Editora: Nova Fronteira
ISBN: 978-85-2094-276-5
Tradução: Lya Luft e Carlos Abbenseth
Opinião: ★★★★☆
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Páginas: 1248
Sinopse: Ver Parte
I
“Parece
que o bravo homem prático e realista jamais ama a realidade, nem a leva a
sério. Em criança, rasteja debaixo da mesa quando os pais não estão, para
transformar o quarto deles numa aventura com esse truque tão simples e genial;
quando menino, deseja ardentemente um relógio; quando adolescente, com relógio
de ouro, deseja uma mulher que combine com ele; quando homem com relógio e
mulher, anseia por uma posição elevada; e quando conseguiu, feliz, realizar
esse pequeno círculo de desejos, e balança dentro dele calmamente para lá e
para cá como um pêndulo, sua provisão de sonhos insatisfeitos não parece ter
diminuído.”
“Depois
que o diretor Fischel se afastara depressa, ele ficou novamente entretido com a
pergunta da sua juventude: por que todas as manifestações ilegítimas e
realmente inverídicas são tão estranhamente favorecidas pelo mundo? “Mentindo a
gente sempre avança um passo”, pensou ele. “Eu devia ter-lhe dito isso.”
Ulrich
era um homem de paixões, mas por paixão não se deve entender aquilo que em
particular se chama de paixões. Devia haver algo que o impelira para elas, e
talvez fosse paixão, mas, quando excitado, sua postura sempre fora a um tempo
apaixonada e indiferente. Tivera praticamente todas as experiências que
existem, e sentia que ainda poderia se lançar, a qualquer momento, nalguma
coisa que não precisava ter sentido desde que excitasse seu impulso de ação.
Por isso, podia dizer de sua vida, sem muito exagero, que nela tudo se passara
como se as coisas se ligassem mais umas às outras do que a ele. Depois de A
sempre vem B, fosse na luta ou no amor. E ele devia acreditar que as qualidades
pessoais que assim obtinha se ligavam mais umas às outras do que a ele; cada
uma delas, examinando bem, não se ligava mais intimamente a ele do que a outras
pessoas que também a poderiam possuir.
Mas
sem dúvida, apesar disso, elas nos determinam, e nelas consistimos, ainda que
não sejamos identificados com elas; e assim, às vezes, num momento calmo, nos
sentimos tão esquisitos quanto num momento de nervosismo. Se Ulrich tivesse de
dizer como era na verdade, ficaria embaraçado; pois, como muitas pessoas, nunca
se analisara senão no cumprimento de alguma tarefa, e em relação a ela. Sua
consciência de si mesmo não fora danificada, nem era mimada ou vaidosa, e não
conhecia a necessidade daquela manutenção e lubrificação que se chamava exame
de consciência. Era um homem forte? Não sabia; talvez estivesse muito enganado
quanto a isso. Mas certamente sempre fora um homem que confiava em sua força.
Também agora não duvidava de que essa diferença entre a posse das próprias
experiências e qualidades, e o alheamento em relação a elas, é apenas uma
diferença de postura, de certa forma uma decisão da vontade, ou o lugar entre
generalidade e pessoalidade, em que se resolveu viver.
Em
palavras simples, podemos encarar as coisas que nos acontecem, ou que fazemos,
de um modo mais geral ou mais pessoal. Podemos sentir um golpe, além de como
dor, também como ofensa, o que aumenta intoleravelmente; mas também o podemos
aceitar com espírito esportivo, como um obstáculo que não nos deve nem
intimidar nem nos deixar cegos de raiva, e então, não raro, nem o percebemos.
Mas, neste segundo caso, nós apenas o inserimos num contexto geral, isto é, no
combate, e sua natureza depende da tarefa que ele tem a cumprir. E é exatamente
esse fenômeno, de que uma experiência adquire sentido pela sua posição numa
cadeia de atos coerentes, que acontece em toda pessoa que não encara o golpe
como um fato pessoal, mas como um desafio à sua força espiritual. Também ela
sentirá menos o que faz; mas, singularmente, aquilo que, no boxe, se julga
força mental superior, é considerado frieza e insensibilidade quando decorre de
uma postura mental de pessoas que não lutam boxe. Existe aí toda sorte de
distinções, para se empregar e exigir uma postura pessoal ou geral conforme a
situação. Num assassino, considera-se especial crueza um procedimento objetivo;
num professor que continue resolvendo suas equações nos braços da esposa, diz-se
que é frieza de pedra; num político que sobe na vida, passando por cima de
outros, diz-se que é baixeza ou grandeza, conforme o resultado; de soldados,
carrascos e cirurgiões, porém, exige-se essa imperturbabilidade que se condena
em outros. Sem se aprofundar mais na moral destes exemplos, nota-se a
insegurança com que se sela um compromisso entre postura objetivamente correta
e pessoalmente correta.
Essa
insegurança conferia um amplo pano de fundo à indagação pessoal de Ulrich.
Antigamente, ser uma pessoa deixava a gente com a consciência mais tranquila.
As pessoas pareciam-se com espigas de cereal; talvez fossem mais violentamente
abaladas por Deus, granizo, fogo, peste e guerra do que agora, mas o eram em
conjunto, como cidade, campo, país; e o que restava de movimento pessoal à
espiga isolada era uma responsabilidade que se podia tomar, algo claramente
delimitado. Hoje, em contrapartida, a responsabilidade já não tem seu centro de
gravidade no homem, mas em contextos objetivos. Não notaram que as vivências
agora independem das pessoas? Transferiram-se para os teatros, os livros, os
relatórios dos centros de pesquisa e viagens de estudos, estão nas comunidades
ideológicas ou religiosas, que desenvolvem certos tipos de vivência à custa de
outros, como uma tentativa experimental no campo social. E na medida em que
hoje as vivências não se situam no trabalho, ficam no ar; quem ainda pode
dizer, hoje em dia, que sua raiva é realmente sua raiva, quando tantas pessoas
se metem no assunto e entendem mais do que ela?! Surgiu um mundo de qualidades
sem homem, de vivências sem quem as vive, e quase parece que, num caso ideal, o
ser humano já não vive mais nada pessoalmente, e o amável peso da
responsabilidade pessoal se dilui num sistema de fórmulas de significados
possíveis. Provavelmente a diluição do comportamento antropocêntrico que julgou
o homem centro do universo, mas há séculos está desaparecendo, por fim chegou
ao próprio eu; pois a crença de que o mais importante na vivência é que se a
viva, e na ação o mais importante é que aja, começa a parecer ingenuidade para
a maioria das pessoas. Mas ainda há quem viva de maneira inteiramente pessoal.
Eles dizem: “ontem estivemos aqui ou ali”, ou “hoje vamos fazer isso ou
aquilo”, e se alegram, sem que seja necessário que tudo isso tenha outro
conteúdo ou significação. Gostam de tudo o que podem tocar com os dedos, e são
tão absolutamente indivíduos particulares quanto é possível ser; o mundo
torna-se particular assim que tem a ver com eles, e brilha como um arco-íris.
Talvez sejam muito felizes; mas esse tipo de gente habitualmente parece absurdo
aos outros, embora não se saiba por quê.
E
de repente, pensando nisso, Ulrich teve de admitir, sorrindo, que ele era um
caráter, sem ter caráter algum.”
““Por
que não me tornei um peregrino?”, pensou Ulrich de repente. Uma vida pura,
independente, de um frescor áspero como ar muito claro oferecia-se aos seus
sentidos. Quem não quer dizer sim à vida, pelo menos devia dizer o não dos
santos: mas era impossível pensar seriamente nisso. Tampouco ele podia se
tornar aventureiro, embora a vida pudesse ter então algo de uma lua de mel
eterna, e seu corpo e seu ânimo desejassem isso. Não tinha podido tornar-se
poeta nem uma dessas pessoas ressentidas que só acreditam em dinheiro e poder,
embora tivesse uma certa tendência para tudo isso. Esquecia sua idade,
imaginava ter vinte anos; apesar disso, também decidira intimamente que não
poderia se tornar nenhuma dessas coisas; algo o atraía para todas essas
possibilidades, mas algo mais forte o impedia de as realizar. Por que vivia
assim, obscura e indefinidamente? Sem dúvida, pensou, o que o prendia dentro de
uma existência isolada e inominada não era senão a obrigação de afrouxar e
amarrar o mundo, designada por uma palavra que não se gosta de ver sozinha:
espírito. Nem o próprio Ulrich sabia por quê, mas de repente ficou triste, e
pensou: “Eu simplesmente não me amo.” No corpo frio e petrificado da cidade ele
sentiu pulsar, bem no fundo, seu próprio coração. Havia nele alguma coisa que
não queria permanecer em lugar algum, que apalpara as paredes do mundo, e
pensara: existem outros milhões de paredes; aquela ridícula gota do Eu, que
esfriava lentamente, não queria entregar seu fogo à minúscula semente de ardor.
O
espírito percebe que a beleza torna alguém bom, mau, tolo ou fascinante. O
espírito disseca um carneiro ou um penitente, e encontra nos dois humildade e
paciência. Examina uma substância e reconhece que ela consta de muito veneno, e
um pouquinho de prazer. Sabe que a mucosa dos lábios é aparentada com a mucosa
do intestino, mas também sabe que a humildade desses lábios é aparentada com a
humildade de todas as coisas sagradas. Ele confunde, separa e religa outra vez.
Bem ou mal, em cima e embaixo, não são para ele ideias céticas e relativas, mas
membros de uma função, valores que dependem do contexto em que se encontram.
Aprendeu durante séculos que vícios podem se tornar virtudes, e virtudes
vícios, e no fundo julga apenas falta de habilidade não se conseguir, no curso
de uma vida, transformar um criminoso numa pessoa útil. Não reconhece nada
permitido ou ilícito, pois tudo pode ter uma qualidade através da qual um dia
participará de alguma nova e grande estrutura. Secretamente odeia, como à
morte, tudo o que finge ser definitivo, os grandes ideais e leis, e sua pequena
imitação petrificada, que é o caráter satisfeito. Ele não considera nada
sólido: nem o eu, nem ordem alguma; porque nossos conhecimentos podem se
modificar a cada dia, ele não crê em nenhuma ligação, e tudo possui o valor que
tem apenas até o próximo ato da criação, como um rosto com quem se fala e se
vai modificando com nossas palavras.
O
espírito é o grande oportunista, mas não o podemos agarrar em parte alguma, é
de acreditar que seu efeito seja a deterioração. Cada avanço é um lucro no
detalhe e uma laceração no todo; é um aumento de poder desembocando em
progressiva impotência, e não há como fugir. Ulrich recordava aquele corpo de
fatos e descobertas que cresce praticamente a cada hora, do qual o espírito
contempla hoje o mundo se quiser examinar bem qualquer problema. Esse corpo
cresce afastando-se do seu interior. Incontáveis conceitos, opiniões,
pensamentos reguladores de todas as zonas e épocas, de todas as formas de
cérebros sadios e doentes, lúcidos e sonhadores, repassam-no como mil nervinhos
sensíveis, mas o ponto de irradiação onde se reúnem não existe. O ser humano
sente o perigo de se repetir nele o destino daquelas raças de animais
gigantescos da pré-história, que sucumbiram vítimas do seu próprio tamanho;
mesmo assim, não pode deixar de fazer o que faz.”
“Ulrich
parecia ter se enganado ao presumir que ele próprio não existia ainda para o
universo policial, pois ao erguer a cabeça de novo, o policial o encarou, as
últimas linhas escritas brilhavam úmidas, sem serem enxugadas, e o caso Ulrich
de repente pareceu ter já há muito existência oficial. Nome? Idade? Profissão?
Residência?... Era o interrogatório.
Ulrich
pensou ter entrado numa máquina que o dividia em pedaços impessoais antes que se
falasse em culpa ou inocência. Seu nome, aquelas duas palavras mais pobres de
conteúdo mas ricas de emoção da língua, não significava nada ali. Seus
trabalhos, que lhe tinham conseguido honrarias no mundo científico, que passava
por ser tão sólido, não existiam naquele mundo; nem uma só vez lhe perguntaram
por eles. Seu rosto valia apenas como referência; antigamente nunca pensara que
seus olhos eram cinzentos, um dos quatro tipos de olhos oficialmente
reconhecidos, que existiam aos milhões; seus cabelos eram louros, estatura
alta, rosto oval, e não tinha sinais particulares, embora pensasse de maneira
diferente. Sentia que era grande, ombros largos, o tórax como vela inflada no
mastro, e as articulações de seu corpo cerravam os músculos, como delgadas peças
de aço, sempre que se aborrecia ou brigava, ou que Bonadeia se aconchegava
nele; mas era pequeno, delicado, escuro e flexível como uma medusa boiando na
água, sempre que lia um livro que o comovesse, ou era tocado pelo sopro do
grande amor apátrida cujo estar-no-mundo jamais conseguira entender. Por isso,
mesmo naquele momento, ainda via graça no desencantamento estatístico de sua
pessoa, e o procedimento de medir e descrever do órgão policial entusiasmava-o
como um poema de amor inventado por Satanás. O mais singular era que a polícia
não apenas pode desmembrar uma pessoa a ponto de nada sobrar dela, mas pode
reconstruí-la de novo com essas pecinhas insignificantes, tornando-a única e
por elas identificável. Para isso basta que se acrescente essa coisa imponderável
chamada suspeita.”
“Podemos
ficar parados ou andar, como quisermos; o essencial não é o que se tem, vê,
ouve, quer, agarra, domina logo à frente. A coisa jaz diante de nós como
horizonte, como semicírculo; mas as pontas desse semicírculo são ligadas por um
tendão, e esse tendão atravessa o mundo no meio. O rosto e as mãos espiam para
fora dele, na frente, as emoções e esforços correm adiante dele, e ninguém
duvida: o que estamos fazendo é sempre sensato, ou, ao menos, feito com paixão.
Quer dizer, as circunstâncias externas condicionam nossas atitudes tornando-as
compreensíveis; e quando, tomados de paixão, fazemos algo incompreensível,
também isso tem uma estrutura. Por mais que tudo pareça compreensível e
acabado, é acompanhado de uma obscura sensação de incompletude. Falta
equilíbrio, e o ser humano avança, oscilante, como um aramista. E avançando
pela vida, deixando atrás de si coisas vividas, as coisas ainda por viver, e as
já vividas, formam uma parede, e o caminho dele finalmente parece o de um verme
na madeira, que se pode mover à vontade, até voltar atrás, mas sempre deixa em
seu rastro o espaço vazio. E por essa horrenda sensação de um espaço cego e
amputado atrás de tudo o que está pleno, por essa metade que sempre falta
quando tudo já está inteiro, percebemos finalmente o que é isso que chamamos
alma.
Pensamos,
pressentimos, sentimos o tempo todo sua presença adicional, nas mais diversas
formas de sucedâneos, e conforme o temperamento de cada pessoa. Na juventude,
como nítida sensação de insegurança em tudo o que se faz, não sabendo se é
certo ou errado. Na velhice, como espanto ao ver como se fez pouco do que na
verdade se pretendia. No meio dessas duas fases, como consolo de pensar que se
é um sujeito ótimo e capaz, embora nem tudo o que se faça tenha justificativa,
ou que o mundo não é como devia ser, de modo que no fim tudo o que se fez de
errado acaba se justificando; e, por fim, muitas pessoas até pensam num Deus,
que carrega no bolso aquele pedacinho que lhes falta. Mas só o amor assume
diante de tudo isso uma posição especial; nesse caso excepcional é que cresce a
segunda metade. A pessoa amada parece estar ali onde sempre faltara alguma
coisa. As almas se unem, por assim dizer, dorso a dorso, e com isso se tornam
supérfluas. Motivo por que a memória das pessoas depois de passado o grande
amor da juventude já não sente mais falta da alma, e essa pretensa loucura
cumpre sempre uma grata missão social.”
“Pois
também a beleza de uma pessoa não consta de detalhes e coisas comprováveis, e
sim de um fascinante Algo, que até se serve dos pequenos defeitos; e exatamente
assim, a profunda bondade e o profundo amor, a dignidade e a grandeza de uma
criatura, são quase independentes daquilo que ela faz; são mesmo capazes de
enobrecer tudo o que ela possa fazer. De maneira misteriosa, o todo está à
frente dos detalhes, na vida. Portanto, ainda que pessoas comuns sejam feitas
de virtudes e erros, o grande homem é que confere categoria às suas qualidades;
e se o segredo do seu sucesso for que nenhum de seus méritos ou qualidades
explica esse sucesso, a existência de uma força maior do que qualquer de suas
manifestações externas é o segredo no qual repousa tudo o que é grande na vida.”
“—
Mas será que hoje existe alguma coisa que se possa chamar de realmente grande e
importante, a ponto de se desejar concretizá-la com todas as forças?
— É
característica de uma época que perdeu a segurança interior de tempos saudáveis
— comentou Arnheim —, dificilmente se encontrará nela algo da maior grandeza e
importância.”
“Então
lembrava-se da noite. (...) De noite a pessoa veste só um camisolão, logo por
baixo aparece o caráter. Nem esperteza nem conhecimentos profissionais o
protegiam. Toda a sua personalidade em jogo. Nada mais.”
“O
ser humano suporta tão pouco a suspeita quanto o papel de seda suporta a chuva.”
“Lembrou-se
da frase de Voltaire, de que as pessoas empregam palavras para esconder seus
pensamentos e utilizam pensamentos para fundamentar seus erros.”
“Depois
de refletir um pouco, Ulrich prosseguiu: — Os especialistas nunca concluem sua
tarefa. Não apenas não estão prontos hoje, mas nem conseguem imaginar o término
de sua atividade. Talvez nem mesmo o desejem. Pode-se imaginar, por exemplo,
que a pessoa ainda tenha uma alma depois que aprendeu a entendê-la totalmente
do ponto de vista biológico e psicológico, e aprendeu a tratá-la? Apesar disso,
desejamos esse estado de coisas! É isso. Saber é um comportamento, uma paixão.
No fundo, um comportamento proibido; pois assim como o vício da bebida, do sexo
e da violência, também a obsessão de saber forma um caráter desequilibrado. E
não é certo que o pesquisador procura a verdade, é ela que o persegue. Ele a
suporta. A verdade é verdadeira e o fato é real, sem se importarem com o
pesquisador; este apenas tem paixão por eles, tem o vício dos fatos, que marca
seu caráter, e pouco lhe importa que suas constatações formem ou não um todo,
algo humano e perfeito. Sua natureza é contraditória, sofredora, mas
incrivelmente enérgica!”
“Nem
eu mesmo sei se estou mentindo.”
“Uma
águia bateria poucas vezes as asas para ir de um telhado a outro; mas para a
alma moderna, que atravessa brincando oceanos e continentes, nada é tão
impossível quanto encontrar a ligação com as almas que moram na outra esquina.”
“Compreendeu
que vivia numa época memorável, pois era uma época cheia de grandes ideias; mas
era inacreditável a dificuldade em concretizar as maiores, e mais importantes,
pois havia todas as condições para isso, menos uma: qual delas escolher! Sempre
que Diotima estava quase se decidindo por uma das ideias, notava que o
contrário dela também seria grandioso. As coisas são assim, e não havia o que
fazer. Ideais têm qualidades singulares, entre elas a de se transformarem no
seu contrário quando os queremos concretizar escrupulosamente.”
“Diotima
não imaginava uma vida sem verdades eternas, mas agora, admirada, percebia que
todas as verdades eternas são duplas e múltiplas. Por isso, o homem sensato,
como o subsecretário Tuzzi, que assim até ficava reabilitado, sente uma
profunda desconfiança contra verdades eternas; jamais negará que são
indispensáveis, mas está convencido de que pessoas que as tomam ao pé da letra
são doidas. Na sua opinião — abundantemente relatada à esposa —, os ideais
humanos são desmedidamente exigentes, o que tem de trazer a ruína se forem
levados demasiadamente a sério. A melhor prova disso, segundo Tuzzi, era que
palavras como “ideal” e “verdade eterna” jamais aparecem em
repartições que tratam de assuntos sérios. Um relator que se permitisse usá-las
num processo seria imediatamente aconselhado a pedir férias por motivo de
saúde.”
“Os
meios de comunicação rápidos de hoje exigem mais vítimas do que todos os tigres
da Índia juntos, e sem dúvida a inescrupulosidade, inconsciência e negligência
com que toleramos isso nos traz por outro lado sucessos inegáveis.”
“Essa
postura mental tão arguta quanto ao que está próximo e tão cega para o todo tem
sua mais importante expressão num ideal que se poderia chamar ideal da obra de
uma vida que não conste de mais de três tratados. Há atividades intelectuais em
que não são os grandes livros que fazem o orgulho de um homem, mas os pequenos
tratados. Se, por exemplo, alguém descobrisse que em circunstâncias ainda não
observadas as pedras podem falar, não precisaria senão de poucas páginas para
descrever e explicar um fenômeno tão revolucionário. Em contrapartida, sobre as
justas concepções morais se podem escrever livros e mais livros, e não se trata
apenas de erudição, mas de um método, com o qual nunca conseguimos ter clareza
quanto às questões mais importantes da vida. Poderíamos dividir as atividades
humanas segundo a quantidade de palavras de que precisam; quanto mais palavras,
tanto pior o caráter das atividades. Todos os conhecimentos através dos quais
nossa espécie passou, das roupas de pele de animais até a aviação, não
ocupariam, com suas provas acabadas, mais do que uma biblioteca de bolso; mas
um armário de livros do tamanho da Terra não bastaria nem de longe para conter
todo o resto, sem falar naquela discussão vastíssima que não se realizou com a
pena, mas com espadas e correntes. É de pensar que conduzimos muito
irracionalmente nossos assuntos humanos, se não os atacamos conforme a ciência,
que teve um progresso tão exemplar.”
“A
experiência demonstra que depois de uma orientação sempre se segue outra,
oposta. E embora fosse imaginável e desejável que essa mudança se efetuasse à
maneira do parafuso, que a cada mudança de direção se subisse mais, por razões
desconhecidas a evolução raramente ganha mais do que perdeu pelo desvio e
destruição.”
“Assim
como a palavra duro designa quatro coisas diferentes, caso dureza se relacione
com amor, grosseria, ambição ou severidade, todos os fatos morais lhe pareciam,
em seu significado, funções dependentes de outras. Assim, surgia um infinito
sistema de relações em que não havia mais quaisquer significados independentes
como a vida comum se atribui, numa primeira aproximação grosseira, aos atos e
qualidades; o que parecia ser sólido tornava-se pretexto permeável para muitos
outros significados, o que acontecia tornava-se símbolo de algo que talvez nem
acontecesse, mas que era sentido; e o ser humano enquanto resumo de suas
possibilidades, o ser potencial, o poema não escrito de sua existência,
opunha-se ao ser humano como texto, realidade e caráter.
No
fundo, nessa concepção Ulrich sentia-se capaz de qualquer virtude ou maldade, e
o fato de tanto os vícios quanto as virtudes serem de modo geral, embora
inconfesso, considerados igualmente indesejáveis numa sociedade equilibrada
provava-lhe exatamente isso que sempre acontece na natureza: que com o tempo
todo o jogo de forças busca um valor médio e um estado médio, uma compensação e
uma cristalização. A moral no sentido comum não era, para Ulrich, senão a forma
envelhecida de um sistema de forças que não pode ser confundido com ela sem
perda de força ética.
Talvez
também esses conceitos expressassem certa insegurança na vida; mas por vezes a
insegurança não é senão insatisfação diante das seguranças comuns, e deve-se
lembrar que mesmo alguém tão experiente como a humanidade aparentemente age
segundo princípios bem parecidos com esses. Ela revoga constantemente tudo o
que já fez, e coloca outra coisa em seu lugar; também para ela, com o tempo
crimes se transformam em virtudes ou vice-versa; ela elabora grandes contextos
de ideias com tudo o que acontece, e depois de algumas gerações deixa-os
desmoronar de novo; mas isso vem em sequência, em vez de transcorrer num único
sentimento de vida, e a cadeia dessas tentativas não revela ascensão. Porém um
ensaísmo humano consciente teria mais ou menos a tarefa de transformar em
vontade essa desleixada consciência do mundo. E muitas linhas isoladas de
evolução indicam que isso poderia acontecer em breve.”
“Mas foi exatamente nos anos que o deviam ter
estimulado que lhe aconteceu algo singular. Ele não era filósofo. Filósofos são
déspotas que não dispõem de nenhum exército, por isso submetem o mundo todo
encerrando-o num sistema. Provavelmente por isso, nos tempos dos tiranos houve
grandes filósofos, enquanto nos tempos de civilização mais avançada e
democrática não se consegue produzir nenhuma filosofia convincente; pelo menos
isso se deduz das lamentações que se ouvem a respeito. Por isso, hoje se fala
tanto em filosofia, que só em armazéns ainda se pode comprar alguma coisa sem
filosofia de vida, mas ao mesmo tempo reina desconfiança em relação às grandes
filosofias. Simplesmente as consideramos impossíveis, e Ulrich não estava livre
disso; sim, baseado em suas experiências científicas, até ironizava um pouco a
filosofia. Era isso que orientava seu comportamento, de modo que tudo o que via
o levava à reflexão, mas, ao mesmo tempo, ele tinha receio de pensar demais.”
“A
questão fundamental não era encarada por Ulrich apenas como pressentimento, mas
também de modo muito lúcido, na seguinte forma: o homem que quer a verdade
torna-se erudito; o homem que quer liberar sua subjetividade torna-se, talvez,
escritor; mas o que fará um homem que quer qualquer coisa entre esses dois
polos?”
“Ulrich
não conseguia entregar-se a pressentimentos vagos com tanta facilidade como uma
pessoa dessa espécie, mas, de outro lado, não podia também esconder que anos a
fio, vivendo com pura exatidão, apenas vivera contra si próprio; e desejava que
lhe acontecesse algo de imprevisto, pois quando fazia aquilo que ironicamente
chamava suas “férias da vida”, não tinha nem numa nem noutra direção nada que
lhe desse paz.
Talvez
se pudesse alegar, em sua defesa, que a vida em certas fases transcorre com
incrível rapidez. Mas o dia em que precisamos começar a viver nossa última
vontade, antes de largarmos seus restos, está muito à nossa frente e não pode
ser adiado. Ele via isso com uma nitidez ameaçadora, agora que se passara quase
meio ano sem nenhuma mudança. Esperava, enquanto se movia de um lado para outro
naquela atividade insignificante e tola que se propusera, falava, tinha prazer
em falar demais, vivendo com a desesperada tenacidade de um pescador que abaixa
suas redes no rio vazio, pois não fazia nada que correspondesse à pessoa que
era, e agia assim intencionalmente. Esperava atrás de sua própria pessoa, na
medida em que essa palavra designa a parte de um ser humano formada pelo mundo
e pelo curso da vida; e seu desespero calmo, retido atrás dela, aumentava a
cada dia. Estava na pior situação de sua vida, e desprezava a si próprio por
suas omissões. Grandes provações serão privilégio de grandes naturezas? Teria
gostado de acreditar nisso, mas não é correto, pois também as mais simples
naturezas nervosas têm suas crises. Assim, na verdade não lhe restava naquele
grande abalo senão o resto inabalável que possuem todos os heróis e criminosos,
que não é coragem, não é vontade, não é confiança, é simplesmente capacidade de
agarrar-se tenazmente em si mesmo, tão difícil de extirpar quanto é difícil
extirpar a vida de um gato, mesmo quando já está todo despedaçado pelos cães.”
“Pessoas
que facilmente se descontrolam são muito desagradáveis. Só quando nós mesmos
não estamos em jogo podemos ser imparciais com elas. Nesse caso, despertam
nossa simpatia, julgamos que são vítimas do destino ou da sociedade. Você tem
de admitir que ninguém se julga culpado de seus próprios erros; no pior dos
casos, considera-os um engano, ou qualidades negativas num conjunto que nem por
isso é menos bom; e naturalmente ele terá toda a razão!”
““O
que foi feito de mim?”, pensou Ulrich amargurado. “Talvez uma pessoa corajosa e
insubornável, que imagina respeitar poucas leis exteriores por amor à liberdade
interior. Mas essa liberdade interior consta de poder pensar tudo, saber em
qualquer situação humana por que não nos precisamos prender a ela, e nunca
saber em que nos gostaríamos de prender!” Naquele momento infeliz, em que a
singular pequena onda de emoções que o dominara por um segundo se desfazia
novamente, estava disposto a admitir que só possuía uma capacidade, a de
descobrir em cada coisa dois aspectos, aquela ambivalência moral que
caracterizava quase todos os seus contemporâneos e constituía a tendência de
sua geração, ou o seu destino.”
“— Veja
bem, o dinheiro é um poder extremamente intolerante.
—
Em tudo o que as pessoas fazem com todo o empenho provavelmente há certa
intolerância.”
“As
pessoas precisam ou não concordar com seu corpo?”
“Enquanto
o espírito artístico quer ser admirado como Goethe e Michelangelo, Napoleão e
Lutero, praticamente ninguém mais sabe o nome do homem que deu à humanidade a
indizível bênção da anestesia, ninguém pesquisa procurando uma sra. Von Stein
na vida de Gauss, Euler ou Maxwell, e apenas uma ínfima minoria se interessa em
saber onde nasceram ou morreram Lavoisier e Cardanus. Em vez disso, aprende-se
como suas ideias e descobertas foram desenvolvidas por outras pessoas
igualmente desinteressantes, e nos ocupamos exclusivamente com suas
realizações, que continuam vivas em outra pessoa, depois que a breve chama da
primeira se consumiu.”
“Quem
é imparcial tem de poder suportar uma palavra dura de vez em quando.”
“—
Mas diga-me, Gerda, aonde vai nos levar tudo isso?
O
problema era que não se amavam. Antigamente, tinham jogado tênis juntos várias
vezes, ou encontravam-se em festas, tinham andado juntos, simpatizado um com o
outro, e assim, imperceptivelmente, haviam transposto o limite que distingue
uma pessoa em quem confiamos, e a quem nos mostramos com toda a nossa confusão
emocional, de todas as outras pessoas, diante das quais fingimos ser perfeitos.
Sem querer, tinham ficado íntimos como duas pessoas que se amam há muito tempo,
ou mesmo que já quase nem se amam mais; mas dispensaram o amor. Brigavam a
ponto de se pensar que se detestavam, isso era, porém, a um tempo obstáculo e
ponto de contato. Sabiam que faltava apenas uma pequena centelha para
desencadear um incêndio. Se a diferença de idade fosse menor, ou Gerda uma
mulher casada, provavelmente a ocasião teria feito o ladrão, e do roubo teria
nascido a paixão, pois a gente se persuade do amor como da ira quando se começa
a praticá-lo. Mas exatamente por saberem disso, não o faziam. Gerda continuava
virgem, e incomodava-se intensamente por isso.”
“Hoje,
quando se mistura tudo quanto é possível e profetas e vigaristas usam a mesma
linguagem, exceto por diferenças muito pequenas que nenhuma pessoa ocupada tem
tempo de investigar, e as redações são continuamente importunadas por alguém
que se considera um gênio, é muito difícil reconhecer corretamente o valor de
uma pessoa ou uma ideia; temos de nos fiar em nosso ouvido, para reconhecermos
quando o rosnado e arrastar de pés diante da porta da redação é forte a ponto
de poder ser admitido como voz do povo.”
“A
felicidade multiplica a capacidade de realizações.”
“—
Você gostaria de viver segundo suas ideias — começou Ulrich —, e gostaria de
saber como se faz isso. Mas uma ideia é o maior paradoxo do mundo. A carne se
liga às ideias como um fetiche. Torna-se mágica quando há uma ideia presente.
Uma vulgar bofetada pode se tornar mortal pela ideia da honra, castigo e coisas
assim. Mas as ideias jamais se mantêm no estado em que são mais fortes; são
como aquelas substâncias que em contato com o ar imediatamente se transformam
em outra, mais durável, mas corrompida. Você viu isso muitas vezes. Surge uma
ideia; é você; num determinado estado. Alguma coisa sopra em você; como um
súbito rumor de cordas, surge um som; alguma coisa se coloca diante de você
como uma miragem; da confusão de sua alma formou-se um cortejo infinito, e
todas as belezas do mundo parecem estar paradas à beira da estrada. Muitas
vezes uma só ideia provoca isso. Mas depois de algum tempo, ela começa a se
parecer com todas as outras ideias que você já teve, submete-se a elas,
torna-se parte de suas concepções e do seu caráter, de seus princípios ou de
seus estados de alma; ela perdeu as asas, e assumiu uma solidez totalmente
desprovida de mistérios.”
“—
A grande vileza, na atualidade, não acontece porque a cometemos, mas porque a
permitimos. Ela cresce no vazio.”
“Uma
ideia sem objetivo prático não é uma ocupação muito decente.”
“Em
grande parte, porém, a história acontece sem autores. Ela surge, não de um
centro, mas da periferia. De pequenas causas. Provavelmente nem é preciso tanto
quanto se imagina para transformar o homem gótico ou o grego antigo no moderno
homem civilizado. Pois o ser humano é tão capaz de canibalismo quanto de crítica da razão pura; pode realizar as duas coisas com as mesmas convicções e qualidades,
quando a situação exige, e diferenças exteriores muito grandes correspondem a
diferenças interiores muito reduzidas.”
“Ulrich
elaborava o programa de viver-se uma história de ideias em vez de uma história
do mundo. Pressupunha que a diferença estaria menos nos acontecimentos do que
no significado que lhes conferissem, na intenção que ligassem a eles, no
sistema que abrangesse os acontecimentos isolados. O sistema agora vigente era
o da realidade, e parecia uma peça de teatro ruim. Não era à toa que se dizia
“teatro do mundo”, pois na vida sempre surgem os mesmos papéis, tramas e
fabulações. A gente ama, porque e do modo que o amor existe; sentimos orgulho
como os índios, os espanhóis, as virgens ou o leão; assassinamos até, em noventa
por cento dos casos, apenas porque isso se considera trágico e grandioso. E
principalmente as figuras políticas bem-sucedidas da realidade, com grandes
exceções, têm muito em comum com os autores de sucessos de bilheteria: os
vivazes acontecimentos que produzem nos entediam pela falta de espírito e
novidade, mas exatamente por isso nos deixam naquele estado inerte e sonolento
em que aceitamos qualquer mudança. Considerada sob esse aspecto, a história
consta de rotina ideal e de ideal indiferença, e a realidade consta
principalmente de não acontecer nada em favor das ideias. Segundo Ulrich, isso
se podia resumir dizendo que pouco nos interessa o que acontece, interessa-nos
demais a quem, onde e quando acontece, de modo que não é o espírito dos acontecimentos
mas sua fabulação, não o surgimento de novo conteúdo de vida mas a distribuição
do já existente que importam, exatamente como na diferença entre peças de
teatro boas, e outras apenas populares. Daí resultaria ser necessário fazer o
contrário e renunciar primeiro à nossa avidez pessoal de experiências. Seria
preciso encará-las menos do ponto de vista pessoal e real, e mais como algo
geral e imaginado, com tanta isenção pessoal como se fossem pintadas ou
cantadas. Não devemos querer relacionar essas experiências conosco mesmos, mas
dirigi-las para fora, e para cima. E se isso valia individualmente, também
deveria acontecer, coletivamente, alguma coisa que Ulrich não sabia descrever
bem, mas que chamava de guardar, envelhecer e fermentar o licor espiritual, sem
o qual o indivíduo naturalmente só pode sentir-se impotente e à mercê de seu
próprio arbítrio. Enquanto falava assim, Ulrich lembrou o instante em que
dissera a Diotima que era preciso eliminar a realidade.”
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