domingo, 21 de maio de 2023

A elite do atraso (Parte III), de Jessé Souza

Editora: Estação Brasil

ISBN: 978-85-5608-042-4-3

Opinião: ★★☆☆☆

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Páginas: 352

Sinopse: Ver Parte I



“As ideias dominantes para a reprodução do elitismo brasileiro, como a do patrimonialismo, que demoniza seletivamente o ocupante do Estado, e a do populismo, que demoniza as classes populares, não são apenas ensinadas nas escolas e nas universidades. Seu ensino nas universidades é importante, pois confere o prestígio do conhecimento científico, com seu apanágio de universalidade e neutralidade objetiva, a essas visões muito particulares da vida social e política. Armadas dessa consagração do campo científico, elas passam a ter ainda mais peso na formação de uma opinião pública manipulada ao se transformarem em motes usados como arma política pela grande imprensa.

Dependendo do caso específico, às vezes temos a corrupção apenas do Estado, o patrimonialismo como mote principal, ou o populismo, o velho medo da ascensão das classes populares. Mas os dois estão sempre presentes. Afinal, essa é sua função enquanto mecanismo que sempre pode ser ativado ao sabor das circunstâncias: sempre que a regra democrática ferir o mandonismo e o privatismo da elite do dinheiro, o dispositivo pode ser ativado, permitindo a captura da classe média moralista e a estigmatização das classes populares e suas demandas. A esfera pública comprada é o dado decisivo de todo o processo.”

 

 

“Traçando um paralelo com nosso passado escravista, a classe média é o capataz da elite do dinheiro, cuja tarefa é subjugar o restante da sociedade como um todo.

Obviamente, não é esse o modo como a classe média se vê. Todas as classes do privilégio tendem, necessariamente, a ver seu privilégio como inato ou merecido. Como diria Weber, os privilegiados não querem apenas exercer o privilégio, mas também que ele seja percebido como merecido, como um direito. Já as classes populares estão condenadas às armas frágeis dos dominados. Sua ação tende a ser reativa e construída contra os valores das classes dominantes sob o poder do discurso do inimigo. Assim, se o individualismo é o valor máximo das classes dominantes, nas classes populares a solidariedade e o espírito de grupo, por exemplo, tendem a ser mais importantes. Se a noção de sensibilidade tende a ser dominante nas classes superiores, a ética da virilidade tende a ser o seu contraponto perfeito nas classes populares.”

 

 

“Se essas são as frações de classe média cujas cabeças são feitas pela mídia tradicional e dominante, o processo não é unilateral. A mídia não cria para elas uma interpretação do mundo do nada. Trata-se muito mais de uma dialética de interdependência, em que a mídia aprende a se comunicar com sua classe de referência e seus consumidores mais leais, enquanto as frações tradicionais recebem dela o que precisam: um discurso homogêneo e totalizador que permita a defesa de suas opiniões, generalizado e compartilhado o suficiente para lhes dar as certezas de que tanto precisam. O conforto aqui é aquele que legitima a visão tradicional e afirmativa do mundo. A tranquilidade de se estar no caminho correto – correção esta que não é, por definição, uma descoberta pessoal e arriscada, mas, sim, aquela que é percebida como tal porque se tem a companhia da maioria.

Essas são também as frações do moralismo, ou seja, daquela noção de moralidade tão pouco arriscada e construtivista quanto sua forma de cognição do mundo. O que é justo e moral não é percebido como algo que se construa paulatinamente, à custa de experiências cotidianas desafiadoras, em um processo de aprendizado doloroso por meio do qual se reconhece, no melhor dos casos, nosso próprio envolvimento em tudo aquilo que criticamos da boca para fora. Esse tipo de aprendizado moral exige o incondicional reconhecimento de que o mal nos habita a todos e que só nos livramos dele – e ainda assim apenas parcialmente – sob o custo de uma vigilância eterna.

O moralismo é muito diferente. Ele pula todas as etapas arriscadas e incertas e abraça só o produto fácil, vendido a baixo custo pela mídia e pela indústria cultural construída para satisfazer esse tipo de consumidor: a boa consciência das certezas compartilhadas. É nesse terreno que o liberal se afasta do protofascista. Para o liberal, os rituais da convivência democrática são constitutivos, ainda que possa ser convencido das necessidades de exceções no contexto democrático.

O protofascista, que, na verdade, se espraia da classe média para setores significativos das classes populares, é bem diferente. O golpe lhe trouxe o mundo onde pode expressar legitimamente seu ódio e seu ressentimento. O ódio às classes populares é aqui aberto e proclamado com orgulho, como expressão de ousadia ou sinceridade. O protofascista se orgulha de não ser falso como os outros e poder dizer o que lhe vem à mente. O mal e o bem estão claramente definidos, e o bem se confunde com a própria personalidade.

Mais ainda. Como nunca aprendeu a se criticar, o protofascista tem uma sensibilidade à flor da pele e qualquer crítica aciona uma reação potencialmente violenta. Assim, qualquer crítica é percebida como negação da personalidade como um todo, pela ausência de qualquer distanciamento em relação a si mesmo, gerando uma violência também totalizadora. Essa banalidade do mal não existia antes entre nós. Ela foi criação midiática, ainda que ninguém na Rede Globo ou nas outras mídias, agora, queira assumir a responsabilidade pelo que fez.”

 

 

“Se Sérgio Buarque é o filósofo do liberalismo conservador brasileiro, ao construir o esquema de categorias teóricas nas quais ele pode ser pensado de modo pseudocrítico, Raymundo Faoro é seu historiador oficial. É Faoro, afinal, quem cria a narrativa histórica de longa duração desde o início do Estado português unitário e sua suposta transposição para o Brasil. Sua inegável erudição criou um efeito de convencimento que foi capaz de ganhar o coração não apenas dos leigos, mas também da imensa maioria dos intelectuais e homens de letras do Brasil contemporâneo. Devido à importância de sua visão, não superada até hoje, iremos reproduzir e criticar em detalhe seus argumentos, tentando, como sempre, ser claros o bastante para que qualquer um, mesmo sem ser treinado em ciências sociais, possa compreender.

A tese do livro de Faoro é clara desde o início: sua tarefa é demonstrar o caráter patrimonialista do Estado e, por extensão, de toda a sociedade brasileira. Esse caráter patrimonialista responderia, em última instância, pela substância intrinsecamente não democrática, particularista e baseada em privilégios que sempre teria marcado o exercício do poder político no Brasil. Ou seja, o conceito de patrimonialismo passa a ocupar o lugar que a noção de escravidão e das lutas de classe que se formam a partir dela deveria ocupar. A corrupção patrimonial substitui a análise das classes sociais e suas lutas por todos os recursos materiais e imateriais escassos. Faoro procura comprovar sua hipótese buscando raízes que se alongam até a formação do Estado português no remoto século XIV de nossa era. Um argumento central que perpassa todo o livro é o de que o Brasil herda a forma do exercício do poder político de Portugal. Como em Sérgio Buarque, a herança ibérica que supostamente fincaria fundas raízes na nossa sociedade passa a ser responsável por nossa relação exterior, e para inglês ver, com o processo de modernização capitalista.

O Brasil seria uma sociedade pré-moderna, pois reproduz a forma patrimonialista de exercício do poder que vigorava em Portugal, como procura demonstrar Faoro nas várias centenas de páginas de seu livro construídas para validar uma única tese política: a ação intrinsecamente demoníaca do Estado contraposta à ação intrinsecamente virtuosa do mercado. Essa é a ideia-força fundamental do liberalismo brasileiro por boas razões. Afinal, nas poucas vezes em que se verificou historicamente qualquer preocupação política com as demandas das classes populares, estas sempre partiram do Estado. É aqui que começa, portanto, o deslocamento da questão secularmente principal da sociedade brasileira, sua abissal desigualdade e a atmosfera de conflito abafado/generalizado que ela produz, como a nossa mais importante peculiaridade social, em nome do falso conflito mercado/Estado. Esse conflito é falso por vários motivos que aprofundaremos adiante. (...)

Seu argumento é teleológico, ou seja, antecipa um fim estranho à argumentação que coloniza e subordina todos os argumentos utilizados. Isso acontece na medida em que ele, a partir de sua primeira intuição influenciada pela leitura de Joaquim Nabuco acerca da influência da elite de funcionários letrados no Brasil da segunda metade do século XIX, alonga essa influência retrospectivamente a um período de quase oito séculos.96 Nesse caminho, o leitor atento percebe muitas vezes a camisa de força que significa a transposição para as situações históricas as mais variadas de uma ideia que deixa, ao limite, de ser uma categoria histórica e assume a forma de uma maldição, uma entidade demiúrgica que tudo explica e assimila.

É isso que irá explicar de que modo a categoria a-histórica de estamento patrimonial que o autor constrói pode transmutar-se, quase imperceptivelmente, na noção pura e simples de Estado interventor. Toda a argumentação do livro se baseia nessa transfiguração: sempre que temos Estado, temos um estamento que o controla em nome de interesses próprios impedindo o florescimento de uma sociedade civil livre e empreendedora.

Apesar da narrativa elegante e erudita, literalmente todos os pressupostos, tanto os históricos quanto os sociológicos, da análise de Faoro são falsos. Eles repetem também, passo a passo, a síndrome conceitual do liberalismo conservador cuja fragilidade conceitual e histórica é clara como a luz do Sol de meio-dia: o Brasil não herda de Portugal sua estrutura social, mas sim da escravidão, que não existia em Portugal. O patrimonialismo ou a existência de um Estado forte não se contrapõem ao desenvolvimento capitalista, como mostra o exemplo dos Estados Unidos, o qual desde meados do século XIX deve sua expansão territorial e econômica não só ao poderio militar estatal, mas também à intervenção do Estado na construção de ferrovias e de universidades em todo o país para impulsionar o desenvolvimento tecnológico e produtivo. É a partir dessa época de forte intervenção estatal, inclusive com protecionismo e tarifas alfandegárias que vigoraram até a Segunda Guerra Mundial, que os Estados Unidos se tornam potência mundial, como aliás todos os exemplos históricos concretos antes e depois dele. Não existe nenhum exemplo histórico de desenvolvimento de um mercado capitalista dinâmico sem que o Estado tenha sido o apoio e esteio principal.

Frágil e absurda como essa ideia é, ela continua a ser a ideia-força principal do liberalismo conservador brasileiro que permanece viva no imaginário social cotidiano de todos nós. Episódios como os escândalos de corrupção no Estado – todos, sem exceção, estimulados por interesses de mercado –, na sua subjetivação e novelização infantilizada dos aspectos políticos, que passam longe de qualquer discussão racional dos conflitos sociais e políticos verdadeiramente em jogo, aludem à tese do patrimonialismo. É essa tese superficial e sem qualquer fundamento conceitual sério que serve de contraponto para a pobreza do debate público político entre nós.”

96 Entrevista ao jornalista Marcelo Coelho para a Folha de S.Paulo, Suplemento MAIS, de 14 de maio de 2000.

 

 

“No caso brasileiro, só em meados do século XX se constitui uma verdadeira burocracia com os meios para a atuação em todo o território nacional, mas já num contexto de desenvolvimento capitalista intenso e rápido. O caso brasileiro era, portanto, muito diferente sob todos os aspectos do chinês. Primeiro, jamais existiu no período colonial brasileiro qualquer coisa semelhante ao estamento burocrático chinês. A colonização do país foi deixada nas mãos de particulares que eram verdadeiros soberanos nas suas terras, onde o Estado português conseguia impor sua vontade apenas de modo muito tênue. A ênfase de Faoro em uma dominação remota de Portugal no Brasil, que atravessava praias e sertões com seus olhos de big brother, tudo vendo e controlando, equivale a uma quimera. Portugal era um país pequeno e pouco populoso, e sua estratégia de delegar a particulares a colonização das novas terras era um imperativo de sobrevivência. Aqui como em outros lugares, a fantasia histórica serve apenas para corroborar uma tese política, no caso liberal e conservadora, sem qualquer fundamento na realidade.

Além disso, entre 1930 e 1980, o Brasil foi um dos países de maior crescimento econômico no mundo, logrando construir um parque industrial significativo sem paralelo na América Latina. Como se pode exibir tamanho dinamismo econômico em um contexto como o do patrimonialismo, que pressuporia indiferenciação da esfera econômica e, portanto, a ausência de pressupostos indispensáveis, e ausência de estímulos duradouros de toda espécie à atividade econômica? Essa questão por si só seria um desafio intransponível para os defensores do patrimonialismo brasileiro. Mas ela nunca é levantada. Daí essa noção valer até hoje como pressuposto central e nunca explicitado de como funciona a realidade brasileira. Para seus defensores atuais, ela seria tão óbvia que dispensaria explicitação.108

Na sociologia brasileira, portanto, o conceito de patrimonialismo perde qualquer contextualização histórica, fundamental no seu uso por Max Weber, e passa a designar uma espécie de mal de origem da atuação do Estado enquanto tal em qualquer período histórico. Em Faoro,109 que fez dessa noção, como vimos, seu mote investigativo com extraordinário impacto e influência até hoje – para a maioria dos intelectuais e jornalistas brasileiros, ela é um pressuposto implícito e fundamental –, a noção de patrimonialismo carece de qualquer precisão histórica e conceitual. Na visão dele, o “patrimonialismo brasileiro” viria desde o Portugal medieval, confundindo épocas históricas com fundamentos sociais muito distintos.

Como vimos, na Idade média não havia sequer a noção de soberania popular e, portanto, não existia sequer a ideia de “bem público” no sentido moderno. A ideia de “propriedade pública” só existe em um contexto histórico que contempla também a ideia de que todo poder deriva do povo. E esta ideia só se consolida na Revolução Francesa, de 1789. Só a partir dessa época é que um particular pode ser “corrupto”, no sentido moderno do termo, ao se apropriar privadamente de algo que pertence ao público. Assim, se não havia sequer a ideia da separação entre bem privado (do rei) e bem público, o rei e seus prepostos não podiam roubar o que já era deles de direito. A ideia básica do “culturalismo vira-lata” brasileiro, de que herdamos de Portugal a desonestidade nos negócios públicos, é, portanto, ridícula, para se dizer o mínimo.

Em segundo lugar, no âmbito de suas generalizações sociológicas, o patrimonialismo acaba se transformando, de forma implícita, em um equivalente funcional para a estigmatização da mera intervenção estatal. No decorrer do livro de Faoro, o conceito de patrimonialismo perde crescentemente qualquer vínculo concreto, passando a ser substituto da mera noção de intervenção do Estado, seja quando este é furiosamente tributário e dilapidador, por ocasião da exploração das minas no século XVIII, seja quando é benignamente interventor, como quando D. João cria, no início do século XIX, as precondições para o desenvolvimento do comércio e da economia monetária, quadruplicando a receita estatal e introduzindo inúmeras melhorias públicas.

A imprecisão contamina até a noção central de estamento, uma suposta elite incrustada no Estado, que seria o suporte social do patrimonialismo. O tal estamento é composto, afinal, por quem? Pelos juízes? Pelo presidente? Pelos burocratas? O que dizer do empresariado brasileiro, que foi, no nosso caso, o principal beneficiário do processo de industrialização brasileiro financiado pelo Estado interventor desde Vargas? Ele também é parte do estamento estatal? Deveria ser, pois econômica e socialmente foi ele que mais ganhou com o suposto Estado patrimonial brasileiro. Como fica, em vista disso, a falsa oposição entre mercado idealizado e Estado corrupto?

A aplicação da noção de patrimonialismo ao caso brasileiro é, portanto, uma óbvia fraude conceitual, destinada a usar o prestígio científico de um dos mais importantes pensadores de todos os tempos para legitimar uma ideia extremamente conservadora e frágil conceitualmente e lhe dar uma aparência de rigor científico e de crítica social. O nosso liberalismo, falso e conservador como sempre foi, consegue com esse contrabando conceitual passar-se por interpretação inovadora e erudita. Na verdade, a noção de patrimonialismo aplicada à realidade brasileira não vale um tostão furado.

Aliás, a noção de patrimonialismo passa a ser fundamental exatamente por sua imprecisão conceitual. Ela está no lugar da noção de escravidão e serve para tornar invisíveis as relações sociais de humilhação e subordinação criadas nesse contexto. Além disso, tenta criar uma aparência de crítica social, um charminho crítico falso, ao apontar o dedo moralizador contra uma falsa elite, na verdade mero instrumento dos proprietários que têm o verdadeiro poder. Uma falsa elite que existe apenas para tornar invisível a atuação da elite real que comanda o mercado da rapina e do saque social. A elite do patrimonialismo, que ninguém define, é uma elite falsa, posto que comprada pela elite econômica que permanece invisível na análise, mostrando seu potencial mistificador.

Não é que Faoro e os outros liberais não falem de escravidão. Eles falam, sim. Muito se fala sobre a escravidão, mas pouco se “reflete” a respeito dela. Fala-se na escravidão como se fosse um nome, e não um conceito científico que cria relações sociais muito específicas. Muitas de nossas características foram atribuídas à dita herança portuguesa, mas não havia escravidão em Portugal. Somos, nós brasileiros, portanto, filhos de um ambiente escravocrata, que cria um tipo de família específico, uma justiça específica, uma economia específica. Aqui valia tomar a terra dos outros à força para acumular capital, como acontece até hoje, e condenar os mais frágeis ao abandono e à humilhação cotidiana. Isso é herança escravocrata, não portuguesa. O patrimonialismo, percebido como herança portuguesa, substitui a escravidão como núcleo explicativo de nossa formação. Essa é sua função real. Por conta disso, até hoje, reproduzimos padrões de sociabilidade escravagistas como exclusão social massiva, violência indiscriminada contra os pobres, chacinas contra pobres indefesos que são comemoradas pela população, etc.

Mas isso ainda não é o pior. O patrimonialismo esconde as reais bases do poder social entre nós. Ele assume que interesse privado é interesse individual privado, de pessoas concretas, as quais se contraporiam aos interesses organizados apenas do Estado. Tudo como se houvesse interesses organizados apenas no Estado, suprema estratégia de distorção da realidade. É uma noção de senso comum do leigo, que não percebe os interesses privados organizados no mercado e sua força, que implica o controle de preços, da imprensa, da formação de monopólios privados e da captura do Estado para o interesse de meia dúzia de grandes plutocratas. É para esconder essa realidade que o conceito de patrimonialismo e de corrupção apenas do Estado como causa de todas as nossas mazelas existe. Daí decorre a noção absurda, mas tida como verdade acima de qualquer suspeita entre nós: a noção de que a elite poderosa está no Estado, com isso invisibilizando a ação da elite real, que está no mercado, tanto nos oligopólios quanto na intermediação financeira.

Se compararmos nosso capitalismo com o narcotráfico, o político corrupto é o aviãozinho do tráfico, que fica com as sobras; a boca de fumo que faz o dinheiro grande é o mercado da rapina selvagem que temos aqui. O conceito de patrimonialismo serve, precisamente, para encobrir os interesses organizados no mercado, que funcionam para se apropriar da riqueza social, já que a noção de privado é absurdamente pessoalizada, permitindo todo tipo de manipulação. A real função da noção de patrimonialismo é fazer o povo de tolo e manter a dominação mais tosca e abusiva de um mercado desregulado completamente invisível.”

108 LAMOUNIER, Bolivar; SOUZA, Amaury de. A classe média brasileira. Rio de Janeiro: Campus, 2009. Ver também o best-seller ALMEIDA, Alberto Carlos de. A cabeça do brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2007.

109 FAORO, Raymundo. Os donos do poder.

 

 

“O lócus onde esse acordo entre desiguais se consuma é uma esfera pública para inglês ver, colonizada pelo dinheiro e sem qualquer pluralidade de opiniões que permita a construção de sujeitos autônomos e com opinião própria. Contra a classe média, portanto, a violência da elite de proprietários que controla não só a produção material, mas também a produção intelectual e a informação, é uma violência simbólica. Um tipo de violência não percebido enquanto tal, posto que se vende como se fosse convencimento real.

O mecanismo principal desse tipo de dominação é uma imprensa desregulada e venal, que vende uma informação e uma interpretação da vida social enviesada pelos interesses do pacto antipopular. Isso acontece tanto porque é dependente de seus anunciantes quanto porque participa, ela própria, do mesmo esquema elitista dominante do saque e da rapina do trabalho coletivo. Como não houve aqui a criação do mecanismo da TV pública, que não se confunde com TV estatal, em uma sociedade com pouca leitura e pouca reflexão, a dominação simbólica mais violenta encontrou terreno fértil para se desenvolver.

A história da sociedade brasileira contemporânea não pode ser compreendida sem que analisemos a função da mídia e da imprensa conservadora. É a grande mídia que irá assumir a função dos antigos exércitos de cangaceiros, que é assegurar e aprofundar a dominação da elite dos proprietários sobre o restante da população. A grilagem agora não assumirá mais apenas a forma de roubo violento da terra dos posseiros pobres, mas também a forma da colonização das consciências com o fito de possibilitar, no entanto, a mesma expropriação pela elite. Substitui-se a violência física, como elemento principal da dominação social, pela violência simbólica, mais sutil, mas não menos cruel.

Nos últimos cinquenta anos, nenhum grupo empresarial midiático foi mais bem-sucedido nem se esmerou tanto na tarefa de distorcer sistematicamente a realidade brasileira, em nome de interesses inconfessáveis, quanto a Rede Globo. Não que ela esteja sozinha ou seja muito pior que o resto da grande imprensa. Não, toda a grande imprensa se irmana no ataque à democracia e à soberania popular. Recentemente, a Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo, apenas para citar dois exemplos entre milhares possíveis, mostraram a mesma foto de capa depois das manifestações no dia 24 de maio de 2016, em Brasília, contra o governo Temer, em que um vândalo ataca com pedras um prédio público.

Para quem viu, como eu, a manifestação inteira por filme – que deixava claro o ataque e a provocação policial com cavalaria e com bombas de efeito moral sobre os manifestantes até então pacíficos –, a violência simbólica, a mentira consciente e a fraude do público eram estarrecedoras. Uma imprensa em conluio com uma repressão antidemocrática e abusiva, em nome da distorção sistemática da informação, não é privilégio da Globo. A revista Veja, por exemplo, se esmera em matérias cuja finalidade é produzir ódio e informação enviesada e distorcida para seu público da fração protofascista da classe média. Mas a Globo levou a fraude e a distorção sistemática da realidade a níveis de ficção científica.”

 

 

“A Globo é a roupagem perfeita para um capitalismo selvagem e predatório que chama a si mesmo de emancipador e protetor dos fracos e oprimidos. A glorificação do oprimido não ajuda em nada na melhoria do cotidiano cruel e opressivo dos pobres, mas emula a necessidade de legitimação da vida que se leva quando as possibilidades de mudanças efetivas estão interditadas. O mais cruel é que as possibilidades de redenção real são tanto mais impossíveis quanto maior a influência dessa mensagem mistificadora produzida pela emissora. Como no golpe de 2016, a emissora ajudou a impedir a continuidade de um processo de ascensão social dos pobres que era real. O processo de manipulação social caminha sempre no sentido de extrair a riqueza de todos e concentrar o poder nas mãos de poucos – inclusive da família que manda na empresa –, dando a impressão de que se é defensor dos melhores valores da igualdade e da justiça. Mesmo toda a fraude golpista da moralidade seletiva é construída como se a TV fosse mero veículo neutro de informação.”

 

 

“É claro que as empresas arriscam seu capital de confiança nesse jogo, acreditando que podem fazer seu público de tolo o tempo todo. Um cálculo arriscado, mesmo se levarmos em conta a ausência de padrão de comparação do público brasileiro acostumado a ser usado como massa de manobra sem nunca ter tido acesso a uma mídia plural. A distorção sistemática da realidade nos últimos anos superou qualquer coisa que tenhamos testemunhado antes. A possibilidade de se perceber que as próprias empresas de comunicação fazem parte do jogo da elite do atraso na manutenção dos privilégios de uma meia dúzia em desfavor da população como um todo se torna, hoje, mais que nunca, um risco real.

Repare o leitor que jamais se reflete acerca de um sistema político construído para ser corrupto, ou seja, construído para ser comprado pela elite do atraso para manter seus privilégios econômicos. O ataque midiático é feito para parecer que a corrupção é obra de pessoas privadas ou partidos específicos. (...)

O crescente apoio popular à Ditadura, assim como também as formas não democráticas de sociabilidade e de ódio aberto que se instauraram no Brasil desde então, tem nessa fraude midiática gigantesca seu início. É que o ataque não se limitou à democracia. A Globo como que concentra o ódio secular e escravocrata ao povo e passa a expressar o pacto elitista e antipopular em ato. A perseguição seletiva e sem tréguas ao PT e aos movimentos sociais que o apoiam equivale a um ataque ao princípio mesmo da igualdade social como valor fundamental das democracias ocidentais. É que a luta contra a desigualdade do PT e de Lula foi tornada, pela propaganda televisiva, mero instrumento para a corrupção no Estado.

Como o PT foi o motor da ascensão social dos miseráveis e pobres em geral, atacá-lo como corrupto e como organização criminosa – sendo acompanhada pelos próprios agentes do Estado envolvidos na operação Lava Jato – equivale a tornar suspeita a própria demanda por igualdade. É a igualdade que é tornada meio para um fim, no caso a suposta corrupção, o que implica retirar sua validade como valor, ou seja, como um fim em si. A Globo e a grande mídia – e sua aliada, a operação Lava Jato – não só contribuíram para o mais massivo ataque à democracia e ao direito brasileiro de que se tem notícia, como atacaram também, em uma das sociedades mais desiguais e perversas do planeta, a igualdade social como princípio, ao torná-lo suspeito e mero instrumento para outros fins.

Depois, quando o ódio passa a grassar no país e figuras que representam o elogio à tortura e à violência mais grotesca, como Jair Bolsonaro e seu fascismo aberto, passam a representar ameaças reais à democracia e aos direitos humanos mais elementares, a Globo e a grande mídia agem como se não tivessem nenhuma responsabilidade. Escondem o fascismo que praticam diariamente e criticam o resultado que produzem sem assumir a menor responsabilidade pelo que fazem. A Globo e a operação Lava Jato, no entanto, são os agentes principais dessa verdadeira regressão civilizacional que sacode o país deixado em frangalhos, econômica, política e moralmente, por sua ação combinada. Para sua audiência imbecilizada, no entanto – assim como a Globo critica Bolsonaro da boca para fora –, passa despercebida sua ação a favor dos valores antidemocráticos, o que, na realidade, cria o campo de ação para os Bolsonaros da vida.

O resultado, que é o que importa na vida, é que a cruzada contra a corrupção dos sócios da Globo, da grande mídia e da Lava Jato, que seria uma piada ridícula e digna de riso e escracho se não fosse trágica, feriu de morte nosso jovem experimento democrático e ainda criminalizou e estigmatizou a bandeira da igualdade social. Nada mais vivificador do nosso ódio secular aos pobres do que isso. Existe algo mais fiel à nossa tradição escravocrata que isso? Tudo produzido agora simbolicamente, como se quisesse o bem dos necessitados, dourando a pílula por fora, que contém, no entanto, o mesmo conteúdo venenoso de sempre.

E não é apenas a participação da grande mídia nos esquemas da elite do atraso e do saque que não interessa aos paladinos da justiça entre nós, como vimos. O assalto à sociedade fraudada e enganada pode ser ainda muito pior. A grande mídia coloniza para fins de negócios, escusos ou não, toda a capacidade de reflexão de um povo, ao impossibilitar o próprio aprendizado democrático que exige opiniões alternativas e conflitantes, coisa que ninguém nunca viu acontecer em época alguma em nenhum de seus programas. Isso equivale a imbecilizar uma nação que certamente não nasceu imbecil, mas foi tornada imbecil para os fins comerciais de uma única família que representa e expressa o pior de nossa elite do saque e da rapina.

O que se perde aqui, como vimos em detalhe neste livro, é simplesmente o recurso mais valioso de uma sociedade, que é sua capacidade de aprender e de refletir com base em informações isentas. Distorcer sistematicamente a realidade social, mentir e fraudar uma população indefesa é, por conta disso, fazer um mal incomparavelmente maior que surrupiar qualquer quantia financeira. É que o mal aqui produzido é literalmente impagável. O que se frustra aqui são os sonhos, os aprendizados coletivos e as esperanças de centenas de milhões. O que se impede aqui é o processo histórico de aprendizado possível de todo um povo, que é abortado por uma empresa que age como um partido político inescrupuloso. Isso apenas para que fique registrada a noção de mal maior em uma sociedade que tende a perder qualquer critério de aferição e de comparação de grandezas morais.”

 

 

“O espantalho da criminalização da política só serve para que os donos do mercado deleguem a política ao que há de pior e mais mesquinho do baixo clero político. Já o espantalho da criminalização da esquerda e do princípio da igualdade social só serve para que a justa raiva e o ressentimento da população, que sofre sem entender os reais motivos do sofrimento, percam sua expressão política e racional possível. Foi assim que a mídia irresponsável possibilitou e pavimentou o caminho para a violência fascista do ódio cego dos Bolsonaros da vida. O ódio fomentado todos os dias contra o PT e Lula produziu, inevitavelmente, Bolsonaro e sua violência em estado puro, agressividade burra e covarde. Agora, uma população pobre e à mercê de demagogos religiosos está minando as poucas bases civilizadas que ainda restam à sociedade brasileira. Essa dívida tem que ser cobrada da mídia que cometeu esse crime.”

 

 

“Ainda que o candidato com pregação fascista não tenha sido o preferencial da elite do atraso – o conjunto dos proprietários sob comando do rentismo internacional –, o fracasso dos seus candidatos “oficiais”, como Geraldo Alckmin, por exemplo, jogou toda a elite nos braços de Bolsonaro. Afinal, o fascismo sempre foi o “plano B” dos proprietários que só pensam no próprio bolso em todos os casos históricos relevantes. Mesmo que a alternativa fosse uma simples socialdemocracia leve e superficial como a incorporada pelo Partido dos Trabalhadores. (...)

A verdadeira elite brasileira, que é a do dinheiro, que manda no mercado e que “compra” as outras elites que lhes são subalternas, criou o bode expiatório da corrupção só da política, como vimos anteriormente, para desviar a atenção de sua corrupção disfarçada de legalidade. Toda a sociedade tomou doses diárias desse veneno destilado pela mídia, pelas escolas e pela universidade e viu, imbecilizada, como não podia deixar de ser, uma meia dúzia de estrangeiros e seus capangas brasileiros tomarem seu petróleo, sua água, suas terras, seus recursos. Em nome da moralidade, do combate à corrupção e pelo suposto “bem do povo brasileiro”, roubaram tudo o que puderam e nos deixaram muito mais pobres.”

 

 

“Todo fascismo é, portanto, reflexo de uma luta de classes truncada, percebida de modo distorcido e, por conta disso, violento e irracional no seu cerne. Na sua base está a manipulação de emoções que geram agressividade, como medo, raiva, ressentimento e ansiedade sem direção, sempre com fins de manipulação política. A incompreensão racional, por parte da população, de processos políticos complexos é utilizada para a construção de bodes expiatórios, um modo historicamente eficiente de canalizar frustração e ressentimentos sociais. A marginalização de grupos minoritários e a violência aberta e disseminada, contaminando a sociedade como um todo, são as consequências inevitáveis de todo fascismo. (...)

O contexto geral do neofascismo contemporâneo parece resultar do processo de desenraizamento político e social dos indivíduos provocado, na esfera política, pelas mudanças do capitalismo financeiro, hoje dominante. Por meio de uma política consciente que destruiu ou enfraqueceu sindicatos, partidos e a capacidade associativa em geral – muito especialmente das classes populares –, o capitalismo financeiro cria o isolamento individual como marca da sociedade contemporânea. Isolado, o indivíduo não apenas pode ser explorado, trabalhar mais ganhando menos, sem direitos trabalhistas. Acreditando-se “empresário de si mesmo”, ele é deixado politicamente sem defesa. Pior ainda, é também cada vez mais dominado pela propaganda neoliberal que diz que as vítimas do desemprego e do subemprego precário, produzidas por um sistema econômico concentrador e improdutivo, são, elas próprias, as culpadas pelo próprio infortúnio. Esse indivíduo isolado e indefeso é assolado por uma agressividade que não compreende e, desse modo, ele ou dirige contra si próprio a raiva que sente por sua própria pobreza e privação ou a canaliza contra bodes expiatórios construídos para este fim. O caso brasileiro é paradigmático neste sentido. Uma multidão de desempregados e subempregados empobrecidos ao longo de anos de política em favor do rentismo nacional e internacional passa a ter a opção de dirigir sua raiva e seu ressentimento contra si mesma – quando não se entrega, como é comum, ao alcoolismo e à depressão – ou contra bodes expiatórios socialmente aceitáveis.”

A elite do atraso (Parte II), de Jessé Souza

Editora: Estação Brasil

ISBN: 978-85-5608-042-4-3

Opinião: ★★☆☆☆

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Páginas: 352

Sinopse: Ver Parte I



“O material de entrevistas sobre a classe média nos mostra que seus filhos, desde muito novos, são estimulados a se dedicar à educação. O hábito de leitura dos pais, o estímulo à fantasia por meio de livros, jogos e contação de histórias, a familiaridade com línguas estrangeiras despertada desde cedo, tudo milita a favor da incorporação pré-reflexiva de uma atitude que valoriza pressupostos do capital cultural. Esses estímulos são pré-escolares, mas, como nos tornamos humanos imitando quem amamos – os pais ou quem os represente –, são essas pessoas que irão forjar o sucesso escolar da classe média, assim como, mais tarde, seu sucesso profissional no mercado de trabalho. Depois, como o sucesso escolar foi, quase sempre, decisivo para os pais, todo o estímulo da contrapartida amorosa exigida dos filhos é direcionado ao sucesso escolar, ao aprendizado de línguas estrangeiras e à leitura.

A criança de classe média, afinal, chega na escola conseguindo se concentrar porque já havia recebido estímulos para direcionar sua atenção ao estudo e à leitura antes, por incentivo familiar. Como a família também compra o tempo livre dos filhos para que possam se dedicar integralmente à escola, a pré-história do vencedor predestinado ao sucesso se completa. Todas as vantagens culturais e econômicas se juntam, mais tarde, para a produção, desde o berço, de um campeão na competição social.

Na família dos excluídos, tudo milita em sentido contrário. Mesmo quando a família é constituída por pai e a mãe juntos, o que é minoria nas famílias pobres, e os pais insistem na via escolar como saída da pobreza, esse estímulo é ambíguo. A criança percebe que a escola pouco fez para mudar o destino de seus pais, por que iria ajudar a mudar o seu? Afinal, o exemplo, e não a palavra dita da boca para fora, é o ponto decisivo no aprendizado infantil. A brincadeira de um filho de servente de pedreiro é com o carrinho de mão do pai. O aprendizado afetivo aqui aponta para a formação de um trabalhador manual e desqualificado mais tarde.

Como os estímulos à leitura e à imaginação são menores, os pobres possuem quase sempre enormes dificuldades de se concentrar na escola. Muitos relatam em entrevistas que fitavam o quadro-negro por horas sem conseguir aprender o conteúdo. A capacidade de concentração não é, portanto, um dado natural, como ter dois ouvidos e uma boca, mas uma habilidade e disposição para o comportamento aprendida apenas quando adequadamente estimulada. Quem a recebe de berço passa a contar com um precioso privilégio na luta social mais tarde. É assim que se formam os privilégios típicos de classe média para que seu monopólio sobre o conhecimento valorizado seja mantido ao longo de gerações. Para o filho já adulto, com emprego bem pago e prestígio social, tudo é percebido como se fosse o milagre do mérito individual.

Outra habilidade ou disposição para o comportamento fundamental é o pensamento prospectivo, ou seja, a percepção do futuro como mais importante que o presente. É com base nessa predisposição, tão pouco natural quanto a capacidade de se concentrar, que aceitamos renunciar ao prazer presente em nome de um prêmio futuro. Por conta disso, associados ao pensamento prospectivo estão sempre a disposição à disciplina e ao autocontrole. Ambos são exigidos para que exista pensamento prospectivo. Sem pensamento prospectivo não se planeja a vida. E se uma vida cuidadosamente planejada e antecipada já é difícil, imagine-se uma sem qualquer planejamento consciente. Juntas, portanto, essas predisposições – todas fruto de aprendizado silencioso e invisível na família – formam o que poderíamos chamar de condução racional da vida, dado que ensejam a incorporação de uma instância de cálculo pragmático para a construção do futuro mais bem-sucedido possível.

Na classe média, esse aprendizado também é exemplar, e não da boca para fora. Desde o berço estimula-se o aprendizado de um cálculo prático da vida que sopesa tudo de acordo com o melhor resultado futuro possível. Com o tempo, essa instância se torna independente dos conselhos dos pais e passa a operar como algo natural e automático para os indivíduos. Como o processo familiar que forma as pessoas é esquecido na vida adulta, também a produção desses tipos de privilégios parece algo natural e inato aos indivíduos que os detêm. Se na elite dos endinheirados o capital econômico tem que parecer inato e, portanto, merecido, na classe média, a aquisição de conhecimento valorizado e das predisposições que permitem sua incorporação pelo sujeito tem que parecer também inata, sendo, portanto, também percebida como merecida e justa.

Nas nossas classes abandonadas, a produção desde o berço, ao contrário das classes do privilégio, é da inadaptação à competição social em todos os níveis. Primeiro, a herança vem de longe. Essa classe descende dos escravos “libertos” sem qualquer ajuda e se junta a uma minoria de mestiços e pobres brancos também com histórico de abandono. Embora a dominação agora seja de classe e não de raça, a raça e o odioso e covarde preconceito racial continuam contando de um modo muito importante. A nossa “ralé” atual, de todas as cores de pele, é formada pelo inadaptado à competição social que herdou todo o ódio e desprezo que se devotava antes ao negro.

A escravidão, como vimos, dificultava a formação de famílias negras e combatia qualquer forma de independência e autonomia do escravo. Não é por acaso, portanto, que nossos pobres tenham famílias monoparentais e dificuldades para desenvolver um padrão que reproduza a contento os papéis de filho, pai e irmão presentes em toda família da classe média. A enorme estigmatização do preconceito escravocrata, que no nosso caso foi amplo e contava com o apoio de todas as classes acima dos abandonados, tende a se introjetar na própria vítima. Aos escravos e seus descendentes foram deixados o achaque, o deboche cotidiano, a piada suja, a provocação tolerada e incentivada por todos, as agressões e até os assassinatos impunes.

Em um contexto social de tamanha violência que segue sem qualquer mudança expressiva até hoje, não é possível, salvo raras exceções, a construção de seres humanos com autoestima e autoconfiança. Sem autoestima e autoconfiança, não se pode passar para os filhos os incentivos que a classe média possui e reproduz desde o berço. O ciclo aqui não é virtuoso; é vicioso e satânico. Quem é visto como lixo e só recebe ódio e desprezo tende a reproduzir no próprio ambiente familiar o mesmo contexto, atingindo os mais frágeis na família. Daí a naturalização do abuso sexual e do abuso instrumental dos mais frágeis pelos mais fortes. Florestan Fernandes já o havia detectado em sua pesquisa pioneira e nós comprovamos os mesmos efeitos dessa condenação perpétua em nossa pesquisa empírica realizada quase um século depois.64

À pobreza econômica foi acrescentada a pobreza em todas as outras dimensões da vida. Se a pobreza econômica, por exemplo, implica foco no aqui e no agora por conta das urgências da sobrevivência imediata, toda a atenção se concentra necessariamente no presente e nunca no futuro, posto que é incerto. Por outro lado, olhar para o futuro é o que constrói o indivíduo racional moderno, que sopesa suas chances e calcula constantemente onde deve investir seu tempo e suas habilidades. A prisão no aqui e no agora tende a reproduzir no tempo, portanto, a carência do hoje, e não a saída para um futuro melhor.

São produzidos, nesse contexto, seres humanos com carências cognitivas, afetivas e morais, advindo daí sua inaptidão para a competição social. O berço dessas classes não é o apoio incondicional de pais amorosos, como é a regra na classe média. Mas foi e é o tipo de ódio mais covarde que a humanidade já produziu. Aquele ódio e desprezo que se devota ao sub-humano, do qual todas as classes, mesmo a dos trabalhadores semiqualificados e precarizados, vão querer se distinguir e se sentir superiores. E essa superioridade tem que ser proclamada e repetida todos os dias sob as mais variadas formas. A própria lei formal não vale para elas. Sabemos que matar um pobre nunca foi crime entre nós. Ao contrário, como os recentes massacres de inocentes nas prisões revelam, os aplausos e as celebrações para chacinas inomináveis são contados em proporções assustadoras.

Do mesmo modo que a violência em relação aos escravos era ilimitada – em um contexto, como no Brasil das minas, quando até os escravos que conseguiam comprar sua alforria, confiando na lei do branco, eram depois presos e vendidos como escravos em outras províncias –, hoje a matança dos pobres que herdaram a maldição do ódio devotado aos escravos comove poucos dentre os privilegiados.

É esse o berço dessa classe abandonada e odiada. Uma classe só tolerada para exercer os serviços mais penosos, sujos e perigosos, a baixo preço, para o conforto e uso do tempo poupado em atividades produtivas pela classe média e alta. Mas não apenas isso. Como essa tragédia diária é literalmente invisível e naturalizada como a coisa mais normal do mundo, o próprio pobre acredita na sua maldição eterna. O pobre e excluído, ao concluir a escola como analfabeto funcional, como tantos entre nós, se sente culpado do próprio fracasso e tão burro e preguiçoso quanto os privilegiados, que receberam tudo “de mão beijada” desde o berço, costumam considerá-lo. O círculo da dominação se fecha quando a própria vítima do preconceito e do abandono social se culpa pelo destino que lhe foi preparado secularmente por seus algozes.65

Se nos libertarmos dos conceitos de classe social com base na renda, construídos para que falemos de classe e nunca compreendamos o que isso de fato significa, podemos reconstruir a história do Brasil de outra maneira. Podemos perceber como tradições e heranças invisíveis de classe predeterminam a vida dos indivíduos como um destino. É claro que existem exceções, mas a regra continua a mesma. (...)

Os ex-escravos da “ralé de novos escravos” continuam sendo explorados na sua “tração muscular”, como os cavalos aos quais os escravos de ontem e de hoje ainda se assemelham. Os carregadores de lixo das grandes cidades são chamados, inclusive, literalmente, de “cavalos”. O recurso que as empregadas domésticas usam é, antes de tudo, o corpo, trabalhando horas de pé em funções repetitivas, com a barriga no fogão quente, do mesmo modo que faxineiras, motoboys, cortadores de cana, serventes de pedreiro, etc. Como o caminho do aprendizado escolar é fechado desde cedo para a imensa maioria dessa classe, não é o conhecimento incorporado ao trabalhador que é vendido no mercado de trabalho, mas a capacidade muscular, comum a todos os animais. Uma classe reduzida ao corpo, que representa o que há de mais baixo na escala valorativa do Ocidente. Por conta disso, essa classe, do mesmo modo que os escravos, é desumanizada e animalizada. Passa a não ter valor como ser humano – o que vimos exigir, em alguma medida, a dimensão do espírito, ou seja, no nosso caso, o conhecimento útil incorporado.

A ralé de novos escravos será a classe não só de que todas as outras vão procurar se distinguir e se afastar, mas, também, aquela cujo trabalho farto e barato vão procurar explorar. Mais uma vez, nada de novo em relação ao passado escravista. Isso vale para as classes do privilégio, a elite econômica e a classe média, que monopolizam o capital econômico e o capital cultural mais valorizado e se utilizam da ralé como se utilizavam dos escravos domésticos, para serviços na família, posto serem pessoas que, por sua própria fragilidade social, são ansiosas por se identificarem com os desejos e objetivos dos patrões. Essa identificação com o opressor, a ponto de tornar os objetivos do patrão seus próprios, também é uma continuidade sem cortes com o escravo doméstico do escravismo. A melhor situação do escravo doméstico em relação ao da lavoura era paga com servidão espiritual, na qual o indivíduo abdica de ter interesses próprios para melhor satisfazer os desejos e as necessidades dos senhores. O caso muito comum de babás e empregadas que criam os filhos do patrão “como se fossem seus” reflete esse contexto.”

64 SOUZA, Jessé. A ralé brasileira.

65 Ibid.

 

 

“Já no século XIX, o liberalismo tem esse sentido de recobrir com palavras bonitas como “liberdade” e “autonomia” o que era simplesmente uma reação ao Estado nascente e a sua necessidade de impor a lei e proteger os mais frágeis do simples abuso do poder sob a forma da força ou do dinheiro. O interregno de dominação política dos liberais no século XIX teve esse sentido não de liberar o poder local das amarras do incipiente Estado, mas, sim, de usar a máquina do Estado para o mandonismo e privatismo sem peias e limites dos já poderosos. A liberdade que nosso liberalismo sempre defendeu foi a de saquear a sociedade, tanto o trabalho coletivo quanto as riquezas nacionais, para o bolso da elite da rapina que sempre nos caracterizou.”

 

 

“O que tem de ser explicado aqui é como a elite do dinheiro, que detém o capital econômico e, por conta disso, manda na economia, passa a mandar de modo indireto também no mundo social e político pela construção, colonizada pelo dinheiro, da opinião pública. Essa elite precisa travestir seus interesses de proprietário em suposto interesse geral para garantir o controle da reprodução social mantendo seus privilégios. Apesar de controlar os meios de produção material e também os meios de produção simbólicos, como jornais e editoras, a tarefa, ainda assim, não é fácil. O dinheiro quer se reproduzir sempre aumentando sua quantidade, o que significa, quase sempre, que outros estão perdendo nessa conta. O dinheiro, na forma da acumulação de capital, precisa ser legitimado politicamente e moralmente para conseguir sua reprodução ampliada ad infinitum. (...)

No Brasil, a classe média sempre foi, desde meados do século passado, a tropa de choque dos ricos e endinheirados. É preciso compreender, no entanto, como isso se tornou possível. Como é possível se apropriar dos desejos, ambiguidades e insegurança da classe média para mantê-la servil, mesmo contra seus melhores interesses, e deixar as classes populares para a polícia truculenta? O uso sistemático da inteligência nacional e da imprensa que a veicula em proveito dos interesses da pequena elite endinheirada é a resposta.”

 

 

“O advento do sufrágio universal e da educação para todos abre a possibilidade real de uma esfera pública mais inclusiva. No entanto, novos e mais poderosos inimigos ainda estão à espreita. As esferas estatais, públicas, e privadas, do mercado, passam a formar um único contexto funcional, a partir da privatização do Estado pelo capitalismo organizado (ou seja, a real privatização do Estado, em relação à qual nossos teóricos do patrimonialismo pretendem nos cegar, ao chamar atenção à privatização por indivíduos), processo esse acelerado pela concentração de capitais.

A passagem da lógica da produção capitalista das mercadorias materiais para as mercadorias simbólicas é o momento decisivo da decadência da reflexão racional como recurso societário. O capitalismo organizado expande-se da esfera de produção de bens materiais para a produção industrial de bens simbólicos, constituindo aquilo que T. W. Adorno havia chamado de “indústria cultural”.73 Para Adorno, a indústria cultural é a aplicação consequente da lógica capitalista da maximização do lucro à esfera dos bens simbólicos. Ou seja, além de ser a forma dominante de produzir mercadorias materiais, como salsichas e roupas, o capitalismo também passa a ser a forma dominante da produção de mercadorias simbólicas, como a informação e o conhecimento. Assim, se na esfera dos bens materiais uma salsicha mantém seu valor de uso enquanto alimento, seja em contexto pré-capitalista, seja ela produzida sob condições capitalistas de produção, o mesmo não se dá na esfera dos bens simbólicos.

A lógica da maximização do lucro, que envolve a preponderância do valor de troca de uma mercadoria, ou seja, seu preço final, em relação a seu valor de uso, ou seja, a utilidade desta para seu comprador, aplicada à produção de bens simbólicos, desvirtua o próprio valor de uso do bem cultural, que é possibilitar o desenvolvimento da capacidade reflexiva. Desse modo, a mercadoria da indústria cultural precisa abrir mão da complexidade inerente aos objetos culturais e produzir uma homogeneização psíquica “por baixo”, de modo a poder garantir a maior vendagem possível de mercadorias simbólicas ao maior número de pessoas. Embora se possa criticar a ideia da indústria cultural adorniana se pensada em termos absolutos, como tendência fundamental da sociedade moderna, hoje em dia mais que nunca ela é irretocável.

A esmagadora maioria dos produtos da indústria cultural e da mídia não se dirige ao conhecimento, que transforma e emancipa o sujeito, mas sim ao reconhecimento de estereótipos, clichês e chavões que reproduzem o mundo e os interesses que estão ganhando. O clichê político dos jornalões e da TV brasileira, em época recente, de chamar de “chavismo” e “bolivarianismo” qualquer crítica a si mesmo, ajuda em quê a reflexão? Novelas, filmes de grande bilheteria, livros de autoajuda e best-sellers que repetem as mesmas fórmulas gastas e repetitivas de provocar seu público ajudam em quê a reflexão verdadeira?

O público, deixado indefeso, é presa fácil de todo tipo de manipulação. A ameaça aqui é uma invasão dos imperativos da esfera econômica sobre a esfera pública, transformando sua racionalidade específica em mero bem de consumo econômico74 ou de manipulação política. Como vimos, sua racionalidade específica tem a ver com uma discussão de argumentos que se opõem e que almejam produzir convencimento refletido. É apenas a exposição a argumentos opostos que pode permitir ao sujeito construir a opinião própria. Ao se expor às razões conflitantes, o sujeito é instigado a perceber sua própria inclinação e quais argumentos lhe parecem mais justos e verdadeiros. É esse convencimento refletido que pode produzir aproximações sucessivas ao objetivo de unir verdade com justiça. Esse é o objetivo declarado da esfera pública, tanto que a manipulação da grande imprensa entre nós não pode se assumir enquanto tal. Ela tem que fazer de conta que é plural e argumentativa. Essa é sua legitimação explícita.”

73 ADORNO, T.W.; HORKHEIMER, M. Dialektik der Aufklärung. Verlag: Fischer Taschenbuch, 1995.

74 Para o leitor familiarizado com os textos do Habermas maduro, especialmente com seu livro mais ambicioso sobre a teoria da ação comunicativa, é fácil perceber, já nesse escrito da juventude, uma primeira formulação da tese da colonização do mundo da vida. Ver HABERMAS, J., 1985.

 

 

“A colonização da esfera pública pelo dinheiro evita aquele tipo de racionalidade que permite a união entre verdade e justiça. Só a pluralidade de informações e de opiniões assegura aproximações sucessivas à verdade. E apenas esse esforço de aproximações sucessivas para restaurar a verdade factual permite escolha autônoma, ou seja, a moralidade refletida como um atributo dos sujeitos envolvidos nessa forma de aprendizado coletivo. A ausência de pluralidade de informações e opiniões na grande imprensa gera seres humanos facilmente influenciáveis e manipuláveis, incapazes de pensar por si mesmos. É o que temos hoje entre nós.

Esse tipo de espaço público colonizado pelo dinheiro e suas necessidades de reprodução ampliada gera aquilo que Habermas chama de refeudalização da esfera pública. Essa nova publicidade, como na representação do poder da Idade Média, não significa mais uma produção pública de opinião por pessoas privadas, mas a produção de opiniões que são apresentadas ao público como se fossem públicas. A esfera pública tem que ser produzida e maquiada artificialmente porque ela não mais existe. Como nos programas de debate da TV Globo, tudo funciona como se houvesse debate, ou seja, opiniões divergentes em disputa, quando, na verdade, temos uma farsa, um teatro, precisamente como na esfera pública feudal. A elite do atraso construiu a esfera midiática adequada a seus fins.

É incrível que em um país onde se fala sempre da privatização do público como seu problema principal, nunca ninguém tenha sequer refletido seriamente acerca da privatização da opinião pública como efeito da colonização da esfera pública pelo interesse econômico. Enquanto a privatização do Estado por uma suposta elite estatal é o embuste do patrimonialismo como jabuticaba brasileira, a privatização do espaço público, que é real, é tornada invisível. Por sua vez, é a privatização da opinião pública que permite a continuidade da privatização do Estado pelo interesse econômico. Em grande medida, como sempre acontece nesses casos, uma falsa contradição está sempre no lugar de um conflito real. Afinal, a falsa ameaça da corrupção patrimonialista foi sempre acionada pelos interesses privados que comandam, de modo direto e indireto, a grande imprensa.”

 

 

“Quando Sérgio Buarque elegia o patrimonialismo das elites que habitam o Estado como o grande problema nacional, ele não estava dando vida, portanto, a nenhum sentimento novo. A oposição à corrupção do Estado era uma das bandeiras centrais do tenentismo. A falta de homogeneidade de pensamento dos tenentes e sua confusão em relação à hierarquia das questões principais refletiam uma carência real. Poder-se-ia, por exemplo, perceber a corrupção do Estado como efeito de sua captura pela própria elite econômica que o usa para defender e aprofundar seus privilégios. Isso teria levado a uma conscientização coletiva dos desmandos de uma elite apenas interessada na perpetuação de seus privilégios.

Não foi essa a interpretação que prevaleceu. A elite do dinheiro paulista, que havia perdido o poder político, embora tenha mantido o poder econômico, agiu de modo astucioso, calculado e planejado. Percebeu claramente os sinais do novo tempo. A truculência do voto de cabresto estava com os dias contados. Em vez da violência física, deveria entrar no seu lugar a violência simbólica como meio de garantir a sobrevivência e longevidade dos proprietários e seus privilégios. Com o Estado na mão dos inimigos, a elite do dinheiro paulistana descobre, então, a esfera pública como arma. Se não se controla mais a sociedade com a farsa eleitoral acompanhada da truculência e da violência física, a nova forma de controle oligárquico tem que assumir novas vestes para se preservar. O domínio da opinião pública parece ser a arma adequada contra inimigos também poderosos.”

 

 

“Desde essa época, o liberalismo conservador, baseado no falso moralismo da higiene moral da nação, vai ser a pedra de toque da arregimentação da classe média que se cria nessa quadra histórica pela elite do dinheiro. O discurso moralista havia mostrado todo o seu potencial de arregimentar e convencer sua clientela já na década de 1920, com o movimento tenentista. Os tenentes, oficiais das forças armadas mais jovens, de baixa e de média patente, pretendiam a renovação moral da nação de cima para baixo. O Estado Novo de Vargas foi um lócus privilegiado para vários deles, ainda que disputas intestinas tenham levado vários a trocarem de lado com o tempo. O tenentismo havia mostrado a eficácia desse novo discurso típico da classe média.

Isso não significa dizer que o moralismo não tenha eco também nas outras classes. Em alguma medida, esse discurso nos toca a todos. Mas na classe média ele está em casa. É que as classes sociais estão sempre disputando não apenas bens materiais e salários, mas, também, prestígio e reconhecimento – ou melhor: legitimação do próprio comportamento e da própria vida. As classes superiores, que monopolizam capital econômico e cultural, têm que justificar, portanto, seus privilégios. O capital econômico se legitima com o empreendedorismo, de quem dá emprego e ergue impérios, e com o suposto bom gosto inato de seu estilo de vida, como se a posse do dinheiro fosse mero detalhe sem importância.

A legitimação dos privilégios da classe média é distinta. Como seu privilégio é invisível pela reprodução da socialização familiar que esconde seu trabalho prévio de formar vencedores, a classe média é a classe por excelência da meritocracia e da superioridade moral. Elas servem tanto para distingui-la e justificar seus privilégios em relação aos pobres como também em relação aos ricos. É que, se os pobres são desprezados, os ricos são invejados. Existe uma ambiguidade nesse sentimento em relação aos ricos, que vincula admiração e ressentimento. A suposta superioridade moral da classe média dá à sua clientela tudo aquilo que ela mais deseja: o sentimento de representar o melhor da sociedade. Não só a classe que merece o que tem por esforço próprio, conforto que a falsa ideia da meritocracia propicia, mas, também, a que tem algo que ninguém tem, nem os ricos, que é a certeza de sua perfeição moral.

É claro que perfeição moral pode muito bem tomar o caminho que enseje uma abertura ao tema da responsabilidade social com os estratos mais frágeis, como aconteceu no caso europeu em muitos países. Um caminho, aliás, já aberto pelo cristianismo que foi secularizado em proposições políticas. Que entre nós perfeição moral tenha tomado a forma estreita de reação à corrupção apenas no Estado – e aí apenas quando ocupado por líderes populares – é reflexo da bem perpetrada manipulação intelectual e política destinada a tornar a classe média massa de manobra dos endinheirados.”

 

 

“Além dessas similitudes entre seus criadores que navegam com o mesmo impulso na direita e na esquerda, as duas ideias possuem outra semelhança que salta aos olhos: ambas não valem um tostão furado sob o ponto de vista científico. A noção de patrimonialismo é falsa por duas razões: primeiro as elites que privatizam o público não estão apenas, nem principalmente, no Estado, e o real assalto ao Estado é feito por agentes que estão fora dele, sobretudo no mercado. A elite que efetivamente rapina o trabalho coletivo da sociedade está fora do Estado e se materializa na elite do dinheiro, ou seja, do mercado, que abarca a parte do leão do saque.

A elite estatal e política fica literalmente com as sobras, uma mera percentagem, mínima em termos quantitativos, dos negócios realizados.”

 

 

“Em resumo, a real e efetiva privatização do Estado, aquela feita pelos interesses organizados do mercado sob a forma de cartéis e oligopólios e sob a forma de atuação dos atravessadores financeiros, se torna completamente invisível conceitualmente. A ideia de patrimonialismo simplesmente inverte a relação real de causa e efeito na sociedade e vira o mundo real de cabeça para baixo. Melhor legitimação dos piores interesses de uma elite do saque e da rapina do trabalho coletivo me parece impossível. No entanto, boa parte da esquerda – além de toda a direita, obviamente – tem esses autores e suas ideias como interpretações intocáveis e irretocáveis para o Brasil de hoje.

Já a noção de populismo evoca a mobilização manipulativa das massas urbanas a partir “de cima”, quase sempre por meio de um líder carismático, a carapuça perfeita para a demonização de figuras como Getúlio Vargas e Lula. O interessante nessa ideia é que ela parte do princípio nunca demonstrado de que as outras classes sociais não são manipuladas por ninguém, como, por exemplo, a evidente manipulação midiática da classe média brasileira, que é o tema principal deste livro. Na verdade, a ideia que se quer passar aqui por conhecimento válido é a de que existem “classes inteligentes”, com consciência de seus interesses, e por conta disso não manipuladas por ninguém; e classes do povo, iletradas, um pessoal que não foi à universidade e que é facilmente iludido por um líder carismático ardiloso.

A noção de populismo, atrelada a qualquer política de interesse dos mais pobres, serve para mitigar a importância da soberania popular como critério fundamental de qualquer sociedade democrática. Afinal, como os pobres, coitadinhos, não têm mesmo nenhuma consciência política, a soberania popular e sua validade podem ser sempre, em graus variados, postas em questão. O voto inconsciente corromperia a validade do princípio democrático por dentro. A proliferação dessa ideia na esfera pública, a partir da sua respeitabilidade científica e depois pelo aparato legitimador midiático, que o repercute todos os dias de modos variados, é impressionante. Os best-sellers da ciência política conservadora comprovam a eficácia dessa balela.76

Isso justifica a proliferação de ideias como a de que o povo não sabe votar, que seu voto vale menos, posto que menos instruído, e vai funcionar, na prática, como condenação da democracia e da soberania popular. Isso quando sua validade científica é menor que zero. Como mostra o caso brasileiro recente, uma pequena parte da classe média letrada só agora começa a perceber que deu um tiro no pé apoiando o golpe do “sindicato de ladrões” para acabar com a corrupção. Alguns de seus membros, inclusive, não vão admitir isso nunca, o que só mostra como inteligência nunca teve nada a ver com anos na universidade.

Já as classes populares desconfiam, com razão, de uma política que percebem como “jogo de ricos” e adotam a postura pragmática de esperar para ver o que sobra para elas. Para mim, confesso, esse racionalismo prático das classes populares parece bem mais sensato e inteligente do que a postura da classe média ressentida e insegura, vítima fácil de qualquer moralismo que a faça se sentir melhor do que ela é.

Na verdade, afora as épocas históricas que lograram organizar as classes populares ou as camadas médias por algum período breve de tempo, a única classe consciente de seus interesses entre nós foi e ainda é a ínfima elite do dinheiro. Foi ela que construiu esquemas gigantescos de distorção sistemática da realidade, como os que estamos reconstruindo neste livro, apenas para manter o padrão de rapina selvagem do trabalho de todos para seus bolsos. Foi ela, ao fim e ao cabo, que, com satânica inteligência e clarividência de seus melhores interesses de classe, percebeu que o assalto ao bolso coletivo e ao trabalho alheio só poderia se dar pela colonização da capacidade de reflexão da classe média e do restante da população.

As teses do populismo e do patrimonialismo caem, precisamente, como uma luva para os interesses dessa elite. Elas servem, primeiro, para tornar invisível a ação predatória de um mercado desregulado como o nosso. Depois, para culpar o Estado e suas elites corruptas – especialmente as de esquerda – de tudo que aconteça sempre que se faça necessário. A responsabilidade da elite e de seus instrumentos, como a mídia, fica também invisível e não é nunca trazida à luz. Depois, eles deslegitimam as demandas populares como demagogia e populismo. Hoje em dia, essas são as duas ideias mais repetidas por todos os jornais e canais de televisão. Elas estão hoje, com gradações diversas de clareza, na cabeça de todo brasileiro.”

76 ALMEIDA, Alberto. A cabeça do brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2007.