sexta-feira, 22 de março de 2024

Sobrados e mucambos (Parte V), de Gilberto Freyre

Subtítulo: Decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano

Editora: Global

Opinião: ★★★★☆

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ISBN: 978-85-260-0835-9

Páginas: 976

Sinopse: Ver Parte I



“Se deles foram se queixando à polícia do Príncipe Regente, como de bailarinos incômodos, ingleses e franceses que não viam com bons olhos nem gelosias árabes capazes de esconder ladrões nem capoeiras peritos em cabeçadas e rabos de arraia, devem ter se arrependido de algumas das queixas. Pois – repita-se – a perseguição sistemática da polícia do Regente aos capoeiras dos rabos de arraia e das cabeçadas é que os perverteu em bailarinos ainda mais incômodos: bailarinos de navalha e de faca de ponta. Bailarinos que rindo, gingando, andando macio, deram para matar brancos – principalmente europeus – rasgando-lhes o ventre a navalha e a faca, quando outrora apenas os espapaçavam no chão com as terríveis cabeçadas, maltratando-os, é certo, e pondo-os fora de combate; mas sem os matar. Como nas lutas de box entre os ingleses.

Em 1821 já era diversa a situação no Rio de Janeiro: os ferimentos e as mortes estavam se tornando numerosos na cidade; e muitas delas praticadas por escravos negros e mulatos. De onde a representação dirigida ao ministro da guerra, a 26 de fevereiro do mesmo ano, pela Comissão Militar, no sentido de desenvolver a polícia ação mais vigorosa contra escravos e negros desabusados, “visto que pela falta de castigos de açoites, unicos que os atemorisa e aterra, se estão perpetrando mortes e ferimentos como tem acontecido ha poucos dias, que se tem feito seis mortes pelos referidos capoeiras e muitos ferimentos de facadas...”. À Comissão Militar parecia faltar “energia” ao então intendente de Polícia. Ou isto ou não estava ele “bem ao alcance das perigosas consequencias que se devem esperar de tratar por meios de brandura aquella qualidade de individuos...”. Pelo que a mesma comissão recomendava a S. A. R., por intermédio do seu ministro da Guerra, que, em vez de prender os escravos desordeiros, como se eles fossem sensíveis à pena de prisão, como os brancos – e dessas prisões resultava “damno a seos senhores” que eram “obrigados a pagar as despezas da cadeia” – a polícia submetesse sempre os pretos apanhados em desordem, ou “com alguma faca” ou “instrumento suspeitoso”, a castigos de açoites que pudessem concorrer para a “emenda dos negros”.670

Desde 8 de dezembro de 1823 que uma portaria de Clemente Ferreira França671 mandava que o brigadeiro-chefe do corpo de polícia da capital do Império fizesse reforçar as patrulhas nos largos e açougues de sorte a evitar o ajuntamento de negros capoeiras. E desde 1821 que um edital – de 26 de novembro – mandava que os açougues e tavernas se fechassem às dez horas da noite,672 a fim de evitar iguais ajuntamentos. Em 1825, outro edital, este do intendente-geral da polícia da Corte do Brasil, Francisco Alberto Teixeira do Aragão, declarava que os escravos poderiam ser apalpados a qualquer hora do dia ou da noite, desde que lhes era proibido, sob pena de açoites, o uso de qualquer arma: “não só o uso de qualquer arma de defeza como trazerem paos”. Era também proibido ao escravo – não só a eles como a todo negro ou homem de cor – estar parado nas esquinas “sem motivos manifestos” e até “dar assobios ou outro qualquer signal”.673 Atingia-se o moleque em algumas das liberdades mais características de sua condição de moleque: a de parar nas esquinas e a de dar assobios, por exemplo.

Entretanto esses negros, esses escravos, esses capoeiras, esses moleques, contidos e até reprimidos nas suas expansões de vigor viril e de combatividade de moços e de adolescentes como se todos os seus exercícios físicos, todos os seus passos de dança, todos os seus cantos em louvor de Ogum, todos os seus assobios fossem crime ou vergonha para a Colônia ou para o Império, é que conteriam as turbulências e reprimiam a revolta de mercenários irlandeses e alemães quando esses europeus armados, soldados prediletos de Pedro I – como eles, europeu – sublevaram-se em 1828. Primeiro – na manhã de 9 de junho – alemães, aquartelados em São Cristóvão, depois de lançarem fogo aos quartéis, precipitaram-se nas ruas como uns demônios ruivos, saqueando tavernas e maltratando quanta gente pacífica e desarmada foram encontrando. Depois, fizeram o mesmo os alemães da Praia Vermelha. Estes, tendo assassinado o major Benedito Teola, que tentara contê-los, saíram em confusão pelas ruas assaltando casas, bebendo e roubando. Dois dias depois, aos alemães procuraram juntar-se os irlandeses aquartelados no Campo de Santana. Antes, porém, que esses novos amotinados saíssem dos quartéis, foram cercados por forças milicianas que lhes cortaram comunicações com as ruas. E quanto aos soldados irlandeses que se achavam de guarda a edifícios ou estabelecimentos públicos, estes, ao tratarem de reunir-se aos seus companheiros sublevados, foram “atacados por pretos denominados capoeiras” que com eles travaram “combates mortíferos”. Pormenoriza o historiador Pereira da Silva que, embora “armados com espingardas” não puderam os irlandeses resistir aos capoeiras; e vencidos por “pedra”, “pau”, e “força de braços” caíram os estrangeiros pelas ruas e praças públicas, feridos grande parte e bastantes sem vida”.674

Se é certo que só com o auxílio de tripulações de navios de guerra ingleses e franceses surtos no porto – marinheiros que foram empregados em guardar os arsenais e estabelecimentos públicos – e de “cidadãos importantes”, capazes de reunir “paisanos” dispostos à luta, pôde o governo subjugar a revolta dos mercenários alemães e irlandeses, trazidos da Europa ou aqui reunidos pelo primeiro imperador para constituírem sua guarda de confiança contra as turbulências tanto dos mestiços ou dos “natos” como dos “portugueses exaltados”,675 é também verdade que, contra muitos dos amotinados agiram, de modo fulminante, “pretos denominados capoeiras” que não eram outros senão os negros mais viris e os moleques mais sacudidos, cansados do rame-rame de carregar palanquins, fardos, pedras, madeira, água, barris de excremento dos brancos. Cansados de servir de bestas de carga, de bois de carroça e de cavalos de carro aos brancos sem que lhes fosse permitido descarregar sua melhor energia de homens e de adolescentes vibrantes em jogos, exercícios físicos, danças, cantos e batuques do seu gosto ou da sua devoção de africanos e de filhos de africanos.

Não, porém, que esses negros e esses pardos fossem por natureza anárquicos ou sanguinários, como ainda hoje acreditam os intérpretes mais superficiais de insurreições como a “dos alfaiates”, no século XVIII e a dos Malês, no século XIX, na Bahia. Ou das insurreições de quilombolas. Ou das revoltas ou motins de gente de cor como os de 1823 no Recife.676 Ou das façanhas de capoeiras aí e no Rio de Janeiro.

O que negros e pardos moços fizeram, explodindo algumas vezes em desordeiros, foi dar alívio a energias normais em homens ou adolescentes vigorosos que a gente dominante nem sempre soube deixar que se exprimissem por meios menos violentos que a fuga para os quilombos, o assassinato de feitores brancos, a insurreição: o batuque, o samba, a capoeiragem, o assobio, o culto de Ogum, a prática da religião de Maomé. A estupidez da repressão é que principalmente perverteu batuques em baixa feitiçaria, o culto de Ogum, em grosseiro arremedo de maçonaria, com sinais e assobios misteriosos, o islamismo, em inimigo de morte da religião dos senhores cristãos das casas-grandes e dos sobrados, a capoeiragem, em atividade criminosa e sanguinária, o samba, em dança imundamente plebeia. É curioso observar-se hoje – largos anos depois dos dias de repressão mais violenta a tais africanismos – que os descendentes dos bailarinos da navalha e da faca como que se vêm sublimado nos bailarinos da bola, isto é, da bola de foot-ball, do tipo dos nossos jogadores mais dionisíacos como o preto Leônidas; os passos do samba se arredondando na dança antes baiana que africana, dançada pela artista Cármen Miranda sob os aplausos de requintadas plateias internacionais; as sobrevivências do culto de Ogum e do culto de Alá dissolvendo-se em práticas marginalmente católico-romanas como a lavagem da igreja de Nosso Senhor do Bonfim – na Bahia, há pouco transferida para uma das igrejas do Rio de Janeiro.”

670 Elísio de Araújo em seu já mais de uma vez citado Estudo histórico sobre a policia da Capital Federal de 1808 a 1831 (Rio de Janeiro, 1898), p. 61. Veja-se também o capítulo XXVIII, do estudo de Émile Allain, Rio de Janeiro, Quelques données sur la capitale et sur l’administration du Brésil, 2ª ed., Paris-Rio de Janeiro, 1886.

671 Manuscrito, Arquivo Público Nacional, cit. por Araújo, op. cit., p. 115. França ordena aí ao comandante da Imperial Guarda da Polícia fazer “reforçar as patrulhas nos largos e praças da cidade, de sorte a evitar o ajuntamento de negros capoeiras...”. Veja-se também a seção “Postura e infração de posturas” do Arquivo Geral da Prefeitura do Distrito Federal, seção que o ilustre historiador Noronha Santos destaca como fonte “do maio apreço” ou “cabedal informativo digno de grande interesse” (“Resenha analítica de livros e documentos do Arquivo Geral da Prefeitura elaborada pelo historiador Noronha Santos”, Rio de Janeiro, 1949, p. 15).

672 Diário do Rio de Janeiro, 26 de novembro de 1821. Sobre a polícia do Rio de Janeiro nos primeiros anos do Império, veja-se a obra já citada de Carmo Neto, “O intendente Aragão.”

673 Diário do Rio de Janeiro, 3 de janeiro de 1825. Era “depois das dez horas da noite no verão e das nove no inverno, até á alvorada” que ninguém, no Rio de Janeiro dos primeiros anos do Império, estava “isento de ser apalpado e corrido pelos patrulhas da polícia”. Os escravos, porém, poderiam ser apalpados a qualquer hora.

Carmo Neto recorda a observação de van Bolen de que, por essa época, rondavam frequentemente as ruas da cidade do Rio de Janeiro “patrulhas a cavalo e a pé” (op. cit., p. 15).

674 J. M. Pereira da Silva, Segundo período do reinado de D. Pedro I no Brasil, Rio de Janeiro, 1871, p. 287.

675 Pertence ao arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro interessante autógrafo, em alemão, assinado por D. Pedro I e dirigido a seu “caro Schaeffer”, onde se diz: “Muito lhe agradeço a boa gente que tem mandado para soldados. A imperatriz já lhe mandou, da minha parte, encommendar mais 800 homens; agora eu lhe peço que, em logar de colonos casados, mante mais 3.000 solteiros, também para soldados, além dos 800. O ministro dos Negócios Estrangeiros lhe mandou dizer que não mandasse mais, mas eu quero que mande os que por esta lhe encommendo, e faça de conta que não recebeu ordem para não mandar. Mande, mande e mande, pois lhe ordenna quem o há de desculpar e premiar pois é – seu Imperador. Boa Vista, em 13 de junho de 1824.” Desde 1823, recorda Carmo Neto, Jorge Antônio de Schaeffer, “a serviço do Exército brasileiro”, fora encarregado pelo governo do Brasil de contratar colonos na Alemanha e, ao mesmo tempo, engajar aí “soldados estrangeiros para servirem em nossas fileiras, como se vê da portaria de 4 de dezembro de 1824 (Coleção Nabuco)” (op. cit., p. 13). Com esses estrangeiros contratados, formaram-se os três batalhões cuja revolta foi sufocada com o auxílio de capoeiras: “o de irlandeses aquartelado no campo de Santana e os dois de alemães, aquartelados um no campo de São Cristóvão e outro na praia Vermelha”.

676 Sobre os motins do Recife em 1823 – os menos conhecidos dos movimentos de rebeldia da gente de cor no Brasil patriarcal – veja-se Alfredo de Carvalho, Estudos pernambucanos, Recife, 1907.

 

 

É do maior interesse para a compreensão do período de transição que foi, nas principais áreas do nosso País, a primeira metade do século XIX, destacar-se que várias das modificações que sofreram então paisagens e instituições ligam-se direta ou indiretamente à cessação do tráfico legal de escravos, cujo volume o clandestino nem sempre conseguiu suprir; nem pôde manter. Os capitais foram tomando, assim, outros rumos. Deixando de concentrar-se no comércio de escravos, tornaram-se disponíveis para os melhoramentos mecânicos, para as compras de máquinas ou simplesmente de cavalos e de vacas de leite, superiores ou de raça, para a construção de sobrados de luxo. Por longos anos, vinham afluindo os capitais à praça, sem terem aí emprego suficiente. Eram limitadas as transações. Acanhado o giro do dinheiro. As maiores fortunas móveis do Império em grande parte se achavam em mãos de traficantes de escravos; e estes só as aplicavam com escravos. Com a cessação do tráfico é que o emprego dos mesmos capitais reverteu para os melhoramentos materiais do País – especialmente na Corte.743 Uns, ativando as construções urbanas, dando-lhes o que os higienistas da época consideravam “melhores e mais salutares condições”; outros convergindo para empresas de viação urbana, criação de gado de leite que substituísse as já escassas cabras-gente, mecanização de serviços públicos ou particulares até então movidos por braço escravo.

É certo que a adaptação de capitais, concentrados em escravos, a máquinas, fábricas, animais de tração e de leite e prédios urbanos, não se fez docemente mas através de crises profundas744 que em áreas como a do Rio de Janeiro, a da Bahia, a de Pernambuco, a do Maranhão afetaram a sociedade em costumes ou estilos de vida; e não apenas a economia brasileira. É que a cessação do tráfico de escravos africanos foi como que o golpe de morte – mas não ainda o de misericórdia – numa forma, já então arcaica, de economia e de sociedade, a um tempo feudalista e capitalista; e esse golpe doeu não só nos capitalistas, negociantes de “folegos vivos”, e nos senhores, ainda feudais, de terras (senhores para quem esses fôlegos vivos eram a própria vida) como na população das próprias cidades, em grande parte dependente de condições de existência criadas pelo mesmo sistema, por longo tempo moribundo: lento em deixar de existir e de influir sobre o ambiente ou sobre o meio. (...)

Esse comércio se fazia principalmente com a Corte, do mesmo modo que a “forte companhia” da província de Minas visava abastecer de animais de corte, de leite e de tração as populações da área metropolitana e das áreas vizinhas à Corte, no beneficiamento das quais foi se esmerando o capitalismo outrora especializado na importação de escravos da África para o Brasil, e, por conseguinte, no beneficiamento das áreas mais feudalmente agrárias do País. Vinha-se desenvolvendo, assim, uma revolução ecológica, e não apenas tecnológica, com a transferência de capitais, de escravos para animais e, até certo ponto, para máquinas, ao lado do deslocamento de prestígio político do Norte açucareiro, e necessitado de escravos para a sua economia, ainda predominantemente açucareira e ortodoxamente patriarcal, para o Sul cafeeiro, e menos patriarcal que comercial, em cuja economia agrária, seria mais fácil a substituição do escravo pelo colono europeu e, na urbana, a substituição do negro pela máquina também europeia.

Ao golpe de morte na escravidão que foi a cessação do tráfico regular, sucedeu-se outro: a epidemia de cólera-morbo, ou cólera asiática, que devastou como uma praga do Velho Testamento senzalas de casas-grandes de engenhos e de fazendas persistentemente patriarcais e até feudais em sua organização social. Não só senzalas: também mucambos de pretos e de pardos nos arredores dos sobrados a ponto de parecer a epidemia a alguns deles, pretos e pardos, arte diabólica de brancos para acabar com a gente de cor.

Mas por uma como compensação biológica e não apenas sociológica, quase ao mesmo tempo em que a cólera asiática devastava principalmente a população africana e escrava das senzalas e dos mucambos, a febre amarela aparecia, para especializar-se em matar europeu ou branco puro, fino, vigoroso, entre os dezesseis e os trinta anos.748 Principalmente branco de sobrado. Foi como se a febre amarela tivesse tomado a si a tarefa de retardar, no Brasil, a vitória sobre o patriarcalismo rústico, encarnado nos homens de mais de sessenta anos – raramente atingidos pelo mal – do capitalismo ou do tecnicismo burguês representado principalmente por estrangeiros ainda jovens: por ingleses, franceses, portugueses de sobrado ou de loja; e por um ou outro Mauá brasileiro. Ou o triunfo, porventura menos difícil, do liberalismo dos bacharéis e dos doutores de vinte e tantos, trinta anos, sobre a rotina conservadora do maior número dos senhores de mais de sessenta.

Há até quem atribua à febre amarela a função patriótica de ter guardado o Império da cobiça europeia ou britânica. E na verdade parece ter ela impedido a desnacionalização do Brasil sob a influência de uma transferência, demasiadamente rápida, de domínio econômico, das mãos dos senhores de escravos e dos traficantes de negros para as dos senhores de bancos e dos traficantes de máquinas de ferro ou a vapor. Das mãos dos velhos das casas-grandes para as dos senhores moços dos sobrados.

O certo, porém, é que, sob o estímulo dos dois flagelos, parecem ter melhorado não só as condições de higiene e de vida nas principais cidades do Império como nas senzalas, nas casas-grandes, nas fazendas do interior alcançadas tanto pelo mal asiático como pela “febre de gringos”, isto é, de estrangeiros, de ingleses, de franceses, de alemães, de suíços, de italianos. À febre amarela pode-se, na verdade, atribuir uma série de aperfeiçoamentos técnicos ou mecânicos na vida das cidades brasileiras. Entre eles, a construção de cemitérios públicos e a generalização do hábito de residência nobre ou burguesa nos subúrbios, ou nas ruas afastadas do centro, deixando-se os sobrados dos centros urbanos para funções exclusivamente comerciais ou burocráticas. Ou para bordéis e cortiços, para repartições públicas e armazéns.”

743 O fato foi surpreendido em alguns dos seus efeitos imediatos por observadores da época, um deles Charles Reybaud que escreveu no seu Le Brésil (Paris, 1856) : “La suppression de la traite a laissé au Brésil bien des capitaux inactifs, indigènes ou étrangers, mais habitués à chercher un emploi lucratif dans les transactions des grandes places brésiliennes. C’est cette abondance de valeurs disponibles, combinée avec des développements de l’esprit d’association, qui explique la facilité avec laquelle se sont montées à Rio les plus importantes affaires. On a vu tour à tour la Banque du Brésil, l’entreprise des services à vapeur sur l’Amazone, celle du chemin de fer de don Pedro II et bon nombre d’autres, trouver sur-le-champ, par des souscriptions empressées, dix fois le capital dont ils avaient besoin. Il y avait certainement de l’agiotage dans cette ardeur à souscrire, et la capitale du Brésil n’est pas plus affranchie que Paris et Londres de cette spéculation malséante, levier vereux et nécessaire du crédit public et privé” (p. 230-231).

744 Vítor Viana, em seu estudo O Banco do Brasil – Sua formação, seu engrandecimento, sua missão nacional (Rio de Janeiro, 1926), refere-se às crises de 51, 57, 64 como “crises de crescimento” (p. 362). E transcreve do relatório de 1859: “... a cessação do tráfego deslocou avultados capitais, até então empregados nas feitorias das costas da África e no aparelhamento das expedições”, isto é, das expedições para a captura de negros. Esse dinheiro, refluindo para o Brasil, “mudou completamente a face de todas as cousas na agricultura, no comércio e na indústria” (p. 363). O recente estudo do professor Afonso Arinos de Melo Franco, História do Banco do Brasil (São Paulo, 1947), limitando-se à primeira fase da história do Banco (1808-1835), não alcança as crises que nos parecem marcar transições de tipos de economia no Império.

748 Vejam-se, sobre o assunto, Memória histórica das epidemias de febre amarela e cólera-morbo que têm reinado no Brasil, pelo Dr. Pereira Rego (barão de Lavradio), Rio de Janeiro, 1873, o trabalho anterior do mesmo José Pereira Rego, História e descrição da febre amarela no Rio de Janeiro, em 1850, Rio de Janeiro, 1851, e sobre a receptividade mórbida à febre amarela de indivíduos ou populações segundo áreas, idades, raças, tipos de habitação etc., o relatório do médico José Domingos Freire, anexo ao Relatório do ministro do Império, Rio de Janeiro, 1885. Vejam-se também Du climat et des maladies du Brésil, por J. F. X. Sigaud, Paris, 1844, Considerações gerais sobre a topografia físico-médica da cidade do Rio de Janeiro, por Francisco Lopes de Oliveira Araújo, Rio de Janeiro, 1852, Observações sobre a febre amarela, por Roberto Lallemant, Rio de Janeiro, 1951, e Estudo clínico sobre as febres do Rio de Janeiro, por João Torres Homem, Rio de Janeiro, 1856.

 

 

A ascensão do bacharel ou doutor – mulato ou não – afrancesado trouxe para a vida brasileira muita fuga da realidade através de leis quase freudianas nas suas raízes ou nos seus verdadeiros motivos. Leis copiadas das francesas e das inglesas e em oposição às portuguesas: revolta de filhos contra pais. Mas, por outro lado, afrancesados como Arruda Câmara é que deram o grito de alarme contra certos artificialismos que comprometiam a obra patriarcal de integração do Brasil, como aqueles exagerados sentimentos de nobreza encarnados por Antônio Carlos.755

Quando Melo Morais aparece, no meado do século XIX, recordando cheio de saudade os velhos do seu tempo de moço, o prestígio que tinham, o bom senso com que administravam a então colônia, é para lamentar, entre outros horrores dos novos tempos, o predomínio dos bacharéis afrancesados; para contrastar-lhes a inexperiência de puros letrados com a sabedoria prática dos velhos administradores. Destes se pode dizer, na verdade, que estavam para os filhos e netos, formados em Direito e em Filosofia, ou em Matemática e Medicina, na Europa, ou sob influência francesa ou inglesa, como muito curandeiro da terra para os rapazes formados em Medicina em Montpellier e em Paris: superiores aos doutos – os curandeiros – pelo seu traquejo e pela sua prática; pela sua sabedoria de grandes intuitivos que lidavam face a face com os males e as doenças de meio tão diverso do europeu, que conheciam pelo nome e às vezes pela experiência do próprio corpo as resinas, as ervas e os venenos indígenas ou trazidos da África pelos negros. Na mesma relação de curandeiros para médicos, estiveram, entre nós, os guerrilheiros para os guerreiros. A guerra contra a Holanda, por exemplo, foi ganha principalmente pelos guerrilheiros da terra contra os guerreiros da Europa. Por homens de conhecimentos concretos da terra em que se batalhava contra guerreiros, a eles vastamente superiores, na arte ou na ciência abstrata das batalhas.

O professor Gilberto Amado salienta que à política e à administração do Império, os homens mais úteis não foram os mais bem preparados com “sua fácil e inexaurível erudição à margem dos fatos e das coisas”. E num dos seus mais lúcidos ensaios observa desses “mais preparados” que eram homens de “erudição abstrata”, “preocupados mais com o espírito que com o fundo dos problemas”, fazendo discursos cheios de “citações de estadistas franceses e ingleses” sem, entretanto, se darem “ao pequeno trabalho de fazer um estudo ligeiro das condições de raça, de meio, das contingências particulares” do Império. Os estadistas mais realizadores foram, muitas vezes, homens de feitio oposto ao dos bacharéis, mais cultos: “os menos preparados”. Isto sem exceção, desde Paraná a Cotegipe.756

Se houve doutores e bacharéis formados na Europa do fim do século XVIII que reuniram, como Arruda Câmara, a teoria europeia a qualidades de curandeiros dos nossos males sociais por processos brasileiros, muitos se exageraram na doutrina. E foram uns românticos ou então uns livrescos, imaginando que dirigiam país castiçamente europeu: e não uma população mulata, mestiça, plural.”

755 Antônio Carlos Ribeiro de Andrada parece ter pertencido ao número daqueles brasileiros que escandalizaram um aristocrata francês de sentimentos já liberais como o conde de Suzannet pelos seus orgulhos de família (op. cit., p. 411).

756 Gilberto Amado, Grão de areia, Rio de Janeiro, 1919, p. 244-245. Veja-se também A Chave de Salomão e outros escritos, Rio de Janeiro, 1947, p. 176-180.

 

 

O conde de Valadares, em Minas, organizara ainda na era colonial regimentos de homens de cor com oficiais mulatos e pretos.761 Um desprestígio para a melhor aristocracia da terra. Aliás, nos tempos coloniais, chegara a haver sargento-mor e até capitão-mor mulato; mulato escuro, até, como o que Koster conheceu em Pernambuco. Mas esses poucos mulatos que chegaram a exercer, nos tempos coloniais, postos de senhores, quando aristocratizados em capitães-mores, tornavam-se oficialmente brancos, tendo atingido a posição de mando por alguma qualidade ou circunstância excepcional. Talvez ato de heroísmo, ação brava contra rebeldes. Talvez grande fortuna herdada de algum padrinho vigário. Quando o inglês perguntou, em Pernambuco, se o tal capitão-mor era mulato – o que, aliás, saltava aos olhos – em vez de lhe responderem que sim, perguntaram-lhe “se era possível um capitão-mor ser mulato”.762 (...)

Verificaram-se casos semelhantes nos Estados Unidos. Em certo velho burgo do Estado de... nos foi um dia apontado – isto já há largos anos – indivíduo ilustre admitido e até cortejado na sociedade branca mais fina e mais exclusivista do lugar, e de quem entretanto se sabia ter ascendente africano, embora remoto. Numa terra em que a simples suspeita de tal ascendência basta para determinar o mais cruel ostracismo social, o caso nos pareceu espantoso. Esclareceram-nos, porém, que o indivíduo em questão tivera outro ascendente – ou seria o mesmo negroide? – entre os heróis mais gloriosos da guerra da Independência. O que lhe arianizara a raça e lhe aristocratizara o sangue.”

761 Já salientamos, em nota a capítulo anterior, que variou a política portuguesa no Brasil colonial quanto ao aproveitamento de negros e mulatos como oficiais de milícias. Menos, porém, ao que parece, por preconceito de raça ou de cor do que de região: a região colonial em relação com a metropolitana, cujos filhos pretendiam monopolizar na colônia os postos de direção, deixando aos cabras que – de modo geral – eram todos os brasileiros, os cargos secundários e, principalmente, os encargos penosos, da administração.

762 É bem conhecida a observação de Koster no norte do Brasil quanto a certo capitão-mor, homem evidentemente de sangue africano que era, entretanto, considerado branco, por força do cargo. Também “brancos”, por força dos cargos que ocuparam no Império e de títulos de nobreza que lhes concedeu o Imperador, ficaram vários brasileiros evidentemente negroides, alguns deles filhos de mestiças célebres como Maria-você-me-mata, muito malvistas pelas iaiás mais puritanas dos sobrados. (...)

 

 

“A simpatia à brasileira – o homem simpático de que tanto se fala entre nós, o homem “feio, sim, mas simpático” e até “ruim ou safado, é verdade, mas muito simpático”; o “homem cordial” a que se referem os Srs. Ribeiro Couto e Sérgio Buarque de Holanda833 – essa simpatia e essa cordialidade, transbordam principalmente do mulato. Não tanto do retraído e pálido como do cor-de-rosa, do marrom, do alaranjado. Ninguém como eles é tão amável; nem tem um riso tão bom; uma maneira mais cordial de oferecer ao estranho a clássica xicrinha de café; a casa; os préstimos. Nem modo mais carinhoso de abraçar e de transformar esse rito como já dissemos orientalmente apolíneo de amizade entre homens em expansão caracteristicamente brasileira, dionisiacamente mulata, de cordialidade. O próprio conde de Gobineau que todo o tempo se sentiu contrafeito ou mal entre os súditos de Pedro II, vendo em todos uns decadentes por efeito da miscigenação, reconheceu, no brasileiro, o supremo homem cordial: “très poli, très accueillant, très aimable”. Evidentemente, o brasileiro834 que tem sua pinta de sangue africano ou alguma coisa de africano na formação de sua pessoa; não o branco ou o “europeu” puro, às vezes cheio de reservas; nem o caboclo, de ordinário, desconfiado e que ri pouco.

Essa simpatia do brasileiro – evidentemente maior no mulato “em quem a linfa ariana” – escreve o professor Gilberto Amado – “não dissolveu ainda a abundância animal do temperamento negro” – não nos parece ter origem principalmente étnica.835 Não nos parece que se derive da pura “alegria carnal das primeiras africanas que riam com os seus belos dentes e se espanejavam contentes na doçura das novas senzalas onde os senhores iam procurá-las com o seu amor.” “O riso abundante”, que o professor Amado salienta no mulato brasileiro, cremos que é antes um desenvolvimento social; e estamos de inteiro acordo com o eminente ensaísta quando escreve dos mulatos risonhos: “o que lhes resta do hábito de servir, adquirido na longa passividade da escravidão, dá-lhes um caráter prestativo e obsequioso”, certa “mole doçura que opõem aos obstáculos”. Naquele “riso abundante” haverá extroversão africana; talvez maior plasticidade de músculos da face do que no branco. Mas o que ele exprime parece que é principalmente um desenvolvimento ou uma especialização social. Terá se desenvolvido principalmente – como já nos aventuramos a sugerir – dentro das condições de ascensão social do mulato: condições de ascensão através da vida livre e não apenas nas senzalas e nos haréns dos engenhos; mas tendo por pontos de partida essas senzalas e esses haréns.

O mulato formado, em competição com o advogado branco, com o médico, com o político, procurou vencer o competidor, agradando, mais do que eles, aos clientes, ao público, ao eleitorado, ao “Povo”; e em seu auxílio moveram-se, sem dúvida mais facilmente do que no branco, os músculos do rosto negroide. Seu riso foi não só um dos elementos, como um dos instrumentos mais poderosos de ascensão profissional, política, econômica; uma das expressões mais características de sua plasticidade, na transição do estado servil para o de mando ou domínio ou, pelo menos, de igualdade com o dominador branco, outrora sozinho, único. Na passagem não só de uma raça para a outra como de uma classe para outra. (...)

Ao mesmo tempo que fácil no riso – um riso, não já servil, como o do preto, mas quando muito, obsequioso e, sobretudo, criador de intimidade – tornou-se o mulato brasileiro, quando extrovertido, como Nilo Peçanha, transbordante no uso do diminutivo – outro criador de intimidade. O “desejo de estabelecer intimidade”, que o ensaísta Sérgio Buarque de Holanda considera tão característico do brasileiro, e ao qual associa aquele pendor, tão nosso, para o emprego dos diminutivos – que serve, diz ele, para “familiarizar-nos com os objetos”.836

Podemos acrescentar que serve principalmente para familiarizar-nos com as pessoas – principalmente com as pessoas socialmente mais importantes: “sinhozinho”, “doutorzinho”, “capitãozinho”, “padrinho”, “fradinho”, “ioiozinho”, “seu Pedrinho”, “Zezinho”, “Machadinho”, “Sousinha”, “Goizinho”, “Manezinho”, “o Pequenininho”, “o Velhinho”, o “gordinho”, “o Amarelinho”, “o Branquinho”. E esse desejo de intimidade com as pessoas nos parece vir, não só de condições comuns a todo povo ainda novo, para quem o contato humano tende a reduzir-se à maior pureza de expressão, como, particularmente, de condições peculiares ao período de rápida ascensão de um grupo numeroso, da população – o grupo mulato – ansioso de encurtar, pelos meios mais doces, a distância social entre ele e o grupo dominante.

No uso brasileiro de diminutivo, uso um tanto dengoso, ninguém excede ao mulato. Ele foi pelo menos quem deu mais força e nitidez a esse nosso pendor; quem mais o enriqueceu de tendências e de significados sociais particularmente brasileiros. Para os seus interesses, para as suas dificuldades de indivíduo em transição de uma classe para outra, quase de uma raça para outra, o diminutivo, adoçando as palavras, representava a maneira de ser ainda respeitoso, sendo já íntimo, dos antigos senhores e também dos assuntos, outrora distantes e nos quais só os brancos tocavam.”

833 Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, 2ª ed., Rio de Janeiro, 1947, p. 213.

834 G. Readers, op. cit.

835 Gilberto Amado, Grão de areia, cit., p. 136-137.

836 Sérgio Buarque de Holanda, op. cit., p. 217.

 

 

Mas as tradições religiosas, como outras formas de cultura, ou de culturas negras, para cá transportadas, junto com a sombra das próprias árvores sagradas, com o cheiro das próprias plantas místicas – a maconha ou a diamba, por exemplo – é que vêm resistindo mais profundamente, no Brasil, à desafricanização. Muito mais que o sangue, a cor e a forma dos homens. A Europa não as vencerá. A interpenetração é que lhes dará formas novas, através de novas combinações dos seus valores com os valores europeus e indígenas.

O Brasil parece que nunca será, como a Argentina, país quase europeu; nem como o México, ou o Paraguai, quase ameríndio. A substância da cultura africana permanecerá em nós através de toda a nossa formação e consolidação em nação. (...)

O mulato nem sempre será, como os Machado de Assis – sofisticado à inglesa – ou como os Cotegipe, os Montezuma, os Gonçalves Dias, os D. Silvério, os D. Luís de Brito, os D. José Pereira Alves, o cúmplice do branco contra o preto. Também o cúmplice do negro contra o branco.”

 

 

O catolicismo, concordamos ter sido elemento poderoso de integração brasileira; mas um catolicismo que, ao contato – desde as Espanhas – com as formas africanas de religião, como que se amorenou e se amulatou, os santos adquirindo dos homens da terra uma cor mais quente ou mais de carne do que a europeia. Adaptou-se assim às nossas condições de vida tropical e de povo de formação híbrida. De modo que as portas de vidro dos santuários se abriram, no Brasil, se escancararam mesmo, para deixar entrar orixás de cajá disfarçados em S. S. Cosme e Damião; São Beneditos pretíssimos, Santas Ifigênias retintas, Nossas Senhoras do Rosário fortemente morenas. Santos de cor que tomaram lugar entre santo-antônios cor-de-rosa e querubinzinhos louros, ruivos, em uma confraternização que nem a dos homens. Os santos e os anjos, tradicionalmente louros, foram aqui obrigados a imitar os homens – nem todos brancos, alguns pretos, muitos mulatos – tornando-se, eles também, parentes de pretos, de pardos e mulatos. Ou amulatando-se, amorenando-se. Até Nossa Senhora amulatou-se, engordou e criou peitos de mãe-preta nas mãos dos nossos santeiros. E do próprio Cristo a imagem que mais se popularizou no Brasil foi a do judeu palidamente moreno, o cabelo e a barba pretos, ou então castanhos; e não a do Nosso Senhor ruivo, que se supõe ser o histórico ou o ortodoxo. É possível que qualquer insistência da parte dos padres em impor à gente do povo santos todos ortodoxamente louros ou ruivos tivesse resultado em desprestígio para o catolicismo, formando-se, talvez, em volta dos altares e dos santos, o mesmo ambiente de distância e de indiferença que foi crescendo em torno do trono e dos imperadores e regentes louros, a tal ponto de poder dizer-se – repita-se – com muito exagero, mas não sem certo fundo de verdade, que o primeiro Imperador fora destronado por não ser nato, o segundo, por não ser mulato.

Para Azevedo Amaral, os heróis autênticos para a gente do povo, no Brasil, os que “se fixam como ídolos na consciência popular” são “os que exprimem nas suas atitudes e nos seus gestos os traços mais fortemente antieuropeus do psiquismo brasileiro”.840 Os traços negroides e caboclos. E contrasta a indiferença pela figura de branco de Caxias com o entusiasmo pelos traços caboclos de Floriano.

Talvez exagere o arguto publicista. Nada, porém, mais natural que essa preferência pelos heróis em cujas figuras a massa encontre o máximo de si mesma. Seu nariz, sua boca, seus olhos, seus vícios, seus gestos, seu riso. Há mesmo aí uma das formas mais poderosas de integração vencendo a diferenciação: o herói, o santo, o gênio se diferencia pelo excepcional da coragem, da santidade, da inteligência; a massa, porém, o reabsorve pelo muito ou pelo pouco que encontra nele de si mesma. Afinal, não existe herói, nem gênio, nem mesmo santo, que não tenha retirado da massa alguma coisa de sua grandeza ou de sua virtude; que não guarde traços da massa em sua superioridade de pessoa excepcional. Alguns chegam exageradamente a considerar o homem de gênio um ladrão: do tesouro que o povo juntou e ele só fez revelar. A riqueza transbordou nele, vinda de outros. De qualquer jeito, a massa tende a recuperar o que o herói ou o indivíduo de gênio de certo modo lhe usurpa, exagerando os traços de semelhança e os pontos de contato entre os dois, massa e herói: os traços caboclos de Floriano ou de Carlos Gomes como os negroides de Montezuma, de Torres Homem, de Rebouças, de José do Patrocínio. Há no culto dos heróis um pouco de agrado de gato – o clássico agrado do gato ao homem: parecendo estar fazendo festa à perna do dono, o gato afaga volutuosamente o próprio pelo. Assim a massa negroide ou cabocla quando encontra herói ou santo de cabelo de índio ou de barba encarapinhada regozija-se nele mais do que num herói louro; é um meio de afagar os próprios pelos nos do herói, nos do gênio, nos do santo.”

840 Azevedo Amaral, em O Brasil na crise atual (Rio de Janeiro, 1935, p. 253).

 

 

Reciprocidade entre culturas que se tem feito acompanhar de intensa mobilidade social – entre classes e entre regiões. Mobilidade vertical e mobilidade horizontal. Talvez em nenhum país da extensão do nosso, o indivíduo do extremo Norte – do Pará, digamos – se sinta tão à vontade no extremo Sul e encontre, conforme seu temperamento mais do que conforme sua origem étnica, tantas facilidades de ascensão social e política. É o caso de centenas de bacharéis cearenses, paraenses, sergipanos, baianos, pernambucanos – vários deles negroides ou caboclos – que têm feito carreira no Rio Grande, no Paraná, em São Paulo e até governado esses Estados e os representado no Parlamento ou no Congresso Nacional. Talvez em nenhum outro país seja possível ascensão social mais rápida de uma classe a outra: do mucambo ao sobrado. De uma raça a outra: de negro a “branco” ou a “moreno” ou “caboclo”. De uma região a outra: de cearense a paulista. Juliano Moreira sabe-se que era filho de negra de tabuleiro. Luiz Gama, de simples escrava. O negro Rebouças, conta-se que acabou dançando quadrilha nos bailes da Corte com a loura princesa Isabel. (...)

Se é certo que somos móveis nos dois sentidos – no horizontal e no vertical – é que não são tão rígidas as configurações psicológicas de raça e de classe no nosso País. O pernambucano julga encontrar mais afinidades com o rio-grandense-do-sul, ou então com o paulista, do que com o baiano, seu vizinho. E não deixa de ter suas razões. O pernambucano, como o gaúcho, e ao contrário do baiano, é amigo da luta e antes rusticamente cavalheiresco do que maciamente urbano. Como o paulista, seco e calado, e não como o baiano, ou o carioca ou o cearense, fácil de acamaradar-se com estranhos. Rígida a psicologia de raça que Azevedo Amaral atribui importância tão grande em nossa formação pretendendo explicar por ela as divergências psicológicas mais profundas, entre os vários grupos de brasileiros, conforme a parcela desta ou daquela raça que predomina em cada um; rígida a psicologia de raça, como esclarecem aquelas evidentes afinidades do pernambucano com o rio-grandense-do-sul, quando absoluta a repercussão da raça sobre o comportamento do homem, as afinidades do pernambucano deveriam ser todas ou quase todas com o baiano do recôncavo e não com o gaúcho espanholado do extremo Sul ou com o paulista? É que talvez as afinidades venham antes de pontos de semelhança na formação social dos três: do pernambucano e do rio-grandense-do-sul e do paulista. Formação menos volutuosa e menos descansada que a do baiano; mais guerreira e mais independente da Corte ou da metrópole; mais avivada pela responsabilidade de estarem sempre defendendo a terra, o Brasil, a América portuguesa com o próprio esforço e o próprio sangue. Através dessa formação, teriam se desenvolvido nos três grupos tradições de luta, de independência, de caudilhismo, de separatismo e, ao mesmo tempo, de liberalismo. Apontam-se hoje verdadeiros traços de união entre as revoluções pernambucanas e as rio-grandenses-do-sul, nos princípios do século XIX. Entre os dois separatismos, os dois republicanismos – o do Norte e o do Sul.844

Pelo menos no caso da afinidade, vamos provisoriamente dizer psicológica, de um grupo de nortistas de composição étnica quase igual à dos baianos, com sulistas de formação étnica predominantemente europeia, pelo menos quase isenta de sangue africano quando comparada com a pernambucana ou a baiana – o fator raça empalidece sob a atuação, evidentemente mais poderosa, de semelhanças de formação histórica. Ou de experiência social.

Já não se dá tanto crédito, como outrora, à fácil psicologia de raça que por tanto tempo consistiu em associar, de modo absoluto, à raça do indivíduo ou da nação ou região, qualidades ou defeitos. Fácil psicologia, segundo a qual o homem mediterrâneo seria sempre, por dura determinação de raça, volátil, apaixonado, instável, imaginoso, com muita queda para as artes plásticas e gráficas, mas sem a pertinácia dos nórdicos, nem a sua coragem, o seu amor de independência, a sua fleuma, a sua capacidade de direção. De positivo, ou através de meios técnicos de mensuração e comparação, pouco se sabe ainda das diferenças mentais e de temperamento entre raças; e menos ainda sobre essas diferenças, em termos claros de superioridade e de inferioridade. As superioridades e inferioridades de raça se acham consagradas apenas, umas pelo bom senso popular, outras só pela meia-ciência, sempre tão enfática, dos psicólogos de segunda e dos sociólogos de terceira ordem.”

844 O historiador Manuel Duarte, em Província e nação (Rio de Janeiro, 1949), mostra que os movimentos revolucionários no Sul e no Norte do Império, durante os primeiros anos da Independência, nem sempre se processaram independentemente uns dos outros.

terça-feira, 19 de março de 2024

Sobrados e mucambos (Parte IV), de Gilberto Freyre

Subtítulo: Decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano

Editora: Global

Opinião: ★★★★☆

ISBN: 978-85-260-0835-9

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Páginas: 976

Sinopse: Ver Parte I

 

“O estudo minucioso da composição social e, quanto possível, étnica, das nossas irmandades, é dos que mais contribuem para o esclarecimento das condições de raça, classe e região que, tomadas em conjunto – nunca isolada umas das outras – caracterizam a formação brasileira. Sem o exame em conjunto de condições que quase sempre se interpenetraram entre nós, como as referidas, de raça, de classe e de região, arrisca-se o estudioso da formação brasileira a generalizações falsas sobre o indivíduo ou grupo que considere representativo; pois, no Brasil, generalizações firmadas em critérios de interpretações puras, válidas para países de maior pureza ou maior nitidez hierárquica na sua composição social ou étnica, perdem a validez ou o vigor. Assim não se pode afirmar da nossa formação que tenha sido substancialmente aristocrática no sentido de uma raça, de uma classe ou de uma região única. O que a nossa formação tem tido é forma aristocrática dentro da qual vêm variando substâncias ou conteúdos de raça, de classe e de região, ora exaltando-se como nobre o branco (e dando-se aos indígenas o direito de adotarem velhos nomes portugueses de pessoa ou família), ora o caboclo (cujos nomes passaram em certa época a substituir os europeus); ora glorificando-se o senhor de engenho, isto é, da região da cana, ora o fidalgo de sobrado, isto é, da região ou área urbana (de onde a tendência contemporizadora para o senhor rural mais rico ter tido sempre sobrado na cidade mais próxima de suas terras e, vice-versa, o senhor mais rico de sobrado ter tido sempre engenho, fazenda ou quinta socialmente decorativa do seu poder econômico de burguês); ora fazendo-se do homem do litoral o herói da formação nacional, ora considerando-se o verdadeiro herói dessa formação o paulista, o sertanejo ou o montanhês; ora fazendo-se do açúcar o artigo-rei da economia nacional, ora transferindo-se essa majestade para o café. (...)

Encontram-se em nossa formação social predominâncias de figuras senhoris ou superiores, pelo conjunto das condições de região de origem, de classe e de raça, ou por uma dessas condições, no momento decisiva, de superioridade ou prestígio: o branco em relação com os indivíduos das raças e sub-raças de cor; o proprietário de vastas terras de lavoura ou criação e das respectivas casas-grandes de residência, em relação com os moradores sem eira nem beira dessas terras e com os escravos ou servos necessários à exploração agrária ou à atividade pastoril ou mineira; o cristão-velho em relação com o novo e com os demais católicos; o brasileiro nato em relação com o reinol ou com o brasileiro naturalizado; o habitante do litoral mais europeizado em relação com o do interior mais agreste. Mas nenhuma dessas predominâncias foi, muito menos é hoje, absoluta, tendo havido frequentes casos de inversões e confusões de superioridades: figuras senhoris sob a pele escura de raça geralmente considerada servil ou inferior; sertanejos superiores aos homens do litoral em poder econômico e em prestígio político; proprietários rurais dependentes de tal modo de comissários de cidades a ponto de tornarem seus vassalos econômicos.”

 

 

Entre as posturas da Câmara Municipal da cidade do Recife – cidade insistentemente referida neste capítulo por ter sido, na época aqui considerada, mais característica que qualquer outra capital brasileira, exceção feita da Metrópole (sob alguns aspectos, atípica), do processo de reeuropeização, ou europeização, da paisagem, da vida e da cultura brasileiras – são particularmente significativas as que atingem aqueles pretos cujos costumes mais cruamente africanos e aqueles escravos cujo comportamento ou cujo trajo, considerado mais ostensiva ou perigosamente impróprio de sua condição servil, perturbavam ou inquietavam os indivíduos da raça, da cultura e da classe dominantes com responsabilidades de administração ou de governo das cidades e do país. Assim, ficava proibido, na cidade do Recife, a partir de 10 de dezembro de 1831, fazer alguém “vozerias, alaridos e gritos pelas ruas”, restrição que atingia em cheio os africanos e as suas expansões de caráter religioso ou simplesmente recreativo. Ficava, também, proibido que os pretos carregadores andassem pelas ruas cantando, “desde o recolher até o nascer do sol”.446 Restrição severa, dado o hábito dos africanos de adoçarem o trabalho com o canto. Em Salvador, pelas posturas de 1844, proibiam-se “lundus, vozerias e alaridos” só “nas horas de silencio”.447

Mais: nenhum escravo poderia, na cidade do Recife, andar na rua “de dia ou a noite, com paos, ou outra qualquer arma, publica ou occulta, sob pena de soffrer de 50 a 150 assoutes na cadeia, conforme a qualidade aggravante da arma, isso executado será entregue a seo senhor...”. Só “os carregadores de tipoias, ou redes” poderiam trazer “as competentes furquilhas, que lhes sirvão de descanço, e aos companheiros, e os que condusem lenha, pequenos paos que ajudem a carga”.448

Desde remotos dias coloniais que os homens de governo, no nosso País, preocuparam-se em proibir aos escravos e aos pretos não só a ostentação de joias como a de armas, considerando-se que umas e outras deviam ser insígnias da raça e da classe dominantes. As armas não foram consideradas só insígnias, como vantagens técnicas em caso de luta ou conflito de senhores com servos. Daí, provavelmente, o fato de ter se desenvolvido entre os negros e mulatos livres das cidades – sobretudo do Rio de Janeiro e do Recife – a arte da capoeiragem, através da qual indivíduos desarmados poderiam lutar vantajosamente com polícias e particulares armados.

Ficavam, ainda, proibidos, na cidade do Recife, por decisão dos seus vereadores de 1831, “os jogos pelas ruas, praças, praias ou escadas, que costumão os pretos e vadios, faserem, sob pena de soffrerem os que forem livres, de 2 a 6 dias de cadeia, e os escravos, de 12 a 36 bolos dados na mesma cadeia, e logo depois serem entregues a seos senhores...”. Pormenor interessante é o de que essa “graduação de pena” seria “em proporção das idades dos transgressores”. A pena variava, portanto, não só com a condição de livre ou escravo do transgressor como com a sua condição de idade.

A mais se estendia o cuidado da Câmara Municipal do Recife de 1831 no sentido de dar à vida da cidade aparência tão europeia quanto possível: todo indivíduo que fosse “achado nu em beiras de praia”, ou “tomando banho com os corpos descubertos, sem a devida decencia”, seria punido com prisão ou bolos. Excetuavam-se os indivíduos pertencentes a “corporações militares”, que seriam entregues “aos seos commandantes respectivos para estes lhes faserem applicar a correspondente pena de prisão...”.

A despeito do rigor dessas proibições, documentos extraoficiais da época indicam que até mesmo na segunda metade do século continuou o costume de recifenses pobres ou médios se banharem nus, às vezes perto das próprias pontes principais da cidade e à vista das senhoras dos sobrados mais nobres; e na cidade de Belém do Pará o norte-americano Warren, quando ali chegou em 1850, viu homens, mulheres e meninos do povo banhando-se nus, com a maior sem-cerimônia deste mundo.449 Aliás, veio até quase nossos dias o hábito, no Norte do País, da própria gente senhoril tomar nua seus banhos de rio, perto às casas de subúrbio ou no interior. Apenas despiam-se pudicamente em banheiros de palha à beira ou dentro da água. As senhoras e as crianças desciam ao rio numa hora; os senhores, em outra. O banho tinha assim todas as vantagens do verdadeiro banho, sem que o corpo se revestisse dos pesados trajos de baeta escura que só se propagaram entre a gente senhoril no Brasil, com a moda dos banhos de mar, iniciada no Rio de Janeiro ainda na primeira metade do século XIX; mas só generalizada na segunda.450

A gente do povo das cidades, porém, que não tinha banheiro de palha onde despir-se, para o banho de regalo ou de higiene, se via obrigada a despir-se no meio do mato e daí caminhar nua para a água do rio ou do mar, escandalizando aqueles moradores de sobrado que não compreendiam a vista ou a paisagem que se gozava do alto de suas varandas maculada por manchas pardas, pretas e amarelas de nudez plebeia. Além do que havia “prejuízo da saude dos habitantes” que bebiam água de rios conspurcados pelos banhos da mesma plebe. Pelo que às câmaras foram-se juntando os juízes de paz na perseguição aos indivíduos pobres e de cor que, com seus banhos, conspurcavam as águas dos rios e “representavam figuras contrarias á moral publica”, incorrendo assim nas penas estabelecidas pelo Código do Processo Criminal no seu § 7º, artigo 12; e não apenas nos castigos das posturas das câmaras.

O que indicam várias dessas imposições e proibições no interesse só de um grupo, ou apenas de uma classe, de uma raça ou de uma cultura de minoria e de região – raramente no interesse do público ou do grosso ou da maioria da população nacional – é que, paralelo ao processo de europeização ou reeuropeização do Brasil que caracterizou, nas principais áreas do país, a primeira metade do século XIX, aguçou-se, entre nós, o processo, já antigo, de opressão não só de escravos ou servos por senhores, como de pobres por ricos, de africanos e indígenas por portadores exclusivistas da cultura europeia, agora encarnada principalmente nos moradores principais das cidades. Nos moradores ou senhores dos sobrados e das casas assobradadas. Opressão que não poderia deixar de criar, como criou, revoltas ou insurreições como as já referidas: a dos “Cabanos”, a dos “Balaios”, a dos “Quebra-Quilos”; e como a dos Malês, na Bahia, em 1835.

Não era possível que se conservassem noutro estado senão no de crispação, no de ressentimento e no de insurreição, grupos aos quais se proibiam de modo tão simplistamente policial expansões de fervor religioso e de ardor recreativo à maneira de suas velhas tradições e de velhos costumes de sua cultura materna: cantos de trabalho; trajos regionais; joias, adornos, balangandãs. Os indivíduos, aparentemente livres, aos quais se obrigava – como aos sertanejos, aos matutos ou aos roceiros – num requinte de humilhação, que não entrassem nas cidades montados ou sentados nos seus animais de carga, mas ao lado ou à frente deles; e humildemente, a passo, pisando o chão e a lama como peões indignos de se apresentarem aos olhos dos moradores de sobrados com aparência ou modos de cavaleiros.

O direito de galopar ou esquipar ou andar a trote pelas ruas das cidades repita-se que era exclusivo dos militares e dos milicianos. O de atravessá-las montado senhorilmente a cavalo era privilégio do homem vestido e calçado à europeia. A água dos rios poluía-se quando nela se banhava o moleque, o homem do povo, o escravo. O ar das cidades enchia-se de ruídos como que nefandos quando eram os africanos que cantavam seus cantos de trabalho, de xangô ou de maracatu, tão diversos no som e nas palavras das ladainhas cantadas nas procissões católicas, nas festas de pátio de igreja, nos terços diante dos nichos.

O que se verificava repita-se que era vasta tentativa de opressão das culturas não europeias pela europeia, dos valores rurais pelos urbanos, das expansões religiosas e lúdicas da população servil mais repugnantes aos padrões europeus de vida e de comportamento da população senhoril, dona das câmaras municipais e orientadora dos juízes de paz e dos chefes de polícia. Como esperar que a primeira metade do século XIX fosse, entre nós – nas nossas áreas social ou culturalmente decisivas – um período diverso do que foi? Foi um período de tão frequentes conflitos sociais e de cultura entre grupos da população – conflitos complexos com aparência de simplesmente políticos – que todo ele se distingue pela trepidação e pela inquietação.

Nos séculos anteriores, houvera, talvez, maior prudência, maior sabedoria, mais agudo senso de contemporização da parte das autoridades civis (quando não também das eclesiásticas) e dos grandes senhores patriarcais, com relação a culturas e a populações consideradas por eles inferiores; e encarnadas por elementos quando não servis, oprimidos, degradados ou simplesmente ridicularizados pelos brancos, pelos cristãos-velhos e pelos moradores de áreas urbanas ou dominadas por casas-grandes mais requintadas em sua organização ou na sua estrutura senhoril. Degradados ou ridicularizados por peculiaridades de raça e de classe, de cultura e de região que repugnavam aos grupos dominantes da população, representados por aquelas predominâncias de raça, de classe e de cultura que se consideravam superiores.”

448 “Postura da camara”, Diário de Pernambuco, 13 de dezembro de 1831.

449 John Warren, Pará; or scenes and adventures on the banks of the Amazon, Nova York, 1851, p. 9.

450 Os primeiros banhos públicos de mar da gente senhoril no Brasil não foram abertamente nas praias mas em “casas de banho” ou em barcas de banho como a Fluctuante que nos começos do século XIX fundeava “defronte do largo do Paço” no Rio de Janeiro, recomendando-se pela “segurança, decencia [...] lugares separados para homens, e senhoras”. O tempo do banho devia ser de “1/2 hora pelo preço de 320 reis” (Gazeta do Rio de Janeiro, 2 de dezembro de 1811).

 

 

Há quem tenha por exagerada a importância por nós atribuída ao Oriente na formação da cultura que aqui se desenvolveu com a sociedade patriarcal e foi, em várias de suas formas, condicionada pelo tipo absorvente de organização de economia e de política, de recreação e de arte, de religião e de assistência social, de educação e de transporte – e não apenas de família, no sentido apenas biológico da palavra – que é o patriarcal. A verdade é que o Oriente chegou a dar considerável substância, e não apenas alguns dos seus brilhos mais vistosos de cor, à cultura que aqui se formou e à paisagem que aqui se compôs dentro de condições, predominantemente patriarcais de convivência humana, em geral, e de exploração da terra pelo homem e dos homens de uma raça pelos de outra, em particular. E não só substância e cor à cultura: o Oriente concorreu para avivar as formas senhoris e servis dessa convivência entre nós: os modos hierárquicos de viver o homem em família e em sociedade. Modos de viver, de trajar e de transportar-se que não podem ter deixado de afetar os modos de pensar.

Só o vigor do capitalismo industrial britânico na sua necessidade às vezes sôfrega de mercados não só coloniais como semicoloniais para sua produção, de repente imensa, de artigos de vidro, ferro, carvão, lã, louça e cutelaria – produção servida por um sistema verdadeiramente revolucionário de transporte – conseguiria acinzentar, em tempo relativamente curto, a influência oriental sobre a vida, a paisagem e a cultura brasileira. Pois o que parece é que, ao findar o século XVIII e ao principiar o XIX, em nenhuma outra área americana o palanquim, a esteira, a quitanda, o chafariz, o fogo de vista, a telha côncava, o banguê, a rótula ou gelosia de madeira, o xale e o turbante de mulher, a casa caiada de branco ou pintada de cor viva e em forma de pagode, as pontas de beiral de telhado arrebitadas em cornos de lua, o azulejo, o coqueiro e a mangueira da Índia, a elefantíase dos Árabes, o cuscuz, o alfeolo, o alfenim, o arroz-doce com canela, o cravo das Molucas, a canela de Ceilão, a pimenta de Cochim, o chá da China, a cânfora de Bornéu, a muscadeira de Bandu, a fazenda e a louça da China e da Índia, os perfumes do Oriente, haviam se aclimado com o mesmo à vontade que no Brasil; e formado com valores indígenas, europeus e de outras procedências o mesmo conjunto simbiótico de natureza e cultura que chegou a formar no nosso País. É como se ecologicamente nosso parentesco fosse antes com o Oriente do que com o Ocidente que, em sua mística de pureza etnocêntrica ou em sua intolerância sistemática do exótico, só se manifestaria, entre nós, através de alguns daqueles estilos e de algumas daquelas substâncias inglesas e francesas de cultura generalizadas no litoral brasileiro após a chegada de D. João VI ao Rio de Janeiro. Ou por meio de um ou outro arreganho de ocidentalismo ortodoxo da parte de portugueses mais em desarmonia com o quase instinto ou a quase política portuguesa de expansão, que sempre se afirmou no sentido da conciliação dos valores orientais com os ocidentais.”

 

 

“Confirma-se aqui o fato de que o brasileiro do litoral ou de cidade viveu, durante a primeira metade do século XIX – na verdade durante o século inteiro – sob a obsessão dos “olhos dos estrangeiros”. Preocupado com esses olhos. Sob o temor desses olhos como outrora vivera sob o terror dos olhos do jesuíta ou dos da Santa Inquisição. E os “olhos dos estrangeiros” eram os olhos da Europa. Eram os olhos do Ocidente. Do Ocidente burguês, industrial, carbonífero, com cujos estilos de cultura, modos de vida, composições de paisagem, chocavam-se as nossas, particularmente impregnadas de sobrevivências do Oriente. Penetrado ou desvirginado por Portugal, o Oriente como que se vingara do ousado conquistador semiocidental avivando nele empalidecidos traços orientais de cultura e até de sangue; e acrescentando a antigos característicos africanos e asiáticos dos portugueses, vários novos. Desses traços muitos foram transmitidos ao Brasil desde os primeiros anos de colonização; e aqui se desenvolveram a seu modo sob o favor da política de segregação da Europa adotada pelos portugueses com relação à sua colônia americana depois que se descobriram nesta parte da América esmeraldas e diamantes, além do ouro das Gerais.

No próprio Portugal, os traços orientais chegaram ao século XIX com uma vivacidade que talvez só fosse maior, na Europa inteira, na Turquia Asiática ou na parte asiática da Rússia. Formavam eles forte contraste com os traços da Europa propriamente ocidental, da qual, chegando ao Brasil, o Príncipe Regente e seus orientadores tudo fizeram para aproximar o Brasil, mesmo afastando-o de Portugal. É que os orientadores do Regente e ele próprio agiram menos em função de uma política castiçamente portuguesa ou ibérica com relação ao Brasil, do que de uma política imperialmente inglesa, ou britânica, de absorção e dominação de povos e culturas extraeuropeias, para maior expansão dos produtos de suas indústrias. Os “olhos dos estrangeiros”, ou antes, dos ingleses, é que passaram a governar o Brasil através menos de cônsules e de caixeiros-viajantes, que daqueles portugueses e brasileiros anglófilos do tipo do conde de Linhares e do economista Silva Lisboa, para quem a salvação de Portugal ou do Brasil estava em perderem, com a possível rapidez, quanto fosse forma ou cor oriental de cultura para adquirirem as formas, as cores e os gestos dominantes no Ocidente perfeitamente civilizado. E para eles o Ocidente perfeitamente civilizado eram a Inglaterra e a França. Principalmente a Inglaterra. Donde o sentido sociológico da frase que desde os princípios do século XIX se generalizou no Brasil: “para inglês ver”.

Os “olhos dos estrangeiros”, sob os quais o Brasil devia ascender à condição de Nação ou de Reino civilizado, seriam principalmente os olhos dos ingleses. Eram eles que deviam substituir o olhar duro, exigente, tutelar dos jesuítas e da Santa Inquisição na direção “política e moral” das atividades brasileiras. O próprio anglófilo a quem já se fez referência a propósito do significativo incidente de destruição das rótulas nos sobrados do Rio de Janeiro, é como procura justificar a violência policial que então se praticou contra os senhores dos mesmos sobrados: invocando “muitos motivos de consideração moral e política”. Entre os de consideração política, estariam, como já sugerimos noutro ensaio, os de política econômica que várias evidências indicam terem concorrido para o desejo inglês de que as rótulas ou gelosias de madeira das cidades principais do Brasil fossem substituídas, nos sobrados – só nos sobrados – por janelas de vidraça e varandas de ferro.

O fato de alcançar a medida apenas os sobrados parece indicar que o costume da rótula só era considerado “bisonho” neste tipo nobre de edifício: os “motivos de consideração moral e política” contra as gelosias como que deixavam de existir quando elas revestiam o tipo médio, ainda que já muito generalizado, de casa urbana, que era a casa térrea: meio-termo entre o sobrado e o mucambo; entre o palácio de rico e a palhoça de pobre ou miserável. Pelo ato violentamente policial que acabou com as rótulas na cidade do Rio de Janeiro, deviam elas desaparecer das “janellas dos sobrados [...] no termo de oito dias”, tolerando-se pelo “espaço de seis mezes” as dos peitoris daquelas casas que não tivessem ainda “grades de ferro”, para, durante esses breves seis meses, processar-se a substituição da madeira pelo ferro, e não apenas do xadrez mourisco pelo vidro de fabrico inglês. Excetuavam-se, porém, da violência, as gelosias das já numerosas “casas terreas que nada influem na belleza do prospecto...”.470

Que não influísse o casario térreo na beleza do “prospecto” ou do conjunto urbano, é duvidoso. O que parece certo, porém, é que os moradores ou os proprietários desse casario médio fossem, na sua maioria, indivíduos economicamente incapazes de substituir em dias ou meses as gelosias de suas residências por janelas envidraçadas. Razão para que só fossem consideradas “disformes” e “funebres” as gelosias dos sobrados.

O Padre Sanctos informa terem elas caído por terra no meio de “geral satisfação”. “Geral satisfação”, ao que parece, dos ocidentalistas que eram os reformistas ou os modernistas da época, revoltados contra “os prejuisos, com que nos criarão os nossos avós!”.

Para esses ocidentalistas era como se o desaparecimento de característico tão oriental da arquitetura doméstica como a gelosia de madeira marcasse a vitória decisiva do Ocidente sobre o Oriente na luta entre culturas ou civilizações a que o Brasil vinha servindo há anos de campo; e ora tomando feições nitidamente orientais nos costumes, nos gestos – inclusive no modo de sentar-se a mulher e mesmo o homem: de pernas cruzadas, “como os turcos”, segundo notaram Kidder, no Norte, e Debret, no Rio de Janeiro471 – na arquitetura, nos meios de transporte da gente e das coisas e na paisagem dos jardins e das estradas; ora assumindo aspectos ocidentais de cultura e paisagem que superavam os orientais. O sentimento que animava os ocidentalistas era, porém, o de superação total do Ocidente na vida brasileira de modo a tornar-se o Brasil área ocidental ou subeuropeia de cultura.

Quando os ocidentalistas eram também, como os industriais ingleses e os franceses da primeira metade do século XIX, fabricantes de artigos de casa, de vestuário, de gozo, de alimentação, de transporte, de recreação, ou importadores, como vários brasileiros da mesma época, desses artigos domésticos e civis, ao sentimento juntava-se o interesse: o interesse na absoluta ocidentalização da vida brasileira para que daqui desaparecesse a tradição de artigos orientais ou o gosto pelo seu uso. Donde a necessidade, enxergada com olhos quase de ingleses e franceses, por ocidentalistas brasileiros, de levantarem-se as novas gerações do seu País contra os “prejuisos dos avós” – caturras apegados a gelosias, a esteiras e a palanquins do Oriente; a sedas, a porcelanas, a perfumes e a leques da China; e até ao costume dos adultos, e não apenas dos pequenos, divertirem-se soltando fogos de vista orientais e empinando papagaios de papel de seda à maneira dos chineses. Costume – o de adultos empinarem papagaios, como forma de recreação nobre ou fidalga – que viria até quase nossos dias, devendo notar-se que foi empinando – já moço ilustre e até bacharel – baldes e gamelas, que Augusto Severo de Albuquerque Maranhão teve seu interesse particularmente voltado para o problema da navegação aérea, de que seria mártir, com a queda do balão Pax, em Paris. Seu companheiro de recreação oriental fora o seu primo, igualmente já adulto e grave, José Antônio Gonsalves de Melo que, na República, seria um dos mais severos “bispos” do Tesouro Nacional, do qual foi diretor.

Para os ocidentalistas, do que o Brasil necessitava era do que um deles, regozijado com a violenta destruição das gelosias nos sobrados no Rio de Janeiro, em 1809, chamava expressivamente de “desassombramento”.472 Desassombramento através do vidro inglês nas casas e nas carruagens ainda orientalmente revestidas de gelosias e cortinas: as casas de “grades de xadrez” que a Walsh recordaram as dos turcos.473 Desassombramento nas cidades, através de ruas largas como as do Ocidente que substituíssem os becos orientalmente estreitos do Rio de Janeiro, de Salvador, do Recife, de São Luís do Maranhão, de São Paulo, de Olinda, de todos os burgos antigos do país. Desassombramento nas igrejas, através da substituição, pelas senhoras, de capas, mantos, mantilhas ou xales orientalmente espessos, por transparentes véus franceses que não escondessem os encantos de rosto e de peito das iaiás. Desassombramento no rosto dos homens, por meio do corte, com as tesouras e as navalhas inglesas de que se encheram as lojas brasileiras na segunda metade do século XIX, dos excessos das barbas chamadas de “mouros”, de “turcos”, de “nazarenos” – barbas ao mesmo tempo orientais e ortodoxamente patriarcais, que seriam aos poucos substituídas por suíças, peras e cavaignacs burgueses ou semiburgueses. Desassombramento através de poderosos sistemas ocidentais de iluminação das ruas, das praças, das casas que substituíssem o azeite de peixe, a vela de sebo, a lanterna oriental de papel, a chamada “cabeça de alcatrão”, pelo lampião de querosene, pelo candeeiro inglês, ou belga, também de querosene, pelo bico de gás. Desassombramento nos costumes, nas maneiras, nos hábitos, nos gestos, nas relações entre homem e mulher e entre pai e filho.

Veremos mais adiante que “desassombrando-se” sob a influência de técnicas ocidentais de produção, de transporte, de urbanização, de iluminação, de pavimentação de estradas, de habitação, de conservação e preparação de alimentos, de recreação, de saneamento de ruas e de casas, o Brasil entrou em nova fase de vida moral e material. Mas sem que essa fase nova fosse marcada só por vantagens para a nossa gente e para a nossa cultura ainda em formação. Sob vários aspectos, o que havia já entre nós de imitado, assimilado ou adotado do Oriente representava uma já profunda e, às vezes, saudável adaptação do homem ao trópico, que aquele “desassombramento” rompeu ou interrompeu quase de repente.

Pois não se vence o trópico sem de algum modo ensombrá-lo à moda dos árabes ou dos orientais. Sem ruas estreitas. Sem xales, panos da Costa, guarda-sóis orientalmente vastos para as caminhadas sob o sol dos dias mais quentes. Sem sombras de grandes árvores asiáticas e africanas, como a mangueira, a jaqueira, a gameleira, em volta das casas, nas praças e à beira das estradas. Sem telha côncava nos edifícios. Sem largos beirais arrebitados nas pontas em cornos de lua. Sem casas de telhado acachapado no estilo dos pagodes da China. Sem varanda ou copiar, à moda indiana, ou dos bangalôs da Índia, nas habitações rústicas. Sem cortinas, sem rótulas ou sem gelosias nas casas ou sobrados de cidade. Sem esteiras dentro das casas, forrando o chão. Sem colchas da Índia nas camas dos ricos. Sem refrescos de tamarindo, de limão, de água de coco, nas horas de calor mais ardente. Sem muito azeite, muito cravo, muita pimenta, muito açafrão avermelhando a comida, avivando-a, requeimando-a para melhor despertar o paladar um tanto indolente das pessoas amolecidas pelo calor. E esses valores orientais, o Brasil assimilara-os através do português, do mouro, do judeu, do negro. O Brasil fizera-os valores seus. Ao findar o século XVIII eram valores brasileiros. Ligavam amorosamente o homem e a sua casa à América tropical. Não podiam deixar de afetar a mentalidade ou o espírito dos homens, certo como é que o hábito tende a fazer o monge: tanto o hábito-trajo como o hábito-costume.”

470 O padre Luiz Gonçalves dos Sanctos, em suas Memorias para servir á historia do reino do Brasil [...] Escriptas na Corte do Rio de Janeiro no anno de 1821 e offerecidas a S. Magestade elrei Nosso Senhor D. João VI, Lisboa, 1825, I, p. 137.

471 Em um almoço típico de gente média do campo de que participou em Itamaracá, Kidder notou que a mesa, presidiu-a “the Senhor, sitting à la Turque” (Daniel P. Kidder, Sketches of residence and travels in Brazil, Filadélfia, 1845, II, p. 163). O costume era ainda muito generalizado nas áreas rurais e, nas urbanas, limitado às senhoras ou às mulheres. Já Debret observara, no Rio de Janeiro, entre senhoras da classe alta, que, nas igrejas, sentavam-se à asiática (“à l’asiatique”), “usage” – acrescenta – “qu’on retrouve dans les réunions particulières des classes inférieures de la population, toujours assises par terre” (op. cit., II, p. 91). Asiatismo ou orientalismo deve ser também considerado o hábito de as mesmas senhoras não usarem em casa sapatos, mas conservarem-se descalças, quando sentadas à asiática no meio de suas mucamas, utilizando-se, para andarem dentro das salas, de “une paire de souliers fanés qui leur sert de pantoufles pour ne pas marcher pieds nus dans la maison” (ibid., p. 91).

472 Padre Luiz Gonçalves dos Sanctos, op. cit., II, p. 137.

473 R. Walsh, Notices of Brazil in 1828 and 1829, Londres, 1830, I, p. 86. Nas palavras do observador inglês: “The windows were barred up like those of the Turks, with lattices of cross-barred laths, which acarcely admitted the light, and throught which it was impossible to see or to be seen”.

 

 

“Os anúncios de jornal revelam, desde os primeiros dias em que começou a haver imprensa no Brasil até o terceiro decênio do século XIX, como persistiu na população, resistindo ao impacto da produção industrial europeia, o gosto pelos artigos orientais a cujo uso ou gozo o brasileiro se afeiçoara durante longo período de sua experiência colonial; e que correspondiam melhor que os europeus – produtos de uma civilização individualista, racionalista, secularista – ao seu sistema de vida e aos seus estilos de cultura impregnados, como os do Oriente, de familismo, de patriarcalismo e de religionismo ou misticismo. Os conteúdos ou as substâncias eram, por certo, diferentes e até antagônicos; mas as formas dos dois sistemas de vida – o oriental e o brasileiro – semelhantes. Donde terem persistido, do modo por que persistiram, as afinidades entre as duas áreas.”

 

 

Infiltrações mais sutis que as de paladar, de olfato, de gesto, de trajo, de formas de arquitetura, de moral e mesmo de estética, do Brasil pelo Oriente teriam substituição mais lenta por equivalentes ou contrários europeus. Ou substituição, durante longos anos, mais aparente do que real.

Oriental não fora só, no Brasil-Colônia e dos primeiros tempos do Império, o costume de homens e mulheres se sentarem de pernas cruzadas sobre tapetes, esteiras ou no chão – costume seguido pelas mulheres até nas festas de igreja. Fora, também, o de bater a pessoa palmas à porta das casas, para se anunciar,537 o costume ainda hoje muito brasileiro. Fora o gosto pelo chapéu de sol, não só para resguardar do sol o homem importante como para marcar-lhe a condição socialmente superior de pessoa fina. Fora o hábito das unhas crescidas, outra ostentação de importância social ou de condição senhoril nos homens e nas mulheres fidalgas ou parafidalgas. Fora o costume das sinhazinhas serem dadas em casamento ainda meninas a homens às vezes mais velhos que seus próprios pais. O hábito de não aparecerem as senhoras a estranhos. O de se revestirem de mantilhas ou de xales. O de armarem as senhoras o cabelo em penteados altos – de preferência ao uso europeu de chapéu – e o de adornarem as mucamas a cabeça com turbantes. O gosto pelas cores quentes, pelos perfumes fortes, pelas comidas avivadas por temperos também fortes.

Fora também oriental o rito de se reverenciarem, em solenidades oficiais, com zumbaias características do extremo respeito dos governados pelos governantes, quando não as pessoas, os retratos dos monarcas ou dos príncipes (prática que a protestantes mais severos pareceu tão repugnante quanto a do beija-mão nos palácios reais). Oriental o costume de se ajoelharem todos na rua à passagem da rainha ou de qualquer dos príncipes da Família Real, desde que a ilustre família se transferiu de Lisboa para o Rio de Janeiro; ou o da gente servil curvar-se diante da senhoril em gestos que se tornaram conhecidos entre nós por aquele nome indiano: zumbaias. Zumbaias também trocadas entre iguais na classe, na raça e na cultura regional.

Bien des Portugais sont Nègres par cet usage”, escreveu, referindo-se ao hábito de se ajoelharem as pessoas à passagem da rainha ou dos príncipes, o francês Arago,538 para quem só gente de raça inferior ou de classe servil, como a negra ou a africana, era capaz de se pôr humildemente de joelhos diante de príncipes. A verdade é que no Oriente quase inteiro – inclusive no mais civilizado – continuavam os príncipes, no século XIX, a despeito da Revolução Francesa e da “Época das Luzes”, a ser pessoas quase divinas para seus súditos, que diante deles se prostravam como os católicos do Ocidente diante não só do Santíssimo Sacramento como do Santo Padre; e desses costumes de tal modo se impregnara o português que só aos poucos a “grande Revolução” ou a “Época das Luzes” o afetaria nos seus modos semiorientais de reverenciar príncipes, pais e avós. “Não há país em que os filhos testemunhem maior respeito aos pais”, observou o mesmo Arago no Brasil. “Depois da refeição, sempre lhes beijam as mãos e nunca se sentam em sua presença, a menos que autorizados por um gesto ou olhar.”539 É claro que Arago referia-se aos países ocidentais do seu conhecimento; pois o Oriente encontraria ainda maiores demonstrações de respeito dos filhos aos pais – e não apenas dos súditos aos monarcas – do que as observadas no Brasil do tempo de D. João.”

537 Debret, op. cit., III, p. 147. Debret escreve: “L’usage des cordons de sonnettes, encore inconnu, laisse subsister l’ancienne coutume asiatique de frapper plusieurs dans les mains pour s’annoncer: signal auquel descend le nègre valet de chambre et qui se charge de vous conduire, et de vous reconduire au besoin”.

538 J. Arago, Promenade autour du monde, Paris, s. d., I, p. 115.

539 Ibid., I, p. 108.

 

 

Em Minas Gerais, viu Mawe damas vestidas com fazendas inglesas e uma “profusão de correntes de ouro em volta ao pescoço, sempre usadas quando as senhoras fazem ou recebem visitas”.566 Orientalismo do bom em combinação com o ocidentalismo dos vestidos. Notou também o inglês ser ainda raro entre as senhoras mineiras o hábito europeu das mulheres usarem chapéu. A não ser as velhas,567 nas quais tornou-se insígnia de idade e de classe senhoril, até o fim do século XIX, o uso de capotas, geralmente pretas. Enquanto as pobres ou de classe ou raça servil se cobriam com xales, panos da costa ou baetas. Nos dias de Mawe no Brasil as senhoras, mesmo vestidas à europeia, apresentavam-se sem chapéus, com o cabelo orientalmente adornado de pentes “frequentemente de ouro”. Ficaram elas espantadas de saber que as senhoras inglesas usavam chapéus.568

Esse orientalismo – o uso de grandes pentes no cabelo, em vez de chapéus – parece explicar por que só no meado do século XIX o chapéu para senhora, de fabrico inglês ou francês, se apoderou verdadeiramente do mercado brasileiro, fazendo declinar o uso dos grandes pentes de ouro, de marfim e de tartaruga da Índia ou de Moçambique, chamados “tapa-missas” ou “trepa-moleques”. Fazendo declinar também o uso das mantilhas, mantos e xales entre as senhoras da classe alta. Mantos e xales foram tornando-se insígnias de classe inferior, de raça negra ou de mulher da roça. Os adornos de rendas – rendas de ouro ou de veludo – das mantilhas ou dos mantos de mulher – que outrora distinguiam as classes ou subclasses – passaram assim a perder seus antigos significados, ao lado daquelas distinções de origem regional, dentro da procedência africana das mulheres servis, indicadas pelo modo de usarem seus xales ou seus panos da Costa que, antes do professor M. J. Herskovits na América do Norte, tentamos estudar no norte do Brasil com a colaboração do Sr. Cícero Dias como desenhista.569 (...)

Das nossas igrejas da época colonial sabe-se que mais de uma se embelezou com objetos vindos do Oriente, alguns dos quais podem ser vistos em museus como o de Arte Sacra de Salvador. Schaeffer, quando esteve no Brasil em 1849, admirou-se de ver num mosteiro do Rio de Janeiro, construído – diz ele – em 1671 – “a large China figure of our Saviour in the Cross” – numa capela que brilhava de cores orientais: “the walls with porcelain and China squares, relived by gilt and scarlet lines”.576 Em Sabará, em Minas Gerais, umas das igrejas por nós visitada em 1936 na companhia do historiador Afonso Arinos de Melo Franco, ostenta adornos orientais que dão ao interior do templo católico cores quase de pagode. De modo que é possível que a cristianização ou a catequização dos indígenas por meio da “pintura decorativa”, nas igrejas – pintura a que se refere o Sr. Luís Jardim, em sugestivo estudo sobre igrejas de Minas Gerais577 – tenha se feito, mais de uma vez, no Brasil, com o emprego de adornos ou decorações orientais. Buda e Islã parecem ter concorrido, no nosso País, para conduzir a Cristo ou a Roma indígenas fascinados por vermelhos, amarelos e azuis do Oriente.

Oriental – mouro, ao que parece – na origem mais remota dos seus requintes volutuosos parece que se deve considerar o hábito, que o Brasil herdou de Portugal, das senhoras, dos meninos e dos próprios senhores das casas-grandes e até dos sobrados deixarem catar o cabelo ou coçar a cabeça por mãos ou dedos de escravos que matavam, ou simulavam matar, piolhos, com pequenos trincos característicos: os cafunés. Pois na ausência de piolhos, regalavam-se ioiôs ou iaiás mais dengosas com trincos ou cafunés de mucamas, na cabeça e por entre o cabelo, isto é, com a catação simulada ou simbólica de piolhos pelas pontas das unhas finas das mulatas ou das negras. Às vezes era o contrário que se verificava: a iaiá branca catava a mucama ou o malungo. No seu Vocabulário pernambucano, Pereira da Costa recorda, a propósito desse tipo de cafuné, os versos populares:

“Eu adoro uma iaiá

Que quando está de maré

Me chama muito em segredo

Pra me dar seu cafuné

Não sei que jeito ela tem

No revolver dos dedinhos

Qu’eu fecho os olhos, suspiro

Quando sinto os estalinhos”.

“Se se acreditasse nas más línguas, algumas damas tinham razões mais poderosas para cultivar assiduamente o cafuné do que o desejo de uma doce superexcitação de nervos, seguido de um estado de prostração que chega ao êxtase”, escreveu Charles Expilly.578 Pormenoriza o europeu escandalizado com o costume brasileiro volutuosamente oriental: “À hora do grande calor [...] as senhoras recolhidas no interior dos aposentos deitam-se no colo da mucama favorita, entregando-lhe a cabeça. A mucama passa e repassa seus dedos indolentes na espessa cabeleira que se desenrola diante dela. Mexe em todos os sentidos naquela luxuriante meada de seda. Coça delicadamente a raiz dos cabelos, beliscando a pele com habilidade e fazendo ouvir, de tempos a tempos, um estalido seco entre a unha do polegar e a do dedo médio. Esta sensação torna-se uma fonte de prazer para o sensualismo das crioulas. Um volutuoso arrepio percorre os seus membros ao contato dos dedos acariciadores. Invadidas, vencidas pelo fluido que se espalha em todo o seu corpo, algumas sucumbem à deliciosa sensação e desfalecem de prazer sobre os joelhos da mucama”.579 De onde a interpretação psicanalítica do cafuné inteligentemente oferecida pelo professor Roger Bastide no seu Psicanálise do cafuné.580 Transcreve o professor Roger Bastide do cronista francês do meado do século XIX581 a informação de ter sido o hábito do cafuné também regalo dos senhores, embora principalmente das senhoras.

Ao que se deve acrescentar o regalo – este principalmente dos meninos das casas-grandes e dos sobrados – de terem os pés catados por bonitas mucamas, peritas na extração de bichos: extração quase sempre precedida de volutuosa comichão, a que os dedos das mulatas sabiam dar alívio, abrandando-a numa espécie de coceira pós-operatória. Era a extração de bicho-de-pé em menino ou menina, por mão macia de mucama de sobrado ou casa-grande, uma como catação de piolho nos pés. Volutuosa, também, como o cafuné. Em viagem, os próprios adultos tinham em áreas como a mineira os pés catados por peritos em extrair bichos: “at which operation they are very expert”,582 escreveu dos mineiros o inglês James Holman que, cego, parece ter tido olhos, e não apenas sensibilidade, nas pontas dos dedos dos pés: olhos para acompanharem as operações de extração de bichos, precedidas da lavagem dos pés em bacia ou alguidar, por mãos de escravo ou escrava. Ora, o lava-pés mais ou menos volutuoso pode ser incluído entre os orientalismos que caraterizam a vida patriarcal no Brasil. O lava-pés e a catação, real ou simbólica, de piolhos na cabeleira das mulheres ou no cabelo dos homens. Costumes de origem evidentemente oriental. O cafuné, parece que não só de origem oriental como, particularmente, moura. (...)

Evidentemente, um caso extremo de gordura oriental de iaiá a tornar ridículo o uso de artigos femininos inspirados nas formas ocidentais de mulher. Mas o fato é que o comum, no Brasil patriarcal, eram as senhoras gordas ou moles. Ou corpulentas, como as matronas que Luccock conheceu nos princípios do século XIX. Só as iaiazinhas eram de ordinário finas e franzinas.”

566 Travels in the interior of Brazil, 2ª ed., Londres, 1821, p. 218

567 Ibid., p. 219.

568 Ibid., p. 219.

569 Sobre o assunto apresentamos nota prévia ao 1º Congresso Afro-Brasileiro, reunido no Recife em 1934. Extraviaram-se a nota e as excelentes ilustrações, feitas pelo pintor Cícero Dias, dos diferentes modos por nós observados, de mulheres do povo de Pernambuco usarem, até época recente, xales ou mantas, de acordo com diferentes estilos dominantes nas áreas africanas de procedência de grupos cujas tradições se conservaram no Brasil.

576 L. M. Shaeffer, Sketches of travels in South America, Mexico and California, Nova York, 1860, p. 14-15.

577 Luís Jardim, “A pintura decorativa em algumas igrejas de Minas”, Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, 1939.

O historiador mineiro Augusto de Lima Júnior no seu estudo A capitania das Minas Gerais (Lisboa, 1940) recorda à página 78 que do Oriente vieram para Minas Gerais, na era colonial, “muitas reproduções em vulto, cortadas em ébano”, da Virgem de São Lucas, da qual se fizeram, no Brasil, cópias em jacarandá. Também em bens arrolados de padres ou bacharéis de Minas Gerais, daquela época, encontravam-se peças de louça da Índia, destacando o historiador mineiro à página 118 do seu ensaio: “... guarneciam as residências grande cópia de louças da Índia, assim denominadas as procedentes do Oriente...”. Explica-se assim que às igrejas tivessem também chegado peças decorativas do Oriente ou de estilo oriental, fabricadas no Reino.

578 Charles Expilly, Mulheres e costumes do Brasil (trad. de Gastão Penalva), São Paulo, 1940, p. 369.

579 Ibid., p. 366.

580 Psicanálise do cafuné e estudos de sociologia estética brasileira, Curitiba, 194l.

581 Ibid., p. 57.

582 James Holman, Travels in Madeira, Sierra Leone, Teneriffe, S. Jago, Cape Coast, Fernando Po, Princess Island etc., Londres, 1840, I, p. 487.