Editora: Boitempo
Tradução e apresentação: José Paulo Netto
ISBN: 978-85-7559-567-1
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 232
Sinopse: Ver Parte
I
“Não se faz história com fórmulas.”
“Uma condição das mais indispensáveis para a
formação da indústria manufatureira foi a acumulação dos capitais, facilitada
pela descoberta da América e pela introdução de seus metais preciosos.
Está suficientemente provado que o aumento
dos meios de troca teve por consequência, de um lado, a depreciação dos
salários e das rendas fundiárias e, de outro, o crescimento dos lucros
industriais. Em outros termos: enquanto a classe dos proprietários e a classe
dos trabalhadores, os senhores feudais e o povo, decaíam, ascendia a classe dos
capitalistas, a burguesia,
Outras circunstâncias concorreram
simultaneamente para o desenvolvimento da indústria manufatureira: o aumento de
mercadorias em circulação depois que o comércio penetra nas Índias Orientais
pelo Cabo da Boa Esperança, o regime colonial, o desenvolvimento do comércio
marítimo.
Um outro ponto que ainda não foi devidamente
apreciado na história da indústria manufatureira foi a liberação de numerosos
séquitos de senhores feudais, cujos membros subalternos se tornaram vagabundos
antes de entrar para as fábricas. A criação da fábrica foi precedida por uma
vagabundagem quase universal nos séculos XV e XVI. A fábrica encontrou ainda um
forte apoio entre os numerosos camponeses que, expulsos do campo pela transformação
da terra em pasto e pelos progressos agrícolas que requeriam menos braços para
o cultivo, afluíram às cidades durante séculos inteiros*.
A ampliação do mercado, a acumulação de
capitais, as modificações verificadas na posição social das classes, uma
multidão de pessoas privadas de suas fontes de renda, eis as condições históricas
para a formação da manufatura. Não foram, como diz o sr. Proudhon, estipulações
amistosas entre iguais que reuniram os homens na fábrica. A manufatura nem
sequer nasceu no seio das antigas corporações. Foi o comerciante que se tornou
o chefe da oficina moderna, não o antigo mestre das corporações. Em quase todos
os lugares, houve uma luta encarniçada entre a manufatura e os ofícios.”
“Há até mesmo fases na vida econômica dos
povos modernos em que todo o mundo é tomado de uma espécie de vertigem para
lucrar sem produzir. Essa vertigem de especulação, que retorna periodicamente,
desnuda o verdadeiro caráter da concorrência, que procura escapar à necessidade
da emulação industrial.
Se dissessem a um artesão do século XIV que
os privilégios e toda a organização feudal da indústria seriam abolidos e
substituídos pela emulação industrial, a chamada concorrência, ele replicaria
que os privilégios das diversas corporações, confrarias e grêmios são a
concorrência organizada. O sr. Proudhon não diz coisa melhor, afirmando que “a
emulação não é outra coisa senão a própria concorrência. [...] Ordene-se que, a
partir de 1º de janeiro de 1847, o trabalho e o salário sejam garantidos a todo
o mundo e logo um enorme relaxamento sucederá à ardente tensão da indústria”****.
* Pierre-Joseph Proudhon, Système
des contradictions économiques, edição de 1923, t. I., p. 211 e 212.
“Toda história não é mais que uma
transformação contínua da natureza humana.”
“Em cada época histórica, a propriedade
desenvolveu-se diferentemente e numa série de relações sociais totalmente
distintas. Portanto, definir a propriedade burguesa não é mais que expor todas
as relações sociais da produção burguesa.
Pretender dar uma definição da propriedade
como uma relação independente, uma categoria à parte, uma ideia abstrata e
eterna, só pode ser uma ilusão de metafísica ou jurisprudência.”
“A renda, no sentido de Ricardo, é a
agricultura patriarcal transformada em indústria comercial, o capital
industrial aplicado à terra, a burguesia das cidades transplantada para o
campo. A renda, em vez de ligar o homem à natureza, apenas liga a
exploração da terra à concorrência. Uma vez constituída em renda a propriedade
fundiária mesma é resultado da concorrência, já que, a partir daí, ela
depende do valor venal dos produtos agrícolas. Como renda, a propriedade
fundiária é mobilizada e se torna um objeto de comércio. A renda só é possível
a partir do momento em que o desenvolvimento da indústria das cidades e a
organização social dele resultante forçam o proprietário fundiário a visar
somente ao lucro venal, à relação monetária de seus produtos agrícolas, enfim,
a ver sua propriedade fundiária apenas como uma máquina de cunhar moedas. A
renda separou tão perfeitamente o proprietário fundiário do solo, da natureza,
que ele nem sequer necessita conhecer suas terras como se vê na Inglaterra.
Quanto ao arrendatário, ao capitalista industrial e ao operário agrícola, eles
não estão mais ligados à terra que exploram do que o empresário e operário
manufatureiro ao algodão ou à lã que fabricam; eles só têm vinculação com o
preço de sua exploração, com o produto monetário. Daí as jeremiadas dos
partidos reacionários, que apelam com todas as vozes pelo retorno do
feudalismo, da boa vida patriarcal, dos costumes simples e das grandes virtudes
de nossos antepassados. A sujeição do solo às leis que regem todas as outras
indústrias é e será sempre o tema de condolências interesseiras. Por isso,
pode-se dizer que a renda se tornou a força motriz que lançou o idílio no
movimento da história.”
“Uma classe oprimida é a condição vital de toda
sociedade fundada no antagonismo entre classes. A libertação da classe oprimida
implica, pois, necessariamente, a criação de uma sociedade nova. Para que a
classe oprimida possa libertar-se, é preciso que os poderes produtivos já
adquiridos e as relações sociais existentes não possam mais existir lado a
lado. De todos os instrumentos de produção, o maior poder produtivo é a classe
revolucionária. A organização dos elementos revolucionários como classe supõe a
existência de todas as forças produtivas que possam engendrar-se no seio da
sociedade antiga.
Isso significa que, após a ruína da velha
sociedade, haverá uma nova dominação de classe, resumida num novo poder político?
Não.
A condição de libertação da classe laboriosa
é a abolição de toda classe, assim como a condição da libertação do terceiro Estado,
da ordem burguesa, foi a abolição de todos os Estados* e de todas as ordens.
No curso de seu desenvolvimento, a classe
laboriosa substituirá a antiga sociedade civil por uma associação que excluirá
as classes e seu antagonismo, e não haverá mais poder político propriamente
dito, já que o poder político é justamente o resumo oficial do antagonismo na
sociedade civil.
Entretanto, o antagonismo entre o
proletariado e a burguesia é uma luta de uma classe contra outra, uma luta que,
levada à sua mais alta expressão, é uma revolução total. Ademais, é de provocar
espanto que uma sociedade fundada na oposição de classes conduza à contradição
brutal, a um choque corpo a corpo como derradeira solução?
Não digam que o movimento social exclui o
movimento político. Não há jamais um movimento político que não seja ao mesmo
tempo social.
Somente numa ordem de coisas em que não
houver mais classes e antagonismo de classes as evoluções sociais
deixarão de ser revoluções políticas. Até lá, às vésperas de cada
reorganização geral da sociedade, a última palavra da ciência social será
sempre: “O combate ou a morte, a luta sanguinária ou o nada. É assim que a
questão está irresistivelmente posta” (George Sand)**.
* Na edição alemã de 1885, Engels introduziu
a seguinte nota: “Estado tem aqui o sentido histórico das ordens do
Estado feudal, desfrutando de privilégios bem delimitados. A revolução burguesa
aboliu as ordens e, ao mesmo tempo, seus privilégios. A sociedade burguesa só
conhece classes. Portanto, contradiz totalmente a história a designação
do proletariado como quarto Estado”.
** A frase é extraída do romance histórico Jean
Ziska: épisode de la Guerre des Hussites, publicado pela primeira vez em
1843.
“O que é a sociedade, qualquer que seja a sua
forma? O produto da ação recíproca dos homens. Os homens podem escolher
livremente esta ou aquela forma social? Nada disso. Pegue determinado estágio
de desenvolvimento das faculdades produtivas dos homens e terá determinada
forma de comércio e de consumo. Pegue determinados graus de desenvolvimento da
produção, do comércio e do consumo e terá determinada forma de constituição
social, determinada organização da família, das ordens ou das classes; numa
palavra, determinada sociedade civil. Pegue determinada sociedade civil e terá
determinado Estado político, que não é mais que a expressão oficial da
sociedade civil. É isso o que o sr. Proudhon jamais compreenderá, pois acredita
que faz uma grande coisa remetendo-se do Estado à sociedade civil, isto é, do
resumo oficial da sociedade à sociedade oficial.
É supérfluo acrescentar que os homens não são
livres árbitros de suas forças produtivas – que são a base de toda a sua
história – pois toda força produtiva é uma força adquirida, produto de uma
atividade anterior. Portanto, as forças produtivas são o resultado da energia
prática dos homens mas essa mesma energia é circunscrita pelas condições em que
os homens se encontram, pelas forças produtivas já adquiridas, pela forma
social que existia antes deles, que não foi criada por eles e é produto da
geração precedente. O simples fato de cada geração posterior deparar-se com
forças produtivas adquiridas pelas gerações precedentes, que lhes servem de matéria-prima
para novas produções, cria uma conexão na história dos homens, cria uma
história da humanidade, que é tanto mais a história da humanidade quanto mais
se desenvolveram as forças produtivas dos homens e, por conseguinte, suas
relações sociais. Consequência necessária: a história social dos homens é
sempre a história do seu desenvolvimento individual, tenham ou não consciência
desse fato. Suas relações materiais formam a base de todas as suas relações.
Essas relações materiais nada mais são que as formas necessárias nas quais se
realiza a sua atividade material e individual.
O sr. Proudhon confunde as ideias e as
coisas. Os homens jamais renunciam ao que conquistaram, mas isso não quer dizer
que não renunciem jamais a forma social na qual adquiriram determinadas forças
produtivas. Muito pelo contrário. Para não serem privados do resultado obtido,
para não perderem os frutos da civilização, os homens são constrangidos, a
partir do momento em que seu modo de comércio não corresponde mais às forças
produtivas adquiridas, a modificar todas as suas formas sociais tradicionais. (Tomo
a palavra comércio em seu sentido mais amplo, como dizemos em alemão Verkehr.)
Por exemplo: o privilégio, a instituição de grêmios e corporações, o regime
regulamentar da Idade Média eram relações sociais que correspondiam às forças
produtivas adquiridas e ao estado social preexistente, do qual surgiram essas
instituições. Sob a tutela do regime corporativo e regulamentado, os capitais
se acumularam, o comércio marítimo se desenvolveu, colônias foram fundadas – e
os homens teriam perdido esses frutos, se tivessem querido conservar as formas
à sombra das quais tais frutos amadureceram. Daí o ruído de dois trovões as
revoluções de 1640 e 1688. Na Inglaterra, todas as antigas formas econômicas,
as relações sociais que lhes correspondiam e o Estado político que era a
expressão oficial da velha sociedade civil foram destruídos. Assim, as formas
econômicas sob as quais os homens produzem, consomem e trocam são transitórias
e históricas. Ao adquirir novas forças produtivas, os homens mudam seu
modo de produção e, com o modo de produção, mudam as relações econômicas, que
eram apenas as relações necessárias desse determinado modo de produção.
Foi isso o que o sr. Proudhon não compreendeu
e, menos ainda, demonstrou. Incapaz de seguir o movimento real da história, o
sr. Proudhon nos oferece uma fantasmagoria, que tem a pretensão de ser uma
fantasmagoria dialética. Ele não sente necessidade de falar dos séculos XVII,
XVIII e XIX, porque sua história se passa no reino nebuloso da imaginação e
paira muito acima do tempo e do espaço. Numa palavra, isso não é história, mas
velharia hegeliana: não é uma história profana – a história dos homens –, é uma
história sacra – história das ideias. Em seu modo de ver, o homem não é mais
que um instrumento do qual se vale a ideia ou a razão eterna para se desenvolver.
As evoluções de que fala o sr. Proudhon são supostamente as evoluções
tais como se operam no seio místico da ideia absoluta. Se rasgarmos o véu que
cobre essa linguagem mística, isso significa que o sr. Proudhon nos oferece a
ordem em que as categorias econômicas se encontram alinhadas em sua cabeça. Não
precisaria me esforçar muito para lhe provar que essa ordem é a ordem de uma
cabeça muito desordenada.”
“O sr. Proudhon supera-se a si mesmo quando permite
que a concorrência, o monopólio, os impostos ou a polícia, a balança comercial,
o crédito e a propriedade se desenvolvam dentro da sua cabeça na ordem em que
os cito. Quase todas as instituições de crédito já se haviam desenvolvido na
Inglaterra no começo do século XVIII, antes da invenção das máquinas. O crédito
público era apenas uma nova maneira de elevar os impostos e satisfazer as novas
necessidades criadas pela chegada da burguesia ao poder. Enfim, a propriedade
constitui a última categoria no sistema do sr. Proudhon. No mundo real, ao
contrário, a divisão do trabalho e todas as categorias do sr. Proudhon são
relações sociais, cujo conjunto forma aquilo que atualmente se denomina propriedade.
A propriedade burguesa, fora dessas relações, não passa de uma ilusão
metafísica ou jurídica. A propriedade de outra época, a propriedade feudal,
desenvolve-se numa série de relações sociais completamente diversas. O sr.
Proudhon, estabelecendo a propriedade como uma relação independente, comete
algo mais que um erro de método: ele prova claramente que não compreendeu o
vínculo que liga todas as formas da produção burguesa, que não
compreendeu o caráter histórico e transitório das formas da
produção em uma determinada época. O sr. Proudhon, que não vê nossas instituições
sociais como produtos históricos, que não compreende nem sua origem nem seu
desenvolvimento, só pode fazer uma crítica dogmática.
Assim, o sr. Proudhon é obrigado a recorrer a
uma ficção para explicar o desenvolvimento das instituições sociais.
Imagina que a divisão do trabalho, o crédito, as máquinas etc. foram inventados
para servir à sua ideia fixa, à ideia da igualdade. Sua explicação é de uma
ingenuidade sublime. Essas coisas foram inventadas para a igualdade, mas
desafortunadamente voltaram-se contra a igualdade. Esse é todo o seu
raciocínio. Noutras palavras: ele faz uma suposição gratuita e, como o
desenvolvimento real e a ficção criada por ele se contradizem a cada passo,
conclui que há uma contradição. Esconde o fato de que só há contradição entre
as suas ideias fixas e o movimento real.
Assim, pois, o sr. Proudhon, principalmente
por falta de conhecimentos históricos, não viu que os homens, desenvolvendo
suas faculdades produtivas, isto é, vivendo, desenvolvem certas relações entre
si, e que o modo dessas relações muda necessariamente com a modificação e o
desenvolvimento daquelas faculdades produtivas. Não percebeu que as categorias
econômicas não passam de abstrações dessas relações reais, que são
verdadeiras apenas enquanto essas relações subsistem. Por conseguinte, cai no
erro dos economistas burgueses, que veem essas categorias econômicas como leis
eternas e não leis históricas, que são leis apenas para um certo desenvolvimento
histórico, um determinado desenvolvimento das forças produtivas. Isso posto, em
vez de considerar as categorias econômico-políticas como abstrações das
relações sociais reais, transitórias, históricas, o sr. Proudhon, por meio de
uma inversão mística, vê as relações reais como encarnações dessas abstrações.
Estas, em si mesmas, são fórmulas que estavam adormecidas no seio de Deus padre
desde o princípio do mundo.”
“O sr. Proudhon compreendeu muito bem que os
homens fazem o tecido de lã, de algodão, de seda – e tem o grande mérito de ter
compreendido tão pouca coisa! O que o sr. Proudhon não compreendeu é que os
homens, conforme as suas faculdades, produzem também as relações sociais,
nas quais produzem o tecido de lã e de algodão. Compreendeu menos ainda que os
homens, que produzem as relações sociais segundo a sua produtividade material,
produzem também as ideias, as categorias, isto é, as expressões
abstratas ideais dessas mesmas relações sociais. Portanto, essas categorias são
tão pouco eternas quanto as relações que expressam. São produtos históricos e
transitórios. Para o sr. Proudhon, entretanto, as abstrações, as categorias,
são a causa primária. Segundo ele, são elas, e não os homens, que fazem a
história. A abstração, a categoria considerada como tal – ou
seja, separada dos homens e de sua ação material – é naturalmente imortal,
inalterável, impassível; não é mais que um ser da razão pura, o que significa
simplesmente que a abstração, considerada como tal, é abstrata – admirável
tautologia!
Por isso as relações econômicas, vistas sob a
forma de categorias, são, para o sr. Proudhon, fórmulas eternas, sem origem nem
progresso.
Noutros termos: o sr. Proudhon não afirma
diretamente que a vida burguesa é, para ele, uma verdade eterna;
di-lo indiretamente, ao divinizar as categorias que expressam as relações
burguesas sob a forma de pensamento. Toma os produtos da sociedade burguesa
como seres espontâneos, dotados de vida própria, eternos, desde que se lhe
apresentem sob a forma de categorias, de pensamento. Assim, não vê além do
horizonte burguês. Como opera com pensamentos burgueses, supondo-os eternamente
verdadeiros, procura sua síntese, seu equilíbrio, e não vê que seu modo atual
de equilíbrio é o único possível.
Realmente, ele faz o que fazem todos os bons
burgueses. Todos dizem que a concorrência, o monopólio etc. são em princípio – ou
seja, considerados como ideias abstratas – os únicos fundamentos da vida, mas
deixam muito a desejar na prática. Todos querem a concorrência sem as
consequências funestas desta. Todos querem o impossível, isto é, as condições
da vida burguesa sem as consequências necessárias dessas condições. Nenhum compreende
que a forma burguesa de produção é uma forma histórica e transitória, assim
como o era a forma feudal. Esse erro deriva de que, para eles, o homem burguês
é a única base possível de toda sociedade, deriva de que não conseguem imaginar
um estado social em que o homem deixe de ser burguês.
O sr. Proudhon é, pois, necessariamente doutrinário.
O movimento histórico que revoluciona o mundo atual reduz-se, para ele, ao
problema do verdadeiro equilíbrio, da síntese das duas ideias burguesas. Assim,
com muita sutileza, o moço sagaz descobre o recôndito pensamento de Deus, a
unidade de duas ideias isoladas, e que só são isoladas porque o sr. Proudhon as
isolou da vida prática, da produção atual – que é a combinação das realidades
que elas exprimem. No lugar do grande movimento histórico, que nasce do
conflito entre as forças produtivas dos homens, já adquiridas, e suas relações
sociais, que não correspondem mais a essas forças produtivas, no lugar das
terríveis guerras, que se preparam entre as diferentes classes de uma nação e
entre as diferentes nações; no lugar da ação prática e violenta das massas, a
única que pode resolver esses conflitos; no lugar desse movimento amplo,
prolongado e complexo, o sr. Proudhon coloca o movimento cacadauphin*
saído da sua cabeça. Assim são os sábios, os homens capazes de arrancar de Deus
seus íntimos pensamentos, que fazem a história. À plebe só resta aplicar suas
revelações. Agora o senhor compreende por que o sr. Proudhon é inimigo
declarado de todo movimento político. Para ele, a solução dos problemas
atuais não consiste na ação pública, mas nas rotações dialéticas da sua cabeça.
Como, para ele, as categorias são as forças motrizes, não é necessário mudar a
vida prática para mudar as categorias. Muito pelo contrário: é preciso mudar as
categorias, e a mudança da sociedade será a consequência disso.
Em seu desejo de conciliar as contradições, o
sr. Proudhon não se questiona se a própria base dessas contradições não deve
ser subvertida. Ele se parece em tudo ao doutrinário político, que quer o rei,
a Câmara dos Deputados e a Câmara dos Pares como partes integrantes da vida
social, como categorias eternas. Só que ele busca uma nova fórmula para
equilibrar esses poderes, cujo equilíbrio consiste, precisamente, no movimento
real, em que um desses poderes ora é o vencedor, ora o escravo do outro. Foi
por isso que no século XVIII uma multidão de cérebros medíocres se esforçou
para descobrir a verdadeira fórmula para equilibrar as ordens sociais, a
nobreza, o rei, os parlamentos etc., e no dia seguinte já não havia nem rei,
nem parlamento, nem nobreza. O equilíbrio justo entre esses antagonismos era a
derrubada de todas as relações sociais que serviam de base a essas existências
feudais e o antagonismo dessas existências feudais.
Porque o sr. Proudhon põe, de um lado, as
ideias eternas, as categorias da razão pura e, de outro, os homens e sua vida
prática, que, segundo ele, é a aplicação dessas categorias, o senhor encontra
nele, desde o primeiro momento, um dualismo entre a vida e as ideias,
entre a alma e o corpo – um dualismo que se repete sob muitas formas. Agora o
senhor vê que esse antagonismo é apenas a incapacidade do sr. Proudhon de
compreender a origem e a história profanas das categorias que ele diviniza.”
* Na época da Revolução Francesa, os
antimonarquistas usavam o termo cacadauphin para indicar a cor mostarda,
que virou moda depois que Maria Antonieta a adotou para as fraldas do delfim.
Uma das traduções possíveis é “cocô de delfim”.
“O sr. Proudhon é, da cabeça aos pés,
filósofo e economista da pequena burguesia. O pequeno-burguês, na
sociedade avançada e por exigência de seu estado, faz-se meio socialista e meio
economista, isto é, deslumbra-se com a magnificência da alta burguesia e, ao
mesmo tempo, solidariza-se com o sofrimento do povo. É, simultaneamente,
burguês e povo.
Em seu foro íntimo, ufana-se de sua
imparcialidade, de ter encontrado o equilíbrio justo, que tem a pretensão de se
distinguir do termo médio. Esse pequeno-burguês diviniza a contradição, porque
ela constitui o fundo do seu ser. Ele é a contradição social em ação. Deve
justificar, teoricamente, o que ele próprio é na prática.”