sexta-feira, 14 de novembro de 2025

O privilégio da servidão (Parte I), de Ricardo Antunes

Subtítulo: o novo proletariado de serviços na era digital

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-629-6

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 328

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Sinopse: O novo livro do sociólogo e professor da Unicamp Ricardo Antunes apresenta um retrato detalhado da classe trabalhadora hoje, em suas principais tendências. O estudo apresenta uma análise detalhada das mudanças trabalhistas que ocorreram na história recente do país, desde a redemocratização até o impeachment de Dilma Rousseff, e seu eixo está em compreender a explosão do novo proletariado de serviços, que se desenvolve com o trabalho digital, on-line e intermitente. Antunes demonstra como estão se manifestando essas tendências tanto nos países da Europa quanto no Brasil, apresentando elementos presentes na nova morfologia do trabalho. Os adoecimentos, padecimentos, precarizações, terceirizações, desregulamentações e assédios parecem tornar-se mais a regra do que a exceção. Um dos principais estudiosos da sociologia do trabalho no Brasil, Antunes combina a pesquisa sociológica concreta, rigorosa e empiricamente fundamentada com um compromisso social intransigente, a saber, a tomada de partido pelos explorados e oprimidos. “Se o mundo atual nos oferece como horizonte imediato o privilégio da servidão, seu combate e seu impedimento efetivos, então, só serão possíveis se a humanidade conseguir recuperar o desafio da emancipação”, afirma o autor.



Assim, movida por essa lógica que se expande em escala global, estamos presenciando a expansão do que podemos denominar uberização do trabalho, que se tornou um leitmotiv do mundo empresarial. Como o trabalho on-line fez desmoronar a separação entre o tempo de vida no trabalho e fora dele, floresce uma nova modalidade laborativa que combina mundo digital com sujeição completa ao ideário e à pragmática das corporações. O resultado mais grave dessa processualidade é o advento de uma nova era de escravidão digital, que se combina com a expansão explosiva dos intermitentes globais.

Tudo isso se coaduna com a denominada indústria 4.0. Essa propositura nasceu na Alemanha, em 2011, concebida para gerar um novo e profundo salto tecnológico no mundo produtivo, estruturado a partir das novas TICs que se desenvolvem celeremente. Ela significará a intensificação dos processos produtivos automatizados, em toda a cadeia geradora de valor, de modo que a logística empresarial seja toda controlada digitalmente.

Sua principal consequência para o mundo do trabalho será a ampliação do trabalho morto, tendo o maquinário digital – a “internet das coisas” – como dominante e condutor de todo o processo fabril, e a consequente redução do trabalho vivo, através da substituição das atividades tradicionais e mais manuais por ferramentas automatizadas e robotizadas, sob o comando informacional-digital.

No capitalismo avançado, a produção tende a ser cada vez mais invadida por robôs e máquinas digitais, encontrando nas TICs o suporte fundamental dessa nova fase de subsunção real do trabalho ao capital. Como consequência dessa nova empresa flexível e digital, os intermitentes globais tendem se expandir ainda mais, ao mesmo tempo que o processo tecnológico-organizacional-informacional eliminará de forma crescente uma quantidade incalculável de força de trabalho que se tornará supérflua e sobrante, sem empregos, sem seguridade social e sem nenhuma perspectiva de futuro.

Sua denominação, indústria 4.0, estampa, segundo seus formuladores, uma nova fase da automação industrial, que se diferencia da Revolução Industrial do século XVIII, do salto dado pela indústria automotiva do século XX e também da reestruturação produtiva que se desenvolveu a partir da década de 1970. A essas três fases anteriores sucederá uma nova, que consolidará, sempre segundo a propositura empresarial, a hegemonia informacional-digital no mundo produtivo, com os celulares, tablets, smartphones e assemelhados controlando, supervisionando e comandando essa nova etapa da ciberindústria do século XXI.

Não é difícil antecipar que a divisão internacional do trabalho entre Norte e Sul, centro e periferia, tenderá a se aprofundar ainda mais, seguindo um movimento que, sendo desigual e combinado, atingirá de forma diferenciada a totalidade dos países, aprofundando a expulsão de força de trabalho em um patamar ainda maior que o atual.

Como essa lógica que estamos descrevendo é fortemente destrutiva em relação ao mundo do trabalho, a contrapartida esparramada pelo ideário empresarial tem de ser amenizada e humanizada. É por isso que o novo dicionário “corporativo” ressignifica o autêntico conteúdo das palavras, adulterando-as e tornando-as corriqueiras no dialeto empresarial: “colaboradores”, “parceiros”, “sinergia”, “resiliência”, “responsabilidade social”, “sustentabilidade”, “metas”. Quando entram em cena os enxugamentos, as reestruturações, as “inovações tecnológicas da indústria 4.0”, enfim, as reorganizações comandadas pelos que fazem a “gestão de pessoas” e pelos que formulam as tecnologias do capital, o que temos é mais precarização, mais informalidade, mais subemprego, mais desemprego, mais trabalhadores intermitentes, mais eliminação de postos de trabalho, menos pessoas trabalhando com os direitos preservados. Para tentar “amenizar” esse flagelo, propaga-se em todo canto um novo subterfúgio: o “empreendedorismo”, no qual todas as esperanças são apostadas e cujo desfecho nunca se sabe qual será.”

 

 

Nossa hipótese, então, é que estamos presenciando em escala global o crescimento de novas formas de realização da lei do valor, configurando mecanismos complexos de extração do mais-valor, tanto nas esferas da produção material quanto nas das atividades imateriais, estas também crescentemente constitutivas das cadeias globais de produção de valor. E, mais, mesmo não sendo o elemento dominante, é necessário reconhecer que o trabalho imaterial vem assumindo papel de relevo na conformação do valor, não só por ser parte da articulação relacional entre distintas modalidades de trabalho vivo em interação com trabalho morto como também por ser partícipe do processo de valorização, ao reduzir o tempo de circulação do capital e, por consequência, também seu tempo total de rotação.

Visto que o setor de serviços está cada vez mais totalizado e controlado pela lógica do capital e de seu processo de mercadorização ou comoditização, ele também se torna gradualmente mais partícipe das cadeias produtivas de valor, legando cada vez mais ao passado sua forma improdutiva para se converter em parte integrante do processo de geração (produtiva) de valor. As crescentes intersecções entre a indústria, a agricultura e os serviços, como na agroindústria, na indústria de serviços e nos serviços industriais, são emblemáticas do que estamos indicando. A introdução do trabalho on-line, que cresce intensamente desde os primórdios da reestruturação produtiva na década de 1970, com o seu instrumental tecnológico-informacional-digital, fez deslanchar essa processualidade, que se tornou incessante, convertendo a reestruturação produtiva em um processo permanente, da qual a denominada indústria 4.0 é a mais nova etapa.”

 

 

Classe média ou novo proletariado de serviços?

Partimos da hipótese de que os trabalhadores e as trabalhadoras em serviços (como call-centers, telemarketing, indústria de softwares e TICs, hotelaria, shopping centers, hipermercados, redes de fast-food, grande comércio, entre tantos outros) encontram-se cada vez mais distanciados daquelas modalidades de trabalho intelectual que particularizam as classes médias e, dada a tendência de assalariamento, proletarização e mercadorização, aproximam-se daquilo que denominamos novo proletariado de serviços.

Sabemos que a noção marxista de classe média remete a um tema bastante complexo, que transcende a esfera da materialidade, uma vez que, para compreender as classes sociais, é necessário apreender uma complexa dimensão relacional entre o mundo da objetividade e o da subjetividade, o que se opõe à unilateralização que, com frequência, ocorre quando se discute o tema das classes sociais.

Nessa direção, começamos indicando que as classes médias (melhor falar no plural) configuram um conceito amplo: são, desde logo, compostas pelos que exercem trabalho predominantemente intelectual (não manual), o que essencialmente as distingue da classe operária. E, mais, as classes médias buscam uma clara diferenciação em relação à classe operária também na esfera do consumo, em seu ideário, nos seus valores simbólicos. Em relação às classes burguesas, o imaginário das classes médias frequentemente transita na esfera dos valores da classe dominante. Mas, por serem destituídas dos meios materiais e simbólicos da dominação e da riqueza, vivenciam um cenário em que a oscilação e a incerteza são mais frequentes do que a estabilidade e a ascensão.

Assim, o conceito de classes médias não pode ser determinado nem centralmente nem de modo exclusivo pela renda percebida, quando a análise é de inspiração ontológica. As clivagens que as atingem e as particularizam são muito mais profundas. Se as classes médias mais tradicionais devem ser definidas pelo papel que ocupam no processo de trabalho, predominantemente intelectual e não manual (de que são exemplos os funcionários públicos, médicos, advogados, profissionais liberais etc.), nos últimos tempos temos presenciado uma expansão significativa de setores médios que, em seu processo de assalariamento, pelas formas de realização e vínculos que passam a assumir com o trabalho que desenvolvem, sofrem uma crescente proletarização, a exemplo dos trabalhadores de escritório, bancários, professores, assalariados do comércio, trabalhadores em supermercados, fast-foods, call-centers, TICs (ao menos em seus estratos médios e inferiores), confirmando e aprofundando a formulação pioneira de Braverman[56].

As classes médias, além de suas diferenciações e oscilações estruturais típicas, definem-se de forma significativa pelos valores culturais, simbólicos, de consumo[57]. Os seus segmentos mais altos se distinguem da classe média baixa e se aproximam, ao menos no plano valorativo, das classes proprietárias. Mas, ao contrário, em seus estratos mais baixos, os assalariados de classe média tendem, no plano da objetividade, a se aproximar mais da classe trabalhadora, ainda que sua aspiração possa se dirigir para o topo da pirâmide social. É por isso que a consciência das classes médias aparece frequentemente como consciência de uma não classe, ora mais próxima das classes proprietárias, como ocorre em seus segmentos mais altos, como os gestores (de médio e alto escalão), administradores, engenheiros, médicos, advogados etc., ora mais próxima dos valores, ideários e práticas da classe trabalhadora, quando tomamos os seus segmentos mais proletarizados.

Assim, dada a conformação heterogênea e compósita das classes médias, em sua objetividade e subjetividade, assim como em suas intrincadas dimensões relacionais, uma efetiva intelecção de seu ser, de sua condição de classe, só pode ser apreendida em sua especificidade, nos laços e relações que as conectam com os processos sociais.

No passado, por exemplo, quando as “profissões liberais” eram mais individualizadas, a exemplo dos médicos e advogados tradicionais, predominava uma dimensão de trabalho mais intelectual e não manual.

No presente, com a enorme expansão do capitalismo financeirizado, amplos setores das classes médias vivenciam um intenso processo de proletarização, como os trabalhadores de serviços que, uma vez “mercadorizados”, se tornam, como vimos, cada vez mais partícipes (direta ou indiretamente) do processo amplo de valorização do capital. Assim, a partir do monumental crescimento dos novos assalariados de serviços (como os de call-center, telemarketing, hipermercados, fast-food, hotéis, restaurantes, os assalariados do comércio e de escritório), a tese que aparece como fio condutor deste livro é a de que estamos presenciando a constituição e a expansão de um novo proletariado de serviços. Esse, por sua vez, passa a ter cada vez mais um papel de destaque na formação da classe trabalhadora ampliada que se expande em escala global e que tem sido responsável pela deflagração de várias lutas sociais, manifestações e greves.”

[56] Harry Braverman, Trabalho e capital monopolista (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977).

[57] Pierre Bourdieu, A distinção: crítica social do julgamento (São Paulo, Edusp, 2007).

 

 

Esses exemplos, dentre tantos outros, constituíram-se na base de um amplo debate, sobretudo nos países do Norte, acerca da emergência desse novo contingente da classe trabalhadora, com perfil claramente diferenciado em relação ao operariado europeu tradicional. Foi dentro desse debate que nasceu a polêmica proposta de Standing[65], que vislumbrou o advento de uma nova classe – o precariado.

Vamos, então, à luz da concepção ampla de classe trabalhadora, problematizar essa formulação. Segundo Standing, o precariado é uma classe distinta daquela que se conformou durante o capitalismo industrial. Seria uma nova classe, diferenciada do proletariado herdeiro da era taylorista-fordista. Sua configuração se aproximaria, então, de uma nova classe mais desorganizada, oscilante, ideologicamente difusa e, por isso, mais vulnerável, mais facilmente atraída por “políticas populistas”, suscetíveis de acolher inclusive apelos “neofascistas”.

Com esse desenho crítico – ainda que a descrição empírica de Standing seja ampla e com informações relevantes –, sua análise confere o estatuto de classe ao que de fato é uma parcela do proletariado, e a mais precarizada, geracionalmente jovem, que vive de trabalhos com maior grau de informalidade, muitas vezes realizando atividades parciais, por tempo determinado ou intermitente. A resultante desse equívoco analítico levou o autor, inclusive, a concebê-la como “uma classe perigosa”, “em-si” e “para-si” diferenciada da classe trabalhadora[66].

Nossa formulação crítica, pelo que já indicamos neste capítulo, caminha em direção oposta às formulações que visualizam o precariado como uma nova classe. Entendemos, ao tratar da realidade presente em alguns países de capitalismo avançado, que a classe-que-vive-do-trabalho, em sua nova morfologia, compreende distintos polos que são expressões visíveis da mesma classe trabalhadora, ainda que eles possam se apresentar de modo bastante diferenciado (diferenciação, aliás, que não é novidade na história da classe trabalhadora, sempre clivada por gênero, geração, etnia/raça, nacionalidade, migração, qualificação etc.)[67].

São, portanto, setores diferenciados da mesma classe trabalhadora, da classe-que-vive-do-trabalho em suas heterogeneidades, diferenciações e fragmentações. Nos países capitalistas avançados[68], os mais precarizados ou os jovens, que compõem o chamado precariado, nascem sob o signo da corrosão dos direitos e lutam de todos os modos para conquistá-los. Os setores tradicionais da classe trabalhadora, herdeiros do welfare State e do taylorismo-fordismo europeu, mais organizados e que conquistaram direitos ao longo de muitas e seculares lutas, debatem-se no presente para impedir um desmoronamento e uma corrosão ainda maiores de suas condições de trabalho. Lutam para não se precarizar ainda mais.

Exemplos verdadeiros de outra dialética, esses dois segmentos importantes da mesma classe-que-vive-do-trabalho, em sua aparente contradição, parecem ter seu futuro ligado de modo indelével: o jovem precariado, em suas lutas, aparentemente mais “desorganizado”, quer o fim da precarização completa que o avassala e sonha com um mundo melhor. Por sua vez, os trabalhadores mais tradicionais, mais organizados sindical e politicamente, herdeiros do welfare State, querem evitar uma degradação ainda maior e se recusam a converter-se nos novos precarizados do mundo. Como a lógica destrutiva do capital é múltipla em sua aparência, mas una em sua essência, se esses polos vitais do mundo do trabalho, que vivenciam situações tanto de heterogeneidade quanto de homogeneização, não forem capazes de se conectar de modo solidário e orgânico e de articular elementos de unificação em algumas de suas lutas, tenderão a sofrer uma precarização ainda maior. Uberização, walmartização, intermitência, pejotização, esse será o léxico dominante no mundo do trabalho se a resistência e a confrontação não forem capazes de obstar o vigoroso processo de precarização estrutural do trabalho.

Aqui é preciso fazer um breve parêntese: a precarização não é algo estático, mas um modo de ser intrínseco ao capitalismo, um processo que pode tanto se ampliar como se reduzir, dependendo diretamente da capacidade de resistência, organização e confrontação da classe trabalhadora. Trata-se de uma tendência que nasce, conforme Marx demonstrou em O capital, com a própria criação do trabalho assalariado no capitalismo. Como a classe trabalhadora vende sua força de trabalho e só recebe por parte de sua produção, o excedente que é produzido e apropriado pelo capital tende a se ampliar por meio de vários mecanismos intrínsecos à sua lógica.

Uma vez que os capitais buscam com frequência aumentar o mais-valor (tanto o relativo quanto o absoluto), a incessante ampliação da troca desigual entre o valor que o proletariado produz e o que ele recebe é uma tendência presente na própria lógica do capitalismo. Para tanto, são usados vários mecanismos, como a intensificação do trabalho, o prolongamento da jornada[69], a restrição e a limitação dos direitos, os novos métodos de organização sociotécnica do trabalho etc.

Assim, a precarização da classe trabalhadora é uma processualidade resultante também da luta entre as classes, da capacidade de resistência do proletariado, podendo, por isso, tanto se ampliar como se reduzir. Dessa forma, esse movimento ocorre tanto em função do aumento da exploração capitalista quanto das lutas da classe trabalhadora, em suas greves, lutas sindicais e embates contra o capital.”

[65] Guy Standing, The Precariat: the New Dangerous Class (Nova York, Bloomsbury, 2011).

[66] Ibidem, p. 25.

[67] Ver o conjunto de críticas e polêmicas, bem como as respostas de Guy Standing em “The Precariat, Class and Progressive Politics: a Response”, em Marcel Paret (org.), Global Labour Journal: Special Issue: Politics of Precarity: Critical Engagements with Guy Standings, v. 7, n. 2, maio 2016; disponível em: <https://mulpress.mcmaster.ca/globallabour/article/view/2940/2600>; acesso em: 26 dez. 2017.

[68] Para um amplo desenho histórico e global da classe trabalhadora, ver Marcel van der Linden, Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho (Campinas, Editora da Unicamp, 2013).

[69] Ver o excelente estudo de Pietro Basso, Modern Times, Ancient Hours: Working Lives in the Twenty-First Century (Londres, Verso, 2003).

 

 

Por fim, dada a conformação desigual e combinada da divisão internacional do trabalho, é preciso fazer algumas mediações quando se trata de tematizar o precariado. A primeira delas é dada pelas clivagens existentes entre Norte e Sul. Nas periferias, o proletariado nasceu eivado da condição de precariedade. Bastaria dizer que o proletariado no Brasil – e em vários outros países que vivenciaram o escravismo colonial – efetivamente floresceu a partir da abolição do trabalho escravo, herdando a chaga de um dos mais longevos períodos de escravidão, de modo que sua precarização não é a exceção, mas um traço constante de sua particularidade desde a origem.

Como no Sul não se desenvolveu nenhum tipo persistente de aristocracia operária, nosso proletariado sempre se confundiu com a condição de precariedade, que é traço marcante de sua ontogênese. As suas diferenças internas nunca foram muito grandes, como aquelas existentes onde vicejou a aristocracia operária e, posteriormente, o welfare State, pois entre nós nunca houve uma sólida elite operária. Ainda que estivessem sempre presentes essas clivagens e diferenciações, como, aliás, em toda a história da classe trabalhadora, elas nunca criaram um fosso tão fundo entre seus diferentes polos.

Já nos países do Norte, onde nasceu, na gênese do movimento operário, uma forte aristocracia operária e, posteriormente, se desenvolveu um sólido proletariado herdeiro do taylorismo, do fordismo e do welfare State, o advento recente do precariado acentuou enormemente um traço forte de diferenciação que existia, por exemplo, entre o proletariado tradicional do welfare State e os bolsões de imigrantes que se encontravam na base da classe trabalhadora, ainda que em dimensão e tamanho muito menores do que os atuais.

É por isso que, em nosso entendimento, essas diferenciações não encontram simetria com o proletariado do Sul. A crise estrutural, o desemprego e o subemprego, os novos fluxos migratórios, tudo isso ganhou novas significações, ampliando enormemente as clivagens dentro da classe trabalhadora dos países capitalistas centrais. No Sul, as particularidades e singularidades da classe trabalhadora fazem com que suas clivagens (por certo existentes e relevantes) não tenham, entretanto, a intensidade do centro, de modo que falar em “uma nova classe” abaixo do proletariado é uma completa desproporção, assim como foi um equívoco empírico e analítico falar em aristocracia operária como um fenômeno duradouro nas periferias.

Desse modo, o precariado – se assim o quisermos chamar – deve ser compreendido como parte constitutiva do nosso proletariado desde sua origem, o seu polo mais precarizado, ainda que seja evidente, como já indicamos ao longo deste capítulo, que entre nós também venha se desenvolvendo com rapidez um novo contingente do proletariado, largamente vinculado aos serviços, com um traço geracional marcante (juventude) e cujas relações de trabalho estão mais próximas da informalidade, do trabalho por tempo determinado, dos terceirizados e intermitentes, modalidades que não param de se expandir.

Já nos países capitalistas centrais, especialmente os da Europa, o precariado é uma criação mais recente, ao menos em sua conformação atual, impulsionado pela crise estrutural do sistema capitalista, pelo advento do neoliberalismo e pelo comando do capital financeiro, que fizeram emergir um proletariado muito mais explorado em pleno coração do capitalismo. A superexploração do trabalho, então, deixou de ser um discreto charme da burguesia dependente e subordinada e adentrou o coração do welfare State.

Dos homens e mulheres jovens mais qualificados aos imigrantes pobres; dos imigrantes com qualificação às jovens nativas sem formação; das mulheres brancas às imigrantes negras, indígenas, amarelas, enfim, em um amplo espectro da população excedente de trabalhadores e trabalhadoras, que Marx denominou superpopulação relativa ou exército de reserva, podem-se encontrar, hoje, incrustados neles, cada vez mais contingentes que no centro do mundo são definidos (ou se definem) como precariado. Seja nos seus contingentes flutuantes, latentes ou estagnados, seja em outros que possam aparecer, a precarização se amplia de modo exponencial e cada vez com menos limites e crescente desregulamentação, ainda que essa expansão ocorra de modo desigual, quando se toma o mundo em sua globalidade.

Assim, se parece plausível e pertinente reconhecer empiricamente, no Norte, a emergência recente do precariado como sendo um dos polos mais precarizados da classe trabalhadora e muito diferenciado e distanciado do proletariado herdeiro do welfare State, no Sul, no espaço periférico, o que poderíamos chamar de precariado tem singularidades e particularidades muito distintas em relação àquele que floresceu no Norte. Como é límpido no caso brasileiro, ele não só não se constitui como uma nova classe, como também não é tão profundamente diferenciado em relação ao proletariado mais regulamentado, pois aqui nunca floresceu um padrão societal típico do welfare State – ainda que, no presente, esse novo contingente do proletariado esteja sendo redesenhado com novas configurações que se inserem no que venho denominando nova morfologia do trabalho[73].

Contrariamente, portanto, às teses que advogavam a perda de importância da classe trabalhadora, que estaria sendo substituída pela “sociedade de classe média”, ou ainda àquelas que vislumbram a criação de “novas classes” (para não falar daquelas que propugnaram o “fim” das classes sociais), estamos desafiados a compreender sua nova polissemia, sua nova morfologia, cujo elemento mais visível é o desenho multifacetado, que faz aflorar tantas transversalidades entre classe, geração, gênero, etnia etc. Clivagens que se desenvolvem em inter-relação com o mundo do trabalho, entre homens e mulheres; jovens e idosos; nacionais e imigrantes; brancos, negros e indígenas; qualificados e desqualificados; estáveis e precários; formalizados e informalizados; empregados e desempregados; dentre tantos outros exemplos.

Essa nova morfologia compreende não só o operariado herdeiro da era taylorista e fordista, em relativo processo de encolhimento especialmente nos países centrais (mas que segue um movimento diferenciado em vários países do Sul, como China, Índia, Brasil, México, Coreia, África do Sul etc.), mas deve incluir também os novos proletários precarizados de serviços, parte integrante e crescente da classe-que-vive-do-trabalho. Trabalhadores e trabalhadoras que com frequência oscilam entre a heterogeneidade em sua forma de ser (gênero, etnia, geração, qualificação, nacionalidade etc.) e a homogeneização que resulta da condição crescentemente pautada pela precarização, cada vez mais desprovida de direitos do trabalho e de regulamentação contratual.

Não menos importante é dizer ainda que a classe trabalhadora, em sua nova morfologia, participa cada vez mais do processo de valorização do capital e da geração de mais-valor nas cadeias produtivas globais. As formas de intensificação do trabalho, a burla dos direitos, a superexploração, a vivência entre a formalidade e a informalidade, a exigência de metas, a rotinização do trabalho, o despotismo dos chefes, coordenadores e supervisores, os salários degradantes, os trabalhos intermitentes, os assédios, os adoecimentos, padecimentos e mortes decorrentes das condições de trabalho indicam o claro processo de proletarização dos assalariados de serviços que se encontra em expansão no Brasil e em várias partes do mundo, dada a importância das informações no capitalismo financeiro global. Constituem-se, portanto, numa nova parcela que amplia e diversifica a classe trabalhadora.

As consequências dessas mutações são profundas no que concerne às lutas sociais e sindicais, incluindo aquelas que assumem uma conformação anticapitalista. Se há uma nova morfologia do trabalho, ela inclui o advento de uma nova morfologia das lutas, das formas de organização e da representação do trabalho.

O mundo hoje é um excepcional laboratório para se compreender tanto essa tendência de precarização intensificada do trabalho, que amplia exponencialmente as modalidades cada vez mais intermitentes e desprovidas de direitos, quanto a nova era das lutas sociais que acompanham essa processualidade complexa em expansão de escala global.”

[73] No capítulo 7, trataremos da nova morfologia do trabalho no Brasil e esses elementos empíricos serão evidenciados. Sobre o debate em torno do precariado, vale lembrar que, além de um amplo debate na Europa, há também aquele que se desenvolve no Brasil. Ver, por exemplo: Ruy Braga, A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista (São Paulo, Boitempo, 2012), e A rebeldia do precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul global (São Paulo, Boitempo, 2017); e Giovanni Alves, Condição de proletariedade: a precariedade do trabalho no capitalismo global (Londrina, Praxis, 2009). Em relação à tematização acerca de classe trabalhadora no Brasil atual, ver os artigos de Marcelo Mattos Badaró, “A classe trabalhadora: uma abordagem contemporânea à luz do materialismo histórico”, Revista Outubro, Rio de Janeiro, n. 21, 2013; disponível em: <http://outubrorevista.com.br/wp-content/uploads/2015/02/Revista-Outubro-Edição-21-Artigo-03.pdf>; acesso em: 26 dez. 2017; e de Graça Druck, “Trabalho, precarização e resistências”, Caderno CRH (UFBA), Salvador, v. 24, 2011.

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