Editora: Nova Fronteira
ISBN: 978-85-2094-276-5
Tradução: Lya Luft e Carlos Abbenseth
Opinião: ★★★★☆
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Páginas: 1248
Sinopse: Ver Parte
I
“Nada
é comido tão quente quanto se cozinhou; com o tempo, os mais intensos exageros,
entregues a si mesmos, produzem um novo comedimento; não poderíamos nos sentar
em nenhum trem, e na rua deveríamos ter sempre na mão uma pistola carregada, se
não pudéssemos confiar na lei mediana que torna improváveis as possibilidades
exageradas.”
“Quem
hoje se atreve a concretizar ideias políticas básicas tem de ser um pouco
especulador e um pouco criminoso!”
“Mas
como, em comparação com a dor atual, a dor antiga parece um velho camarada
inofensivo, hoje aquilo parecia apenas uma lembrança de camaradagem e
intimidade.”
“Sem
dúvida era um crente, apenas não acreditava em nada: sua maior devoção à ciência
jamais conseguira fazê-lo esquecer que a beleza e bondade das pessoas vinha
daquilo em que acreditavam, e não daquilo que sabiam. Mas a crença sempre
estivera ligada ao saber, embora apenas como um saber imaginado, desde os
primeiros dias de seu mágico nascimento. E essa antiga parcela de saber há
muito apodreceu e levou consigo, na mesma decomposição, a crença: portanto,
hoje é preciso reconstruir essa ligação. E naturalmente não só de maneira a
levar a crença “às alturas do saber”, mas de modo a fazê-la sair voando
daquelas alturas. A arte de erguer-se acima do saber tem de ser novamente
exercitada. E como tal não é possível a um indivíduo, todos deveriam voltar seu
sentido para isso, não importa onde o tenham posto.”
“—
Sem dúvida é um hábito repelente da burguesia rica ver algo de diabólico nos
loucos e criminosos.”
“A
exigência ideal de amar ao próximo é seguida pelas pessoas reais em duas
partes, a primeira dizendo que não suportamos os outros, a segunda querendo que
se mantenham relações sexuais com uma metade deles.”
“Hoje
em dia as pessoas só tinham amores sexuais: não suportamos nossos semelhantes,
e no entrelaçamento dos sexos as pessoas se amam com crescente revolta contra a
exagerada valorização desse impulso.”
“—
Uma pessoa sozinha — respondeu diante da condescendente disposição da irmã de
deixar tudo como estava — pode ter uma fraqueza: ela murcha e some no meio de
suas outras qualidades. Mas quando duas pessoas dividem uma fraqueza, ela
assume, em comparação com as qualidades que não lhes são comuns, um peso duplo,
e aproxima-se de uma confissão voluntária.”
“—
Provavelmente, nos anos da puberdade nosso amor por nós mesmos se modifica —
disse, sem transições. — Pois aí ceifa-se um prado de ternura em que se
brincara até então, para conseguir pasto para um determinado impulso.
—
Para que a vaca dê leite! — completou Ágata logo depois, malcriada mas digna, e
sem abrir os olhos.
—
Sim, certamente tudo isso se liga entre si — disse Ulrich, e continuou: —
Portanto, há um momento em que nossa vida perde quase toda a sua ternura, esta
murcha, concentra-se naquele único exercício que então fica sobrecarregado. Não
lhe parece também que por toda parte no mundo reina uma secura horrível,
enquanto num só lugar chove sem parar?
Ágata
disse:
— A
mim me parece que amei minhas bonecas de menina com uma intensidade como nunca
amei homem algum: quando você foi embora, encontrei no sótão uma caixa com
velhas bonecas.
— E
o que fez com elas? — perguntou Ulrich. — Deu de presente?
— A
quem as poderia dar? Eu as joguei no fogo — disse ela.
Ulrich
retrucou, vivamente:
—
Quando lembro minha infância, posso dizer que naquele tempo “dentro” e “fora”
mal se distinguiam um do outro. Quando eu rastejava em direção de alguma coisa,
ela vinha ao meu encontro, voando; e quando acontecia alguma coisa que nos
parecia importante, ela não só nos excitava, mas as próprias coisas começavam a
ferver. Não afirmo que fôssemos mais felizes do que mais tarde. Ainda não nos
possuíamos a nós mesmos; na verdade, ainda nem existíamos, nossos estados
pessoais ainda não estavam separados do mundo com suficiente nitidez. Parece
estranho, mas é verdade quando digo que nossos sentimentos, nossas vontades,
nós mesmos, ainda não estávamos inteiramente em nós. Mais estranho é que eu também
poderia dizer: ainda não estavam suficientemente distanciados de nós. Pois se
hoje, quando pensa possuir a si mesma inteiramente, você por exceção
perguntasse quem é na verdade, faria essa descoberta. Sempre se verá de fora,
como a uma coisa. Notará que numa ocasião fica irada, noutra fica triste, assim
como seu casaco uma vez está molhado, outra quente. Por mais que observe,
quando muito conseguirá descobrir-se, nunca entrar em si mesma. Você fica fora
de si própria, não importa o que faça, exceto naqueles poucos momentos em que
se poderia dizer que está fora de si. Para compensar isso, quando adultos
conseguimos poder pensar em todas as ocasiões, “eu sou”, caso isso nos divirta.
Você vê um carro, e de alguma forma também vê, de um modo espectral: “Estou
vendo o carro.” Você ama ou está triste, e vê que está amando ou sendo triste.
Mas em sentido pleno, nem o carro nem sua tristeza ou seu amor nem você mesma
estão ali inteiramente. Nada está mais inteiramente como esteve uma vez, na
infância. Mas tudo o que você toca está congelado, até no seu interior mais
remoto, assim que você chegou a ser uma “personalidade”, e o que sobrou,
envolto por um ser totalmente exterior, é como um fantasmagórico fio de névoa
da autoconsciência e de um tristonho amor-próprio. O que está errado nisso?
Temos a sensação de que ainda se poderia voltar atrás! Não podemos afirmar que
uma criança tenha experiências totalmente diferentes das de um homem. Não sei
resposta definitiva a isso, embora possa haver vários pensamentos a respeito.
Mas há muito respondi a isso perdendo o amor por esse tipo de eu e de mundo.”
“O
pequeno feitiço continua igual a si mesmo, não importa se vemos uma mulher nua
pela primeira vez, ou se vemos pela primeira vez uma menina de vestido fechado,
e as grandes paixões desenfreadas ligam-se a isso, ao fato de que o ser humano
imagina que seu mais secreto eu o espreita atrás das cortinas dos olhos
alheios.”
“Tudo
o que Ágata até aqui sentira, no breve tempo desde sua meninice, como fracasso
seu diante das exigências da vida social, fora causado porque passara aquele
tempo sem viver suas tendências mais íntimas, ou até vivendo contra elas. Eram
tendências para entrega e confiança, pois jamais se sentira tão à vontade na
solidão quanto o irmão; mas se até ali lhe fora impossível entregar-se com toda
a alma a uma pessoa ou causa, era porque ela trazia em si a possibilidade de
uma entrega maior, não importava se essa estendesse os braços para o mundo ou
Deus! Um conhecido caminho para entregar-se a toda a humanidade é não
suportarmos nosso vizinho, e da mesma forma pode surgir um oculto e fervoroso
anseio por Deus quando um tipo associal foi provido de um grande amor: nesse
sentido, o criminoso religioso não é um absurdo maior do que a velhota
religiosa que não encontrou marido.”
“Ágata
devia ter subido e caminhado assim cerca de uma hora, quando de repente se viu
diante daquele bosquezinho de que se lembrava. Rodeou uma sepultura esquecida à
beira da mata, onde há quase cem anos um poeta se suicidara e, segundo sua
última vontade, fora também enterrado. Ulrich dissera que não tinha sido um bom
poeta, embora famoso, e a poesia um tanto míope que se expressa no pedido ser enterrado
num belvedere lhe provocara duras críticas. Mas Ágata gostava da inscrição
na grande lápide, desde quando, num passeio, tinham decifrado juntos suas belas
letras Biedermeier lavadas e apagadas pela chuva; e curvou-se sobre as
correntes negras, feitas de elos graúdos e angulosos, que rodeavam o quadrado
da morte isolando-o da vida.
“Eu
não vos signifiquei nada”, mandara o poeta colocar em sua tumba, e Ágata pensou
que o mesmo se podia dizer dela. Esse pensamento, à beira de um bosque, sobre
os verdes vinhedos e a cidade estranha e imensurável que balouçava lentamente
ao sol da manhã sua cauda de fumaça, comoveu-a mais uma vez. Ajoelhou-se sem
pensar e encostou a testa numa das colunas de pedra que sustentavam as
correntes; a posição inusitada e o toque frio da pedra imitavam a paz hirta e
abúlica da morte que esperava por ela. Tentou concentrar-se. Mas não o
conseguiu logo: em seu ouvido entravam cantos de pássaros, havia tantos sons
diferentes que ela se surpreendeu; galhos moviam-se, e, como ela não notasse o
vento, pareceu-lhe que as próprias árvores agitavam seus ramos; ouviram-se
passinhos leves no súbito silêncio; a pedra que tocava, repousando sobre ela,
era tão lisa como se houvesse entre ela e sua testa um pedaço de gelo impedindo
um toque completo. Só algum tempo depois entendeu que naquilo que a distraía
expressava-se exatamente o que queria perceber, aquele sentimento fundamental
de ser supérflua; e, se o quisermos designar da maneira mais simples, devemos
dizer que a vida seria tão completa sem Ágata que ela nada tinha a fazer ou
procurar ali. Esse sentimento cruel no fundo não era desesperado nem magoado,
apenas um ouvir e ver, como Ágata sempre fizera, mas sem nenhum impulso ou
sequer a possibilidade de participar. Havia nessa exclusão quase uma sensação
de abrigo, assim como há um espanto que esquece de fazer qualquer indagação.
Daria no mesmo se ela fosse embora. Para onde? Devia haver um “onde”. Ágata não
era dessas pessoas nas quais também a convicção da insignificância de todas as
fantasias causasse satisfação semelhante à abstinência belicosa ou astuciosa
com a qual aceitamos nosso insatisfatório destino. Ela era generosa e
espontânea nesses assuntos, não como Ulrich que causava as maiores dificuldades
às suas emoções para proibir-se de tê-las, se não suportassem a prova. É que
ela era tola! Sim, dizia isso a si mesma. Não queria refletir! Obstinada,
premiu a testa baixada contra as correntes de ferro que cederam um pouco e
depois resistiram, esticadas. Nas últimas semanas ela começara a acreditar
novamente em Deus, de alguma forma, mas sem pensar nele. Certos estados em que
o mundo sempre lhe parecera diferente do que parecia ser, como se ela não
vivesse mais excluída mas mergulhada numa radiante convicção, tinham sido
levados por Ulrich à beira de uma metamorfose interior e de uma transformação
completa. Ela teria sido livre, disposta a imaginar um Deus que abre seu mundo
como quem abre um esconderijo. Mas Ulrich dizia que não era preciso, quando
muito faria mal imaginar mais do que se podia experimentar. E decidir isso era
assunto para ele. Mas então, teria de guiá-la, sem a abandonar. Ele era a
soleira entre duas vidas, e toda a nostalgia que ela sentia por uma delas, e
toda a fuga da outra, levava primeiro a ele. Ela o amava na maneira despudorada
com que se ama a vida. De manhã, ele despertava em todos os membros dela,
quando abria os olhos. Também agora fitava-a do escuro espelho da sua dor: e só
então Ágata lembrou outra vez que queria se matar. Tinha a sensação de ter
fugido de casa por birra, em direção de Deus, quando saíra com o propósito de
se matar. Mas o propósito agora devia ter-se esgotado, voltando à sua origem,
que era ter sido magoada por Ulrich. Estava zangada com ele, ainda sentia isso,
mas os pássaros cantavam e ela voltou a escutá-los. Estava tão confusa como
antes, mas agora de uma confusão alegre. Queria fazer alguma coisa que
atingisse a Ulrich, não apenas a ela. A rigidez infinita em que estivera ali
ajoelhada cedeu ao calor do sangue que lhe jorrava vivo nas veias enquanto se
levantava do chão.”
“O
inferno não é interessante, é terrível. Quando não o humanizamos — como Dante,
que o povoou com literatos e pessoas importantes, e com isso desviou a atenção
das técnicas de punição —, mas tentamos dar uma visão original dele, mesmo as
pessoas mais fantasiosas não conseguem superar os pueris tormentos e pobres
deformações das qualidades terrestres. Mas exatamente o vazio pensamento da
punição e tormento inimagináveis e por isso inevitáveis, e infinitos, a
pressuposição de uma transformação, insensível a todos os esforços contrários,
em direção do mal, tem a atração de um abismo. Assim são também as casas de
loucos. São asilos de pobres. Têm algo da falta de imaginação do inferno. Mas
muitas pessoas, que não sabem das causas das enfermidades mentais, não receiam
nenhuma possibilidade tanto quanto a de perder a razão um dia, exceto a de
perderem seu dinheiro; e é singular quantas pessoas sentem isso, torturadas
pela ideia de um dia poderem se perder de repente. Pela supervalorização do que
pensam de si mesmas segue provavelmente a supervalorização do horror que os
sadios imaginam habitar os asilos dos enfermos.”
“Sua
Alteza não considerava as outras pessoas tolas, embora se julgasse mais
inteligente que elas.”
“O
conde Leinsdorf perguntou:
— Diga,
quem é afinal esse Feuermaul?
—
Seu pai tem várias empresas na Hungria — respondeu Ulrich. — Acho que alguma
coisa ligada a fósforo, na qual nenhum operário chega a mais de quarenta anos.
Doença profissional: necrose óssea.
—
Sim, mas e o rapaz? — O destino dos operários não atingia o conde.
—
Ele devia ter estudado. Direito, eu acho. O pai é um self-made-man e
ficou aborrecido porque o rapaz não tinha vontade de estudar.
—
Por que não teve vontade de estudar? — perguntou o conde Leinsdorf, que naquele
dia estava muito minucioso.
—
Santo Deus — disse Ulrich dando de ombros —, provavelmente: “Pais e filhos.”
Quando o pai é pobre, os filhos amam o dinheiro; quando papai tem dinheiro, os
filhos voltam a amar a humanidade. Vossa Alteza ainda não ouviu falar do
problema do filho em nosso tempo?
—
Sim, ouvi alguma coisa. Mas por que Arnheim protege esse Feuermaul? Isso tem
ligação com as jazidas de petróleo? — perguntou o conde Leinsdorf.
—
Vossa Alteza sabe disso? — exclamou Ulrich.
—
Claro, sei de tudo — respondeu Leinsdorf pacientemente.”
“O
que distingue um homem sadio de um doente mental é exatamente que o sadio tem
todas as doenças mentais, e o enfermo apenas uma!”
“É
sabidamente um grande alívio, quando nos aborrecemos, aliviarmos nossa raiva em
alguém, ainda que essa pessoa não tenha nenhuma culpa; só que de hábito se
esquece isso quando se trata do amor. Porém é a mesma coisa, e o amor muitas
vezes tem de ser aliviado em alguém que não tem culpa nenhuma, caso não
encontre outra oportunidade de se expandir.”
“Desde
as inspirações do homem fora do comum até o kitsch que une os povos,
aquilo que Ulrich chamava fantasia moral ou simplesmente sentimento, formava
uma única e secular fermentação sem escapamentos. O ser humano não consegue
viver sem entusiasmo. Entusiasmo é o estado no qual todos os seus sentimentos e
pensamentos têm o mesmo espírito. Você pensa, quase que pelo contrário, que o
entusiasmo é o estado em que um sentimento é demasiado forte, um só, que — o
arrebatamento! — arrebata os demais? Não, você não quis dizer nada a respeito?
Mesmo assim, é isso. Também é isso. Mas a força desse entusiasmo é insopitável.
Sentimentos e pensamentos ganham continuidade uns pelos outros, como um todo,
precisam de certa forma seguir na mesma direção, arrebatar-se mutuamente. E com
todos os meios, drogas, fantasias, sugestão, fé, convicção, muitas vezes apenas
com ajuda do efeito simplificado da burrice, cada ser humano trata de criar um
estado parecido com isso. Acredita em ideias, não porque às vezes sejam
verdadeiras, mas porque precisa acreditar. Porque precisa manter seus afetos em
ordem. Através de uma ilusão, deve tapar o buraco entre as paredes de sua vida,
pelo qual, de outro modo, seus sentimentos voariam aos quatro ventos. O correto
seria provavelmente, em vez de entregar-se a estados aparentes efêmeros,
procurar pelo menos as condições de um verdadeiro entusiasmo. Mas, embora no
total o número de decisões que dependem do sentimento seja infinitamente maior
do que aquelas que se realizam com a pura sensatez, e todos os acontecimentos
que movem a humanidade nasçam da fantasia, só as questões racionais são
ordenadas de maneira suprapessoal, e para o resto nada foi feito que mereça o
nome de esforço comum, ou que ao menos revele sua desesperada necessidade.”
““É
preciso ser duro como um diamante e terno como uma mãe!”, pensou, evocando uma
velha definição do século XVII.”
“Dedica
uma parcela de tua solidão à serena reflexão sobre teu próximo, principalmente
se não concordas com ele: talvez venhas então a entender e usar melhor o que te
causa repulsa, e aprendas a poupá-lo na fraqueza e a encorajá-lo na virtude que
possivelmente está apenas intimidada!”
“Só
posso concluir que temos de ser como queremos que sejam nossos filhos!” (Matthias
Claudius)
“Ele
teve ocasião de falar do paradoxo melindroso e por muitos repudiado de que
qualquer compreensão pressupõe uma certa superficialidade, uma tendência à
superfície, que, no mais, se expressava na palavra “compreender”, pois as
experiências originárias não se entendiam isoladas, mas uma pela outra, sendo,
portanto, inevitável que se entrelaçassem mais na superfície que na
profundidade.”
“Mudando
um provérbio, talvez se possa dizer que uma consciência pesada é quase um
melhor travesseiro que a tranquila, basta que seja pesada o bastante.”
“—
As duas contradições estão sempre presentes e formam uma quadriga: amamos uma
pessoa porque a conhecemos e porque não a conhecemos; e a conhecemos porque a
amamos, e não a conhecemos porque a amamos. E isso por vezes atinge um ponto em
que se torna bastante sensível. São os famosos momentos em que Vênus e Apolo
veem um gancho vazio ao se fitarem, ficando profundamente admirados por terem
antes visto outra coisa. Se o amor continua mais forte que o espanto, vai haver
uma luta entre estes dois, e às vezes o amor sai vencedor, embora desesperado,
esgotado e incuravelmente ferido. Se ele, porém, não for tão forte, haverá uma
luta entre as pessoas, ofensas, para compensar ter-se bancado o bobo... haverá
terríveis assaltos da realidade... desonras extremas... — Já passara por esses
temporais do amor com bastante frequência para poder descrevê-los calmamente.”
“—
Até no pensamento, onde tudo está num contexto lógico e objetivo — prosseguiu
Ulrich —, em geral só aceitamos plenamente a convicção superior de outra pessoa
quando também nos submetemos a ela de alguma forma, seja como modelo e guia,
seja como amigo ou mestre. Sem esse sentimento, que não tem nada a ver com a
coisa, só aceitamos a opinião alheia com a ressalva implícita de que nós mesmos
seremos melhores guardiães dela que o próprio autor; isso quando não temos a
intenção de mostrar ao sujeitinho a insuspeitada importância de sua ideia! E na
arte, então, a maioria das pessoas sabe muito bem que seria impossível produzirmos
nós mesmos aquilo que lemos, vemos e ouvimos; mas temos a consciência
condescendente de que, se soubéssemos fazer, faríamos logo muito melhor! Talvez
tenha de ser assim, e isso faça parte da natureza ativa do espírito, que não
podemos encher como uma panela vazia — concluiu Ulrich —, mas que é atuante ao
apreender, tendo deveras de a-prender.”
“O
amor tem o efeito benéfico de fazer-nos cegos! — retrucou Ulrich. — O amor
ofusca: essa simples frase contém a metade dos enigmas do amor ao próximo, que
nos propusemos!
—
Pode-se, no máximo, acrescentar ainda que o amor também faz ver o que não
existe — afirmou Ágata, concluindo, pensativa: — No fundo, essas duas frases
contêm tudo de que precisamos no mundo, para, apesar dele, sermos felizes!”
“Será
que amamos uma coisa porque é bela, ou ela fica bela por ser amada.”
“Ulrich
parecia ter se desviado, mas prosseguiu nessa direção: “Pelo visto, é essa a
razão por que eu hoje tenho de anotar: a história, os acontecimentos, até a
arte, surgem... de uma falta de felicidade. Mas tal falta não deriva das
circunstâncias que nos impediriam de atingir a felicidade, e sim de nosso
próprio sentimento. Este constitui a viga cruzada da dupla qualidade: não
tolera qualquer outro a seu lado e não é ele próprio persistente. Dessa forma,
tudo a que ele está ligado ganha a aparência de validade eterna, e, apesar
disso, todos nós procuramos abandonar as criações de nosso sentimento e mudar
as opiniões que neles se expressam. Pois um sentimento se transforma a partir
do momento em que perdura; não possui constância e identidade; precisa ser
consumado de novo. Sentimentos não são apenas mutáveis e inconstantes — como,
aliás, são considerados —, mas tornar-se-iam cabalmente assim no momento exato
em que deixassem de sê-lo. Tornam-se falsos quando duram. Precisam surgir
sempre de novo, caso devam permanecer, e, mesmo assim, serão outros. Uma ira
que durasse cinco dias não seria mais ira, mas perturbação mental; ela se
transforma em perdão ou disposição para a vingança, e algo de semelhante
acontece com todos os sentimentos.
Nosso
sentimento procura esteio naquilo que configura, e por um tempo sempre o acha.
Mas Ágata e eu sentimos no que nos rodeia o temor oculto, a tendência
centrífuga do que se encontra junto, o desdito no dito, a peregrinação das
paredes supostamente firmes; vemos e ouvimos isso de repente. Parece-nos uma
aventura e duvidosa companhia viver ‘uma época’. Encontramo-nos na floresta
mágica. E embora ainda não abarquemos e mal conheçamos ‘nosso’ sentimento, esse
sentimento diferente, temos medo por ele e gostaríamos de retê-lo. Mas, como
reter um sentimento? Como seria possível permanecer no mais alto degrau da
felicidade, caso se consiga atingi-lo? No fundo, essa é a única questão que nos
ocupa. Temos o pressentimento de um sentimento que escapa à efemeridade dos
restantes. Encontra-se na corrente frente a nós como uma maravilhosa sombra
imóvel. Mas, para perdurar, não teria de deter a marcha do mundo? Chego à
conclusão de que não pode ser um sentimento no mesmo sentido dos outros.”
E,
de repente, Ulrich concluía: “Volto assim à questão: o amor é um sentimento?
Creio que não. O amor é um êxtase. E para amar perenemente o mundo, para poder
abarcar também o passado com o amor do Deus-Artista, o próprio Deus precisaria
ficar num êxtase constante. Só como tal seria concebível...””
“É
própria dos sentimentos a tentativa enérgica e muitas vezes apaixonada de
transformar os estímulos aos quais devem sua aparição, e de eliminá-los ou
favorecê-los; e as direções principais da existência são para fora e de fora.
Por isso, a ira traz em si o contra-ataque, o anseio a aproximação, e o medo a
transição para fuga, paralisia ou, situado entre ambas, o grito. Mas também a
reação desse comportamento ativo imprime ao sentimento boa parte das
particularidades e do conteúdo que o caracterizam; a conhecida frase de um
psicólogo americano, segundo a qual ‘não choramos porque estamos tristes, mas
estamos tristes porque choramos’, pode ser exagerada; é certo, porém, que não
apenas agimos como sentimos, mas também logo aprendemos a sentir conforme
nossos atos, sejam quais forem seus motivos.
Um
conhecido exemplo para esse vaivém é a briga de cães que começa como alegre
brincadeira e termina num duelo sangrento, mas o mesmo pode ser igualmente
observado em crianças e pessoas simples. E toda a bela teatralidade da vida não
consiste afinal num grande exemplo disso, com seus gestos, meio a sério, meio
vazios, de honra e honraria, de ameaça, gentileza, contenção e tudo o mais,
gestos de querer representar alguma coisa e de representação, que descartam o
juízo e influenciam diretamente o sentimento? Até a ‘disciplina’ faz parte
disso, baseando-se no efeito de impor por longo tempo um comportamento, para
que suscite afinal o sentimento que deveria originá-lo.”
“Mais
importante que a repercussão dos atos é, tanto nesses como em outros exemplos,
o fato de uma vivência mudar de significado quando, em seu decurso, passa, do
âmbito das forças características que de início a conduziam, para o de outras
ligações da alma. Pois do lado de dentro ocorre algo de semelhante ao exterior.
O sentimento preme para dentro; ele ‘toma inteiramente a pessoa’, como se diz,
não sem acerto; afasta o que não se conforma a ele e favorece o que pode lhe
servir de alimento. Num tratado de psiquiatria, eu li estranhas denominações
para isso: ‘força de comutação’ e ‘trabalho de comutação’. Ao mesmo tempo, o
sentimento estimula o interior a voltar-se para ele. A disponibilidade interna,
na medida em que não se exauriu no primeiro momento, preme pouco a pouco em sua
direção; e assim que captura forças maiores, armazenadas em pensamentos,
lembranças, princípios etc., o sentimento também é inteiramente capturado por
elas, e elas o transformam de tal modo que fica difícil dizer quem se apossa de
quem.
Mas,
uma vez atingido seu ápice por intermédio de tais processos, são eles que vão
novamente enfraquecer e diluir o sentimento. Pois outros sentimentos e
vivências, que não mais se submetem integralmente a ele, irão então cruzar sua
esfera e, por fim, até mesmo desalojá-lo. Na verdade, esse curso contrário,
ligado à satisfação e ao desgaste, começa com a própria aparição do sentimento;
pois sua expansão não significa apenas um aumento de seu poder, mas ao mesmo
tempo também um arrefecimento das necessidades das quais ele se origina ou se
serve.
Isso
deve igualmente ser levado em conta com relação aos atos; pois o sentimento não
apenas se exalta, mas também se arrefece na ação; e sua saturação, quando não é
perturbada por outro sentimento, prossegue até o fastio, quer dizer, até o
ponto em que surge novo sentimento.”
“É
preciso mencionar especialmente uma coisa. Enquanto subjuga o interior, o
sentimento entra também em contato com atividades que colaboram para a vivência
e a compreensão do mundo exterior; e assim, o mundo, como nós o entendemos,
acabará em parte padronizado segundo o modelo e sentido do próprio sentimento,
que procura se fortalecer por intermédio desses ecos. Os exemplos são
conhecidos: quando sentimos intensamente, ficamos cegos para o que pessoas
imparciais percebem, e percebemos o que outros não veem. A pessoa triste vê as
coisas pretas e despreza o que poderia iluminá-las; a alegre vê o mundo
iluminado e é incapaz de perceber algo que perturbe esse quadro; quem ama ganha
a confiança das piores pessoas; e o desconfiado não apenas vê sua desconfiança
confirmada em toda parte, mas as confirmações chegam a desabar sobre ele. Dessa
maneira, atingindo certa força e duração, cada sentimento constrói seu próprio
mundo, um mundo selecionado e cheio de conexões, o que não é de somenos
importância nas relações humanas! Nisso se incluem nossa notória inconstância e
nossas arbitrariedades”.”
“Sendo
fluxo constante, os sentimentos não se deixam deter; não se deixam, portanto,
‘examinar detidamente’; quer dizer, quanto mais precisamente os observamos,
tanto menos sabemos o que sentimos. A atenção já é uma modificação do
sentimento. Todavia, se eles fossem uma ‘mistura’, esta deveria na verdade
apresentar a maior nitidez no momento de parada, embora a atenção se
intrometa.”
“Nesse
momento, havia algo em seu rosto que teria feito sua falecida mãe recordar o
menino no qual ela toda manhã dava um grande laço bonito embaixo do queixo,
antes de ele ir para a escola; poderíamos designar esse algo como falta total
de brutalidade masculina. Essa lacuna torna impossível um garoto viver entre
outros garotos. O corpo comprido, grande, mas sem forças, de perninhas finas,
parecia uma lança com a cabeça espetada em cima, boiando sobre a arena
ensurdecedora dos colegas de escola, que troçavam daquele laço dado por mão
materna; e, em pesadelos, o professor Lindner ainda hoje se via por vezes nessa
situação, sofrendo pelo bem, pelo belo, pelo verdadeiro. Mas, exatamente por
isso, ele nunca confessava ser a brutalidade uma qualidade indispensável ao
homem, comparável ao cascalho que é misturado à argamassa para dar-lhe solidez;
e, principalmente depois que se transformara no homem que se orgulhava de ser,
via naquela antiga lacuna uma confirmação de que nascera para melhorar o mundo,
mesmo que em escala modesta. Bem, mas hoje já estamos acostumados com a
explicação de que os grandes oradores surgem por problemas da fala e os heróis
pela fraqueza, com outras palavras, que nossa natureza sempre precisa abrir um
buraco quando quer que ergamos uma montanha acima dele; e como os
semi-ignorantes e semisselvagens que, predominantemente, determinam o curso da
vida quase que veem em cada gago um Demóstenes, fica mais fácil ainda
considerar como sinal de bom gosto espiritual quando alguém declara que o mais
importante em Demóstenes é sua gagueira inicial. Todavia, ainda não se
conseguiu atribuir as façanhas de Hércules ao fato de que ele tenha sido uma
criança franzina, ou os recordes em corrida e salto a um pé chato, ou ainda a
coragem a um caráter medroso, sendo, portanto, necessário convir que um talento
especial requer algo mais que a própria falta!”
“Um
homem firme jamais fará seu próprio comportamento depender do comportamento
alheio.”
“As
obras do sentimento definham quando a experiência amorosa imediata não torna a
revigorá-las.”
“É
sobretudo a evolução em direção ao sentimento definido o que acarreta a
inconstância e fragilidade da vida psíquica. Que não possamos reter o instante
em que sentimos; que os sentimentos murchem, mais rápidos que as flores, ou se
transformem em flores de papel quando pretendem perdurar; que a felicidade e a
vontade, a arte e o ideário sejam passageiros — tudo isso decorre do caráter
definido do sentimento, que lhe imprime um destino e o empurra para dentro do
curso da vida, onde será dissolvido ou modificado. O sentimento que se mantém
sem definições e limites é, pelo contrário, relativamente imutável. Veio-lhe
uma comparação: “Um morre, como um indivíduo, o outro permanece, como uma
espécie ou gênero.” Quem sabe se, de fato, mesmo que indiretamente, não se
reproduz assim na disposição do sentimento numa disposição geral da vida.”