de
trabalho, predominantemente intelectual e não manual (de que são exemplos os
funcionários públicos, médicos, advogados, profissionais liberais etc.), nos
últimos tempos temos presenciado uma expansão significativa de setores médios
que, em seu processo de assalariamento, pelas formas de realização e vínculos
que passam a assumir com o trabalho que desenvolvem,
sofrem uma crescente proletarização, a exemplo dos trabalhadores de escritório,
bancários, professores, assalariados do comércio, trabalhadores em
supermercados, fast-foods, call-centers, TICs (ao menos em seus estratos médios
e inferiores), confirmando e aprofundando a formulação pioneira de Braverman[56].
As
classes médias, além de suas diferenciações e oscilações estruturais típicas, definem-se de forma significativa pelos valores
culturais, simbólicos, de consumo[57]. Os
seus segmentos mais altos se distinguem da classe média baixa e se aproximam,
ao menos no plano valorativo, das classes proprietárias. Mas, ao contrário, em
seus estratos mais baixos, os assalariados de classe média tendem, no plano da
objetividade, a se aproximar mais da classe trabalhadora, ainda que sua aspiração possa se dirigir para o topo da
pirâmide social. É por isso que a consciência das classes médias aparece
frequentemente como consciência
de uma não classe, ora mais próxima das classes proprietárias, como ocorre
em seus segmentos mais altos, como os gestores (de médio e alto escalão),
administradores, engenheiros, médicos, advogados etc., ora mais próxima dos
valores, ideários e práticas da classe trabalhadora, quando tomamos os seus
segmentos mais proletarizados.
Assim,
dada a conformação heterogênea e compósita das
classes médias, em sua objetividade e subjetividade, assim como em suas
intrincadas dimensões relacionais, uma efetiva intelecção de seu ser, de
sua condição de classe, só pode ser apreendida em sua especificidade,
nos laços e relações que as conectam com os processos sociais.
No
passado, por exemplo, quando as “profissões liberais” eram mais
individualizadas, a exemplo dos médicos e advogados
tradicionais, predominava uma dimensão de trabalho mais intelectual e não
manual.
No
presente, com a enorme expansão do capitalismo financeirizado, amplos setores
das classes médias vivenciam um intenso processo de proletarização, como os
trabalhadores de serviços que, uma vez “mercadorizados”, se tornam, como vimos,
cada vez mais partícipes (direta ou indiretamente) do processo amplo de
valorização do capital. Assim, a partir do monumental
crescimento dos novos assalariados de serviços (como os de call-center,
telemarketing, hipermercados, fast-food, hotéis, restaurantes, os assalariados
do comércio e de escritório), a tese que aparece como fio condutor deste livro
é a de que estamos presenciando a constituição e a expansão de um
novo proletariado de serviços. Esse, por sua vez, passa a ter cada vez mais um papel de destaque na formação da
classe trabalhadora ampliada que se expande em escala global e que tem sido
responsável pela deflagração de várias lutas sociais, manifestações e greves.”
[56] Harry Braverman, Trabalho
e capital monopolista (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977).
[57] Pierre Bourdieu, A
distinção: crítica social do julgamento (São
Paulo, Edusp, 2007).
“Esses exemplos, dentre tantos outros, constituíram-se na base de um
amplo debate, sobretudo nos países do Norte, acerca da emergência desse novo
contingente da classe trabalhadora, com perfil claramente diferenciado em
relação ao operariado europeu tradicional. Foi dentro desse debate que nasceu a
polêmica proposta de Standing[65], que vislumbrou
o advento de uma nova classe – o precariado.
Vamos,
então, à luz da concepção ampla de classe trabalhadora, problematizar essa
formulação. Segundo Standing, o precariado é uma classe distinta daquela que se
conformou durante o capitalismo industrial. Seria uma nova classe, diferenciada
do proletariado herdeiro da era taylorista-fordista. Sua configuração se
aproximaria, então, de uma nova classe mais desorganizada, oscilante,
ideologicamente difusa e, por isso, mais vulnerável,
mais facilmente atraída por “políticas populistas”, suscetíveis de acolher
inclusive apelos “neofascistas”.
Com
esse desenho crítico – ainda que a descrição empírica de Standing seja ampla e
com informações relevantes –, sua análise confere o estatuto de classe
ao que de fato é uma parcela do proletariado, e a mais precarizada,
geracionalmente jovem, que vive de trabalhos com
maior grau de informalidade, muitas vezes realizando atividades parciais, por
tempo determinado ou intermitente. A resultante desse equívoco analítico levou
o autor, inclusive, a concebê-la como “uma classe perigosa”, “em-si” e
“para-si” diferenciada da classe trabalhadora[66].
Nossa
formulação crítica, pelo que já indicamos neste capítulo, caminha em direção
oposta às formulações que visualizam o precariado
como uma nova classe. Entendemos, ao tratar da realidade presente em alguns
países de capitalismo avançado, que a classe-que-vive-do-trabalho, em sua nova
morfologia, compreende distintos polos que são expressões visíveis da mesma
classe trabalhadora, ainda que eles possam se apresentar de modo
bastante diferenciado (diferenciação, aliás, que não
é novidade na história da classe trabalhadora, sempre clivada por
gênero, geração, etnia/raça, nacionalidade, migração, qualificação etc.)[67].
São,
portanto, setores diferenciados da mesma classe trabalhadora, da
classe-que-vive-do-trabalho em suas heterogeneidades, diferenciações e
fragmentações. Nos países capitalistas avançados[68],
os mais precarizados ou os jovens, que compõem o
chamado precariado, nascem sob o signo da corrosão dos direitos e lutam de
todos os modos para conquistá-los. Os setores tradicionais da classe
trabalhadora, herdeiros do welfare State e do taylorismo-fordismo
europeu, mais organizados e que conquistaram direitos ao longo de muitas e
seculares lutas, debatem-se no presente para impedir um desmoronamento e uma
corrosão ainda maiores de suas condições de trabalho.
Lutam para não se precarizar ainda mais.
Exemplos
verdadeiros de outra dialética, esses dois segmentos importantes da mesma
classe-que-vive-do-trabalho, em sua aparente contradição, parecem
ter seu futuro ligado de modo indelével: o jovem precariado, em suas lutas,
aparentemente mais “desorganizado”, quer o fim da precarização completa que o
avassala e sonha com um mundo melhor. Por sua vez, os
trabalhadores mais tradicionais, mais organizados sindical e politicamente,
herdeiros do welfare State, querem evitar uma degradação ainda maior
e se recusam a converter-se nos novos precarizados do mundo. Como a lógica
destrutiva do capital é múltipla em sua aparência, mas una
em sua essência, se esses polos vitais do mundo do trabalho, que
vivenciam situações tanto de heterogeneidade
quanto de homogeneização, não forem capazes de se conectar de modo
solidário e orgânico e de articular elementos de unificação em algumas de suas
lutas, tenderão a sofrer uma precarização ainda maior. Uberização,
walmartização, intermitência, pejotização, esse será o léxico dominante no
mundo do trabalho se a resistência e a confrontação não forem capazes de obstar
o vigoroso processo de precarização estrutural do
trabalho.
Aqui
é preciso fazer um breve parêntese: a precarização não é algo estático, mas um modo
de ser intrínseco ao capitalismo, um processo que pode tanto se ampliar
como se reduzir, dependendo diretamente da capacidade de resistência,
organização e confrontação da classe trabalhadora. Trata-se de uma
tendência que nasce, conforme Marx demonstrou em O
capital, com a própria criação do trabalho assalariado no capitalismo. Como
a classe trabalhadora vende sua força de trabalho e só recebe por parte de sua
produção, o excedente que é produzido e apropriado pelo capital tende a se
ampliar por meio de vários mecanismos intrínsecos à sua lógica.
Uma
vez que os capitais buscam com frequência aumentar o mais-valor (tanto o relativo
quanto o absoluto), a incessante ampliação da troca
desigual entre o valor que o proletariado produz e o que ele recebe é uma
tendência presente na própria lógica do capitalismo. Para tanto, são usados
vários mecanismos, como a intensificação do trabalho, o prolongamento da
jornada[69], a restrição e a limitação dos
direitos, os novos métodos de organização sociotécnica do trabalho etc.
Assim,
a precarização da classe trabalhadora é uma
processualidade resultante também da luta entre as classes, da capacidade de
resistência do proletariado, podendo, por isso, tanto se ampliar como se
reduzir. Dessa forma, esse movimento ocorre tanto em função do aumento da
exploração capitalista quanto das lutas da classe trabalhadora, em suas greves,
lutas sindicais e embates contra o capital.”
[65] Guy Standing, The
Precariat: the New Dangerous Class (Nova York, Bloomsbury, 2011).
[66] Ibidem, p. 25.
[67] Ver o conjunto de críticas e polêmicas, bem como as
respostas de Guy Standing em “The Precariat, Class and Progressive Politics: a
Response”, em Marcel Paret (org.), Global Labour Journal: Special Issue:
Politics of Precarity: Critical Engagements with Guy Standings, v. 7, n. 2,
maio 2016; disponível em: <https://mulpress.mcmaster.ca/globallabour/article/view/2940/2600>;
acesso em: 26 dez. 2017.
[68] Para um amplo
desenho histórico e global da classe trabalhadora, ver Marcel van der Linden, Trabalhadores
do mundo: ensaios para uma história global do trabalho (Campinas, Editora
da Unicamp, 2013).
[69] Ver o excelente
estudo de Pietro Basso, Modern Times, Ancient Hours: Working Lives in the
Twenty-First Century (Londres, Verso, 2003).
“Por fim, dada a conformação desigual e combinada da divisão
internacional do trabalho, é preciso fazer algumas mediações quando se
trata de tematizar o precariado. A primeira delas é dada pelas clivagens
existentes entre Norte e Sul. Nas periferias, o proletariado nasceu eivado da
condição de precariedade. Bastaria dizer que o proletariado no Brasil – e em
vários outros países que vivenciaram o escravismo
colonial – efetivamente floresceu a partir da abolição do trabalho escravo,
herdando a chaga de um dos mais longevos períodos de escravidão, de modo que
sua precarização não é a exceção, mas um traço constante de sua particularidade
desde a origem.
Como
no Sul não se desenvolveu nenhum tipo persistente de aristocracia operária,
nosso proletariado sempre se confundiu com a condição
de precariedade, que é traço marcante de sua ontogênese. As suas
diferenças internas nunca foram muito grandes, como aquelas existentes onde
vicejou a aristocracia operária e, posteriormente, o welfare State, pois
entre nós nunca houve uma sólida elite operária. Ainda que estivessem
sempre presentes essas clivagens e diferenciações, como, aliás, em toda a
história da classe trabalhadora, elas nunca criaram
um fosso tão fundo entre seus diferentes polos.
Já
nos países do Norte, onde nasceu, na gênese do movimento operário, uma forte
aristocracia operária e, posteriormente, se desenvolveu um sólido proletariado
herdeiro do taylorismo, do fordismo e do welfare State, o advento
recente do precariado acentuou enormemente um traço forte de diferenciação que
existia, por exemplo, entre o proletariado
tradicional do welfare State e os bolsões de imigrantes que se
encontravam na base da classe trabalhadora, ainda que em dimensão e tamanho
muito menores do que os atuais.
É por
isso que, em nosso entendimento, essas diferenciações não encontram simetria
com o proletariado do Sul. A crise estrutural, o desemprego e o subemprego, os
novos fluxos migratórios, tudo isso ganhou novas
significações, ampliando enormemente as clivagens dentro da classe
trabalhadora dos países capitalistas centrais. No Sul, as particularidades e
singularidades da classe trabalhadora fazem com que suas clivagens (por certo
existentes e relevantes) não tenham, entretanto, a intensidade do centro, de
modo que falar em “uma nova classe” abaixo do proletariado é uma completa
desproporção, assim como foi um equívoco empírico
e analítico falar em aristocracia operária como um fenômeno duradouro
nas periferias.
Desse
modo, o precariado – se assim o quisermos chamar – deve ser compreendido
como parte constitutiva do nosso proletariado desde sua origem, o seu
polo mais precarizado, ainda que seja evidente, como já indicamos ao longo
deste capítulo, que entre nós também venha se desenvolvendo
com rapidez um novo contingente do proletariado, largamente vinculado aos
serviços, com um traço geracional marcante (juventude) e cujas relações de
trabalho estão mais próximas da informalidade, do trabalho por tempo
determinado, dos terceirizados e intermitentes, modalidades que não param de se
expandir.
Já
nos países capitalistas centrais, especialmente os da Europa, o precariado
é uma criação mais recente, ao menos em sua
conformação atual, impulsionado pela crise estrutural do sistema capitalista,
pelo advento do neoliberalismo e pelo comando do capital financeiro, que
fizeram emergir um proletariado muito mais explorado em pleno coração do
capitalismo. A superexploração do trabalho, então, deixou de ser um discreto
charme da burguesia dependente e subordinada e adentrou o coração do welfare State.
Dos
homens e mulheres jovens mais qualificados aos imigrantes pobres; dos
imigrantes com qualificação às jovens nativas sem formação; das mulheres
brancas às imigrantes negras, indígenas, amarelas, enfim, em um amplo espectro
da população excedente de trabalhadores e trabalhadoras, que Marx
denominou superpopulação relativa ou exército de reserva,
podem-se encontrar, hoje, incrustados neles, cada
vez mais contingentes que no centro do mundo são definidos (ou se definem) como
precariado. Seja nos seus contingentes flutuantes, latentes ou
estagnados, seja em outros que possam aparecer, a precarização se
amplia de modo exponencial e cada vez com menos limites e crescente
desregulamentação, ainda que essa expansão ocorra de modo desigual, quando se
toma o mundo em sua globalidade.
Assim,
se parece plausível e pertinente reconhecer empiricamente, no Norte, a
emergência recente do precariado como sendo um dos polos mais
precarizados da classe trabalhadora e muito diferenciado e distanciado do
proletariado herdeiro do welfare State, no Sul, no espaço periférico, o que
poderíamos chamar de precariado tem singularidades e particularidades
muito distintas em relação àquele que floresceu no
Norte. Como é límpido no caso brasileiro, ele não só não se constitui como uma nova
classe, como também não é tão profundamente diferenciado em relação
ao proletariado mais regulamentado, pois aqui nunca floresceu um padrão
societal típico do welfare State – ainda que, no presente, esse novo
contingente do proletariado esteja sendo redesenhado com novas configurações que se inserem no que venho denominando nova
morfologia do trabalho[73].
Contrariamente,
portanto, às teses que advogavam a perda de importância da classe trabalhadora,
que estaria sendo substituída pela “sociedade de classe média”, ou ainda
àquelas que vislumbram a criação de “novas classes” (para não falar daquelas
que propugnaram o “fim” das classes sociais), estamos desafiados a compreender sua nova polissemia, sua nova morfologia,
cujo elemento mais visível é o desenho multifacetado, que faz aflorar tantas
transversalidades entre classe, geração, gênero, etnia etc. Clivagens que se
desenvolvem em inter-relação com o mundo do trabalho, entre homens e mulheres;
jovens e idosos; nacionais e imigrantes; brancos, negros e indígenas;
qualificados e desqualificados; estáveis e precários;
formalizados e informalizados; empregados e desempregados; dentre tantos outros
exemplos.
Essa nova
morfologia compreende não só o operariado herdeiro da era taylorista e
fordista, em relativo processo de encolhimento especialmente nos países
centrais (mas que segue um movimento diferenciado em vários países do Sul, como
China, Índia, Brasil, México, Coreia, África do Sul etc.), mas deve incluir também os novos proletários precarizados de serviços,
parte integrante e crescente da classe-que-vive-do-trabalho. Trabalhadores e
trabalhadoras que com frequência oscilam entre a heterogeneidade em sua forma
de ser (gênero, etnia, geração, qualificação, nacionalidade etc.) e a homogeneização
que resulta da condição crescentemente pautada pela precarização, cada vez mais
desprovida de direitos do trabalho e de
regulamentação contratual.
Não
menos importante é dizer ainda que a classe trabalhadora, em sua nova
morfologia, participa cada vez mais do processo de valorização do capital e
da geração de mais-valor nas cadeias produtivas globais. As formas de
intensificação do trabalho, a burla dos direitos, a superexploração, a vivência
entre a formalidade e a informalidade, a exigência de
metas, a rotinização do trabalho, o despotismo dos chefes, coordenadores e
supervisores, os salários degradantes, os trabalhos intermitentes, os assédios,
os adoecimentos, padecimentos e mortes decorrentes das condições de trabalho
indicam o claro processo de proletarização dos assalariados de serviços que se
encontra em expansão no Brasil e em várias partes do mundo, dada a importância
das informações no capitalismo financeiro global.
Constituem-se, portanto, numa nova parcela que amplia e diversifica a classe
trabalhadora.
As
consequências dessas mutações são profundas no que concerne às lutas sociais e
sindicais, incluindo aquelas que assumem uma conformação anticapitalista. Se há
uma nova morfologia do trabalho, ela inclui o advento de uma nova morfologia
das lutas, das formas de organização e da
representação do trabalho.
O
mundo hoje é um excepcional laboratório para se compreender tanto essa
tendência de precarização intensificada do trabalho, que amplia
exponencialmente as modalidades cada vez mais intermitentes e
desprovidas de direitos, quanto a nova era das lutas sociais que acompanham
essa processualidade complexa em expansão de escala global.”
[73] No capítulo 7,
trataremos da nova morfologia do trabalho no Brasil e esses elementos
empíricos serão evidenciados. Sobre o debate em torno do precariado, vale
lembrar que, além de um amplo debate na Europa, há também aquele que se
desenvolve no Brasil. Ver, por exemplo: Ruy Braga, A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista
(São Paulo, Boitempo, 2012), e A rebeldia do precariado: trabalho e
neoliberalismo no Sul global (São Paulo, Boitempo, 2017); e Giovanni Alves,
Condição de proletariedade: a precariedade do trabalho no capitalismo global
(Londrina, Praxis, 2009). Em relação à tematização acerca de classe
trabalhadora no Brasil atual, ver os artigos de Marcelo Mattos Badaró, “A classe trabalhadora: uma abordagem
contemporânea à luz do materialismo histórico”, Revista Outubro, Rio de
Janeiro, n. 21, 2013; disponível em: <http://outubrorevista.com.br/wp-content/uploads/2015/02/Revista-Outubro-Edição-21-Artigo-03.pdf>;
acesso em: 26 dez. 2017; e de Graça Druck, “Trabalho, precarização e
resistências”, Caderno CRH (UFBA), Salvador, v. 24, 2011.

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