Editora: Clube Literatura Clássica
ISBN: 978-65-87036-25-0
Tradução: Marcio
Hack
Opinião: ★★★☆☆
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Páginas: 272
Sinopse: Ver Parte
I
“Ora, quando digo que as autoridades
paroquiais não fizeram um registro completo, ou que não podemos confiar em seus
registros, que qualquer um reflita em como os homens poderiam fazer contagens
precisas (do número de mortes) num tempo de tão pavorosa aflição, e quando
muitos deles mesmos adoeceram e talvez morreram justo quando deveriam entregar
os seus registros. Aqui me refiro aos escreventes das paróquias, além dos funcionários
menores; pois, embora aqueles pobres homens corressem todos os riscos, ainda
assim longe ficavam de estar isentos da calamidade geral, ainda mais
considerando que era verdade a respeito da paróquia de Stepney que esta teve,
no espaço de tempo daquele ano, 116 sacristãos, coveiros e assistentes, ou
seja, os carregadores dos mortos, os sineiros e os cocheiros das carroças que
levavam os cadáveres.
Na realidade, o trabalho não era de tal
natureza que lhes permitisse o luxo de anotar uma contagem exata dos cadáveres,
que eram amontoados todos juntos no escuro de uma vala; dessa vala ou fosso
ninguém podia se aproximar, a não ser correndo o risco mais extremo. Observei muitas
vezes que nas paróquias de Aldgate e Cripplegate, Whitechapel e Stepney,
quinhentos, seiscentos, setecentos e oitocentos mortos apareceram nos avisos de
uma semana, ao passo que, se podemos acreditar na opinião dos que, como eu,
continuaram na cidade durante toda a epidemia, às vezes morriam 2.000 em uma
semana naquelas paróquias; e vi, em papel assinado por uma pessoa que fez uma
investigação tão rigorosa quanto possível dessa questão, que na verdade
morreram cem mil pessoas da peste naquele ano, ao passo que dos avisos
constavam, como vítimas da peste, somente 68.590 mortos.
Se me permitirem registrar a minha opinião,
baseada no que vi com meus olhos e ouvi de outras pessoas que foram
testemunhas, em verdade acredito no seguinte: que morreram ao menos 100.000
pessoas da peste, além dos vitimados por outras doenças, e além dos que
morreram nos campos e nas estradas, e nos abrigos secretos, fora do âmbito da
comunicação, como se costumava chamar, e que não foram anotados nos avisos, embora
na verdade pertencessem ao corpo dos habitantes. Era conhecida por todos a
abundância de pobres criaturas desesperadas, doentes da peste, e que a situação
miserável levara à melancolia ou à imbecilidade, como aconteceu com muitos, que
saíram vagando pelos campos e bosques, e adentraram em lugares secretos e estranhos,
quase sem critério nenhum, rastejando até um arbusto ou sebe para MORRER.
Os habitantes dos vilarejos adjacentes, por pena, levavam-lhes alimentos, que deixavam a uma distância segura, para que os doentes viessem pegá-los, se pudessem. E às vezes não podiam, e quando tais habitantes retornavam, descobriam que os pobres infelizes estavam mortos e que a comida não fora tocada. O número daquelas figuras miseráveis era grande, e sei de tantos que pereceram dessa forma, e com tal exatidão em que lugar morreram, que acredito que poderia ainda hoje ir até lá e encontrar seus ossos sob a terra; pois as gentes do interior iam e cavavam um buraco a alguma distância dos mortos, e depois, com varas muito longas, e ganchos presos às extremidades destas, arrastavam os corpos até que caíssem naquelas valas, e depois as tapavam com terra, atirada da maior distância possível, para cobri-los, atentando para como soprava o vento, e se posicionando naquele lado que os marinheiros chamam de barlavento, para que o odor dos cadáveres soprasse para longe deles; e, assim, em grandes números, pessoas foram embora deste mundo das quais nunca se teve notícia, ou que nunca foram anotadas nos registros, nem dentro nem fora dos avisos de mortalidade.”
“Um dos piores dias que tivemos em toda
aquela época, assim me pareceu, foi no início de setembro, quando pessoas de
boa índole chegaram mesmo a acreditar que Deus havia resolvido acabar de uma
vez por todas com os habitantes desta miserável cidade. Isso foi numa época em
que a peste atingira em cheio as paróquias do leste. A paróquia de Aldgate, se
posso dar a minha opinião, enterrou mais de mil pessoas por semana ao longo de
duas semanas, embora os avisos não trouxessem número tão grande. A doença,
porém, me cercava em proporções tão lúgubres que não havia uma casa em vinte
que não estivesse infectada nas Minoritas, em Houndsditch, e naquelas partes da
paróquia de Aldgate em volta de Butcher Row e nas vielas em frente à minha
casa. Naqueles lugares, a morte imperava em todas as esquinas. A paróquia de
Whitechapel encontrava-se na mesma condição, e, embora muito menos do que a
paróquia em que eu vivia, enterrava perto de 600 por semana, segundo os avisos,
e na minha opinião quase o dobro disso. Famílias inteiras, e em verdade as
famílias de ruas inteiras, eram varridas ao mesmo tempo; tanto que era
frequente os vizinhos chamarem o sineiro para ir a esta ou aquela casa de modo
a recolher as pessoas, pois lá estavam todas mortas.
E, de fato, o trabalho de remover os
cadáveres usando as carroças agora tornara-se de tal forma odioso e arriscado
que começaram a correr reclamações de que os carregadores não tomavam o cuidado
de limpar as casas51 em que todos os habitantes haviam morrido, e de
que algumas vezes os corpos continuavam insepultos por muitos dias, até que as
famílias vizinhas se incomodassem com o fedor, e eram consequentemente
infectadas; e essa negligência das autoridades era tal que os fabricários e
meirinhos foram intimados a cuidar da questão, e até mesmo os juízes das
aldeias foram obrigados a arriscar a vida entre os carregadores, para animá-los
e encorajá-los, pois inumeráveis carregadores morriam da peste, infectados
pelos corpos dos quais eram obrigados a se aproximar tanto. E não fosse pelo
fato de que a quantidade de pobres que precisavam de emprego e de pão (como já
disse acima) era tão grande que a necessidade os impelia a aceitar qualquer coisa
e a arriscar qualquer coisa, nunca teria sido possível encontrar gente a
empregar naquela tarefa. E os corpos dos mortos teriam permanecido acima do
chão, e teriam se deteriorado e apodrecido de modo pavoroso.
Mas no tocante a isso não é possível exagerar
no louvor aos magistrados: mantiveram uma ordem tão excelente no enterro dos
mortos que, tão cedo adoecesse ou morresse alguém que tinha o emprego de levar
e enterrar os mortos, como era muito comum acontecer, os magistrados
imediatamente forneciam novos trabalhadores aos locais relevantes –, coisa que,
por razão do grande número de pobres que não tinham trabalho, como foi descrito
acima, não era difícil. Isso fez com que, não obstante o número infinito de
pessoas que morriam e que ficavam doentes quase ao mesmo tempo, elas ainda
assim fossem apanhadas e levadas todas as noites, de modo que nunca se pôde
dizer, a respeito de Londres, que os vivos não conseguiram enterrar os mortos.
Como a desolação foi maior durante aquela
época terrível, também cresceu o assombro das pessoas, que faziam milhares de
coisas inexplicáveis, impelidas pela violência do pavor que sentiam, assim como
outros também faziam quando nas agonias da enfermidade, e isso era de comover o
coração. Alguns saíam pelas ruas rugindo, e gritando, e retorcendo as mãos;
outros saíam rezando e erguendo as mãos para o céu, rogando pela misericórdia
de Deus. Não sei dizer, em verdade, se não faziam isso quando estavam fora de
si, mas, mesmo assim, isso era indicativo de uma mente mais séria, quando
estavam em perfeito juízo, e era coisa muito melhor, mesmo sendo terrível, do
que os berros e gritos apavorantes que todos os dias, e especialmente ao
anoitecer, se podia ouvir em algumas ruas.”
51. Clear such
houses..., isto é, retirar os cadáveres das casas. NE.
“Era realmente coisa deplorável ouvir as
miseráveis lamentações das pobres criaturas moribundas, que chamavam aos gritos
os sacerdotes para que as consolassem e rezassem com elas, para que as guiassem
e aconselhassem, clamando a Deus por perdão e misericórdia, e confessando em
voz altas os pecados cometidos. O mais robusto coração sangraria ao ouvir
quantas advertências foram então dadas aos outros pelos penitentes à beira da
morte, para que não adiassem e retardassem seu arrependimento para o Dia da
Aflição; que uma época de calamidade como aquela não era hora de se arrepender,
não era hora de clamar por Deus. Eu gostaria de poder repetir o som mesmo dos
gemidos e exclamações que ouvi de algumas pobres criaturas moribundas quando
estavam no auge de suas agonias e aflições; gostaria de fazer o leitor dessas palavras
ouvir, como neste momento penso ouvi-lo, pois o som parece até hoje ressoar em
meus ouvidos.”
“Assim como os mais ricos entraram em navios,
os de classe mais baixa entraram em batelões, sumacas, fragatas e barcos de
pesca; e muitos, em especial marinheiros, dormiam em seus barcos; mas muitos se
conduziram de modo infeliz, especialmente estes últimos, pois, saindo para
obter mantimentos, e talvez para conseguir sua subsistência, a infecção penetrou
entre eles, causando uma temível devastação. Muitos dos marinheiros morreram
sozinhos em seus botes enquanto navegavam por seus caminhos, tanto acima quanto
abaixo da ponte, e às vezes não eram encontrados até que suas condições já não
permitissem que alguém se aproximasse deles ou os tocasse.
Deveras, a aflição do povo naquela região da
cidade em que tantos navegantes habitavam era verdadeiramente deplorável, e
merecedora da maior comiseração. Mas, infelizmente, aquela era uma época em que
a preocupação com a segurança pessoal era tão imediata para todos que a ninguém
sobrava uma margem que permitisse apiedar-se das aflições dos outros, pois a
morte, por assim dizer, batia à porta de todos, e já circulava inclusive em
meio às famílias de muitos. E as pessoas não sabiam o que fazer ou onde
encontrar refúgio.
Isso, como venho dizendo, nos levava toda a
compaixão. A autopreservação naquele momento parecia ser, de fato, a primeira
das leis. Pois os filhos fugiam dos pais enquanto estes definhavam em meio à aflição
mais absoluta. E em alguns lugares, embora esse caso não fosse tão frequente
quanto o anterior, os pais faziam o mesmo com os filhos. Mais ainda: houve
alguns casos pavorosos, e especial dois deles numa semana, de mães aflitas,
delirantes e fora de si, que mataram os próprios filhos. Um deles se deu não
muito longe de minha própria casa, a pobre e lunática criatura não sobrevivendo
por tempo o suficiente para aperceber-se do pecado que cometera, e menos ainda
para ser punida por ele.
E não era, de fato, de se espantar: pois o
perigo da nossa própria morte imediata nos desentranhava o amor, e toda a
preocupação que podíamos ter pelos outros. Falo aqui em termos gerais, pois
houve muitos exemplos de afeição, piedade e dever inamovíveis, em muitas pessoas,
e alguns deles chegaram ao meu conhecimento, isto é, por ouvir dizer.
Pois não assumirei a responsabilidade de
asseverar a verdade dos detalhes de cada caso.
Para apresentar um deles, deixem-me primeiro
mencionar que um dos casos mais deploráveis em toda aquela calamidade foi o das
mulheres grávidas, as quais, quando chegavam à hora do sofrimento, e eram tomadas
pelas dores, não podiam contar nem com esta nem com aquela ajuda. Nem parteiras
nem vizinhas se aproximavam. As parteiras, em sua maioria, estavam mortas,
especialmente aquelas que trabalhavam para os pobres. E muitas, senão todas, as
parteiras mais eminentes haviam fugido para o interior, de modo que era
praticamente impossível para uma mulher pobre, que não tinha como arcar com um
preço excessivo, ter uma parteira consigo, e, se tivesse, as parteiras que
achava geralmente eram criaturas incompetentes e ignorantes; e a consequência
disso foi que um número deveras incomum e incrível de mulheres foi reduzido à
aflição mais absoluta. Algumas foram partejadas e prejudicadas pela imprudência
e pela ignorância das que fingiam ajudá-las. Incontáveis crianças foram, posso
dizê-lo, assassinadas pela mesma ignorância, mas de um tipo mais justificável:
as parteiras fingiam que salvariam a mãe, não importando o que acontecesse à
criança. E muitas vezes mãe e criança morriam da mesma forma. E especialmente
quando a mãe tinha a peste, ninguém ousava aproximar-se e às vezes mãe e
criança pereciam. Às vezes a mãe morria da peste, e a criança ainda não
terminara de nascer, ou tinha nascido mas ainda não fora separada da mãe.
Algumas morriam com as dores do parto, sem dar à luz. E tantos foram os casos desse
tipo que é difícil dizer quantos. (...)
Não há margens para dúvida de que a miséria
das que amamentavam era, proporcionalmente, da mesma dimensão. Nossos avisos de
mortalidade pouca luz podiam lançar sobre esse fato, mas ainda assim esclareciam
alguma coisa. Havia um número muito maior de crianças de peito que morriam de
fome, mas isso não era nada. A miséria estava em, primeiro, passarem fome por
falta de peito, tendo a mãe morrido, e toda a família e as crianças sendo
encontradas mortas junto com elas, por simples carência. E, se posso dar minha
opinião, acredito que muitas centenas de pobres e indefesos bebês pereceram
dessa maneira. Em segundo lugar, morriam não de fome, mas envenenados pela ama de
leite. E digo mais, mesmo quando a mãe podia amamentar, estando infectada,
envenenava a criança, isto é, infectava-a com o seu leite antes mesmo que
soubesse que ela própria estava infectada. E não raro a criança morria, nesses
casos, antes da mãe. Impossível não me lembrar de deixar registrada essa advertência:
se alguma vez no futuro uma visitação terrível como essa voltar a ocorrer na
cidade, todas as mulheres que estiverem grávidas ou amamentando devem ir
embora, se houver alguma possibilidade disso, pois o infortúnio delas, se forem
infectadas, será muito maior que o das outras pessoas.
Eu poderia aqui contar lúgubres histórias de
bebês que foram encontrados sugando os seios das mães, ou amas de leite, depois
que estas haviam morrido da peste. De uma mãe, na paróquia em que eu morava, que,
tendo uma criança que não estava bem, mandou vir um boticário para examiná-la.
E quando ele chegou, segundo se conta, a mãe a amamentava, aparentemente
estando muito bem de saúde. Mas quando o boticário se aproximou da mulher, viu
os sinais da doença naquele seio com o qual ela dava de mamar à criança. Isso o
surpreendeu, é certo, mas, não querendo assustar demais a pobre mulher, pediu
que ela lhe entregasse a criança. Ele então a pegou no colo, e foi até um berço
que havia no cômodo, e a deitou ali. Abrindo as roupas da criança, encontrou
também nela os sinais da doença, e ambas morreram antes que ele pudesse chegar
em casa para enviar um remédio preventivo ao pai da criança, ao qual informara
sobre as condições de mãe e bebê. Se a criança infectou a mãe que a amamentava
ou se a mãe infectou a criança, isso não se sabe, mas o segundo caso é o mais
provável.
Poderia também contar de um bebê que foi
devolvido à casa dos pais, vindo de uma ama que morrera da peste, mas mesmo
assim a terna mãe não se recusou a aceitar a criança, e a colocou em seu peito,
e por ela foi infectada, e morreu tendo a criança nos braços já morta.
O mais endurecido dos corações se comoveria
perante os casos, que frequentemente se podia encontrar, de ternas mães que
cuidavam e velavam por seus queridos filhos, e que chegavam até a morrer na
frente deles, e às vezes pegando a doença do filho e morrendo, quando a criança
pela qual o afetuoso coração fora sacrificado já se curara da doença e escapara
da morte.
Coisa semelhante ocorreu a um comerciante de
East Smithfield, cuja esposa estava já nos últimos tempos da gravidez do
primeiro filho, e entrou em trabalho de parto, estando doente da peste. Ele não
conseguiu encontrar parteira que pudesse prestar ajuda à esposa ou enfermeira
que cuidasse dela, e as duas criadas que ele tinha fugiram ambas da patroa. Ele
correu de casa em casa como se estivesse fora de si, mas não conseguiu
encontrar ajuda. O máximo que conseguiu foi que um vigia, responsável por uma
casa infectada que fora fechada, prometesse mandar uma enfermeira na manhã
seguinte. O pobre homem, com o coração partido, voltou para casa, ajudou a
mulher até onde podia, fazendo o papel de parteiro, deu à luz a criança já
morta, e a esposa, dentro de uma hora, morreu em seus braços. Em seu abraço
segurou firmemente 0 cadáver da esposa até o amanhecer, quando apareceu o vigia
trazendo a enfermeira, como havia prometido. E, ao subir as escadas (pois o
homem deixara a porta aberta, ou destrancada), toparam com o homem sentado
segurando a esposa nos braços, e tão devastado pela tristeza que morreu dentro
de poucas horas, sem apresentar em si nenhum sinal da infecção; mas
simplesmente oprimido pelo peso de seu pesar.”
“Sei que os habitantes das cidades adjacentes
a Londres foram muito responsabilizados pela crueldade no tratamento dado aos
pobres que fugiam do contágio, aflitos que estavam, e muitas medidas
extremamente severas foram tomadas, como se pode ver pelo que relatei acima.
Mas não posso me omitir de dizer também que, onde havia margem para a caridade
e para o socorro às pessoas, sem que isso implicasse num perigo evidente para
os que ajudavam, eles tinha a boa vontade de ajudar e socorrer. Mas, como
acontecia de cada cidade ser a juíza de seu próprio caso, os pobres que
viajavam fugindo, e se encontravam em situações extremas, muitas vezes eram
maltratados e forçados a retornar à cidade. E, isso causou infinitas
exclamações e protestos contra as cidades as cidades do interior, e fez com que
esse clamor fosse muito difundido entre o povo.”
“Deve-se aqui, contudo, observar que, depois
que os funerais passaram a ser tão numerosos que as pessoas não podiam tocar o
sino, lamentar ou chorar, ou vestir o negro umas pelas outras, como faziam
antes – não, nem sequer caixões podiam fazer para todos os que morriam –; assim,
passado um tempo, a fúria da infecção pareceu ter se intensificado de tal
maneira que, em suma, as casas deixaram de ser trancadas. Parecia suficiente
que todas as medidas daquele tipo tivessem sido usadas até o momento em que se
percebeu que eram inúteis, e que a peste tivesse se propagado com uma fúria
irresistível. De modo que, assim como o incêndio do ano seguinte se propagou, e
queimou com tal violência que os cidadãos, em desespero, desistiram de seus
esforços para extingui-lo, também a peste alcançou enfim tal violência que as
pessoas se reduziram a ficar sentadas, em silêncio, olhando umas para as
outras, parecendo totalmente entregues ao desespero. Ruas inteiras pareciam
despovoadas: não apenas as casas estavam cerradas, como também pareciam esvaziadas
de seus habitantes. Portas eram deixadas abertas, as janelas se estilhaçavam
com o vento em casas vazias, pois não havia ninguém ali para fechá-las. Em
suma, as pessoas começaram a se entregar a seus medos, e a acreditar que todos
os procedimentos e métodos eram em vão, e que não se podia ter esperança
alguma, pois o único fim possível era uma desolação universal. E foi exatamente
no auge desse desespero generalizado que Deus achou por bem suster a própria
Mão, e arrefecer a fúria do contágio de tal maneira que chegou a ser
surpreendente, assim como fora o seu início, e demonstrou tratar-se de sua
própria Mão, e ela acima de tudo, ainda que não sem a agência dos meios, como
tratarei de observar quando for adequado.”
“Mas, retornando às observações específicas
que fiz durante essa parte terrível da visitação: cheguei agora, como já disse,
ao mês de setembro, que foi o mais terrível dos meses, acredito eu, que Londres
já viu. Pois, segundo todos os cálculos que vi a respeito das visitações
anteriores ocorridas em Londres, nada foi como aquele mês, com o numero no
aviso semanal chegando a quase 40.000 no período de 22 de agosto a 26 de
setembro, composto de apenas cinco semanas. (...)
Já era um número prodigioso em si mesmo, mas
se eu acrescentasse os motivos que tenho para acreditar que esse cálculo era
deficiente, e em que medida era deficiente, o leitor, junto comigo, não
hesitaria em acreditar que morreram cerca de dez mil pessoas por semana durante
todas aquelas semanas, uma seguida da outra, e uma boa porção desse número
durante várias semanas tanto antes quanto depois. A confusão que naquela época
reinava entre as pessoas, em especial na City,
era inexprimível. O terror finalmente chegara a tal dimensão que a coragem das
pessoas encarregadas de levar os mortos embora começou a faltar-lhes; e digo
mais, muitos deles morreram, embora houvessem adoecido antes da infecção e se
recuperado, e alguns deles caíram mortos enquanto carregavam os cadáveres, até
mesmo à beira da vala comum, prontos para ser atirados lá dentro. E essa
confusão era maior na City, pois ali
se haviam lisonjeado com a esperança de escapar à doença, e acreditavam que o
amargor da morte já era passado. Uma carroça, nos contaram que subia por
Shoreditch, foi privada dos carroceiros, ou lhe restou um único homem para
guiá-la, que morreu em plena rua; os cavalos, seguindo caminho, fizeram tombar
a carroça, e deixaram para trás os corpos, alguns arremessados para aquele
lado, outros para este, de um modo terrível. Outra carroça foi, ao que parece,
encontrada na grande vala de Finsbury Fields, o carroceiro estando morto, ou
tendo ido embora e a abandonado, e, como os cavalos corriam próximos demais à
vala, a carroça caiu lá dentro, arrastando consigo também os cavalos. Sugeriu-se
que o carroceiro teria sido atirado lá dentro também, e que a carroça teria
caído sobre ele, já que viram o seu chicote na vala em meio aos corpos, mas
isso, suponho, não podia ser afirmado com certeza.
Em nossa paróquia de Aldgate, as carroças de
mortos foram muitas vezes, segundo me contaram, encontradas às portas do
cemitério, cheias de corpos, mas não havia sineiro, ou carroceiro, ou ninguém
mais junto dela. Tampouco nesses casos ou em muitos outros eles sabiam que cadáveres
transportavam na carroça, pois estes eram às vezes descidos, por meio de
cordas, das janelas e varandas, e às vezes os carregadores os levavam até a
carroça, e as vezes eram outras pessoas que carregavam. Tampouco, como um dos
próprios homens afirmou, eles se incomodavam em manter alguma conta de quantos cadáveres
transportavam.”
“Aqui devo também acrescentar uma observação
que pode ser útil à posteridade, a respeito de que modo as pessoas se
infectaram umas às outras. Isto é, não foi apenas dos doentes que a peste foi
imediatamente recebida pelos que estavam saudáveis, mas dos que tinham boa
saúde também. Explico-me: quando falo dos doentes, refiro-me àqueles que se
sabiam doentes, que estavam acamados, em processo de cura, ou que então tinham
em si os inchaços e tumores, e sintomas do tipo. Quanto a estes, todos podiam
acautelar-se; estavam ou acamados ou em condições tais que não podiam ser
ocultadas.
Quando falo dos que tinham boa saúde, me
refiro àqueles que tinham sofrido o contágio, e realmente traziam a peste
consigo e em seu sangue, mas não mostravam as consequências dela em seus
aspectos; não, não chegavam sequer a estar cientes do próprio estado, como acontecia
a muitos, por períodos de muitos dias. Estes espalhavam a morte pelo hálito em
toda parte, e sobre todos que deles se aproximassem. Mais ainda, suas próprias
roupas retinham a infecção, suas mãos infectavam os objetos tocados, em especial
se estivessem suados e com o corpo quente, e geralmente costumavam estar
suados.
Ora, era impossível saber quem eram essas
pessoas, e tampouco elas, às vezes, como já relatei, sabiam estar infectadas.
Essas eram as pessoas que tantas vezes tombavam ao chão e desmaiavam pelas
ruas; pois era comum que saíssem as ruas até o dia em que morriam, até que, subitamente,
tivessem uma crise de suor, sentissem tontura, se sentassem na soleira de uma
porta e morressem. É verdade que, vendo-se nessas condições, buscavam com todas
as forças voltar à porta da própria casa, ou, em outros casos, conseguiam
apenas entrar em casa e imediatamente morrer. Em outros casos ainda,
continuavam circulando até que os sinais surgissem em seus corpos, e ainda
assim de nada sabiam, e morriam em uma ou duas horas depois de retornarem à
casa, tendo estado em boas condições durante todo o tempo em que circulavam.
Essa era a gente perigosa; esses eram os que os verdadeiramente sãos deveriam
ter temido. Todavia, era impossível saber quem eram.
E esse é o motivo pelo qual, em uma
visitação, é impossível prevenir o contágio da peste até mesmo pela mais
extrema vigilância humana: ou seja, é impossível diferenciar os infectados dos
saudáveis, ou os infectados conhecerem perfeitamente as próprias condições. Eu
soube de um homem que manteve contato livremente com os outros em Londres, durante
toda a temporada da peste de 1665, e que levava consigo um antídoto ou tônico
com o propósito de tomá-lo quando acreditasse correr algum risco; sua regra
para reconhecer o risco ou dele ser alertado era tal que jamais encontrei antes
ou depois. Até que ponto se pode confiar nela, eu não sei. Ele tinha um ferimento
na perna, e sempre que se via em meio a pessoas que não estivessem saudáveis, e
sempre que a infecção começava a afetá-lo, ele afirmava poder sabê-lo por
aquele sinal, isto é, 0 de que sentia fisgadas em seu ferimento, que
empalidecia e ganhava um aspecto branco; dessa forma, assim que ele sentia a
fisgada, era hora de retirar-se, ou então de precaver-se, tomando de sua poção,
que ele sempre carregava consigo para aquele propósito. Ora, ao que parece, sentia
sua ferida fisgar muitas vezes quando estava em companhia de pessoas que se
acreditavam saudáveis, e que aparentavam saúde aos olhos dos outros. Mas ele
imediatamente se levantava e dizia em alto e bom tom: “Amigos, há alguém aqui
nesta sala que está com a peste”, e então imediatamente se afastava daquela
companhia. Isso era, de fato, uma fiel advertência para todas as pessoas de que
não há como evitar a peste quando promiscuamente se mantém contato com os
outros em uma cidade infectada, e de que as pessoas têm a doença quando não o sabem,
e de que, da mesma forma, a transmitem às outras pessoas quando elas próprias
não sabem que a carregam. E, nesse caso, fechar a fonte ou remover os doentes
não é o bastante, a menos que possam voltar e isolar todos aqueles com os quais
os doentes tiveram contato antes que eles próprios se soubessem doentes, e
ninguém sabe até qual momento do passado essa prática deveria estender-se, ou
em que ponto parar, pois ninguém sabe quando, ou onde, ou como, podem ter
recebido a infecção, ou de quem.
Esse é o motivo, no meu entendimento, para
que muitos falem da corrupção e infecção do ar, e de não precisarem ser
cautelosos a respeito dos contatos que mantinham – pois o contágio estaria no
ar. Já as vi tomadas de estranhas surpresas e inquietações no tocante a isso. “Nunca
me aproximei de nenhum infectado”, diz a pessoa perturbada. “Não tive contato
senão com os sãos e saudáveis, mas ainda assim peguei a infecção !” “Estou
certo de que fui atingido pelos Céus”, diz outro, e esse é dos mais sérios.
Novamente, o primeiro segue exclamando: “Não me aproximei de nenhuma infecção
ou pessoa infectada. Tenho certeza de que a infecção está no ar. Ao respirar,
inspiramos a morte, e portanto a coisa é um ato de Deus. Não há como resistir.”
E isso terminou por fazer com que muitos, já insensíveis ao perigo, se
preocupassem menos com ele, e passassem a ser menos cautelosos nos últimos
tempos da infecção, quando esta chegou ao auge, do que eram no início. E então,
com uma espécie de predestinacionismo turco*, diziam que, se Deus achava por bem
abatê-las, pouca diferença fazia permanecerem em casa ou saírem às ruas. Não
era possível escapar à doença, e portanto circulavam com arrojo por todos os
lugares, entrando mesmo em casas infectadas e mantendo a companhia de gente
infectada; visitavam os doentes, e, em suma, deitavam na cama com suas mulheres
ou parentes quando estes tinham a infecção. E qual foi a consequência disso, se
não a mesma consequência que houve na Turquia, e naqueles países em que se age da
mesma forma – isto é, que outra coisa, senão serem eles infectados também, e
morrerem às centenas e aos milhares?”
*: Os europeus sempre foram críticos do
suposto “fatalismo” islâmico, segundo o qual tudo está escrito e determinado
por Deus. – N.E.
“Sob todas essas observações devo dizer que,
embora a Providência parecesse dirigir minha conduta para outro rumo, ainda
assim tenho a opinião – e devo deixá-la aqui como uma prescrição – de que o
melhor remédio contra a peste é correr para longe dela. Sei que as pessoas
buscam se encorajar dizendo que Deus pode nos salvar quando estamos em meio ao
perigo, e pode nos alcançar quando já nos imaginamos fora dele. E esse
pensamento manteve na cidade milhares de pessoas cujas carcaças foram para as
grandes valas depois de encher muitas carroças, e que, se tivessem fugido do
perigo, acredito, se poriam a salvo do desastre. Pelo menos, isso é provável.
E se esse aspecto muito fundamental for
devidamente considerado pelas pessoas que passarem por ocasiões futuras dessa
mesma natureza, estou persuadido de que isso as faria tomar, para lidar com as
pessoas, medidas inteiramente diferentes daquelas tomadas em 1665, ou de qualquer
medida que tenha sido tomada no exterior, entre as que chegaram ao meu
conhecimento. Em uma palavra, elas considerariam a ideia de separar as pessoas
em agrupamentos menores, e os distanciariam um do outro em tempo hábil – e não
deixariam que um contágio como esse, que é principalmente perigoso para agrupamentos
de pessoas, encontrasse um milhão de pessoas num agrupamento só, como
anteriormente passou muito perto de acontecer, e certamente aconteceria se a
peste aparecesse de novo.
A peste, assim como um grande incêndio, se
houver apenas algumas casas contíguas umas às outras onde ela aparecer, pode
queimar somente algumas poucas casas. Ou, se começar em uma casa sozinha, ou, como
dizemos, solitária, poderá queimar apenas aquela casa solitária em que tiver
início. Mas se começar em uma cidade, pequena ou grande, em que as construções
são próximas umas das outras, e tiver prosseguimento, lá a sua fúria será
maior: devastará o lugar inteiro, e consumirá tudo o que puder alcançar.”
“A peste é um inimigo formidável, e vem
armada de terrores que nem todo homem é forte ou preparado o bastante para
suportar.”