Editora: Estação Brasil
ISBN: 978-85-5608-042-4-3
Opinião: ★★☆☆☆
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Páginas: 352
Sinopse: Ver Parte I
“O
material de entrevistas sobre a classe média nos mostra que seus filhos, desde
muito novos, são estimulados a se dedicar à educação. O hábito de leitura dos
pais, o estímulo à fantasia por meio de livros, jogos e contação de histórias,
a familiaridade com línguas estrangeiras despertada desde cedo, tudo milita a
favor da incorporação pré-reflexiva de uma atitude que valoriza pressupostos do
capital cultural. Esses estímulos são pré-escolares, mas, como nos tornamos
humanos imitando quem amamos – os pais ou quem os represente –, são essas
pessoas que irão forjar o sucesso escolar da classe média, assim como, mais
tarde, seu sucesso profissional no mercado de trabalho. Depois, como o sucesso
escolar foi, quase sempre, decisivo para os pais, todo o estímulo da
contrapartida amorosa exigida dos filhos é direcionado ao sucesso escolar, ao
aprendizado de línguas estrangeiras e à leitura.
A
criança de classe média, afinal, chega na escola conseguindo se concentrar
porque já havia recebido estímulos para direcionar sua atenção ao estudo e à
leitura antes, por incentivo familiar. Como a família também compra o tempo
livre dos filhos para que possam se dedicar integralmente à escola, a
pré-história do vencedor predestinado ao sucesso se completa. Todas as
vantagens culturais e econômicas se juntam, mais tarde, para a produção, desde
o berço, de um campeão na competição social.
Na
família dos excluídos, tudo milita em sentido contrário. Mesmo quando a família
é constituída por pai e a mãe juntos, o que é minoria nas famílias pobres, e os
pais insistem na via escolar como saída da pobreza, esse estímulo é ambíguo. A
criança percebe que a escola pouco fez para mudar o destino de seus pais, por
que iria ajudar a mudar o seu? Afinal, o exemplo, e não a palavra dita da boca
para fora, é o ponto decisivo no aprendizado infantil. A brincadeira de um
filho de servente de pedreiro é com o carrinho de mão do pai. O aprendizado
afetivo aqui aponta para a formação de um trabalhador manual e desqualificado
mais tarde.
Como
os estímulos à leitura e à imaginação são menores, os pobres possuem quase
sempre enormes dificuldades de se concentrar na escola. Muitos relatam em
entrevistas que fitavam o quadro-negro por horas sem conseguir aprender o
conteúdo. A capacidade de concentração não é, portanto, um dado natural, como
ter dois ouvidos e uma boca, mas uma habilidade e disposição para o
comportamento aprendida apenas quando adequadamente estimulada. Quem a recebe
de berço passa a contar com um precioso privilégio na luta social mais tarde. É
assim que se formam os privilégios típicos de classe média para que seu
monopólio sobre o conhecimento valorizado seja mantido ao longo de gerações.
Para o filho já adulto, com emprego bem pago e prestígio social, tudo é
percebido como se fosse o milagre do mérito individual.
Outra
habilidade ou disposição para o comportamento fundamental é o pensamento
prospectivo, ou seja, a percepção do futuro como mais importante que o
presente. É com base nessa predisposição, tão pouco natural quanto a capacidade
de se concentrar, que aceitamos renunciar ao prazer presente em nome de um
prêmio futuro. Por conta disso, associados ao pensamento prospectivo estão
sempre a disposição à disciplina e ao autocontrole. Ambos são exigidos para que
exista pensamento prospectivo. Sem pensamento prospectivo não se planeja a
vida. E se uma vida cuidadosamente planejada e antecipada já é difícil,
imagine-se uma sem qualquer planejamento consciente. Juntas, portanto, essas
predisposições – todas fruto de aprendizado silencioso e invisível na família –
formam o que poderíamos chamar de condução racional da vida, dado que ensejam a
incorporação de uma instância de cálculo pragmático para a construção do futuro
mais bem-sucedido possível.
Na
classe média, esse aprendizado também é exemplar, e não da boca para fora.
Desde o berço estimula-se o aprendizado de um cálculo prático da vida que
sopesa tudo de acordo com o melhor resultado futuro possível. Com o tempo, essa
instância se torna independente dos conselhos dos pais e passa a operar como
algo natural e automático para os indivíduos. Como o processo familiar que
forma as pessoas é esquecido na vida adulta, também a produção desses tipos de
privilégios parece algo natural e inato aos indivíduos que os detêm. Se na
elite dos endinheirados o capital econômico tem que parecer inato e, portanto,
merecido, na classe média, a aquisição de conhecimento valorizado e das predisposições
que permitem sua incorporação pelo sujeito tem que parecer também inata, sendo,
portanto, também percebida como merecida e justa.
Nas
nossas classes abandonadas, a produção desde o berço, ao contrário das classes
do privilégio, é da inadaptação à competição social em todos os níveis.
Primeiro, a herança vem de longe. Essa classe descende dos escravos “libertos”
sem qualquer ajuda e se junta a uma minoria de mestiços e pobres brancos também
com histórico de abandono. Embora a dominação agora seja de classe e não de
raça, a raça e o odioso e covarde preconceito racial continuam contando de um
modo muito importante. A nossa “ralé” atual, de todas as cores de pele, é
formada pelo inadaptado à competição social que herdou todo o ódio e desprezo
que se devotava antes ao negro.
A
escravidão, como vimos, dificultava a formação de famílias negras e combatia
qualquer forma de independência e autonomia do escravo. Não é por acaso,
portanto, que nossos pobres tenham famílias monoparentais e dificuldades para
desenvolver um padrão que reproduza a contento os papéis de filho, pai e irmão
presentes em toda família da classe média. A enorme estigmatização do
preconceito escravocrata, que no nosso caso foi amplo e contava com o apoio de
todas as classes acima dos abandonados, tende a se introjetar na própria
vítima. Aos escravos e seus descendentes foram deixados o achaque, o deboche
cotidiano, a piada suja, a provocação tolerada e incentivada por todos, as
agressões e até os assassinatos impunes.
Em
um contexto social de tamanha violência que segue sem qualquer mudança
expressiva até hoje, não é possível, salvo raras exceções, a construção de
seres humanos com autoestima e autoconfiança. Sem autoestima e autoconfiança,
não se pode passar para os filhos os incentivos que a classe média possui e
reproduz desde o berço. O ciclo aqui não é virtuoso; é vicioso e satânico. Quem
é visto como lixo e só recebe ódio e desprezo tende a reproduzir no próprio
ambiente familiar o mesmo contexto, atingindo os mais frágeis na família. Daí a
naturalização do abuso sexual e do abuso instrumental dos mais frágeis pelos
mais fortes. Florestan Fernandes já o havia detectado em sua pesquisa pioneira
e nós comprovamos os mesmos efeitos dessa condenação perpétua em nossa pesquisa
empírica realizada quase um século depois.64
À
pobreza econômica foi acrescentada a pobreza em todas as outras dimensões da
vida. Se a pobreza econômica, por exemplo, implica foco no aqui e no agora por
conta das urgências da sobrevivência imediata, toda a atenção se concentra
necessariamente no presente e nunca no futuro, posto que é incerto. Por outro
lado, olhar para o futuro é o que constrói o indivíduo racional moderno, que
sopesa suas chances e calcula constantemente onde deve investir seu tempo e
suas habilidades. A prisão no aqui e no agora tende a reproduzir no tempo,
portanto, a carência do hoje, e não a saída para um futuro melhor.
São
produzidos, nesse contexto, seres humanos com carências cognitivas, afetivas e
morais, advindo daí sua inaptidão para a competição social. O berço dessas
classes não é o apoio incondicional de pais amorosos, como é a regra na classe
média. Mas foi e é o tipo de ódio mais covarde que a humanidade já produziu.
Aquele ódio e desprezo que se devota ao sub-humano, do qual todas as classes,
mesmo a dos trabalhadores semiqualificados e precarizados, vão querer se
distinguir e se sentir superiores. E essa superioridade tem que ser proclamada
e repetida todos os dias sob as mais variadas formas. A própria lei formal não
vale para elas. Sabemos que matar um pobre nunca foi crime entre nós. Ao
contrário, como os recentes massacres de inocentes nas prisões revelam, os
aplausos e as celebrações para chacinas inomináveis são contados em proporções
assustadoras.
Do
mesmo modo que a violência em relação aos escravos era ilimitada – em um
contexto, como no Brasil das minas, quando até os escravos que conseguiam
comprar sua alforria, confiando na lei do branco, eram depois presos e vendidos
como escravos em outras províncias –, hoje a matança dos pobres que herdaram a
maldição do ódio devotado aos escravos comove poucos dentre os privilegiados.
É
esse o berço dessa classe abandonada e odiada. Uma classe só tolerada para
exercer os serviços mais penosos, sujos e perigosos, a baixo preço, para o
conforto e uso do tempo poupado em atividades produtivas pela classe média e
alta. Mas não apenas isso. Como essa tragédia diária é literalmente invisível e
naturalizada como a coisa mais normal do mundo, o próprio pobre acredita na sua
maldição eterna. O pobre e excluído, ao concluir a escola como analfabeto
funcional, como tantos entre nós, se sente culpado do próprio fracasso e tão
burro e preguiçoso quanto os privilegiados, que receberam tudo “de mão beijada”
desde o berço, costumam considerá-lo. O círculo da dominação se fecha quando a
própria vítima do preconceito e do abandono social se culpa pelo destino que
lhe foi preparado secularmente por seus algozes.65
Se
nos libertarmos dos conceitos de classe social com base na renda, construídos
para que falemos de classe e nunca compreendamos o que isso de fato significa,
podemos reconstruir a história do Brasil de outra maneira. Podemos perceber
como tradições e heranças invisíveis de classe predeterminam a vida dos
indivíduos como um destino. É claro que existem exceções, mas a regra continua
a mesma. (...)
Os
ex-escravos da “ralé de novos escravos” continuam sendo explorados na sua
“tração muscular”, como os cavalos aos quais os escravos de ontem e de hoje
ainda se assemelham. Os carregadores de lixo das grandes cidades são chamados,
inclusive, literalmente, de “cavalos”. O recurso que as empregadas domésticas
usam é, antes de tudo, o corpo, trabalhando horas de pé em funções repetitivas,
com a barriga no fogão quente, do mesmo modo que faxineiras, motoboys, cortadores
de cana, serventes de pedreiro, etc. Como o caminho do aprendizado escolar é
fechado desde cedo para a imensa maioria dessa classe, não é o conhecimento
incorporado ao trabalhador que é vendido no mercado de trabalho, mas a
capacidade muscular, comum a todos os animais. Uma classe reduzida ao corpo,
que representa o que há de mais baixo na escala valorativa do Ocidente. Por
conta disso, essa classe, do mesmo modo que os escravos, é desumanizada e
animalizada. Passa a não ter valor como ser humano – o que vimos exigir, em
alguma medida, a dimensão do espírito, ou seja, no nosso caso, o conhecimento
útil incorporado.
A
ralé de novos escravos será a classe não só de que todas as outras vão procurar
se distinguir e se afastar, mas, também, aquela cujo trabalho farto e barato
vão procurar explorar. Mais uma vez, nada de novo em relação ao passado
escravista. Isso vale para as classes do privilégio, a elite econômica e a
classe média, que monopolizam o capital econômico e o capital cultural mais
valorizado e se utilizam da ralé como se utilizavam dos escravos domésticos,
para serviços na família, posto serem pessoas que, por sua própria fragilidade
social, são ansiosas por se identificarem com os desejos e objetivos dos
patrões. Essa identificação com o opressor, a ponto de tornar os objetivos do
patrão seus próprios, também é uma continuidade sem cortes com o escravo doméstico
do escravismo. A melhor situação do escravo doméstico em relação ao da lavoura
era paga com servidão espiritual, na qual o indivíduo abdica de ter interesses
próprios para melhor satisfazer os desejos e as necessidades dos senhores. O
caso muito comum de babás e empregadas que criam os filhos do patrão “como se
fossem seus” reflete esse contexto.”
64 SOUZA, Jessé. A ralé
brasileira.
65 Ibid.
“Já
no século XIX, o liberalismo tem esse sentido de recobrir com palavras bonitas
como “liberdade” e “autonomia” o que era simplesmente uma reação ao Estado
nascente e a sua necessidade de impor a lei e proteger os mais frágeis do
simples abuso do poder sob a forma da força ou do dinheiro. O interregno de
dominação política dos liberais no século XIX teve esse sentido não de liberar
o poder local das amarras do incipiente Estado, mas, sim, de usar a máquina do
Estado para o mandonismo e privatismo sem peias e limites dos já poderosos. A
liberdade que nosso liberalismo sempre defendeu foi a de saquear a sociedade,
tanto o trabalho coletivo quanto as riquezas nacionais, para o bolso da elite
da rapina que sempre nos caracterizou.”
“O que
tem de ser explicado aqui é como a elite do dinheiro, que detém o capital
econômico e, por conta disso, manda na economia, passa a mandar de modo
indireto também no mundo social e político pela construção, colonizada pelo
dinheiro, da opinião pública. Essa elite precisa travestir seus interesses de
proprietário em suposto interesse geral para garantir o controle da reprodução
social mantendo seus privilégios. Apesar de controlar os meios de produção
material e também os meios de produção simbólicos, como jornais e editoras, a tarefa,
ainda assim, não é fácil. O dinheiro quer se reproduzir sempre aumentando sua
quantidade, o que significa, quase sempre, que outros estão perdendo nessa
conta. O dinheiro, na forma da acumulação de capital, precisa ser legitimado
politicamente e moralmente para conseguir sua reprodução ampliada ad
infinitum. (...)
No
Brasil, a classe média sempre foi, desde meados do século passado, a tropa de
choque dos ricos e endinheirados. É preciso compreender, no entanto, como isso
se tornou possível. Como é possível se apropriar dos desejos, ambiguidades e
insegurança da classe média para mantê-la servil, mesmo contra seus melhores
interesses, e deixar as classes populares para a polícia truculenta? O uso
sistemático da inteligência nacional e da imprensa que a veicula em proveito
dos interesses da pequena elite endinheirada é a resposta.”
“O
advento do sufrágio universal e da educação para todos abre a possibilidade
real de uma esfera pública mais inclusiva. No entanto, novos e mais poderosos
inimigos ainda estão à espreita. As esferas estatais, públicas, e privadas, do
mercado, passam a formar um único contexto funcional, a partir da privatização
do Estado pelo capitalismo organizado (ou seja, a real privatização do Estado,
em relação à qual nossos teóricos do patrimonialismo pretendem nos cegar, ao
chamar atenção à privatização por indivíduos), processo esse acelerado pela
concentração de capitais.
A
passagem da lógica da produção capitalista das mercadorias materiais para as
mercadorias simbólicas é o momento decisivo da decadência da reflexão racional
como recurso societário. O capitalismo organizado expande-se da esfera de
produção de bens materiais para a produção industrial de bens simbólicos,
constituindo aquilo que T. W. Adorno havia chamado de “indústria cultural”.73
Para Adorno, a indústria cultural é a aplicação consequente da lógica
capitalista da maximização do lucro à esfera dos bens simbólicos. Ou seja, além
de ser a forma dominante de produzir mercadorias materiais, como salsichas e
roupas, o capitalismo também passa a ser a forma dominante da produção de
mercadorias simbólicas, como a informação e o conhecimento. Assim, se na esfera
dos bens materiais uma salsicha mantém seu valor de uso enquanto alimento, seja
em contexto pré-capitalista, seja ela produzida sob condições capitalistas de
produção, o mesmo não se dá na esfera dos bens simbólicos.
A
lógica da maximização do lucro, que envolve a preponderância do valor de troca
de uma mercadoria, ou seja, seu preço final, em relação a seu valor de uso, ou
seja, a utilidade desta para seu comprador, aplicada à produção de bens
simbólicos, desvirtua o próprio valor de uso do bem cultural, que é possibilitar
o desenvolvimento da capacidade reflexiva. Desse modo, a mercadoria da
indústria cultural precisa abrir mão da complexidade inerente aos objetos
culturais e produzir uma homogeneização psíquica “por baixo”, de modo a poder
garantir a maior vendagem possível de mercadorias simbólicas ao maior número de
pessoas. Embora se possa criticar a ideia da indústria cultural adorniana se
pensada em termos absolutos, como tendência fundamental da sociedade moderna,
hoje em dia mais que nunca ela é irretocável.
A
esmagadora maioria dos produtos da indústria cultural e da mídia não se dirige
ao conhecimento, que transforma e emancipa o sujeito, mas sim ao reconhecimento
de estereótipos, clichês e chavões que reproduzem o mundo e os interesses que
estão ganhando. O clichê político dos jornalões e da TV brasileira, em época
recente, de chamar de “chavismo” e “bolivarianismo” qualquer crítica a si
mesmo, ajuda em quê a reflexão? Novelas, filmes de grande bilheteria, livros de
autoajuda e best-sellers que repetem as mesmas fórmulas gastas e repetitivas de
provocar seu público ajudam em quê a reflexão verdadeira?
O
público, deixado indefeso, é presa fácil de todo tipo de manipulação. A ameaça
aqui é uma invasão dos imperativos da esfera econômica sobre a esfera pública,
transformando sua racionalidade específica em mero bem de consumo econômico74 ou de manipulação política. Como vimos, sua
racionalidade específica tem a ver com uma discussão de argumentos que se opõem
e que almejam produzir convencimento refletido. É apenas a exposição a
argumentos opostos que pode permitir ao sujeito construir a opinião própria. Ao
se expor às razões conflitantes, o sujeito é instigado a perceber sua própria
inclinação e quais argumentos lhe parecem mais justos e verdadeiros. É esse
convencimento refletido que pode produzir aproximações sucessivas ao objetivo
de unir verdade com justiça. Esse é o objetivo declarado da esfera pública,
tanto que a manipulação da grande imprensa entre nós não pode se assumir
enquanto tal. Ela tem que fazer de conta que é plural e argumentativa. Essa é
sua legitimação explícita.”
73 ADORNO, T.W.; HORKHEIMER, M. Dialektik der Aufklärung. Verlag: Fischer Taschenbuch, 1995.
74 Para o leitor
familiarizado com os textos do Habermas maduro, especialmente com seu livro
mais ambicioso sobre a teoria da ação comunicativa, é fácil perceber, já nesse
escrito da juventude, uma primeira formulação da tese da colonização do mundo
da vida. Ver HABERMAS, J., 1985.
“A
colonização da esfera pública pelo dinheiro evita aquele tipo de racionalidade
que permite a união entre verdade e justiça. Só a pluralidade de informações e
de opiniões assegura aproximações sucessivas à verdade. E apenas esse esforço
de aproximações sucessivas para restaurar a verdade factual permite escolha
autônoma, ou seja, a moralidade refletida como um atributo dos sujeitos
envolvidos nessa forma de aprendizado coletivo. A ausência de pluralidade de
informações e opiniões na grande imprensa gera seres humanos facilmente influenciáveis
e manipuláveis, incapazes de pensar por si mesmos. É o que temos hoje entre
nós.
Esse
tipo de espaço público colonizado pelo dinheiro e suas necessidades de
reprodução ampliada gera aquilo que Habermas chama de refeudalização da esfera
pública. Essa nova publicidade, como na representação do poder da Idade Média,
não significa mais uma produção pública de opinião por pessoas privadas, mas a
produção de opiniões que são apresentadas ao público como se fossem públicas. A
esfera pública tem que ser produzida e maquiada artificialmente porque ela não
mais existe. Como nos programas de debate da TV Globo, tudo funciona como se
houvesse debate, ou seja, opiniões divergentes em disputa, quando, na verdade,
temos uma farsa, um teatro, precisamente como na esfera pública feudal. A elite
do atraso construiu a esfera midiática adequada a seus fins.
É
incrível que em um país onde se fala sempre da privatização do público como seu
problema principal, nunca ninguém tenha sequer refletido seriamente acerca da
privatização da opinião pública como efeito da colonização da esfera pública
pelo interesse econômico. Enquanto a privatização do Estado por uma suposta
elite estatal é o embuste do patrimonialismo como jabuticaba brasileira, a
privatização do espaço público, que é real, é tornada invisível. Por sua vez, é
a privatização da opinião pública que permite a continuidade da privatização do
Estado pelo interesse econômico. Em grande medida, como sempre acontece nesses
casos, uma falsa contradição está sempre no lugar de um conflito real. Afinal,
a falsa ameaça da corrupção patrimonialista foi sempre acionada pelos
interesses privados que comandam, de modo direto e indireto, a grande imprensa.”
“Quando
Sérgio Buarque elegia o patrimonialismo das elites que habitam o Estado como o
grande problema nacional, ele não estava dando vida, portanto, a nenhum
sentimento novo. A oposição à corrupção do Estado era uma das bandeiras
centrais do tenentismo. A falta de homogeneidade de pensamento dos tenentes e
sua confusão em relação à hierarquia das questões principais refletiam uma
carência real. Poder-se-ia, por exemplo, perceber a corrupção do Estado como
efeito de sua captura pela própria elite econômica que o usa para defender e
aprofundar seus privilégios. Isso teria levado a uma conscientização coletiva
dos desmandos de uma elite apenas interessada na perpetuação de seus
privilégios.
Não
foi essa a interpretação que prevaleceu. A elite do dinheiro paulista, que
havia perdido o poder político, embora tenha mantido o poder econômico, agiu de
modo astucioso, calculado e planejado. Percebeu claramente os sinais do novo
tempo. A truculência do voto de cabresto estava com os dias contados. Em vez da
violência física, deveria entrar no seu lugar a violência simbólica como meio
de garantir a sobrevivência e longevidade dos proprietários e seus privilégios.
Com o Estado na mão dos inimigos, a elite do dinheiro paulistana descobre,
então, a esfera pública como arma. Se não se controla mais a sociedade com a
farsa eleitoral acompanhada da truculência e da violência física, a nova forma
de controle oligárquico tem que assumir novas vestes para se preservar. O
domínio da opinião pública parece ser a arma adequada contra inimigos também
poderosos.”
“Desde
essa época, o liberalismo conservador, baseado no falso moralismo da higiene
moral da nação, vai ser a pedra de toque da arregimentação da classe média que
se cria nessa quadra histórica pela elite do dinheiro. O discurso moralista
havia mostrado todo o seu potencial de arregimentar e convencer sua clientela
já na década de 1920, com o movimento tenentista. Os tenentes, oficiais das
forças armadas mais jovens, de baixa e de média patente, pretendiam a renovação
moral da nação de cima para baixo. O Estado Novo de Vargas foi um lócus privilegiado
para vários deles, ainda que disputas intestinas tenham levado vários a
trocarem de lado com o tempo. O tenentismo havia mostrado a eficácia desse novo
discurso típico da classe média.
Isso
não significa dizer que o moralismo não tenha eco também nas outras classes. Em
alguma medida, esse discurso nos toca a todos. Mas na classe média ele está em
casa. É que as classes sociais estão sempre disputando não apenas bens
materiais e salários, mas, também, prestígio e reconhecimento – ou melhor:
legitimação do próprio comportamento e da própria vida. As classes superiores,
que monopolizam capital econômico e cultural, têm que justificar, portanto,
seus privilégios. O capital econômico se legitima com o empreendedorismo, de
quem dá emprego e ergue impérios, e com o suposto bom gosto inato de seu estilo
de vida, como se a posse do dinheiro fosse mero detalhe sem importância.
A
legitimação dos privilégios da classe média é distinta. Como seu privilégio é
invisível pela reprodução da socialização familiar que esconde seu trabalho
prévio de formar vencedores, a classe média é a classe por excelência da
meritocracia e da superioridade moral. Elas servem tanto para distingui-la e
justificar seus privilégios em relação aos pobres como também em relação aos
ricos. É que, se os pobres são desprezados, os ricos são invejados. Existe uma
ambiguidade nesse sentimento em relação aos ricos, que vincula admiração e
ressentimento. A suposta superioridade moral da classe média dá à sua clientela
tudo aquilo que ela mais deseja: o sentimento de representar o melhor da
sociedade. Não só a classe que merece o que tem por esforço próprio, conforto
que a falsa ideia da meritocracia propicia, mas, também, a que tem algo que
ninguém tem, nem os ricos, que é a certeza de sua perfeição moral.
É
claro que perfeição moral pode muito bem tomar o caminho que enseje uma
abertura ao tema da responsabilidade social com os estratos mais frágeis, como
aconteceu no caso europeu em muitos países. Um caminho, aliás, já aberto pelo
cristianismo que foi secularizado em proposições políticas. Que entre nós
perfeição moral tenha tomado a forma estreita de reação à corrupção apenas no
Estado – e aí apenas quando ocupado por líderes populares – é reflexo da bem
perpetrada manipulação intelectual e política destinada a tornar a classe média
massa de manobra dos endinheirados.”
“Além
dessas similitudes entre seus criadores que navegam com o mesmo impulso na
direita e na esquerda, as duas ideias possuem outra semelhança que salta aos
olhos: ambas não valem um tostão furado sob o ponto de vista científico. A
noção de patrimonialismo é falsa por duas razões: primeiro as elites que
privatizam o público não estão apenas, nem principalmente, no Estado, e o real
assalto ao Estado é feito por agentes que estão fora dele, sobretudo no
mercado. A elite que efetivamente rapina o trabalho coletivo da sociedade está
fora do Estado e se materializa na elite do dinheiro, ou seja, do mercado, que
abarca a parte do leão do saque.
A
elite estatal e política fica literalmente com as sobras, uma mera percentagem,
mínima em termos quantitativos, dos negócios realizados.”
“Em
resumo, a real e efetiva privatização do Estado, aquela feita pelos interesses
organizados do mercado sob a forma de cartéis e oligopólios e sob a forma de
atuação dos atravessadores financeiros, se torna completamente invisível
conceitualmente. A ideia de patrimonialismo simplesmente inverte a relação real
de causa e efeito na sociedade e vira o mundo real de cabeça para baixo. Melhor
legitimação dos piores interesses de uma elite do saque e da rapina do trabalho
coletivo me parece impossível. No entanto, boa parte da esquerda – além de toda
a direita, obviamente – tem esses autores e suas ideias como interpretações
intocáveis e irretocáveis para o Brasil de hoje.
Já
a noção de populismo evoca a mobilização manipulativa das massas urbanas a
partir “de cima”, quase sempre por meio de um líder carismático, a carapuça
perfeita para a demonização de figuras como Getúlio Vargas e Lula. O
interessante nessa ideia é que ela parte do princípio nunca demonstrado de que
as outras classes sociais não são manipuladas por ninguém, como, por exemplo, a
evidente manipulação midiática da classe média brasileira, que é o tema
principal deste livro. Na verdade, a ideia que se quer passar aqui por
conhecimento válido é a de que existem “classes inteligentes”, com consciência
de seus interesses, e por conta disso não manipuladas por ninguém; e classes do
povo, iletradas, um pessoal que não foi à universidade e que é facilmente
iludido por um líder carismático ardiloso.
A
noção de populismo, atrelada a qualquer política de interesse dos mais pobres,
serve para mitigar a importância da soberania popular como critério fundamental
de qualquer sociedade democrática. Afinal, como os pobres, coitadinhos, não têm
mesmo nenhuma consciência política, a soberania popular e sua validade podem
ser sempre, em graus variados, postas em questão. O voto inconsciente
corromperia a validade do princípio democrático por dentro. A proliferação
dessa ideia na esfera pública, a partir da sua respeitabilidade científica e
depois pelo aparato legitimador midiático, que o repercute todos os dias de
modos variados, é impressionante. Os best-sellers da ciência política
conservadora comprovam a eficácia dessa balela.76
Isso
justifica a proliferação de ideias como a de que o povo não sabe votar, que seu
voto vale menos, posto que menos instruído, e vai funcionar, na prática, como
condenação da democracia e da soberania popular. Isso quando sua validade
científica é menor que zero. Como mostra o caso brasileiro recente, uma pequena
parte da classe média letrada só agora começa a perceber que deu um tiro no pé
apoiando o golpe do “sindicato de ladrões” para acabar com a corrupção. Alguns
de seus membros, inclusive, não vão admitir isso nunca, o que só mostra como
inteligência nunca teve nada a ver com anos na universidade.
Já
as classes populares desconfiam, com razão, de uma política que percebem como
“jogo de ricos” e adotam a postura pragmática de esperar para ver o que sobra
para elas. Para mim, confesso, esse racionalismo prático das classes populares
parece bem mais sensato e inteligente do que a postura da classe média
ressentida e insegura, vítima fácil de qualquer moralismo que a faça se sentir
melhor do que ela é.
Na
verdade, afora as épocas históricas que lograram organizar as classes populares
ou as camadas médias por algum período breve de tempo, a única classe
consciente de seus interesses entre nós foi e ainda é a ínfima elite do
dinheiro. Foi ela que construiu esquemas gigantescos de distorção sistemática
da realidade, como os que estamos reconstruindo neste livro, apenas para manter
o padrão de rapina selvagem do trabalho de todos para seus bolsos. Foi ela, ao
fim e ao cabo, que, com satânica inteligência e clarividência de seus melhores
interesses de classe, percebeu que o assalto ao bolso coletivo e ao trabalho
alheio só poderia se dar pela colonização da capacidade de reflexão da classe
média e do restante da população.
As
teses do populismo e do patrimonialismo caem, precisamente, como uma luva para
os interesses dessa elite. Elas servem, primeiro, para tornar invisível a ação
predatória de um mercado desregulado como o nosso. Depois, para culpar o Estado
e suas elites corruptas – especialmente as de esquerda – de tudo que aconteça
sempre que se faça necessário. A responsabilidade da elite e de seus
instrumentos, como a mídia, fica também invisível e não é nunca trazida à luz.
Depois, eles deslegitimam as demandas populares como demagogia e populismo.
Hoje em dia, essas são as duas ideias mais repetidas por todos os jornais e
canais de televisão. Elas estão hoje, com gradações diversas de clareza, na
cabeça de todo brasileiro.”
76 ALMEIDA, Alberto. A cabeça
do brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2007.
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