Subtítulo: Decadência do patriarcado rural e
desenvolvimento do urbano
Editora: Global
Opinião: ★★★★☆
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ISBN: 978-85-260-0835-9
Páginas: 976
Sinopse: Ver Parte I
“Se
deles foram se queixando à polícia do Príncipe Regente, como de bailarinos
incômodos, ingleses e franceses que não viam com bons olhos nem gelosias árabes
capazes de esconder ladrões nem capoeiras peritos em cabeçadas e rabos de
arraia, devem ter se arrependido de algumas das queixas. Pois – repita-se – a
perseguição sistemática da polícia do Regente aos capoeiras dos rabos de arraia
e das cabeçadas é que os perverteu em bailarinos ainda mais incômodos:
bailarinos de navalha e de faca de ponta. Bailarinos que rindo, gingando,
andando macio, deram para matar brancos – principalmente europeus –
rasgando-lhes o ventre a navalha e a faca, quando outrora apenas os espapaçavam
no chão com as terríveis cabeçadas, maltratando-os, é certo, e pondo-os fora de
combate; mas sem os matar. Como nas lutas de box entre os ingleses.
Em
1821 já era diversa a situação no Rio de Janeiro: os ferimentos e as mortes
estavam se tornando numerosos na cidade; e muitas delas praticadas por escravos
negros e mulatos. De onde a representação dirigida ao ministro da guerra, a 26
de fevereiro do mesmo ano, pela Comissão Militar, no sentido de desenvolver a
polícia ação mais vigorosa contra escravos e negros desabusados, “visto que
pela falta de castigos de açoites, unicos que os atemorisa e aterra, se estão
perpetrando mortes e ferimentos como tem acontecido ha poucos dias, que se tem
feito seis mortes pelos referidos capoeiras e muitos ferimentos de facadas...”.
À Comissão Militar parecia faltar “energia” ao então intendente de Polícia. Ou
isto ou não estava ele “bem ao alcance das perigosas consequencias que se devem
esperar de tratar por meios de brandura aquella qualidade de individuos...”.
Pelo que a mesma comissão recomendava a S. A. R., por intermédio do seu
ministro da Guerra, que, em vez de prender os escravos desordeiros, como se
eles fossem sensíveis à pena de prisão, como os brancos – e dessas prisões
resultava “damno a seos senhores” que eram “obrigados a pagar as despezas da
cadeia” – a polícia submetesse sempre os pretos apanhados em desordem, ou “com
alguma faca” ou “instrumento suspeitoso”, a castigos de açoites que pudessem
concorrer para a “emenda dos negros”.670
Desde
8 de dezembro de 1823 que uma portaria de Clemente Ferreira França671
mandava que o brigadeiro-chefe do corpo de polícia da capital do Império
fizesse reforçar as patrulhas nos largos e açougues de sorte a evitar o
ajuntamento de negros capoeiras. E desde 1821 que um edital – de 26 de novembro
– mandava que os açougues e tavernas se fechassem às dez horas da noite,672 a fim de evitar iguais ajuntamentos. Em 1825, outro
edital, este do intendente-geral da polícia da Corte do Brasil, Francisco
Alberto Teixeira do Aragão, declarava que os escravos poderiam ser apalpados a
qualquer hora do dia ou da noite, desde que lhes era proibido, sob pena de
açoites, o uso de qualquer arma: “não só o uso de qualquer arma de defeza como
trazerem paos”. Era também proibido ao escravo – não só a eles como a todo
negro ou homem de cor – estar parado nas esquinas “sem motivos manifestos” e
até “dar assobios ou outro qualquer signal”.673
Atingia-se o moleque em algumas das liberdades mais características de sua
condição de moleque: a de parar nas esquinas e a de dar assobios, por exemplo.
Entretanto
esses negros, esses escravos, esses capoeiras, esses moleques, contidos e até
reprimidos nas suas expansões de vigor viril e de combatividade de moços e de
adolescentes como se todos os seus exercícios físicos, todos os seus passos de
dança, todos os seus cantos em louvor de Ogum, todos os seus assobios fossem
crime ou vergonha para a Colônia ou para o Império, é que conteriam as
turbulências e reprimiam a revolta de mercenários irlandeses e alemães quando
esses europeus armados, soldados prediletos de Pedro I – como eles, europeu –
sublevaram-se em 1828. Primeiro – na manhã de 9 de junho – alemães,
aquartelados em São Cristóvão, depois de lançarem fogo aos quartéis,
precipitaram-se nas ruas como uns demônios ruivos, saqueando tavernas e
maltratando quanta gente pacífica e desarmada foram encontrando. Depois,
fizeram o mesmo os alemães da Praia Vermelha. Estes, tendo assassinado o major
Benedito Teola, que tentara contê-los, saíram em confusão pelas ruas assaltando
casas, bebendo e roubando. Dois dias depois, aos alemães procuraram juntar-se os
irlandeses aquartelados no Campo de Santana. Antes, porém, que esses novos
amotinados saíssem dos quartéis, foram cercados por forças milicianas que lhes
cortaram comunicações com as ruas. E quanto aos soldados irlandeses que se
achavam de guarda a edifícios ou estabelecimentos públicos, estes, ao tratarem
de reunir-se aos seus companheiros sublevados, foram “atacados por pretos
denominados capoeiras” que com eles travaram “combates mortíferos”. Pormenoriza
o historiador Pereira da Silva que, embora “armados com espingardas” não
puderam os irlandeses resistir aos capoeiras; e vencidos por “pedra”, “pau”, e
“força de braços” caíram os estrangeiros pelas ruas e praças públicas, feridos
grande parte e bastantes sem vida”.674
Se é
certo que só com o auxílio de tripulações de navios de guerra ingleses e
franceses surtos no porto – marinheiros que foram empregados em guardar os
arsenais e estabelecimentos públicos – e de “cidadãos importantes”, capazes de
reunir “paisanos” dispostos à luta, pôde o governo subjugar a revolta dos
mercenários alemães e irlandeses, trazidos da Europa ou aqui reunidos pelo
primeiro imperador para constituírem sua guarda de confiança contra as
turbulências tanto dos mestiços ou dos “natos” como dos “portugueses
exaltados”,675 é também verdade que, contra muitos
dos amotinados agiram, de modo fulminante, “pretos denominados capoeiras” que
não eram outros senão os negros mais viris e os moleques mais sacudidos,
cansados do rame-rame de carregar palanquins, fardos, pedras, madeira, água, barris
de excremento dos brancos. Cansados de servir de bestas de carga, de bois de
carroça e de cavalos de carro aos brancos sem que lhes fosse permitido
descarregar sua melhor energia de homens e de adolescentes vibrantes em jogos,
exercícios físicos, danças, cantos e batuques do seu gosto ou da sua devoção de
africanos e de filhos de africanos.
Não,
porém, que esses negros e esses pardos fossem por natureza anárquicos ou
sanguinários, como ainda hoje acreditam os intérpretes mais superficiais de
insurreições como a “dos alfaiates”, no século XVIII e a dos Malês, no século
XIX, na Bahia. Ou das insurreições de quilombolas. Ou das revoltas ou motins de
gente de cor como os de 1823 no Recife.676 Ou das
façanhas de capoeiras aí e no Rio de Janeiro.
O que
negros e pardos moços fizeram, explodindo algumas vezes em desordeiros, foi dar
alívio a energias normais em homens ou adolescentes vigorosos que a gente
dominante nem sempre soube deixar que se exprimissem por meios menos violentos
que a fuga para os quilombos, o assassinato de feitores brancos, a insurreição:
o batuque, o samba, a capoeiragem, o assobio, o culto de Ogum, a prática da
religião de Maomé. A estupidez da repressão é que principalmente perverteu
batuques em baixa feitiçaria, o culto de Ogum, em grosseiro arremedo de
maçonaria, com sinais e assobios misteriosos, o islamismo, em inimigo de morte
da religião dos senhores cristãos das casas-grandes e dos sobrados, a
capoeiragem, em atividade criminosa e sanguinária, o samba, em dança
imundamente plebeia. É curioso observar-se hoje – largos anos depois dos dias
de repressão mais violenta a tais africanismos – que os descendentes dos
bailarinos da navalha e da faca como que se vêm sublimado nos bailarinos da
bola, isto é, da bola de foot-ball, do tipo dos nossos jogadores mais
dionisíacos como o preto Leônidas; os passos do samba se arredondando na dança
antes baiana que africana, dançada pela artista Cármen Miranda sob os aplausos
de requintadas plateias internacionais; as sobrevivências do culto de Ogum e do
culto de Alá dissolvendo-se em práticas marginalmente católico-romanas como a
lavagem da igreja de Nosso Senhor do Bonfim – na Bahia, há pouco transferida
para uma das igrejas do Rio de Janeiro.”
670 Elísio de Araújo em seu
já mais de uma vez citado Estudo histórico sobre a policia da Capital
Federal de 1808 a 1831 (Rio de Janeiro, 1898), p. 61. Veja-se também o
capítulo XXVIII, do estudo de Émile Allain, Rio de Janeiro, Quelques données
sur la capitale et sur l’administration du Brésil, 2ª ed., Paris-Rio de
Janeiro, 1886.
671 Manuscrito, Arquivo
Público Nacional, cit. por Araújo, op. cit., p. 115. França ordena aí ao
comandante da Imperial Guarda da Polícia fazer “reforçar as patrulhas nos
largos e praças da cidade, de sorte a evitar o ajuntamento de negros
capoeiras...”. Veja-se também a seção “Postura e infração de posturas” do
Arquivo Geral da Prefeitura do Distrito Federal, seção que o ilustre
historiador Noronha Santos destaca como fonte “do maio apreço” ou “cabedal
informativo digno de grande interesse” (“Resenha analítica de livros e
documentos do Arquivo Geral da Prefeitura elaborada pelo historiador Noronha
Santos”, Rio de Janeiro, 1949, p. 15).
672 Diário do Rio de
Janeiro, 26 de novembro de
1821. Sobre a polícia do Rio de Janeiro nos primeiros anos do Império, veja-se
a obra já citada de Carmo Neto, “O intendente Aragão.”
673 Diário do Rio de
Janeiro, 3 de janeiro de 1825. Era “depois das dez horas da noite no verão
e das nove no inverno, até á alvorada” que ninguém, no Rio de Janeiro dos primeiros
anos do Império, estava “isento de ser apalpado e corrido pelos patrulhas da
polícia”. Os escravos, porém, poderiam ser apalpados a qualquer hora.
Carmo
Neto recorda a observação de van Bolen de que, por essa época, rondavam
frequentemente as ruas da cidade do Rio de Janeiro “patrulhas a cavalo e a pé”
(op. cit., p. 15).
674 J. M. Pereira da Silva,
Segundo período do reinado de D. Pedro I no Brasil, Rio de Janeiro,
1871, p. 287.
675 Pertence ao arquivo do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro interessante autógrafo, em alemão,
assinado por D. Pedro I e dirigido a seu “caro Schaeffer”, onde se diz: “Muito
lhe agradeço a boa gente que tem mandado para soldados. A imperatriz já lhe
mandou, da minha parte, encommendar mais 800 homens; agora eu lhe peço que, em
logar de colonos casados, mante mais 3.000 solteiros, também para soldados,
além dos 800. O ministro dos Negócios Estrangeiros lhe mandou dizer que não
mandasse mais, mas eu quero que mande os que por esta lhe encommendo, e faça de
conta que não recebeu ordem para não mandar. Mande, mande e mande, pois lhe
ordenna quem o há de desculpar e premiar pois é – seu Imperador. Boa
Vista, em 13 de junho de 1824.” Desde 1823, recorda Carmo Neto, Jorge Antônio
de Schaeffer, “a serviço do Exército brasileiro”, fora encarregado pelo governo
do Brasil de contratar colonos na Alemanha e, ao mesmo tempo, engajar aí
“soldados estrangeiros para servirem em nossas fileiras, como se vê da portaria
de 4 de dezembro de 1824 (Coleção Nabuco)” (op. cit., p. 13). Com esses
estrangeiros contratados, formaram-se os três batalhões cuja revolta foi
sufocada com o auxílio de capoeiras: “o de irlandeses aquartelado no campo de
Santana e os dois de alemães, aquartelados um no campo de São Cristóvão e outro
na praia Vermelha”.
676 Sobre os motins do
Recife em 1823 – os menos conhecidos dos movimentos de rebeldia da gente de cor
no Brasil patriarcal – veja-se Alfredo de Carvalho, Estudos pernambucanos,
Recife, 1907.
“É do maior interesse para a compreensão do período de transição que foi,
nas principais áreas do nosso País, a primeira metade do século XIX,
destacar-se que várias das modificações que sofreram então paisagens e
instituições ligam-se direta ou indiretamente à cessação do tráfico legal de
escravos, cujo volume o clandestino nem sempre conseguiu suprir; nem pôde
manter. Os capitais foram tomando, assim, outros rumos. Deixando de
concentrar-se no comércio de escravos, tornaram-se disponíveis para os melhoramentos
mecânicos, para as compras de máquinas ou simplesmente de cavalos e de vacas de
leite, superiores ou de raça, para a construção de sobrados de luxo. Por longos
anos, vinham afluindo os capitais à praça, sem terem aí emprego suficiente.
Eram limitadas as transações. Acanhado o giro do dinheiro. As maiores fortunas
móveis do Império em grande parte se achavam em mãos de traficantes de
escravos; e estes só as aplicavam com escravos. Com a cessação do tráfico é que
o emprego dos mesmos capitais reverteu para os melhoramentos materiais do País
– especialmente na Corte.743 Uns, ativando as construções urbanas, dando-lhes o que
os higienistas da época consideravam “melhores e mais salutares condições”;
outros convergindo para empresas de viação urbana, criação de gado de leite que
substituísse as já escassas cabras-gente, mecanização de serviços públicos ou
particulares até então movidos por braço escravo.
É
certo que a adaptação de capitais, concentrados em escravos, a máquinas,
fábricas, animais de tração e de leite e prédios urbanos, não se fez docemente
mas através de crises profundas744 que em áreas como a do Rio de Janeiro, a da Bahia, a de
Pernambuco, a do Maranhão afetaram a sociedade em costumes ou estilos de vida;
e não apenas a economia brasileira. É que a cessação do tráfico de escravos
africanos foi como que o golpe de morte – mas não ainda o de misericórdia –
numa forma, já então arcaica, de economia e de sociedade, a um tempo feudalista
e capitalista; e esse golpe doeu não só nos capitalistas, negociantes de
“folegos vivos”, e nos senhores, ainda feudais, de terras (senhores para quem
esses fôlegos vivos eram a própria vida) como na população das próprias
cidades, em grande parte dependente de condições de existência criadas pelo
mesmo sistema, por longo tempo moribundo: lento em deixar de existir e de
influir sobre o ambiente ou sobre o meio. (...)
Esse
comércio se fazia principalmente com a Corte, do mesmo modo que a “forte
companhia” da província de Minas visava abastecer de animais de corte, de leite
e de tração as populações da área metropolitana e das áreas vizinhas à Corte,
no beneficiamento das quais foi se esmerando o capitalismo outrora
especializado na importação de escravos da África para o Brasil, e, por
conseguinte, no beneficiamento das áreas mais feudalmente agrárias do País.
Vinha-se desenvolvendo, assim, uma revolução ecológica, e não apenas
tecnológica, com a transferência de capitais, de escravos para animais e, até
certo ponto, para máquinas, ao lado do deslocamento de prestígio político do
Norte açucareiro, e necessitado de escravos para a sua economia, ainda
predominantemente açucareira e ortodoxamente patriarcal, para o Sul cafeeiro, e
menos patriarcal que comercial, em cuja economia agrária, seria mais fácil a
substituição do escravo pelo colono europeu e, na urbana, a substituição do
negro pela máquina também europeia.
Ao
golpe de morte na escravidão que foi a cessação do tráfico regular, sucedeu-se
outro: a epidemia de cólera-morbo, ou cólera asiática, que devastou como uma
praga do Velho Testamento senzalas de casas-grandes de engenhos e de fazendas
persistentemente patriarcais e até feudais em sua organização social. Não só
senzalas: também mucambos de pretos e de pardos nos arredores dos sobrados a
ponto de parecer a epidemia a alguns deles, pretos e pardos, arte diabólica de
brancos para acabar com a gente de cor.
Mas
por uma como compensação biológica e não apenas sociológica, quase ao mesmo
tempo em que a cólera asiática devastava principalmente a população africana e
escrava das senzalas e dos mucambos, a febre amarela aparecia, para
especializar-se em matar europeu ou branco puro, fino, vigoroso, entre os
dezesseis e os trinta anos.748 Principalmente branco de sobrado. Foi como se a febre
amarela tivesse tomado a si a tarefa de retardar, no Brasil, a vitória sobre o
patriarcalismo rústico, encarnado nos homens de mais de sessenta anos –
raramente atingidos pelo mal – do capitalismo ou do tecnicismo burguês
representado principalmente por estrangeiros ainda jovens: por ingleses,
franceses, portugueses de sobrado ou de loja; e por um ou outro Mauá
brasileiro. Ou o triunfo, porventura menos difícil, do liberalismo dos
bacharéis e dos doutores de vinte e tantos, trinta anos, sobre a rotina
conservadora do maior número dos senhores de mais de sessenta.
Há
até quem atribua à febre amarela a função patriótica de ter guardado o Império
da cobiça europeia ou britânica. E na verdade parece ter ela impedido a
desnacionalização do Brasil sob a influência de uma transferência, demasiadamente
rápida, de domínio econômico, das mãos dos senhores de escravos e dos
traficantes de negros para as dos senhores de bancos e dos traficantes de
máquinas de ferro ou a vapor. Das mãos dos velhos das casas-grandes para as dos
senhores moços dos sobrados.
O
certo, porém, é que, sob o estímulo dos dois flagelos, parecem ter melhorado
não só as condições de higiene e de vida nas principais cidades do Império como
nas senzalas, nas casas-grandes, nas fazendas do interior alcançadas tanto pelo
mal asiático como pela “febre de gringos”, isto é, de estrangeiros, de
ingleses, de franceses, de alemães, de suíços, de italianos. À febre amarela
pode-se, na verdade, atribuir uma série de aperfeiçoamentos técnicos ou
mecânicos na vida das cidades brasileiras. Entre eles, a construção de
cemitérios públicos e a generalização do hábito de residência nobre ou burguesa
nos subúrbios, ou nas ruas afastadas do centro, deixando-se os sobrados dos
centros urbanos para funções exclusivamente comerciais ou burocráticas. Ou para
bordéis e cortiços, para repartições públicas e armazéns.”
743 O fato foi
surpreendido em alguns dos seus efeitos imediatos por observadores da época, um
deles Charles Reybaud que escreveu no seu Le Brésil (Paris, 1856) : “La
suppression de la traite a laissé au Brésil bien des capitaux inactifs,
indigènes ou étrangers, mais habitués à chercher un emploi lucratif dans les
transactions des grandes places brésiliennes. C’est cette abondance de valeurs
disponibles, combinée avec des développements de l’esprit d’association, qui
explique la facilité avec laquelle se sont montées à Rio les plus importantes
affaires. On a vu tour à tour la Banque du Brésil, l’entreprise des services à
vapeur sur l’Amazone, celle du chemin de fer de don Pedro II et bon nombre d’autres,
trouver sur-le-champ, par des souscriptions empressées, dix fois le capital
dont ils avaient besoin. Il y avait certainement de l’agiotage dans cette
ardeur à souscrire, et la capitale du Brésil n’est pas plus affranchie que
Paris et Londres de cette spéculation malséante, levier vereux et nécessaire du
crédit public et privé” (p. 230-231).
744 Vítor Viana, em seu
estudo O Banco do Brasil – Sua formação, seu engrandecimento, sua missão
nacional (Rio de Janeiro, 1926), refere-se às crises de 51, 57, 64 como
“crises de crescimento” (p. 362). E transcreve do relatório de 1859: “... a
cessação do tráfego deslocou avultados capitais, até então empregados nas
feitorias das costas da África e no aparelhamento das expedições”, isto é, das
expedições para a captura de negros. Esse dinheiro, refluindo para o Brasil,
“mudou completamente a face de todas as cousas na agricultura, no comércio e na
indústria” (p. 363). O recente estudo do professor Afonso Arinos de Melo
Franco, História do Banco do Brasil (São Paulo, 1947), limitando-se à
primeira fase da história do Banco (1808-1835), não alcança as crises que nos
parecem marcar transições de tipos de economia no Império.
748 Vejam-se, sobre o
assunto, Memória histórica das epidemias de febre amarela e cólera-morbo que
têm reinado no Brasil, pelo Dr. Pereira Rego (barão de Lavradio), Rio de
Janeiro, 1873, o trabalho anterior do mesmo José Pereira Rego, História e
descrição da febre amarela no Rio de Janeiro, em 1850, Rio de Janeiro,
1851, e sobre a receptividade mórbida à febre amarela de indivíduos ou
populações segundo áreas, idades, raças, tipos de habitação etc., o relatório
do médico José Domingos Freire, anexo ao Relatório do ministro do Império,
Rio de Janeiro, 1885. Vejam-se também Du climat et des maladies du Brésil,
por J. F. X. Sigaud, Paris, 1844, Considerações gerais sobre a topografia
físico-médica da cidade do Rio de Janeiro, por Francisco Lopes de Oliveira
Araújo, Rio de Janeiro, 1852, Observações sobre a febre amarela, por
Roberto Lallemant, Rio de Janeiro, 1951, e Estudo clínico sobre as febres do
Rio de Janeiro, por João Torres Homem, Rio de Janeiro, 1856.
“A ascensão do bacharel ou doutor – mulato ou não – afrancesado trouxe
para a vida brasileira muita fuga da realidade através de leis quase freudianas
nas suas raízes ou nos seus verdadeiros motivos. Leis copiadas das francesas e
das inglesas e em oposição às portuguesas: revolta de filhos contra pais. Mas,
por outro lado, afrancesados como Arruda Câmara é que deram o grito de alarme contra
certos artificialismos que comprometiam a obra patriarcal de integração do
Brasil, como aqueles exagerados sentimentos de nobreza encarnados por Antônio
Carlos.755
Quando
Melo Morais aparece, no meado do século XIX, recordando cheio de saudade os
velhos do seu tempo de moço, o prestígio que tinham, o bom senso com que
administravam a então colônia, é para lamentar, entre outros horrores dos novos
tempos, o predomínio dos bacharéis afrancesados; para contrastar-lhes a
inexperiência de puros letrados com a sabedoria prática dos velhos
administradores. Destes se pode dizer, na verdade, que estavam para os filhos e
netos, formados em Direito e em Filosofia, ou em Matemática e Medicina, na
Europa, ou sob influência francesa ou inglesa, como muito curandeiro da terra
para os rapazes formados em Medicina em Montpellier e em Paris: superiores aos
doutos – os curandeiros – pelo seu traquejo e pela sua prática; pela sua
sabedoria de grandes intuitivos que lidavam face a face com os males e as
doenças de meio tão diverso do europeu, que conheciam pelo nome e às vezes pela
experiência do próprio corpo as resinas, as ervas e os venenos indígenas ou
trazidos da África pelos negros. Na mesma relação de curandeiros para médicos,
estiveram, entre nós, os guerrilheiros para os guerreiros. A guerra contra a
Holanda, por exemplo, foi ganha principalmente pelos guerrilheiros da terra
contra os guerreiros da Europa. Por homens de conhecimentos concretos da terra
em que se batalhava contra guerreiros, a eles vastamente superiores, na arte ou
na ciência abstrata das batalhas.
O
professor Gilberto Amado salienta que à política e à administração do Império,
os homens mais úteis não foram os mais bem preparados com “sua fácil e
inexaurível erudição à margem dos fatos e das coisas”. E num dos seus mais
lúcidos ensaios observa desses “mais preparados” que eram homens de “erudição
abstrata”, “preocupados mais com o espírito que com o fundo dos problemas”,
fazendo discursos cheios de “citações de estadistas franceses e ingleses” sem,
entretanto, se darem “ao pequeno trabalho de fazer um estudo ligeiro das
condições de raça, de meio, das contingências particulares” do Império. Os
estadistas mais realizadores foram, muitas vezes, homens de feitio oposto ao
dos bacharéis, mais cultos: “os menos preparados”. Isto sem exceção, desde
Paraná a Cotegipe.756
Se
houve doutores e bacharéis formados na Europa do fim do século XVIII que
reuniram, como Arruda Câmara, a teoria europeia a qualidades de curandeiros dos
nossos males sociais por processos brasileiros, muitos se exageraram na
doutrina. E foram uns românticos ou então uns livrescos, imaginando que
dirigiam país castiçamente europeu: e não uma população mulata, mestiça,
plural.”
755 Antônio Carlos
Ribeiro de Andrada parece ter pertencido ao número daqueles brasileiros que
escandalizaram um aristocrata francês de sentimentos já liberais como o conde
de Suzannet pelos seus orgulhos de família (op. cit., p. 411).
756 Gilberto Amado, Grão
de areia, Rio de Janeiro, 1919, p. 244-245. Veja-se também A Chave de
Salomão e outros escritos, Rio de Janeiro, 1947, p. 176-180.
“O conde de Valadares, em Minas, organizara ainda na era colonial
regimentos de homens de cor com oficiais mulatos e pretos.761 Um desprestígio para a
melhor aristocracia da terra. Aliás, nos tempos coloniais, chegara a haver
sargento-mor e até capitão-mor mulato; mulato escuro, até, como o que Koster
conheceu em Pernambuco. Mas esses poucos mulatos que chegaram a exercer, nos tempos
coloniais, postos de senhores, quando aristocratizados em capitães-mores,
tornavam-se oficialmente brancos, tendo atingido a posição de mando por alguma
qualidade ou circunstância excepcional. Talvez ato de heroísmo, ação brava
contra rebeldes. Talvez grande fortuna herdada de algum padrinho vigário.
Quando o inglês perguntou, em Pernambuco, se o tal capitão-mor era mulato – o
que, aliás, saltava aos olhos – em vez de lhe responderem que sim,
perguntaram-lhe “se era possível um capitão-mor ser mulato”.762 (...)
Verificaram-se
casos semelhantes nos Estados Unidos. Em certo velho burgo do Estado de... nos
foi um dia apontado – isto já há largos anos – indivíduo ilustre admitido e até
cortejado na sociedade branca mais fina e mais exclusivista do lugar, e de quem
entretanto se sabia ter ascendente africano, embora remoto. Numa terra em que a
simples suspeita de tal ascendência basta para determinar o mais cruel
ostracismo social, o caso nos pareceu espantoso. Esclareceram-nos, porém, que o
indivíduo em questão tivera outro ascendente – ou seria o mesmo negroide? –
entre os heróis mais gloriosos da guerra da Independência. O que lhe arianizara
a raça e lhe aristocratizara o sangue.”
761 Já salientamos, em nota a capítulo anterior,
que variou a política portuguesa no Brasil colonial quanto ao aproveitamento de
negros e mulatos como oficiais de milícias. Menos, porém, ao que parece, por
preconceito de raça ou de cor do que de região: a região colonial em relação
com a metropolitana, cujos filhos pretendiam monopolizar na colônia os postos
de direção, deixando aos cabras que – de modo geral – eram todos os brasileiros,
os cargos secundários e, principalmente, os encargos penosos, da administração.
762 É bem conhecida a
observação de Koster no norte do Brasil quanto a certo capitão-mor, homem
evidentemente de sangue africano que era, entretanto, considerado branco, por
força do cargo. Também “brancos”, por força dos cargos que ocuparam no Império
e de títulos de nobreza que lhes concedeu o Imperador, ficaram vários
brasileiros evidentemente negroides, alguns deles filhos de mestiças célebres
como Maria-você-me-mata, muito malvistas pelas iaiás mais puritanas dos
sobrados. (...)
“A
simpatia à brasileira – o homem simpático de que tanto se fala entre nós, o
homem “feio, sim, mas simpático” e até “ruim ou safado, é verdade, mas muito
simpático”; o “homem cordial” a que se referem os Srs. Ribeiro Couto e Sérgio
Buarque de Holanda833 – essa simpatia e essa
cordialidade, transbordam principalmente do mulato. Não tanto do retraído e
pálido como do cor-de-rosa, do marrom, do alaranjado. Ninguém como eles é tão
amável; nem tem um riso tão bom; uma maneira mais cordial de oferecer ao
estranho a clássica xicrinha de café; a casa; os préstimos. Nem modo mais
carinhoso de abraçar e de transformar esse rito como já dissemos orientalmente
apolíneo de amizade entre homens em expansão caracteristicamente brasileira,
dionisiacamente mulata, de cordialidade. O próprio conde de Gobineau que todo o
tempo se sentiu contrafeito ou mal entre os súditos de Pedro II, vendo em todos
uns decadentes por efeito da miscigenação, reconheceu, no brasileiro, o supremo
homem cordial: “très poli, très accueillant, très aimable”.
Evidentemente, o brasileiro834 que tem sua pinta de
sangue africano ou alguma coisa de africano na formação de sua pessoa; não o
branco ou o “europeu” puro, às vezes cheio de reservas; nem o caboclo, de
ordinário, desconfiado e que ri pouco.
Essa
simpatia do brasileiro – evidentemente maior no mulato “em quem a linfa ariana”
– escreve o professor Gilberto Amado – “não dissolveu ainda a abundância animal
do temperamento negro” – não nos parece ter origem principalmente étnica.835 Não nos parece que se derive da pura “alegria
carnal das primeiras africanas que riam com os seus belos dentes e se
espanejavam contentes na doçura das novas senzalas onde os senhores iam
procurá-las com o seu amor.” “O riso abundante”, que o professor Amado salienta
no mulato brasileiro, cremos que é antes um desenvolvimento social; e estamos
de inteiro acordo com o eminente ensaísta quando escreve dos mulatos risonhos:
“o que lhes resta do hábito de servir, adquirido na longa passividade da
escravidão, dá-lhes um caráter prestativo e obsequioso”, certa “mole doçura que
opõem aos obstáculos”. Naquele “riso abundante” haverá extroversão africana;
talvez maior plasticidade de músculos da face do que no branco. Mas o que ele
exprime parece que é principalmente um desenvolvimento ou uma especialização
social. Terá se desenvolvido principalmente – como já nos aventuramos a sugerir
– dentro das condições de ascensão social do mulato: condições de ascensão
através da vida livre e não apenas nas senzalas e nos haréns dos engenhos; mas
tendo por pontos de partida essas senzalas e esses haréns.
O
mulato formado, em competição com o advogado branco, com o médico, com o
político, procurou vencer o competidor, agradando, mais do que eles, aos
clientes, ao público, ao eleitorado, ao “Povo”; e em seu auxílio moveram-se,
sem dúvida mais facilmente do que no branco, os músculos do rosto negroide. Seu
riso foi não só um dos elementos, como um dos instrumentos mais poderosos de
ascensão profissional, política, econômica; uma das expressões mais
características de sua plasticidade, na transição do estado servil para o de
mando ou domínio ou, pelo menos, de igualdade com o dominador branco, outrora
sozinho, único. Na passagem não só de uma raça para a outra como de uma classe
para outra. (...)
Ao
mesmo tempo que fácil no riso – um riso, não já servil, como o do preto, mas
quando muito, obsequioso e, sobretudo, criador de intimidade – tornou-se o
mulato brasileiro, quando extrovertido, como Nilo Peçanha, transbordante no uso
do diminutivo – outro criador de intimidade. O “desejo de estabelecer
intimidade”, que o ensaísta Sérgio Buarque de Holanda considera tão
característico do brasileiro, e ao qual associa aquele pendor, tão nosso, para
o emprego dos diminutivos – que serve, diz ele, para “familiarizar-nos com os
objetos”.836
Podemos
acrescentar que serve principalmente para familiarizar-nos com as pessoas –
principalmente com as pessoas socialmente mais importantes: “sinhozinho”,
“doutorzinho”, “capitãozinho”, “padrinho”, “fradinho”, “ioiozinho”, “seu
Pedrinho”, “Zezinho”, “Machadinho”, “Sousinha”, “Goizinho”, “Manezinho”, “o
Pequenininho”, “o Velhinho”, o “gordinho”, “o Amarelinho”, “o Branquinho”. E
esse desejo de intimidade com as pessoas nos parece vir, não só de condições
comuns a todo povo ainda novo, para quem o contato humano tende a reduzir-se à maior
pureza de expressão, como, particularmente, de condições peculiares ao período
de rápida ascensão de um grupo numeroso, da população – o grupo mulato –
ansioso de encurtar, pelos meios mais doces, a distância social entre ele e o
grupo dominante.
No
uso brasileiro de diminutivo, uso um tanto dengoso, ninguém excede ao mulato.
Ele foi pelo menos quem deu mais força e nitidez a esse nosso pendor; quem mais
o enriqueceu de tendências e de significados sociais particularmente
brasileiros. Para os seus interesses, para as suas dificuldades de indivíduo em
transição de uma classe para outra, quase de uma raça para outra, o diminutivo,
adoçando as palavras, representava a maneira de ser ainda respeitoso, sendo já
íntimo, dos antigos senhores e também dos assuntos, outrora distantes e nos
quais só os brancos tocavam.”
833 Sérgio Buarque de
Holanda, Raízes do Brasil, 2ª ed., Rio de Janeiro, 1947, p. 213.
835 Gilberto Amado, Grão
de areia, cit., p. 136-137.
836 Sérgio Buarque de
Holanda, op. cit., p. 217.
“Mas as tradições religiosas, como outras formas de cultura, ou de
culturas negras, para cá transportadas, junto com a sombra das próprias árvores
sagradas, com o cheiro das próprias plantas místicas – a maconha ou a diamba,
por exemplo – é que vêm resistindo mais profundamente, no Brasil, à
desafricanização. Muito mais que o sangue, a cor e a forma dos homens. A Europa
não as vencerá. A interpenetração é que lhes dará formas novas, através de
novas combinações dos seus valores com os valores europeus e indígenas.
O
Brasil parece que nunca será, como a Argentina, país quase europeu; nem como o
México, ou o Paraguai, quase ameríndio. A substância da cultura africana
permanecerá em nós através de toda a nossa formação e consolidação em nação.
(...)
O
mulato nem sempre será, como os Machado de Assis – sofisticado à inglesa – ou
como os Cotegipe, os Montezuma, os Gonçalves Dias, os D. Silvério, os D. Luís
de Brito, os D. José Pereira Alves, o cúmplice do branco contra o preto. Também
o cúmplice do negro contra o branco.”
“O catolicismo, concordamos ter sido elemento poderoso de integração
brasileira; mas um catolicismo que, ao contato – desde as Espanhas – com as
formas africanas de religião, como que se amorenou e se amulatou, os santos
adquirindo dos homens da terra uma cor mais quente ou mais de carne do que a
europeia. Adaptou-se assim às nossas condições de vida tropical e de povo de
formação híbrida. De modo que as portas de vidro dos santuários se abriram, no
Brasil, se escancararam mesmo, para deixar entrar orixás de cajá
disfarçados em S. S. Cosme e Damião; São Beneditos pretíssimos, Santas
Ifigênias retintas, Nossas Senhoras do Rosário fortemente morenas. Santos de
cor que tomaram lugar entre santo-antônios cor-de-rosa e querubinzinhos louros,
ruivos, em uma confraternização que nem a dos homens. Os santos e os anjos,
tradicionalmente louros, foram aqui obrigados a imitar os homens – nem todos
brancos, alguns pretos, muitos mulatos – tornando-se, eles também, parentes de
pretos, de pardos e mulatos. Ou amulatando-se, amorenando-se. Até Nossa Senhora
amulatou-se, engordou e criou peitos de mãe-preta nas mãos dos nossos
santeiros. E do próprio Cristo a imagem que mais se popularizou no Brasil foi a
do judeu palidamente moreno, o cabelo e a barba pretos, ou então castanhos; e
não a do Nosso Senhor ruivo, que se supõe ser o histórico ou o ortodoxo. É
possível que qualquer insistência da parte dos padres em impor à gente do povo
santos todos ortodoxamente louros ou ruivos tivesse resultado em desprestígio
para o catolicismo, formando-se, talvez, em volta dos altares e dos santos, o
mesmo ambiente de distância e de indiferença que foi crescendo em torno do
trono e dos imperadores e regentes louros, a tal ponto de poder dizer-se –
repita-se – com muito exagero, mas não sem certo fundo de verdade, que o
primeiro Imperador fora destronado por não ser nato, o segundo, por não ser
mulato.
Para
Azevedo Amaral, os heróis autênticos para a gente do povo, no Brasil, os que
“se fixam como ídolos na consciência popular” são “os que exprimem nas suas
atitudes e nos seus gestos os traços mais fortemente antieuropeus do psiquismo
brasileiro”.840
Os traços negroides e caboclos. E contrasta a indiferença pela figura de branco
de Caxias com o entusiasmo pelos traços caboclos de Floriano.
Talvez
exagere o arguto publicista. Nada, porém, mais natural que essa preferência
pelos heróis em cujas figuras a massa encontre o máximo de si mesma. Seu nariz,
sua boca, seus olhos, seus vícios, seus gestos, seu riso. Há mesmo aí uma das
formas mais poderosas de integração vencendo a diferenciação: o herói, o santo,
o gênio se diferencia pelo excepcional da coragem, da santidade, da
inteligência; a massa, porém, o reabsorve pelo muito ou pelo pouco que encontra
nele de si mesma. Afinal, não existe herói, nem gênio, nem mesmo santo, que não
tenha retirado da massa alguma coisa de sua grandeza ou de sua virtude; que não
guarde traços da massa em sua superioridade de pessoa excepcional. Alguns
chegam exageradamente a considerar o homem de gênio um ladrão: do tesouro que o
povo juntou e ele só fez revelar. A riqueza transbordou nele, vinda de outros.
De qualquer jeito, a massa tende a recuperar o que o herói ou o indivíduo de
gênio de certo modo lhe usurpa, exagerando os traços de semelhança e os pontos
de contato entre os dois, massa e herói: os traços caboclos de Floriano ou de
Carlos Gomes como os negroides de Montezuma, de Torres Homem, de Rebouças, de
José do Patrocínio. Há no culto dos heróis um pouco de agrado de gato – o
clássico agrado do gato ao homem: parecendo estar fazendo festa à perna do
dono, o gato afaga volutuosamente o próprio pelo. Assim a massa negroide ou
cabocla quando encontra herói ou santo de cabelo de índio ou de barba
encarapinhada regozija-se nele mais do que num herói louro; é um meio de afagar
os próprios pelos nos do herói, nos do gênio, nos do santo.”
840 Azevedo Amaral, em O
Brasil na crise atual (Rio de Janeiro, 1935, p. 253).
“Reciprocidade entre culturas que se tem feito acompanhar de intensa
mobilidade social – entre classes e entre regiões. Mobilidade vertical e
mobilidade horizontal. Talvez em nenhum país da extensão do nosso, o indivíduo
do extremo Norte – do Pará, digamos – se sinta tão à vontade no extremo Sul e
encontre, conforme seu temperamento mais do que conforme sua origem étnica,
tantas facilidades de ascensão social e política. É o caso de centenas de
bacharéis cearenses, paraenses, sergipanos, baianos, pernambucanos – vários
deles negroides ou caboclos – que têm feito carreira no Rio Grande, no Paraná,
em São Paulo e até governado esses Estados e os representado no Parlamento ou
no Congresso Nacional. Talvez em nenhum outro país seja possível ascensão
social mais rápida de uma classe a outra: do mucambo ao sobrado. De uma raça a
outra: de negro a “branco” ou a “moreno” ou “caboclo”. De uma região a outra:
de cearense a paulista. Juliano Moreira sabe-se que era filho de negra de
tabuleiro. Luiz Gama, de simples escrava. O negro Rebouças, conta-se que acabou
dançando quadrilha nos bailes da Corte com a loura princesa Isabel. (...)
Se
é certo que somos móveis nos dois sentidos – no horizontal e no vertical – é
que não são tão rígidas as configurações psicológicas de raça e de classe no
nosso País. O pernambucano julga encontrar mais afinidades com o rio-grandense-do-sul,
ou então com o paulista, do que com o baiano, seu vizinho. E não deixa de ter
suas razões. O pernambucano, como o gaúcho, e ao contrário do baiano, é amigo
da luta e antes rusticamente cavalheiresco do que maciamente urbano. Como o
paulista, seco e calado, e não como o baiano, ou o carioca ou o cearense, fácil
de acamaradar-se com estranhos. Rígida a psicologia de raça que Azevedo Amaral
atribui importância tão grande em nossa formação pretendendo explicar por ela
as divergências psicológicas mais profundas, entre os vários grupos de
brasileiros, conforme a parcela desta ou daquela raça que predomina em cada um;
rígida a psicologia de raça, como esclarecem aquelas evidentes afinidades do
pernambucano com o rio-grandense-do-sul, quando absoluta a repercussão da raça
sobre o comportamento do homem, as afinidades do pernambucano deveriam ser
todas ou quase todas com o baiano do recôncavo e não com o gaúcho espanholado
do extremo Sul ou com o paulista? É que talvez as afinidades venham antes de
pontos de semelhança na formação social dos três: do pernambucano e do
rio-grandense-do-sul e do paulista. Formação menos volutuosa e menos descansada
que a do baiano; mais guerreira e mais independente da Corte ou da metrópole;
mais avivada pela responsabilidade de estarem sempre defendendo a terra, o
Brasil, a América portuguesa com o próprio esforço e o próprio sangue. Através
dessa formação, teriam se desenvolvido nos três grupos tradições de luta, de
independência, de caudilhismo, de separatismo e, ao mesmo tempo, de
liberalismo. Apontam-se hoje verdadeiros traços de união entre as revoluções
pernambucanas e as rio-grandenses-do-sul, nos princípios do século XIX. Entre
os dois separatismos, os dois republicanismos – o do Norte e o do Sul.844
Pelo
menos no caso da afinidade, vamos provisoriamente dizer psicológica, de um
grupo de nortistas de composição étnica quase igual à dos baianos, com sulistas
de formação étnica predominantemente europeia, pelo menos quase isenta de
sangue africano quando comparada com a pernambucana ou a baiana – o fator raça
empalidece sob a atuação, evidentemente mais poderosa, de semelhanças de
formação histórica. Ou de experiência social.
Já
não se dá tanto crédito, como outrora, à fácil psicologia de raça que por tanto
tempo consistiu em associar, de modo absoluto, à raça do indivíduo ou da nação
ou região, qualidades ou defeitos. Fácil psicologia, segundo a qual o homem
mediterrâneo seria sempre, por dura determinação de raça, volátil, apaixonado,
instável, imaginoso, com muita queda para as artes plásticas e gráficas, mas
sem a pertinácia dos nórdicos, nem a sua coragem, o seu amor de independência,
a sua fleuma, a sua capacidade de direção. De positivo, ou através de meios
técnicos de mensuração e comparação, pouco se sabe ainda das diferenças mentais
e de temperamento entre raças; e menos ainda sobre essas diferenças, em termos
claros de superioridade e de inferioridade. As superioridades e inferioridades
de raça se acham consagradas apenas, umas pelo bom senso popular, outras só pela
meia-ciência, sempre tão enfática, dos psicólogos de segunda e dos sociólogos
de terceira ordem.”
844 O historiador Manuel
Duarte, em Província e nação (Rio de Janeiro, 1949), mostra que os
movimentos revolucionários no Sul e no Norte do Império, durante os primeiros
anos da Independência, nem sempre se processaram independentemente uns dos
outros.