segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Os 77 melhores contos dos Irmãos Grimm (Volume II)

Editora: Nova Fronteira

ISBN: 978-65-5640-255-0

Introdução e organização: Luciana Sandroni

Tradução: Íside M. Bonini

Ilustrações: Silvio Ramirez

Opinião★★★

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Páginas: 296

Sinopse: Ver Volume I


“A desgraça, diz um velho ditado, vem sempre de noite.”

 

 

“Quem acha a chave velha, não necessita mais da nova.”

 

 

O avô e seu neto

Era uma vez um velho, tão velho que já não enxergava bem, os ouvidos estavam quase surdos e os joelhos trêmulos. Era com grande dificuldade que conseguia segurar a colher e sempre derramava a sopa na toalha, deixando-a, também, escorrer pela boca.

O filho e a nora sentiam nojo ao ver isso, e assim ficou resolvido que o velho avô iria sentar-se atrás do fogão. Davam-lhe a sopa numa tigela de barro, mas não muita. O velho olhava com grande tristeza para a mesa e seus olhos enchiam-se de lágrimas.

Certa vez, suas mãos trêmulas não conseguiram segurar nem mesmo a tigela, que caiu no chão, espatifando-se.

A nora brigou muito com ele, mas o avô suspirou e não disse nada. Então ela comprou uma gamela de madeira bem barata e grosseira e ele passou a tomar a sopa na gamela.

Quando estavam todos sentados na sala, o netinho, de quatro anos de idade, juntava pedaços de madeira no chão.

— Que estás fazendo, meu filhinho? — perguntou-lhe o pai.

— Estou fazendo uma gamela — respondeu o menino —, para dar de comer a mamãe e papai quando eu for grande.

Então os pais olharam um para o outro silenciosamente, depois começaram a chorar. Levantaram-se e foram buscar o velho para se sentar à mesa com todos. Daí por diante serviram-no sempre na mesa com eles, nunca mais se importando que deixasse cair sopa na toalha.”

 

 

“— E tu achas que o menino cuidaria dos gansos? — respondeu Henrique. — Hoje em dia, os filhos já não obedecem a ninguém, só fazem o que lhes dá na veneta, porque se julgam mais sabidos do que os pais, justamente como aquele criado que foi procurar a vaca tresmalhada e correu atrás dos melros.”

 

 

“As montanhas não se encontram, mas os homens, bons ou ruins, acabam sempre se encontrando neste mundo.”

 

 

“Os pássaros que muito cantam pela manhã, à tarde são devorados pelo gavião!”

 

 

“Quem abre uma cova para outro, sempre acaba caindo nela.”

 

 

“Só malandros prometem o que não podem cumprir.”

 

 

O camponesinho no céu

Era uma vez um pobre camponês, muito bondoso que ficou gravemente doente e morreu. Ele então foi para o Céu.

Na mesma época, morreu também um nobre muito rico que por sua vez também foi para o Céu.

São Pedro chegou com as chaves, abriu a porta e fez entrar o nobre. Ao que parece, não vira o pobre camponês e tornou a fechar a porta. E do lado de fora o camponês ouvia as grandes comemorações de alegria que se dirigiam ao nobre, acompanhadas com cantos e música.

Por fim, voltou a reinar o silêncio. São Pedro veio abrir a porta e mandou entrar o pobre camponês. Este esperava que à sua entrada também se faria música e cantaria, porém, tudo permaneceu tranquilo.

Foi recebido, sim, com muito agrado, os anjos rodearam-no carinhosamente, mas ninguém cantou.

O camponês, magoado, perguntou a São Pedro a razão por que não cantavam para ele como tinham feito para o nobre, e se no céu reinava a injustiça como na terra.

Então São Pedro explicou-lhe:

— Não, tu és tão caro para nós como todos os demais, e terá todas as delícias do céu como o nobre. Só que pobres camponeses como tu chegam todos os dias ao paraíso, ao passo que nobre tão rico chega um cada cem anos…”

sábado, 27 de novembro de 2021

O homem sem qualidades (Parte IV), de Robert Musil

Editora: Nova Fronteira

ISBN: 978-85-2094-276-5

Tradução: Lya Luft e Carlos Abbenseth

Opinião: ★★★★☆

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Páginas: 1248

Sinopse: Ver Parte I



“Nada é comido tão quente quanto se cozinhou; com o tempo, os mais intensos exageros, entregues a si mesmos, produzem um novo comedimento; não poderíamos nos sentar em nenhum trem, e na rua deveríamos ter sempre na mão uma pistola carregada, se não pudéssemos confiar na lei mediana que torna improváveis as possibilidades exageradas.”

 

 

“Quem hoje se atreve a concretizar ideias políticas básicas tem de ser um pouco especulador e um pouco criminoso!”

 

 

“Mas como, em comparação com a dor atual, a dor antiga parece um velho camarada inofensivo, hoje aquilo parecia apenas uma lembrança de camaradagem e intimidade.”

 

 

“Sem dúvida era um crente, apenas não acreditava em nada: sua maior devoção à ciência jamais conseguira fazê-lo esquecer que a beleza e bondade das pessoas vinha daquilo em que acreditavam, e não daquilo que sabiam. Mas a crença sempre estivera ligada ao saber, embora apenas como um saber imaginado, desde os primeiros dias de seu mágico nascimento. E essa antiga parcela de saber há muito apodreceu e levou consigo, na mesma decomposição, a crença: portanto, hoje é preciso reconstruir essa ligação. E naturalmente não só de maneira a levar a crença “às alturas do saber”, mas de modo a fazê-la sair voando daquelas alturas. A arte de erguer-se acima do saber tem de ser novamente exercitada. E como tal não é possível a um indivíduo, todos deveriam voltar seu sentido para isso, não importa onde o tenham posto.”

 

 

“— Sem dúvida é um hábito repelente da burguesia rica ver algo de diabólico nos loucos e criminosos.”

 

 

“A exigência ideal de amar ao próximo é seguida pelas pessoas reais em duas partes, a primeira dizendo que não suportamos os outros, a segunda querendo que se mantenham relações sexuais com uma metade deles.”

 

 

“Hoje em dia as pessoas só tinham amores sexuais: não suportamos nossos semelhantes, e no entrelaçamento dos sexos as pessoas se amam com crescente revolta contra a exagerada valorização desse impulso.”

 

 

“— Uma pessoa sozinha — respondeu diante da condescendente disposição da irmã de deixar tudo como estava — pode ter uma fraqueza: ela murcha e some no meio de suas outras qualidades. Mas quando duas pessoas dividem uma fraqueza, ela assume, em comparação com as qualidades que não lhes são comuns, um peso duplo, e aproxima-se de uma confissão voluntária.”

 

 

“— Provavelmente, nos anos da puberdade nosso amor por nós mesmos se modifica — disse, sem transições. — Pois aí ceifa-se um prado de ternura em que se brincara até então, para conseguir pasto para um determinado impulso.

— Para que a vaca dê leite! — completou Ágata logo depois, malcriada mas digna, e sem abrir os olhos.

— Sim, certamente tudo isso se liga entre si — disse Ulrich, e continuou: — Portanto, há um momento em que nossa vida perde quase toda a sua ternura, esta murcha, concentra-se naquele único exercício que então fica sobrecarregado. Não lhe parece também que por toda parte no mundo reina uma secura horrível, enquanto num só lugar chove sem parar?

Ágata disse:

— A mim me parece que amei minhas bonecas de menina com uma intensidade como nunca amei homem algum: quando você foi embora, encontrei no sótão uma caixa com velhas bonecas.

— E o que fez com elas? — perguntou Ulrich. — Deu de presente?

— A quem as poderia dar? Eu as joguei no fogo — disse ela.

Ulrich retrucou, vivamente:

— Quando lembro minha infância, posso dizer que naquele tempo “dentro” e “fora” mal se distinguiam um do outro. Quando eu rastejava em direção de alguma coisa, ela vinha ao meu encontro, voando; e quando acontecia alguma coisa que nos parecia importante, ela não só nos excitava, mas as próprias coisas começavam a ferver. Não afirmo que fôssemos mais felizes do que mais tarde. Ainda não nos possuíamos a nós mesmos; na verdade, ainda nem existíamos, nossos estados pessoais ainda não estavam separados do mundo com suficiente nitidez. Parece estranho, mas é verdade quando digo que nossos sentimentos, nossas vontades, nós mesmos, ainda não estávamos inteiramente em nós. Mais estranho é que eu também poderia dizer: ainda não estavam suficientemente distanciados de nós. Pois se hoje, quando pensa possuir a si mesma inteiramente, você por exceção perguntasse quem é na verdade, faria essa descoberta. Sempre se verá de fora, como a uma coisa. Notará que numa ocasião fica irada, noutra fica triste, assim como seu casaco uma vez está molhado, outra quente. Por mais que observe, quando muito conseguirá descobrir-se, nunca entrar em si mesma. Você fica fora de si própria, não importa o que faça, exceto naqueles poucos momentos em que se poderia dizer que está fora de si. Para compensar isso, quando adultos conseguimos poder pensar em todas as ocasiões, “eu sou”, caso isso nos divirta. Você vê um carro, e de alguma forma também vê, de um modo espectral: “Estou vendo o carro.” Você ama ou está triste, e vê que está amando ou sendo triste. Mas em sentido pleno, nem o carro nem sua tristeza ou seu amor nem você mesma estão ali inteiramente. Nada está mais inteiramente como esteve uma vez, na infância. Mas tudo o que você toca está congelado, até no seu interior mais remoto, assim que você chegou a ser uma “personalidade”, e o que sobrou, envolto por um ser totalmente exterior, é como um fantasmagórico fio de névoa da autoconsciência e de um tristonho amor-próprio. O que está errado nisso? Temos a sensação de que ainda se poderia voltar atrás! Não podemos afirmar que uma criança tenha experiências totalmente diferentes das de um homem. Não sei resposta definitiva a isso, embora possa haver vários pensamentos a respeito. Mas há muito respondi a isso perdendo o amor por esse tipo de eu e de mundo.”

 

 

“O pequeno feitiço continua igual a si mesmo, não importa se vemos uma mulher nua pela primeira vez, ou se vemos pela primeira vez uma menina de vestido fechado, e as grandes paixões desenfreadas ligam-se a isso, ao fato de que o ser humano imagina que seu mais secreto eu o espreita atrás das cortinas dos olhos alheios.”

 

 

“Tudo o que Ágata até aqui sentira, no breve tempo desde sua meninice, como fracasso seu diante das exigências da vida social, fora causado porque passara aquele tempo sem viver suas tendências mais íntimas, ou até vivendo contra elas. Eram tendências para entrega e confiança, pois jamais se sentira tão à vontade na solidão quanto o irmão; mas se até ali lhe fora impossível entregar-se com toda a alma a uma pessoa ou causa, era porque ela trazia em si a possibilidade de uma entrega maior, não importava se essa estendesse os braços para o mundo ou Deus! Um conhecido caminho para entregar-se a toda a humanidade é não suportarmos nosso vizinho, e da mesma forma pode surgir um oculto e fervoroso anseio por Deus quando um tipo associal foi provido de um grande amor: nesse sentido, o criminoso religioso não é um absurdo maior do que a velhota religiosa que não encontrou marido.”

 

 

“Ágata devia ter subido e caminhado assim cerca de uma hora, quando de repente se viu diante daquele bosquezinho de que se lembrava. Rodeou uma sepultura esquecida à beira da mata, onde há quase cem anos um poeta se suicidara e, segundo sua última vontade, fora também enterrado. Ulrich dissera que não tinha sido um bom poeta, embora famoso, e a poesia um tanto míope que se expressa no pedido ser enterrado num belvedere lhe provocara duras críticas. Mas Ágata gostava da inscrição na grande lápide, desde quando, num passeio, tinham decifrado juntos suas belas letras Biedermeier lavadas e apagadas pela chuva; e curvou-se sobre as correntes negras, feitas de elos graúdos e angulosos, que rodeavam o quadrado da morte isolando-o da vida.

“Eu não vos signifiquei nada”, mandara o poeta colocar em sua tumba, e Ágata pensou que o mesmo se podia dizer dela. Esse pensamento, à beira de um bosque, sobre os verdes vinhedos e a cidade estranha e imensurável que balouçava lentamente ao sol da manhã sua cauda de fumaça, comoveu-a mais uma vez. Ajoelhou-se sem pensar e encostou a testa numa das colunas de pedra que sustentavam as correntes; a posição inusitada e o toque frio da pedra imitavam a paz hirta e abúlica da morte que esperava por ela. Tentou concentrar-se. Mas não o conseguiu logo: em seu ouvido entravam cantos de pássaros, havia tantos sons diferentes que ela se surpreendeu; galhos moviam-se, e, como ela não notasse o vento, pareceu-lhe que as próprias árvores agitavam seus ramos; ouviram-se passinhos leves no súbito silêncio; a pedra que tocava, repousando sobre ela, era tão lisa como se houvesse entre ela e sua testa um pedaço de gelo impedindo um toque completo. Só algum tempo depois entendeu que naquilo que a distraía expressava-se exatamente o que queria perceber, aquele sentimento fundamental de ser supérflua; e, se o quisermos designar da maneira mais simples, devemos dizer que a vida seria tão completa sem Ágata que ela nada tinha a fazer ou procurar ali. Esse sentimento cruel no fundo não era desesperado nem magoado, apenas um ouvir e ver, como Ágata sempre fizera, mas sem nenhum impulso ou sequer a possibilidade de participar. Havia nessa exclusão quase uma sensação de abrigo, assim como há um espanto que esquece de fazer qualquer indagação. Daria no mesmo se ela fosse embora. Para onde? Devia haver um “onde”. Ágata não era dessas pessoas nas quais também a convicção da insignificância de todas as fantasias causasse satisfação semelhante à abstinência belicosa ou astuciosa com a qual aceitamos nosso insatisfatório destino. Ela era generosa e espontânea nesses assuntos, não como Ulrich que causava as maiores dificuldades às suas emoções para proibir-se de tê-las, se não suportassem a prova. É que ela era tola! Sim, dizia isso a si mesma. Não queria refletir! Obstinada, premiu a testa baixada contra as correntes de ferro que cederam um pouco e depois resistiram, esticadas. Nas últimas semanas ela começara a acreditar novamente em Deus, de alguma forma, mas sem pensar nele. Certos estados em que o mundo sempre lhe parecera diferente do que parecia ser, como se ela não vivesse mais excluída mas mergulhada numa radiante convicção, tinham sido levados por Ulrich à beira de uma metamorfose interior e de uma transformação completa. Ela teria sido livre, disposta a imaginar um Deus que abre seu mundo como quem abre um esconderijo. Mas Ulrich dizia que não era preciso, quando muito faria mal imaginar mais do que se podia experimentar. E decidir isso era assunto para ele. Mas então, teria de guiá-la, sem a abandonar. Ele era a soleira entre duas vidas, e toda a nostalgia que ela sentia por uma delas, e toda a fuga da outra, levava primeiro a ele. Ela o amava na maneira despudorada com que se ama a vida. De manhã, ele despertava em todos os membros dela, quando abria os olhos. Também agora fitava-a do escuro espelho da sua dor: e só então Ágata lembrou outra vez que queria se matar. Tinha a sensação de ter fugido de casa por birra, em direção de Deus, quando saíra com o propósito de se matar. Mas o propósito agora devia ter-se esgotado, voltando à sua origem, que era ter sido magoada por Ulrich. Estava zangada com ele, ainda sentia isso, mas os pássaros cantavam e ela voltou a escutá-los. Estava tão confusa como antes, mas agora de uma confusão alegre. Queria fazer alguma coisa que atingisse a Ulrich, não apenas a ela. A rigidez infinita em que estivera ali ajoelhada cedeu ao calor do sangue que lhe jorrava vivo nas veias enquanto se levantava do chão.”

 

 

“O inferno não é interessante, é terrível. Quando não o humanizamos — como Dante, que o povoou com literatos e pessoas importantes, e com isso desviou a atenção das técnicas de punição —, mas tentamos dar uma visão original dele, mesmo as pessoas mais fantasiosas não conseguem superar os pueris tormentos e pobres deformações das qualidades terrestres. Mas exatamente o vazio pensamento da punição e tormento inimagináveis e por isso inevitáveis, e infinitos, a pressuposição de uma transformação, insensível a todos os esforços contrários, em direção do mal, tem a atração de um abismo. Assim são também as casas de loucos. São asilos de pobres. Têm algo da falta de imaginação do inferno. Mas muitas pessoas, que não sabem das causas das enfermidades mentais, não receiam nenhuma possibilidade tanto quanto a de perder a razão um dia, exceto a de perderem seu dinheiro; e é singular quantas pessoas sentem isso, torturadas pela ideia de um dia poderem se perder de repente. Pela supervalorização do que pensam de si mesmas segue provavelmente a supervalorização do horror que os sadios imaginam habitar os asilos dos enfermos.”

 

 

“Sua Alteza não considerava as outras pessoas tolas, embora se julgasse mais inteligente que elas.”

 

 

“O conde Leinsdorf perguntou:

— Diga, quem é afinal esse Feuermaul?

— Seu pai tem várias empresas na Hungria — respondeu Ulrich. — Acho que alguma coisa ligada a fósforo, na qual nenhum operário chega a mais de quarenta anos. Doença profissional: necrose óssea.

— Sim, mas e o rapaz? — O destino dos operários não atingia o conde.

— Ele devia ter estudado. Direito, eu acho. O pai é um self-made-man e ficou aborrecido porque o rapaz não tinha vontade de estudar.

— Por que não teve vontade de estudar? — perguntou o conde Leinsdorf, que naquele dia estava muito minucioso.

— Santo Deus — disse Ulrich dando de ombros —, provavelmente: “Pais e filhos.” Quando o pai é pobre, os filhos amam o dinheiro; quando papai tem dinheiro, os filhos voltam a amar a humanidade. Vossa Alteza ainda não ouviu falar do problema do filho em nosso tempo?

— Sim, ouvi alguma coisa. Mas por que Arnheim protege esse Feuermaul? Isso tem ligação com as jazidas de petróleo? — perguntou o conde Leinsdorf.

— Vossa Alteza sabe disso? — exclamou Ulrich.

— Claro, sei de tudo — respondeu Leinsdorf pacientemente.”

 

 

“O que distingue um homem sadio de um doente mental é exatamente que o sadio tem todas as doenças mentais, e o enfermo apenas uma!”

 

 

“É sabidamente um grande alívio, quando nos aborrecemos, aliviarmos nossa raiva em alguém, ainda que essa pessoa não tenha nenhuma culpa; só que de hábito se esquece isso quando se trata do amor. Porém é a mesma coisa, e o amor muitas vezes tem de ser aliviado em alguém que não tem culpa nenhuma, caso não encontre outra oportunidade de se expandir.”

 

 

“Desde as inspirações do homem fora do comum até o kitsch que une os povos, aquilo que Ulrich chamava fantasia moral ou simplesmente sentimento, formava uma única e secular fermentação sem escapamentos. O ser humano não consegue viver sem entusiasmo. Entusiasmo é o estado no qual todos os seus sentimentos e pensamentos têm o mesmo espírito. Você pensa, quase que pelo contrário, que o entusiasmo é o estado em que um sentimento é demasiado forte, um só, que — o arrebatamento! — arrebata os demais? Não, você não quis dizer nada a respeito? Mesmo assim, é isso. Também é isso. Mas a força desse entusiasmo é insopitável. Sentimentos e pensamentos ganham continuidade uns pelos outros, como um todo, precisam de certa forma seguir na mesma direção, arrebatar-se mutuamente. E com todos os meios, drogas, fantasias, sugestão, fé, convicção, muitas vezes apenas com ajuda do efeito simplificado da burrice, cada ser humano trata de criar um estado parecido com isso. Acredita em ideias, não porque às vezes sejam verdadeiras, mas porque precisa acreditar. Porque precisa manter seus afetos em ordem. Através de uma ilusão, deve tapar o buraco entre as paredes de sua vida, pelo qual, de outro modo, seus sentimentos voariam aos quatro ventos. O correto seria provavelmente, em vez de entregar-se a estados aparentes efêmeros, procurar pelo menos as condições de um verdadeiro entusiasmo. Mas, embora no total o número de decisões que dependem do sentimento seja infinitamente maior do que aquelas que se realizam com a pura sensatez, e todos os acontecimentos que movem a humanidade nasçam da fantasia, só as questões racionais são ordenadas de maneira suprapessoal, e para o resto nada foi feito que mereça o nome de esforço comum, ou que ao menos revele sua desesperada necessidade.”

 

 

““É preciso ser duro como um diamante e terno como uma mãe!”, pensou, evocando uma velha definição do século XVII.”

 

 

“Dedica uma parcela de tua solidão à serena reflexão sobre teu próximo, principalmente se não concordas com ele: talvez venhas então a entender e usar melhor o que te causa repulsa, e aprendas a poupá-lo na fraqueza e a encorajá-lo na virtude que possivelmente está apenas intimidada!”

 

 

“Só posso concluir que temos de ser como queremos que sejam nossos filhos!” (Matthias Claudius)

 

 

“Ele teve ocasião de falar do paradoxo melindroso e por muitos repudiado de que qualquer compreensão pressupõe uma certa superficialidade, uma tendência à superfície, que, no mais, se expressava na palavra “compreender”, pois as experiências originárias não se entendiam isoladas, mas uma pela outra, sendo, portanto, inevitável que se entrelaçassem mais na superfície que na profundidade.”

 

 

“Mudando um provérbio, talvez se possa dizer que uma consciência pesada é quase um melhor travesseiro que a tranquila, basta que seja pesada o bastante.”

 

 

“— As duas contradições estão sempre presentes e formam uma quadriga: amamos uma pessoa porque a conhecemos e porque não a conhecemos; e a conhecemos porque a amamos, e não a conhecemos porque a amamos. E isso por vezes atinge um ponto em que se torna bastante sensível. São os famosos momentos em que Vênus e Apolo veem um gancho vazio ao se fitarem, ficando profundamente admirados por terem antes visto outra coisa. Se o amor continua mais forte que o espanto, vai haver uma luta entre estes dois, e às vezes o amor sai vencedor, embora desesperado, esgotado e incuravelmente ferido. Se ele, porém, não for tão forte, haverá uma luta entre as pessoas, ofensas, para compensar ter-se bancado o bobo... haverá terríveis assaltos da realidade... desonras extremas... — Já passara por esses temporais do amor com bastante frequência para poder descrevê-los calmamente.”

 

 

“— Até no pensamento, onde tudo está num contexto lógico e objetivo — prosseguiu Ulrich —, em geral só aceitamos plenamente a convicção superior de outra pessoa quando também nos submetemos a ela de alguma forma, seja como modelo e guia, seja como amigo ou mestre. Sem esse sentimento, que não tem nada a ver com a coisa, só aceitamos a opinião alheia com a ressalva implícita de que nós mesmos seremos melhores guardiães dela que o próprio autor; isso quando não temos a intenção de mostrar ao sujeitinho a insuspeitada importância de sua ideia! E na arte, então, a maioria das pessoas sabe muito bem que seria impossível produzirmos nós mesmos aquilo que lemos, vemos e ouvimos; mas temos a consciência condescendente de que, se soubéssemos fazer, faríamos logo muito melhor! Talvez tenha de ser assim, e isso faça parte da natureza ativa do espírito, que não podemos encher como uma panela vazia — concluiu Ulrich —, mas que é atuante ao apreender, tendo deveras de a-prender.”

 

 

“O amor tem o efeito benéfico de fazer-nos cegos! — retrucou Ulrich. — O amor ofusca: essa simples frase contém a metade dos enigmas do amor ao próximo, que nos propusemos!

— Pode-se, no máximo, acrescentar ainda que o amor também faz ver o que não existe — afirmou Ágata, concluindo, pensativa: — No fundo, essas duas frases contêm tudo de que precisamos no mundo, para, apesar dele, sermos felizes!”

 

 

“Será que amamos uma coisa porque é bela, ou ela fica bela por ser amada.”

 

 

“Ulrich parecia ter se desviado, mas prosseguiu nessa direção: “Pelo visto, é essa a razão por que eu hoje tenho de anotar: a história, os acontecimentos, até a arte, surgem... de uma falta de felicidade. Mas tal falta não deriva das circunstâncias que nos impediriam de atingir a felicidade, e sim de nosso próprio sentimento. Este constitui a viga cruzada da dupla qualidade: não tolera qualquer outro a seu lado e não é ele próprio persistente. Dessa forma, tudo a que ele está ligado ganha a aparência de validade eterna, e, apesar disso, todos nós procuramos abandonar as criações de nosso sentimento e mudar as opiniões que neles se expressam. Pois um sentimento se transforma a partir do momento em que perdura; não possui constância e identidade; precisa ser consumado de novo. Sentimentos não são apenas mutáveis e inconstantes — como, aliás, são considerados —, mas tornar-se-iam cabalmente assim no momento exato em que deixassem de sê-lo. Tornam-se falsos quando duram. Precisam surgir sempre de novo, caso devam permanecer, e, mesmo assim, serão outros. Uma ira que durasse cinco dias não seria mais ira, mas perturbação mental; ela se transforma em perdão ou disposição para a vingança, e algo de semelhante acontece com todos os sentimentos.

Nosso sentimento procura esteio naquilo que configura, e por um tempo sempre o acha. Mas Ágata e eu sentimos no que nos rodeia o temor oculto, a tendência centrífuga do que se encontra junto, o desdito no dito, a peregrinação das paredes supostamente firmes; vemos e ouvimos isso de repente. Parece-nos uma aventura e duvidosa companhia viver ‘uma época’. Encontramo-nos na floresta mágica. E embora ainda não abarquemos e mal conheçamos ‘nosso’ sentimento, esse sentimento diferente, temos medo por ele e gostaríamos de retê-lo. Mas, como reter um sentimento? Como seria possível permanecer no mais alto degrau da felicidade, caso se consiga atingi-lo? No fundo, essa é a única questão que nos ocupa. Temos o pressentimento de um sentimento que escapa à efemeridade dos restantes. Encontra-se na corrente frente a nós como uma maravilhosa sombra imóvel. Mas, para perdurar, não teria de deter a marcha do mundo? Chego à conclusão de que não pode ser um sentimento no mesmo sentido dos outros.”

E, de repente, Ulrich concluía: “Volto assim à questão: o amor é um sentimento? Creio que não. O amor é um êxtase. E para amar perenemente o mundo, para poder abarcar também o passado com o amor do Deus-Artista, o próprio Deus precisaria ficar num êxtase constante. Só como tal seria concebível...””

 

 

“É própria dos sentimentos a tentativa enérgica e muitas vezes apaixonada de transformar os estímulos aos quais devem sua aparição, e de eliminá-los ou favorecê-los; e as direções principais da existência são para fora e de fora. Por isso, a ira traz em si o contra-ataque, o anseio a aproximação, e o medo a transição para fuga, paralisia ou, situado entre ambas, o grito. Mas também a reação desse comportamento ativo imprime ao sentimento boa parte das particularidades e do conteúdo que o caracterizam; a conhecida frase de um psicólogo americano, segundo a qual ‘não choramos porque estamos tristes, mas estamos tristes porque choramos’, pode ser exagerada; é certo, porém, que não apenas agimos como sentimos, mas também logo aprendemos a sentir conforme nossos atos, sejam quais forem seus motivos.

Um conhecido exemplo para esse vaivém é a briga de cães que começa como alegre brincadeira e termina num duelo sangrento, mas o mesmo pode ser igualmente observado em crianças e pessoas simples. E toda a bela teatralidade da vida não consiste afinal num grande exemplo disso, com seus gestos, meio a sério, meio vazios, de honra e honraria, de ameaça, gentileza, contenção e tudo o mais, gestos de querer representar alguma coisa e de representação, que descartam o juízo e influenciam diretamente o sentimento? Até a ‘disciplina’ faz parte disso, baseando-se no efeito de impor por longo tempo um comportamento, para que suscite afinal o sentimento que deveria originá-lo.”

“Mais importante que a repercussão dos atos é, tanto nesses como em outros exemplos, o fato de uma vivência mudar de significado quando, em seu decurso, passa, do âmbito das forças características que de início a conduziam, para o de outras ligações da alma. Pois do lado de dentro ocorre algo de semelhante ao exterior. O sentimento preme para dentro; ele ‘toma inteiramente a pessoa’, como se diz, não sem acerto; afasta o que não se conforma a ele e favorece o que pode lhe servir de alimento. Num tratado de psiquiatria, eu li estranhas denominações para isso: ‘força de comutação’ e ‘trabalho de comutação’. Ao mesmo tempo, o sentimento estimula o interior a voltar-se para ele. A disponibilidade interna, na medida em que não se exauriu no primeiro momento, preme pouco a pouco em sua direção; e assim que captura forças maiores, armazenadas em pensamentos, lembranças, princípios etc., o sentimento também é inteiramente capturado por elas, e elas o transformam de tal modo que fica difícil dizer quem se apossa de quem.

Mas, uma vez atingido seu ápice por intermédio de tais processos, são eles que vão novamente enfraquecer e diluir o sentimento. Pois outros sentimentos e vivências, que não mais se submetem integralmente a ele, irão então cruzar sua esfera e, por fim, até mesmo desalojá-lo. Na verdade, esse curso contrário, ligado à satisfação e ao desgaste, começa com a própria aparição do sentimento; pois sua expansão não significa apenas um aumento de seu poder, mas ao mesmo tempo também um arrefecimento das necessidades das quais ele se origina ou se serve.

Isso deve igualmente ser levado em conta com relação aos atos; pois o sentimento não apenas se exalta, mas também se arrefece na ação; e sua saturação, quando não é perturbada por outro sentimento, prossegue até o fastio, quer dizer, até o ponto em que surge novo sentimento.”

“É preciso mencionar especialmente uma coisa. Enquanto subjuga o interior, o sentimento entra também em contato com atividades que colaboram para a vivência e a compreensão do mundo exterior; e assim, o mundo, como nós o entendemos, acabará em parte padronizado segundo o modelo e sentido do próprio sentimento, que procura se fortalecer por intermédio desses ecos. Os exemplos são conhecidos: quando sentimos intensamente, ficamos cegos para o que pessoas imparciais percebem, e percebemos o que outros não veem. A pessoa triste vê as coisas pretas e despreza o que poderia iluminá-las; a alegre vê o mundo iluminado e é incapaz de perceber algo que perturbe esse quadro; quem ama ganha a confiança das piores pessoas; e o desconfiado não apenas vê sua desconfiança confirmada em toda parte, mas as confirmações chegam a desabar sobre ele. Dessa maneira, atingindo certa força e duração, cada sentimento constrói seu próprio mundo, um mundo selecionado e cheio de conexões, o que não é de somenos importância nas relações humanas! Nisso se incluem nossa notória inconstância e nossas arbitrariedades”.”

 

 

“Sendo fluxo constante, os sentimentos não se deixam deter; não se deixam, portanto, ‘examinar detidamente’; quer dizer, quanto mais precisamente os observamos, tanto menos sabemos o que sentimos. A atenção já é uma modificação do sentimento. Todavia, se eles fossem uma ‘mistura’, esta deveria na verdade apresentar a maior nitidez no momento de parada, embora a atenção se intrometa.”

 

 

“Nesse momento, havia algo em seu rosto que teria feito sua falecida mãe recordar o menino no qual ela toda manhã dava um grande laço bonito embaixo do queixo, antes de ele ir para a escola; poderíamos designar esse algo como falta total de brutalidade masculina. Essa lacuna torna impossível um garoto viver entre outros garotos. O corpo comprido, grande, mas sem forças, de perninhas finas, parecia uma lança com a cabeça espetada em cima, boiando sobre a arena ensurdecedora dos colegas de escola, que troçavam daquele laço dado por mão materna; e, em pesadelos, o professor Lindner ainda hoje se via por vezes nessa situação, sofrendo pelo bem, pelo belo, pelo verdadeiro. Mas, exatamente por isso, ele nunca confessava ser a brutalidade uma qualidade indispensável ao homem, comparável ao cascalho que é misturado à argamassa para dar-lhe solidez; e, principalmente depois que se transformara no homem que se orgulhava de ser, via naquela antiga lacuna uma confirmação de que nascera para melhorar o mundo, mesmo que em escala modesta. Bem, mas hoje já estamos acostumados com a explicação de que os grandes oradores surgem por problemas da fala e os heróis pela fraqueza, com outras palavras, que nossa natureza sempre precisa abrir um buraco quando quer que ergamos uma montanha acima dele; e como os semi-ignorantes e semisselvagens que, predominantemente, determinam o curso da vida quase que veem em cada gago um Demóstenes, fica mais fácil ainda considerar como sinal de bom gosto espiritual quando alguém declara que o mais importante em Demóstenes é sua gagueira inicial. Todavia, ainda não se conseguiu atribuir as façanhas de Hércules ao fato de que ele tenha sido uma criança franzina, ou os recordes em corrida e salto a um pé chato, ou ainda a coragem a um caráter medroso, sendo, portanto, necessário convir que um talento especial requer algo mais que a própria falta!”

 

 

“Um homem firme jamais fará seu próprio comportamento depender do comportamento alheio.”

 

 

“As obras do sentimento definham quando a experiência amorosa imediata não torna a revigorá-las.”

 

 

“É sobretudo a evolução em direção ao sentimento definido o que acarreta a inconstância e fragilidade da vida psíquica. Que não possamos reter o instante em que sentimos; que os sentimentos murchem, mais rápidos que as flores, ou se transformem em flores de papel quando pretendem perdurar; que a felicidade e a vontade, a arte e o ideário sejam passageiros — tudo isso decorre do caráter definido do sentimento, que lhe imprime um destino e o empurra para dentro do curso da vida, onde será dissolvido ou modificado. O sentimento que se mantém sem definições e limites é, pelo contrário, relativamente imutável. Veio-lhe uma comparação: “Um morre, como um indivíduo, o outro permanece, como uma espécie ou gênero.” Quem sabe se, de fato, mesmo que indiretamente, não se reproduz assim na disposição do sentimento numa disposição geral da vida.”

O homem sem qualidades (Parte III), de Robert Musil

Editora: Nova Fronteira

ISBN: 978-85-2094-276-5

Tradução: Lya Luft e Carlos Abbenseth

Opinião: ★★★★☆

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Páginas: 1248

Sinopse: Ver Parte I


 

“Mas muitas vezes temos, por espírito esportivo, tolerância com atos que nos fazem mal, só porque o adversário os executa de maneira elegante; o valor da execução concorre então com o valor do prejuízo. Muitas vezes também temos uma ideia segundo a qual continuamos agindo por algum tempo, mas, em breve, hábito, inércia, vantagem, influências, ocupam seu lugar, porque não há outro jeito.”

 

 

“— Urgente? Quando meus chefes de seção me trazem um ofício urgente eu costumo dizer: nada é urgente no mundo senão o caminho da latrina.”

 

 

“A era contemporânea foi presenteada com uma porção de grandes ideias, e, para cada ideia, por especial gentileza do destino, recebeu também uma contraideia, de modo que individualismo e coletivismo, nacionalismo e internacionalismo, socialismo e capitalismo, imperialismo e pacifismo, racionalismo e superstição convivem muito bem dentro dela, juntando-se a eles ainda os restos não consumidos de incontáveis outros contrários, de maior ou menor valor atual. Isso parece tão natural quanto dia e noite, frio e calor, amor e ódio, e a cada músculo extensor no corpo humano corresponde o contrário músculo retrator; o general Stumm jamais teria tido a ideia de ver nisso nada de estranho, se através do seu amor por Diotima não tivesse sido jogado naquela aventura. Pois o amor não se contenta com o fato de que a unidade da natureza repousa em contrários, mas, no seu desejo de ternura, pretende produzir uma unidade sem contrários, unidade essa que o general tentara de todos os modos conseguir.”

 

 

“— Mas não temos tanto interesse quanto você em procurar uma síntese. Os esforços passados nos levaram a uma regressão. Imagine o que acontece hoje em dia: quando um homem importante coloca uma ideia no mundo, ela é imediatamente submetida a um processo de distribuição que consta de simpatia e repulsa; primeiro, os admiradores arrancam grandes nacos que mais lhes agradam, e devoram o seu mestre como raposas devoram carniça; depois, os adversários eliminam os pontos fracos, e, em breve, de toda a façanha nada sobra senão uma provisão de aforismos, dos quais amigos e inimigos se servem. O resultado é uma ambiguidade generalizada. Não existe um sim no qual não se possa pendurar um não. Você pode fazer o que quiser, sempre encontrará vinte das mais belas ideias a favor e, se procurar, vinte contra. Seria de acreditar que é como no amor, no ódio e na fome: o gosto tem de ser diferente, para todos terem sua parcela!”

 

 

“Arnheim estava intimamente convencido de que as pessoas que criam — e, à frente delas, unindo-as numa nova era, os homens de negócios mais importantes — são chamadas a substituir em algum ponto do futuro as velhas forças do ser, e isso lhe dava uma serena altivez que os acontecimentos ulteriores vieram a confirmar. Mas mesmo que se tomasse como certo esse direito do dinheiro ao poder, restava perguntar como se aplicar corretamente o poder ambicionado. Os antecessores dos diretores de banco e grandes industriais tiveram vida mais fácil por terem sido cavaleiros e transformarem seus adversários em picadinho, entregando as armas do espírito ao clero; mas o homem contemporâneo tem no dinheiro, segundo acreditava Arnheim, o mais seguro método de tratar todas as relações; mas, embora esse método possa ser duro e preciso como uma guilhotina, pode ser tão melindroso quanto um reumático — basta pensar nas sensíveis flutuações da Bolsa! — e depende absolutamente de tudo o que é por ele dominado.”

 

 

“O perigo da ligação com grandes coisas quando a grandeza dessas coisas está meio corroída. Nada é mais fácil do que sorrir do contínuo que em nome de Sua Majestade tratou com desdém o público; mas se o homem que, em nome do amanhã, trata o hoje de alto para baixo é um contínuo ou não, isso habitualmente não sabemos enquanto não for depois de amanhã. O perigo da ligação com grandes coisas tem uma característica muito desagradável: as coisas mudam, mas o perigo permanece o mesmo.”

 

 

“Os tempos presentes são cheios de expectativa, impaciência, descontrole e infelicidade; o Messias em quem se espera e por quem se espera, porém, ainda não está à vista.”

 

 

“— É uma presunção de minha parte — começou ele de novo naquele tom um pouco entediado mas decidido que, em sociedade, exprime tristeza por ter de entediar também ao outro porque a situação não permite coisa melhor —, certamente é presunção minha tentar definir diplomacia na sua presença; mas espero que me corrija. Tentarei dizer que a diplomacia presume que se possa atingir uma ordem confiável das coisas unicamente utilizando a mentira, a covardia, o canibalismo, em suma, as sólidas baixezas do ser humano; ela é um idealismo em baixa, para usar novamente sua excelente expressão. E eu acho isso encantadoramente melancólico, pois pressupõe que a inconfiabilidade de nossas forças superiores nos facilita o caminho ao antropófago da mesma forma que permite o acesso à crítica da razão pura.

— Infelizmente — defendeu-se o subsecretário —, o senhor tem uma visão romântica da diplomacia, e, como tanta gente, confunde política com intriga. Isso pode estar correto para os tempos em que ela era exercida por príncipes, amadores nesse campo; mas não é correto num tempo em que tudo depende de considerações burguesas. Não somos melancólicos, mas otimistas. Temos de acreditar num futuro melhor, ou não resistiríamos diante de nossa própria consciência, que não é diferente da de outras pessoas. Se quiser realmente usar a palavra canibalismo, posso apenas dizer que o mérito da diplomacia é evitar que o mundo pratique canibalismo; mas para podermos fazer isso, precisamos acreditar em alguma coisa superior.”

 

 

“A antiga máxima austríaca, de que o cidadão não deve refletir sobre todas as coisas, tinha razão. Raramente nasce disso algo de bom, salvo a fácil arrogância.”

 

 

“Todo homem rico considera a riqueza uma qualidade de caráter. Todo homem pobre também. Todo mundo está silenciosamente convicto disso. Só a lógica cria aqui algumas dificuldades, afirmando que a posse de dinheiro talvez conduza a certas qualidades, mas jamais pode ser, ela mesma, uma qualidade humana. A mentira salta aos olhos. Todo nariz humano cheira imediatamente o doce aroma de independência, hábito de comando, hábito de escolher sempre o melhor para si, o leve desprezo pelo mundo e a constante e consciente responsabilidade pelo poder, que nascem de uma renda certa e volumosa. Percebe-se pela aparência de uma pessoa dessas que ela é nutrida e diariamente renovada por forças selecionadas no mundo inteiro. O dinheiro circula em sua superfície como a seiva em uma flor; não há empréstimo de qualidades, conquista de hábitos, nada que seja indireto ou de segunda mão: mas destrua-se a conta bancária e o crédito, e o homem rico não só não terá mais dinheiro, mas no dia em que se der conta disso, será uma flor murcha. Com a mesma evidência com que antes se percebia a qualidade de sua riqueza percebe-se, só agora, a indescritível qualidade do nada nele, que cheira a uma nuvem chamuscada de insegurança, inconfiabilidade, incompetência e pobreza. Portanto, a riqueza é uma qualidade pessoal, simples, que se destrói quando decomposta.

Mas o efeito e as funções dessa rara qualidade são extraordinariamente enredados e exigem força psíquica para serem dominados. Só gente que não tem dinheiro imagina a riqueza como um sonho; pessoas que o têm, em todas as oportunidades em que encontram pessoas pobres, afirmam que ele é um grande incômodo. Arnheim, por exemplo, pensara muitas vezes que, na verdade, qualquer chefe de seção técnica ou comercial de sua firma o superava em alguma capacidade especial, e precisava assegurar-se todas as vezes de que, considerados de um ponto de vista bastante elevado, os pensamentos, o saber, a lealdade, a cautela e coisas semelhantes parecem qualidades compráveis, porque existem em abundância, enquanto que a capacidade de se servir delas presume qualidades que poucos possuem — no caso, os que já nasceram e cresceram nas alturas.

Outra dificuldade não pequena para as pessoas ricas é que todas as pessoas querem dinheiro delas. Dinheiro não importa; é verdade, um homem rico não sente a presença ou falta de alguns milhares ou dezenas de milhares de marcos. Os ricos gostam de afirmar em todas as oportunidades que o dinheiro não muda em nada o valor de uma pessoa; com isso querem dizer que sem dinheiro valeriam tanto quanto valem hoje, e sempre ficam ofendidos quando alguém os interpreta mal. Infelizmente, na relação com intelectuais isso não raro lhes acontece. Os intelectuais raramente têm dinheiro, só planos e talento, mas não se sentem diminuídos em seu valor; e parecem gostar de pedir a um amigo rico, que não se importa com dinheiro, que os ajude com esse excesso de riqueza em algum bom propósito. Não compreendem que o homem rico os gostaria de apoiar com suas ideias, sua capacidade e atração pessoal. Dessa maneira o colocamos além do mais em litígio com a própria natureza do dinheiro, pois este quer se multiplicar assim como a natureza animal anseia pela reprodução. Pode-se meter dinheiro em maus negócios, e ele perecerá então no campo da honra monetária; pode-se comprar um carro embora o velho esteja praticamente novo, desembarcar nos mais caros hotéis de estações de água do mundo em companhia do cavalo de polo preferido, instituir prêmios de corridas ou de artes, ou gastar num jantar com cem convidados uma quantia que alimentaria cem famílias por um ano: tudo isso é jogar dinheiro pela janela como um semeador joga sementes, e ele entrará novamente pela porta, multiplicado. Mas gastá-lo silenciosamente com objetivos e pessoas que não nos dão proveito é como assassinar o dinheiro. Talvez os objetivos sejam bons e as pessoas incomparáveis; nesse caso, devem ser estimuladas por todos os meios, à exceção do dinheiro.”

 

 

“Achamos boas as coisas que fazemos, mas temos nossas reservas quando outros as fazem. Individualmente, qualquer menino de colégio entendia isso, mas ninguém sabia ao certo o que estava acontecendo, exceto algumas pessoas, e estas não tinham certeza de saber.”

 

 

“Quando uma vida é intensa não se pode também exigir que seja boa.”

 

 

“A diferença entre um pensamento que tem altas aspirações e um pensamento simplesmente ambicioso é quase impalpável.”

 

 

“— Ainda hoje dizemos: eu amo esta mulher, e odeio aquela pessoa, em vez de dizer, elas me atraem ou repelem. Para sermos mais exatos, deveríamos acrescentar: sou eu quem desperta nelas a capacidade de me atrair ou repelir. E para sermos mais exatos ainda, seria preciso acrescentar que elas fazem brotar em mim as qualidades necessárias para isso. E assim por diante; não se pode dizer onde se dá o primeiro passo, pois é uma dependência mútua, funcional, como entre dois balões de borracha ou dois circuitos elétricos. E naturalmente há muito tempo sabemos que também nós deveríamos sentir assim, mas ainda preferimos, de longe, ser a causa primeira nos campos de força das emoções que nos rodeiam; mesmo quando um de nós admite que imita outro, exprime isso como se fosse uma realização ativa! Por isso perguntei, e pergunto de novo, se já se apaixonou desmedidamente, ou se sentiu desmedidamente irada ou desesperada. Pois então, com um pouco de capacidade de observação, a gente compreende perfeitamente que no meio da maior excitação somos como uma abelha numa janela, ou um infusório numa água envenenada; sofremos uma tempestade emocional, corremos cegamente para todos os lados, batemos cem vezes contra o impenetrável, e uma vez, com sorte, passamos pela porta que dá para a liberdade, o que mais tarde, é claro, no rígido estado consciente, julgamos ter sido ato planejado.”

 

 

“Talvez exatamente aqueles que não suporto falam aquilo que um dia desejei.”

 

 

“A verdade verdadeira entre duas pessoas não pode ser dita. Assim que falamos, as portas se fecham.”

 

 

“Arnheim partilhava dos desígnios de sua época. Esta adora o dinheiro, a ordem, o saber, o cálculo, a medida, portanto, no fim das contas, o espírito do dinheiro e seus parentes; ao mesmo tempo se lamenta por isso.”

 

 

“Burilando em pensamento as primeiras frases de uma carta sobre finanças, o que experimentara cristalizou-se nele numa bela fórmula moral cheia de implicações. “Um homem consciente de sua responsabilidade”, disse para si mesmo, persuadido, “mesmo quando dá de presente sua alma deve sacrificar apenas os juros, jamais o capital!”.”

 

 

“Sua Alteza deparara com um importante fenômeno em seu distrito. Há certos sentimentos de família especialmente fortes, entre eles a antipatia da família de estados europeus pela Alemanha, antes da guerra. Talvez a Alemanha fosse o país menos homogêneo espiritualmente, onde cada um podia encontrar alvo para a sua antipatia pessoal. Fora o país cuja velha cultura mais sofrera sob as rodas dos tempos modernos, sendo dilacerada por grandes frases a favor do comércio e imitação. Além disso, era um país agressivo, ávido, fanfarrão e rigorosamente imprevisível como qualquer grande massa excitada: mas tudo isso era afinal apenas europeu, e quando muito teria podido parecer aos europeus um tanto europeu demais. Parece evidente que tenha de haver figuras indesejadas nas quais se concentra o desgosto, o desentendimento, como que o resíduo de uma fraca combustão que a vida hoje deixa para trás. Subitamente, para imensa surpresa de todos os participantes, a possibilidade torna-se uma realidade, e o que se suprime nesse acontecimento altamente desordenado, o que não está certo, o que é supérfluo e não satisfaz ao espírito parece formar aquele ódio que paira no ar entre todas as criaturas, tão característico da civilização atual, e que substitui a falta de alegria com a própria ação pela raiva fácil diante da atividade dos outros.

A tentativa de concentrar essa má vontade em entes especiais é parte do mais antigo procedimento psicotécnico da humanidade. Assim, o feiticeiro tirava do corpo do enfermo um fetiche previamente preparado, e o bom cristão transfere seus erros para o bom judeu, afirmando que por causa dele surgiram a propaganda, os juros, os jornais e outros males semelhantes. No curso dos tempos, foram responsabilizados o trovão, as bruxas, os socialistas, os intelectuais e os generais; e nos últimos tempos antes da guerra, por razões especiais que não têm maior interesse, um dos objetos preferidos desse estranho fenômeno foi a Alemanha prussiana. O mundo não perdeu apenas Deus, perdeu também o Diabo. Assim como transfere o mal para alguma figura indesejada, transfere o bem para símbolos positivos, que venera por fazerem aquilo que se considera impróprio fazer na primeira pessoa. Deixamos que outros se esforcem, enquanto os contemplamos, da nossa cadeira, e chamamos isso de esporte; deixamos pessoas falarem as coisas mais parciais e exageradas, e chamamos isso de idealismo; sacudimo-nos afastando o mal, e aqueles que acabam respingados são os indesejáveis. Assim, tudo no mundo encontra seu lugar e sua ordem; mas essa técnica de veneração dos santos e engorda de bodes expiatórios através da projeção tem seus perigos, pois enche o mundo com as tensões de todos os combates interiores não efetuados. Matamo-nos a pauladas ou confraternizamos, e não podemos saber ao certo se o fazemos a sério, pois parte de nós está fora de nós, e todos os acontecimentos parecem se realizar parcialmente na frente ou atrás da realidade, como mímica de amor ou ódio. A velha crença nos demônios, que responsabilizava espíritos celestiais ou infernais por todo o bem ou mal, trabalhava melhor, com mais precisão, de maneira mais limpa, e podemos apenas esperar que, com o avanço da psicotécnica, retornemos a ela.”

 

 

“Quem pretende algo de grande não pode depender de um sucesso momentâneo.”

 

 

“É difícil dizer o que o general Stumm pensava, mas se o extraíssemos dele e esticássemos bem, seria mais ou menos o seguinte: para começar brevemente com a parte religiosa, havendo fé, podia-se atirar um bom cristão ou um judeu devoto do alto de qualquer andar da esperança ou do conforto, e ele sempre cairia, por assim dizer, sobre os pés de sua alma. É que todas as religiões, esclarecendo o sentido da vida, preveem aquela parcela irracional e imprevisível que chamam “desígnio insondável de Deus”. Se o mortal levou a pior, basta lembrar-lhe essa parcela, e seu espírito pode esfregar as mãos, satisfeito. Esse “cair sobre os pés da alma” e “esfregar as mãos” é que se chama visão do mundo, e é isso que o homem contemporâneo desaprendeu. Ele precisa deixar de refletir tanto sobre sua vida, coisa que basta a muita gente, ou sofrerá a estranha divisão interior que consiste em ser obrigado a pensar sem que isso o leve à satisfação final. No curso dos tempos, tal contradição assumiu muitas vezes a forma de uma incredulidade total, outras vezes conduziu de volta a uma submissão absoluta à fé. Hoje, parece que sua forma mais frequente é a convicção de que sem espírito não há propriamente vida humana, e com excesso de espírito também não. Sobre essa convicção repousa inteiramente nossa cultura.”

 

 

“A causa profunda de todas as grandes revoluções não está no progressivo acúmulo de condições insuportáveis, mas no desgaste da coesão que apoiava o contentamento artificial das almas. A isso poder-se-ia aplicar muito bem o dito de um famoso escolástico antigo, o latino Credo, ut intelligam, que numa tradução livre e contemporânea significa mais ou menos: “Senhor meu Deus, concede ao meu espírito capital de giro!” Pois provavelmente todo o credo humano é apenas um caso especial de crédito. No amor como nos negócios, na ciência como no salto em distância é preciso crer, antes de lucrar e alcançar — e por que isso não valeria para a vida como um todo? Por mais fundamentada que seja sua ordem, uma parte de voluntária crença nessa ordem sempre subjaz a ela e, sim, designa, como numa planta, o local onde se deu a germinação; se essa crença, para a qual não existe prestação de contas nem fundos, se consumir, a ruína seguirá breve; épocas e reinados desmoronam como negócios quando perderam o crédito. E com isso essas considerações de princípio sobre o equilíbrio espiritual teriam chegado, do belo exemplo de Bonadeia, ao triste exemplo da Kakânia. Pois a Kakânia foi o primeiro país, na fase atual da evolução, a quem Deus retirou o crédito, o prazer de viver, a crença em si mesmo e a capacidade de todos os estados civilizados de divulgarem a útil ilusão de que têm uma tarefa a cumprir. Era um país inteligente e abrigava pessoas cultas; como todas as pessoas cultas em todas as partes do mundo, elas corriam com humor instável de um lado para outro, em meio a uma incrível agitação de rumores, velocidade, inovação, disputa e tudo o mais que faz parte da paisagem ótico-acústica de nossa vida. Como todas as outras pessoas, liam e ouviam diariamente algumas dúzias de notícias que as deixavam de cabelos em pé, e estavam dispostas a se irritar com elas, até a interferir, mas não chegavam a fazê-lo, porque alguns minutos depois aquela excitação fora substituída por outras mais recentes. Como todas as demais, essas pessoas se sentiam envolvidas por assassinatos, homicídios, paixões, sacrifícios e grandeza, que ocorriam dentro do novelo que se formara ao seu redor, mas não chegavam a participar dessas aventuras, porque estavam prisioneiras de algum escritório ou qualquer profissão; e, quando se viam livres, à noite, aquela tensão com a qual não sabiam o que fazer explodia em diversões que não as divertiam nada. E acontecia uma outra coisa, especialmente com as pessoas cultas, quando não se dedicavam exclusivamente ao amor a exemplo de Bonadeia: não tinham mais o dom do crédito, nem do logro. Não sabiam mais para onde iam seus sorrisos, seus suspiros, seus pensamentos. Para que haviam pensado, sorrido? Seus pontos de vista eram acasos, suas inclinações não eram novas, de alguma forma tudo pairava no ar, como um esquema no qual tivessem entrado, e não conseguiam fazer ou deixar de fazer coisa alguma de todo o coração, porque não havia uma lei de sua unidade. Assim, a pessoa culta era aquela que sentia que alguma dívida sua crescia cada vez mais, e não a poderia pagar; era quem via a falência chegando e queixava-se dos tempos nos quais fora condenada a viver, embora gostasse de viver neles como os outros; ou precipitava-se, com a coragem de quem nada tinha a perder, sobre cada ideia que lhe prometesse mudança.”

 

 

“Naturalmente é difícil imaginar dores que nunca sentimos.”

 

 

“Moosbrugger se queixava muitas vezes dessa cautela. Mas então o vigia, o diretor, o médico, o padre, seja quem for que ouvisse seu protesto, fazia uma cara inatingível e respondia que seu tratamento correspondia às normas. A norma era o sucedâneo para o perdido interesse do mundo, e Moosbrugger pensava: “Você tem uma longa corda no pescoço e não consegue ver quem a está puxando.” Ela estava, por assim dizer, amarrada em uma esquina no mundo exterior. Pessoas que em sua maioria não pensavam nele, nem sabiam dele, ou para quem ele, quando muito, significava o mesmo que uma galinha comum na rua comum de alguma aldeia significa para um professor de zoologia, agiam em conjunto para propiciar-lhe o destino que ele sentia estar repuxando de forma incorpórea sua existência.”

 

 

“A verdade não é um cristal que se possa meter no bolso, mas um líquido infinito no qual caímos.”

 

 

“— Estou muito nervoso hoje — disse Arnheim —, naturalmente você não pode saber isso! Mas preste atenção no que vou lhe dizer agora: ganhar dinheiro, como pode imaginar, nos deixa em situações nem sempre muito bonitas. Esses eternos esforços de calcular e tirar vantagem de tudo contrariam uma postura grandiosa de vida, que podia ser cultivada em tempos mais felizes. Pôde-se transformar o assassinato na nobre virtude da coragem, mas parece-me duvidoso que se consiga algo parecido com o cálculo; não há nessa atividade verdadeira bondade, dignidade, profundidade; o dinheiro transforma tudo em conceitos, é desagradavelmente racional; quando vejo dinheiro, quer você compreenda ou não, sempre preciso pensar em dedos incredulamente examinadores, muita gritaria e muito bom senso, ideias que me são igualmente insuportáveis.”

 

 

“Quanto mais altruísta uma pessoa for, tanto mais claras e fortes se lhe tornam as coisas do mundo; quanto mais leve ela se fizer, tanto mais se sentirá elevada; experiências desse tipo são conhecidas de todo mundo; apenas não se devem confundir com alegria, hilariedade, despreocupação ou coisa assim, pois esses são apenas seus sucedâneos para uso vulgar ou até pervertido. Talvez nem se devesse chamar esse estado de elevação, mas de desencouraçamento; desencouraçamento do eu, explicava Hans. Era preciso distinguir entre duas muralhas do ser humano. Uma é ultrapassada sempre que ele faz algo de bom ou de altruísta, mas essa é apenas a muralha pequena. A grande consta do egoísmo do mais altruísta dos homens; trata-se do pecado original. Cada impressão sensual, cada emoção, até a da entrega, é mais um tomar do que dar em nossa maneira de agir, e dificilmente pode-se escapar a essa couraça saturada de egoísmo. Hans enumerou: o saber não é senão apoderar-se de uma coisa alheia; matamos, dilaceramos e digerimos essa coisa como um bicho. Conceito, o que foi morto e ficou enrijecido. Convicção, a relação congelada e imutável. Pesquisa, igual a fixar. Caráter, igual a preguiça de se transformar. Conhecimento de uma pessoa; o mesmo que não se comover com ela. Compreensão, um ponto de vista. Verdade, a tentativa bem-sucedida de pensar de modo objetivo e desumano. Em todas essas relações há morte, gelo, ânsia de posse, e imobilidade, e uma mistura de egoísmo com um altruísmo objetivo, covarde, traiçoeiro, ilegítimo.

— E quando — perguntou Hans, embora conhecesse apenas a inocente Gerda —, quando o amor seria outra coisa que não desejo de posse, ou entrega na espera de compensação?”

 

 

“Na verdade cada pessoa, mesmo objetivamente, não significa para outra muito mais do que uma série de símbolos.”

 

 

“— Todo mundo pensa que não pode fazer nada de mau por ser uma pessoa boa!”

 

 

“Quase se poderia dizer que nossos maus desejos são o lado sombrio da vida que realmente vivemos; e a vida que realmente vivemos é o lado sombrio de nossos bons desejos.”

 

 

“— Se você pudesse ler do princípio ao fim essas descrições que homens e mulheres de séculos passados fizeram do seu arrebatamento por Deus, veria que letra por letra há verdade e realidade, mas as afirmações constituídas por essas letras causariam a maior repulsa à sua vontade de pessoa atual. — E prosseguiu: — Eles falam de um brilho que tudo inunda. De uma infinita amplidão, um infinito reino de luz. De uma “unidade” flutuante de todas as coisas e forças espirituais. Do ímpeto maravilhoso e indescritível do coração. De conhecimentos tão rápidos que são todos simultâneos, como gotas de fogo caindo no mundo. E, por outro lado, falam de um esquecer e não entender mais, até de um aniquilamento das coisas. Falam de uma imensa paz, livre das paixões. De um emudecimento. Um desaparecimento de ideias e intenções. Uma cegueira na qual veem claramente, e uma claridade na qual estão mortos e sobrenaturalmente vivos. Chamam a isso “deixar de ser”, mas afirmam viver então mais plenamente do que nunca. Não são as mesmas sensações, embora envoltas pela dificuldade de expressão, que ainda temos hoje quando eventualmente o coração — “sôfrego e saciado” como dizem! — atinge aquelas regiões utópicas que ficam em algum lugar e em lugar nenhum entre uma ternura infinita e uma infinita solidão?”

 

 

“É fácil contar o que acontecera. Ágata se casara aos 18 anos com um homem pouco mais velho que ela. Numa viagem que começara com seu casamento e terminara com a morte dele, em poucas semanas, antes mesmo de terem escolhido sua futura residência, ele lhe fora novamente arrebatado por uma doença que o contagiara a caminho. Os médicos chamavam-na de tifo, e Ágata repelia essa palavra, encontrando nisso uma aparência de ordem, pois esse era o lado do acontecimento burilado para uso público; mas no lado cru havia outra coisa: até ali, Ágata vivera com seu pai, a quem o mundo respeitava, de modo que assumiu, cheia de dúvidas, que agia mal por não o amar, e aquela permanência indefinida no internato, entregue a si mesma, não fortalecera sua relação com o mundo, devido à desconfiança que a escola despertava nela; mais tarde, quando, numa súbita animação e em meio a esforços em comum com um companheiro de juventude, em poucos meses superara todos os obstáculos que um casamento teria de enfrentar devido à pouca idade dos dois, embora as famílias dos apaixonados nada tivessem a objetar, ela de repente não estava mais solitária, e encontrou-se consigo mesma. Podia-se perfeitamente chamar a isso de amor; mas há apaixonados que fitam o amor como se fosse o sol, apenas acabam cegos, e há apaixonados que com espanto, veem pela primeira vez a vida e são iluminados pelo amor: Ágata era dessas, e nem sabia se amava o seu companheiro ou a alguma outra coisa, quando acontecera aquilo que na linguagem do mundo não iluminado se chamava doença infecciosa. Fora uma tempestade súbita de horror vinda de territórios desconhecidos da vida, uma luta, um bruxulear, um apagar-se, a provação de dois seres que se agarravam um ao outro, e a deterioração de um mundo inocente em vômito, fezes e medo.”

 

 

“— Todas as frases da moral — afirmou Ulrich — designam uma espécie de estado onírico que já escapou das regras em que o colocamos!”

 

 

“— Habitualmente, as lembranças envelhecem com as pessoas — explicou — e os acontecimentos mais passionais assumem com o tempo uma perspectiva cômica, como se os víssemos ao fim de 99 portas abertas umas atrás das outras. Mas, às vezes, quando se ligam a emoções muito fortes, antigas lembranças isoladas não envelhecem, e mantêm presas em si camadas inteiras do ser. Foi o seu caso. Em quase todas as pessoas há tais pontos que deformam um pouco a simetria psíquica; seu comportamento jorra sobre elas como um rio sobre uma rocha invisível, e em você isso apenas foi muito forte, de modo que quase aconteceu uma parada. Mas, por fim, você se libertou, voltou a se mover!”

 

 

“Portanto, essa é a verdade, hoje: o homem tem dois estados de vida, de consciência e de pensamento, e defende-se de um mortal susto que isso lhe causaria, considerando um como férias do outro, para interrupção, descanso ou qualquer coisa que pensa conhecer. Em compensação, a mística se ligaria ao propósito de férias permanentes. O chefe de escritório consideraria isso coisa desonrosa e, como aliás sempre faz no fim das férias, sentiria que a verdadeira vida fica no seu bem-arrumado escritório. E nós, sentimos coisa diferente? Em última análise, levamos a sério aquilo que pode ser posto em ordem. E essas experiências têm pouca sorte, pois não superaram em milhares de anos a sua incompletude e desordem primitiva. E para isso existe o conceito de loucura — loucura religiosa ou loucura de amor, como quiser; pode ter certeza: hoje, até a maioria das pessoas religiosas estão de tal maneira contagiadas pelo pensamento científico que não se atrevem a examinar o que arde no mais íntimo de seus corações, e a qualquer momento estariam dispostas a dar a esse fervor a designação médica de loucura, embora oficialmente falem de outro modo! (...) Mas o singular é que vedamos tudo isso como a um poço suspeito, mas, mesmo assim, alguma gota remanescente dessa inquietante água milagrosa queima abrindo um buraco em todos os nossos ideais. Nenhum deles é inteiramente correto, nenhum deles nos faz felizes; todos apontam alguma coisa que não existe; hoje mesmo já falamos bastante sobre isso. Nossa cultura é um templo daquilo que, sem reservas, chamaríamos de loucura, mas é ao mesmo tempo seu reservatório, e não sabemos se sofremos por excesso ou carência.”

 

 

“Mas, sabe, um carrasco é um sujeito desonesto, não há como negar; em compensação, o fabricante de cordas, que apenas as fornece à direção da prisão, pode ser membro de uma Sociedade Ética.”