segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Introdução histórica à filosofia das ciências (Parte I) – Luiz Felipe Sigwalt de Miranda

Editora: InterSaberes
ISBN: 978-85-5972-045-7
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 328
Sinopse: O que é ciência? De que maneira esta pode se tornar objeto da filosofia? Em que medida e de que forma o conhecimento científico se diferencia do senso comum? Aos estudantes de filosofia e a todos aqueles que, por seu espírito inquiridor, buscam respostas para seus questionamentos, oferecemos uma introdução à filosofia da ciência, que pode ser um guia neste denso e complexo universo. Considerando que a filosofia se faz com base em problemas filosóficos e que se apoia em sua própria história, apresentaremos aqui seus princípios, seus principais pensadores e a constituição de seu trajeto ao longo dos tempos.


O que é filosofia?
Para esclarecer essa questão, vamos recorrer a outros dois filósofos: Hessen e Porta. Para o primeiro, filosofia é “a tentativa do espírito humano de atingir uma visão de mundo, mediante a autorreflexão sobre suas funções valorativas teóricas e práticas” (Hessen, Teoria do conhecimento, 2003, p. 9, grifo do original). Para o segundo, “A filosofia não é outra coisa que a consumação plena da racionalidade (Porta, A filosofia a partir de seus problemas, 2007, p. 42), sendo o discurso racional distinto do lógico e a racionalidade é esclarecimento, intersubjetividade e reflexividade (Porta, 2007). Hessen e Porta divergem quanto à finalidade da filosofia. Parece-nos que Porta entende a filosofia mais por um viés coerentista e universal, enquanto Hessen a considera uma atividade subjetiva autorreflexiva assintótica e, por isso, constante; ele, diferentemente de Porta, não dispensa a função prática da filosofia e não a considera como algo universal.”


“Os meteorologistas seguramente são capazes de efetuar previsões do tempo mais acertadas que as previsões dos agricultores. Por quê? Por certo, não é somente por seus instrumentos precisos, mas principalmente por seu modelo teórico. Não se trata apenas de uma superioridade metodológica, pois um método geral e rigoroso não basta para se produzir previsões confiáveis, mas de certa necessidade que as leis naturais (como a gravitação universal) conferem às previsões.
Com auxílio do exemplo da previsão do tempo, pudemos identificar aspectos importantes para a ciência: observação, análise, resultados, modelo teórico e previsões. Uma primeira diferença entre ciência e saber comum é a presença de um método que oferece condições rigorosas para se obter dados da experiência e analisá-los. Uma segunda diferença é a presença de um modelo teórico que se encontra inserido em um complexo teórico ainda maior e conectado a outras teorias. (...)
O agricultor, quando efetiva uma previsão do tempo, considera dados qualitativos como as condições do céu, o comportamento dos animais e a direção dos ventos. Analisando essas condições, que aqui chamaremos de iniciais, ele as compara com um princípio indutivo (obtido de observações anteriores) para concluir por dedução sua previsão do tempo. Para entendermos melhor esse mecanismo, é importante saber o que são sentenças de observação, indução, condições iniciais, dedução e conclusão. (...)
Habitualmente, temos a tendência de extrapolar para mais casos algo que ocorreu em um fato quando, pela nossa experiência, percebemos repetitivamente a ocorrência do que caracteriza esse fato. Por exemplo: nosso agricultor percebeu reiteradamente que os animais procuravam abrigo quando o céu estava nublado, cinza e com fortes ventos. Ele observou isso se repetir em todos os casos que observou e em condições variadas (em qualquer dia da semana ou época do ano, a qualquer temperatura, para animais domésticos e não domésticos, de qualquer porte etc.). Assim, nosso agricultor extrapolou para todos os casos e criou o seguinte princípio induzido (que, em linhas gerais, pode ser explicado como “de casos particulares chega-se a um caso geral”): todo animal procura abrigo quando o céu está nublado e cinza e venta forte. Esse é o princípio generalizante ao qual nos referimos anteriormente, o princípio da indução.
Por vezes, atribuímos uma causa aos fatos que observamos; em especial, àqueles em que percebemos uma mudança. Por exemplo, a causa para a mudança da cor das nuvens, de branca para cinza, é o acúmulo de nuvens. Ora, uma camada mais “grossa” de nuvens impede mais que os raios de luz as perpassem. Assim, afirmamos que a mudança da cor branca para a cinza nas nuvens tem como causa o acúmulo de nuvens — esse é o princípio da causalidade. Segundo esse princípio, nós temos a propensão de esperar das mesmas causas os mesmos efeitos.
Esses são os dois princípios que consideramos acompanharem o senso comum. Continuemos nossa análise: uma vez que temos o princípio induzido “todo animal procura abrigo quando o céu está nublado e cinza e venta forte”, por dedução – dadas duas premissas verdadeiras, segue-se necessariamente uma conclusão verdadeira –, o nosso agricultor efetua a segunda parte do processo de previsão:
1
Todo animal procura abrigo quando o céu está nublado e cinza e venta forte.
(Princípio induzido)
2
Agora, 0 agricultor percebe que certos animais estão procurando abrigo.
(Condições iniciais)
3
Portanto, agora o céu está nublado e cinza e venta forte.
(Conclusão)

O agricultor considera como causa da chuva o céu cinza nublado e os ventos fortes. Disso, podemos extrair o seguinte princípio causal retirado de sua experiência: se agora o céu está nublado e cinza e venta forte, então choverá. Bem ao combinarmos esse princípio com a conclusão agora o céu está nublado e cinza e venta forte, retirada da dedução anterior, segue-se consequentemente a previsão “choverá”. Desse modo, nosso agricultor “prevê” o tempo, tendo uma vez estabelecido esse “método” pela observação do comportamento dos animais.
O problema principal desse modelo de previsão de tempo está no princípio da indução que foi usado como premissa da dedução. Mas o princípio da indução não deveria ser um problema porque, uma vez que o número de observações seja grande, percebidas sob diversas condições (controladas), um princípio generalizante pode ser extraído, desde que nenhuma ocorrência venha a conflitar com ele. A rejeição do princípio de indução (originalmente proposto por David Hume no século XVIII) configura-se na não aceitação do argumento base que justifica tal princípio, pois ele é circular – ou seja, o fundamento do princípio da indução é o próprio princípio de indução. A compreensão disso torna-se simples se colocarmos da seguinte forma: como o princípio da indução mostrou-se bem-sucedido em diversos casos, por indução dizemos que ele será bem-sucedido para todos os casos. Isso é justamente o princípio da indução aplicado ao próprio princípio da indução e, portanto, uma circularidade. Um argumento circular não é uma justificativa válida.
O segundo problema segue da relação lógica por detrás de juízos hipotéticos, tais como “se agora o céu está nublado e cinza e venta forte, então choverá” (da relação lógica de implicação material). A tautologia usada em nosso exemplo é o modus ponens, que pode ser expressa na forma p ^ (p => q) => q. Ou seja, dado o princípio causal anterior, e uma vez que se observa que “agora o céu está nublado e cinza e venta forte”, extraímos a verdade que “choverá”. Mas qual a relação causal entre o céu estar nublado e cinza e ventar forte com chover? Bem, as relações lógicas são incapazes de exprimir a causa das questões sobre fatos. Se considerarmos que as relações lógicas são suficientes para exprimir a necessidade das questões de fato, então lógicas do tipo “se hastear a bandeira do meu time de coração, então ele ganhará” influenciarão fatos futuros. Caso alguém hasteie a bandeira de seu time de coração, segue-se necessariamente que seu time de coração ganhará. A relação lógica de implicação material que foi aplicada tanto no caso da previsão do tempo de nosso agricultor hipotético quanto no resultado da vitória do time do coração e a bandeira hasteada é incapaz de exprimir a relação de causa.
Talvez possamos restabelecer a indução por meio da probabilidade. Desse modo, a indução não mais estabeleceria princípios universais mais prováveis. Em nosso exemplo, poderíamos transformar o princípio induzido “todo animal procura abrigo quando o céu está nublado e cinza e venta forte” para “muitos animais procuram abrigo quando o céu está nublado e cinza e venta forte” Mesmo assim, o princípio de indução ainda não está livre de críticas. Primeiramente, estaríamos tratando de um sistema de princípios nos quais não lidaríamos com certeza e, sim, com confiança. A primeira se refere a princípios válidos para todos os casos (universais); a segunda admite casos não conformes ao princípio.
Voltando ao nosso exemplo, existem certos animais que não procuram abrigo quando o céu está nublado e cinza e venta forte. Mas, quantos animais admitimos poderem ter comportamentos diferentes sem abalar nossa confiança? Ou melhor, qual grau de confiança é admissível: 80%, 90%, 95% etc.? Em casos particulares, graus de confiança passam a ser admissíveis. Por exemplo: ao observarmos o comportamento de um bando de pardais em determinado tempo e local, pudemos concluir que a maioria deles procurava abrigo quando o céu estava nublado e cinza e ventava forte. Certeza e universalidade são requeridos de conhecimentos científicos, válidos para todos os casos. Certamente, há restrições para considerarmos todo conhecimento provável.
Outro problema ainda resiste mesmo quanto a nossa hipótese anterior: o argumento indutivo (probabilístico) mantém-se circular – e isso já vimos que é problemático.
Podemos estabelecer um caminho diferente para a relação de necessidade que não o da implicação lógica. Talvez possamos considerar que extraímos da experiência a relação de causalidade entre dois fatos. De tanto experienciar que o fogo e a fumaça aparecem em conjunto associados no tempo contiguamente (conjunção constante), forçamo-nos a considerar a precedência necessária do fogo em relação à fumaça como entre causa e efeito. O problema, como Hume (Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral, 2004) nos mostrou, está em não percebemos a conjunção necessária entre fogo e fumaça (ou entre condições visuais do céu e a chuva). É o hábito que nos faz crer que, dada a presença do fogo, devemos esperar pela fumaça, como se fosse um sentido interno à nossa mente que enxergasse a ideia da conexão necessária para promover uma síntese entre as ideias de fogo e de fumaça.”


Características do conhecimento científico
Na análise que fizemos aqui, acabamos por esclarecer que um saber tal como o de nosso exemplo do agricultor não carrega certeza. Ou seja, trata-se, com respeito à parte indutiva do processo, de um saber provável e, em certo grau, confiável. Em relação à parte dedutiva, encontramos problemas ou no uso da implicação material para estabelecer uma relação de necessidade entre fatos sem conhecermos a causa, ou em crermos reconhecer fatos como ligados pela relação necessária de causa e efeito quando a conexão necessária entre ambos é estabelecida pelo hábito.
Diante dessa análise, podemos retirar algumas características para o saber do senso comum, como: subjetividade (pelo próprio conceito de senso comum), qualidade (pois se baseia na observação direta), heterogeneidade (por ser um saber provável) e generalização (por indução de causa e efeito, o que, como vimos, é problemático). Desse modo, por contraste, o conhecimento científico precisa ser objetivo, homogêneo e também generalizador.
A ciência, de certa maneira, não adere às primeiras aparências. Tem um “espírito inquiridor”, identifica problemas e dificuldades em questões que aparentemente são explicadas pelo senso comum, mas, se analisadas no detalhe, precisam de esclarecimento. Sob essa atitude, segundo Marilena Chaui (Convite à filosofia, 1994, pp. 249-50), a ciência precisa ser:
·        Objetiva – Deve procurar “as estruturas universais e necessárias das coisas investigadas”.
·        Quantitativa – Deve buscar “medidas, padrões, critérios de comparação e de avaliação para coisas que parecem diferentes”.
·        Homogênea – Deve buscar “as leis gerais de funcionamento dos fenômenos, que são as mesmas para fatos que nos parecem diferentes”.
·        Generalizante – Deve reunir “individualidades, percebidas como diferentes, sob as mesmas leis, os mesmos padrões ou critérios de medida, mostrando que possuem a mesma estrutura”.
·        Diferenciadora – Deve distinguir “os que parecem iguais, desde que obedeçam a estruturas diferentes”.
·        Causal – Só deve estabelecer “relações causais depois de investigar a natureza ou estrutura do fato estudado e suas relações com outros semelhantes ou diferentes”. (...)
As relações causais são incansavelmente perseguidas pela ciência, mas, diferentemente do senso comum, a ciência procura desvendar a natureza dos fenômenos e nela buscar, por meio de semelhanças e diferenças, o que deve ser a sua causa. Por exemplo, a gravitação universal indica como causa para o peso dos corpos a força gravitacional (Chaui, 1994).”


“Nem sempre as teorias são capazes de explicar os fenômenos, por vários motivos. Citamos dois casos em que a teoria deixa de ser universal: quando há a constatação de um fato novo e quando há previsões que não se concretizaram. O marcante é que a ciência se modifica continuamente e a história da ciência nos mostra isso de forma abundante, normalmente sob o título de revolução, como: a revolução copernicana, a revolução newtoniana, a revolução einsteniana, a revolução lavoisieriana etc. Desse modo, torna-se muito difícil sustentar que a ciência visa a aproximar-se da verdade.
Em oposição ao senso comum, a ciência constrói seu objeto de estudo por “um conjunto de atividades intelectuais, experimentais e técnicas”, com base em métodos que separam “os elementos subjetivos e objetivos de um fenômeno”, constroem “o fenômeno como um objeto do conhecimento controlável, verificável, interpretável e capaz de ser retificado ou corrigido por novas elaborações”, demonstram e provam “os resultados obtidos durante a investigação, graças ao rigor das relações definidas entre os fatos estudados”, relacionam um fato isolado com outros fatos “numa explicação racional unificada” e formulam uma teoria geral sobre os fatos estudados, ou seja, “um conjunto sistemático de conceitos que expliquem e interpretem as causas e os efeitos, as relações de dependência, identidade e diferença entre todos os objetos que constituem o campo investigado” (Chaui, 1994, p. 250-251). A ciência preza a coerência interna desse sistema ordenado de poucos enunciados chamado de teoria científica. A finalidade dela é descrever, prever e explicar da forma mais completa que puder um grande conjunto de fenômenos, com poucas leis necessárias para isso. A base empírica e sua multiplicidade de fatos aparentemente distintos são submetidos às mesmas leis, e o mesmo vale para estas, ou seja, as leis são postas à prova por meio da experiência (dependência empírica das teorias) (Chaui, 1994).”


“O saber do senso comum, tal como mostramos aqui, apresenta resumidamente dois problemas: o problema da indução e o da indeterminação da causa. O conhecimento científico é quase o oposto do senso comum. Enquanto podemos caracterizar o primeiro como objetivo, quantitativo, homogêneo, sintetizador, diferenciador e coerente em suas premissas, o segundo é subjetivo, qualitativo, heterogêneo, individualizador e costuma projetar emoções nas coisas e surpreender-se com o extraordinário.”



“Com relação ao método científico, como vem sendo entendido ao longo dos últimos séculos, ele é composto de quatro estágios principais. Primeiro, observamos sistematicamente o fenômeno a ser explicado. Segundo, propomos uma teoria que proporcione uma explicação desse fenômeno. Terceiro, essa teoria deve prever fenômenos futuros não incluídos na investigação anterior. Quarto, testamos empiricamente a previsão. Disso se segue que, se a previsão não se confirmar, rejeitamos a teoria que a produziu, mas, se a previsão se confirmar, então a teoria estará confirmada até esta última previsão e consequentemente será submetida a outros testes. “A cada um desses estágios, a matemática desempenha um papel crucial; na precisa medição dos fenômenos a ser explicados e do resultado do experimento verificador; e na formulação das hipóteses apropriadas e da derivação de suas esperadas consequências (Kenny, Uma nova história da filosofia ocidental, 2009, p. 196).”


“Na opinião de Descartes (Regras para a orientação do método, 2012, p. 19), “é muito melhor jamais pensar em procurar a verdade de alguma coisa a fazê-lo sem método”.
Aqueles que estão acostumados a errar em trevas, sob a luz do dia claro não suportariam olhar com acuidade. Portanto, vemos “aqueles que nunca se consagraram às letras julgarem o que se lhes apresenta com muito mais solidez e clareza do que aqueles que sempre frequentaram as escolas” (Descartes, 2012, p. 20). O filósofo entende o método como:
regras certas e fáceis cuja exata observação fará [com] que qualquer um nunca tome nada de falso por verdadeiro, e que, sem despender inutilmente nenhum esforço de inteligência, alcance, com um crescimento gradual e contínuo de ciência, o verdadeiro conhecimento de tudo quanto for capaz de conhecer. (Descartes, 2012, p. 20).
Essa é a extensão e a profundidade que Descartes deseja que seu método atinja. Mas foi na aritmética e na geometria que ele percebeu a maneira de se atingir o conhecimento verdadeiro. Assim, por meio do “modo de escrever dos geômetras”, ele, ao distinguir ordem e maneira de demonstrar, pretendeu (usando da prática dos matemáticos) estabelecer o modo seguro para se alcançar a ciência:
A ordem consiste apenas em que as coisas propostas primeiro devem ser conhecidas sem a ajuda das seguintes, e que as seguintes devem ser dispostas de tal forma que sejam demonstradas só pelas coisas que as precedem. [...] A maneira de demonstrar é dupla: uma se faz pela análise ou resolução, e a outra pela síntese ou composição. (Descartes, Meditações, 1988a, p. 98)
Síntese é o “método dos geômetras antigos”, ou seja, parte do simples (definições, axiomas, postulados) para chegar ao complexo; a análise salta do complexo para o simples. Em outras palavras: “A síntese, [...] como que examinando as causas por seus efeitos [...], demonstra na verdade, claramente o que está contido em suas conclusões, e serve-se de uma longa série [...] [mas] não ensina o método pelo qual a coisa foi descoberta” (Descartes, 1988a, p. 98). Já “A análise mostra o verdadeiro caminho pelo qual uma coisa foi metodicamente descoberta e revela como os efeitos dependem das causas” (Descartes, 1988a, p. 98).
A síntese é a ordem com que se reconstrói o processo depois de ter descoberto uma verdade, mas não é a ordem em que se descobre efetivamente a verdade. A análise, ao contrário, é aquela que mostra o caminho pelo qual a verdade foi efetivamente descoberta (o momento inventivo no qual se descobre o princípio universal que está na base da dedução). Descartes justifica o uso desse método extraído da matemática da seguinte maneira:
As longas cadeias de raciocínios simples e fáceis por meio dos quais os geômetras estão acostumados a chegar às conclusões das suas demonstrações mais difíceis tinham-me levado a imaginar que estão conectadas mutuamente da mesma maneira todas as coisas ao conhecimento do qual o homem é competente, e que não há nada remoto a nós que esteja tão longe além de nosso alcance, ou tão escondido que não possamos descobri-lo, desde que deixemos de aceitar o falso como verdadeiro, e sempre preservemos em nossos pensamentos a ordem necessária à dedução de uma verdade de outra. (Descartes, 2012, p, 26)
Mas no que exatamente consiste tal método? Descartes responde a essa dúvida por meio da Regra V, “O método todo consiste na ordem e na organização dos objetos sobre os quais se deve fazer incidir uma penetração da inteligência para descobrir alguma verdade” (Descartes, 2012, p. 29). Assim, ele continua, “se reduzirmos gradualmente as proposições complicadas e obscuras a proposições mais simples, e, em seguida, se, partindo da intuição daquelas que são as mais simples de todas, procurarmos elevar-nos pelas mesmas etapas ao conhecimento de todas as outras.” (Descartes, 2012, p. 29). Descartes assume que essa regra estabelece o caminho seguro, o qual, negligenciado por astrólogos, físicos e filósofos, faz com que, ao desconsiderar a ordem, estes todos tentassem alcançar as questões mais complexas e, como que por um salto, tentassem ascender do solo ao topo de um edifício.
Agora, em maiores obscuridades caem aqueles que seguirem o método se não souberem reconhecer qual ordem é essa. Assim, Descartes, em sua Regra VI, esclarece:
Para distinguir as coisas mais simples daquelas que são mais complicadas e pôr em ordem em sua investigação, cumpre, cada série das coisas em que deduzimos diretamente algumas verdades umas das outras, observar o que é mais simples e como dele se distancia, mais ou menos, ou igualmente, o resto. (Descartes, 2012, p. 31)
Com essa regra, Descartes pretende ensinar que tudo pode ser distribuído em séries, à medida que podem ser conhecidas umas coisas por outras.
Ao encontrarmos alguma dificuldade, podemos verificar algumas delas de imediato, porém, quais e em que ordem? É necessário separar as coisas absolutas das relativas. As primeiras contêm em si a natureza pura e simples sobre o que versam; as segundas reportam-se ao absoluto e dele podem ser deduzidas constituindo uma série porque compartilham da mesma natureza, ou pelo menos um de seus elementos a compartilha.
O exemplo de análise que Descartes (2012) oferece no comentário a essa regra é este: se penso que 6 é o dobro de 3, e me pergunto qual é o dobro de 6, encontro 12; de 12, 24, e assim por diante. Daí deduzo que 3:6=6:12=12:24. Por isso, os números 3, 6, 12, 24, 48 etc., estão em proporção contínua, “uma reflexão contínua me fez compreender de que maneira se complicam todas as questões relativas às proporções ou relações entre as coisas que se podem propor, e a ordem que sua investigação exige: e isso, apenas, abarca o conjunto de toda a ciência das matemáticas puras” (Descartes, 2012, p. 36).
Descartes ainda esclarece seu exemplo para evidenciar que o ponto fundamental do método está em descobrir sob qual razão estão conectadas tantas verdades particulares, ou seja, que proposição mais universal (absoluta) explica todas aquelas proposições particulares (relativas) (Descartes, 2012).
Por fim, ainda como passos de seu método, Descartes apresenta a Regra VII. Esta diz que, “Para o acabamento da ciência, é preciso passar em revista, uma por uma, todas as coisas que se relacionam com a nossa meta por um movimento de pensamento contínuo e sem nenhuma interrupção, e é preciso abarcá-las numa enumeração suficiente e metódica” (Descartes, 2012, p. 39). Essa última regra, que visa verificar como as proposições se relacionam num movimento contínuo e metódico, segundo Descartes, não deve se separar das demais porque concorre igualmente para a perfeição do método.
Muitas vezes, a série de deduções, advindas de princípios primeiros, é feita por um encadeamento tão longo de consequências que, ao se atingir certas verdades, torna-se difícil lembrarmo-nos do caminho que a elas nos conduziu. Por isso, Descartes sugere que se deve remediar a fraqueza da memória com uma espécie de revisão procedida de um movimento contínuo ininterrupto (porque a menor das omissões faz romper o encadeamento) de enumerações necessárias (porque somente elas podem ajudar a formular sempre um juízo seguro e certo) e de forma metódica (porque a ordem remedia eficazmente os defeitos na enumeração por um exame cuidadoso).
As Regras IV, V, VI VII expõem detalhadamente o método proposto por Descartes. Vale aqui apresentar uma versão mais sucinta contida em seu Discurso para mostrar melhor a unidade que esse método apresenta, em quatro passos:
[1] O primeiro era de [eu] nunca aceitar qualquer coisa como verdadeira que não percebesse claramente ser tal; isto é cuidadosamente evitar precipitação e preconceito, e não incluir nada mais em meu juízo que os [fatos] apresentados tão clara e distintamente à minha mente, de modo a excluir toda base de dúvida.
[2] O segundo era de dividir cada uma das dificuldades sob exame em tantas partes quanto possíveis, como necessárias à sua solução adequada.
[3] O terceiro, orientar meus pensamentos em tal ordem que, começando com objetos mais simples e de mais fácil conhecimento, eu poderia ascender aos poucos e, como se fosse passo a passo, chegar ao conhecimento do mais complexo; nomeando até mesmo em pensamento uma ordem certa para objetos os quais, por sua própria natureza, não sugerem relação de antecedência e sequência.
[4] E o último, fazer em todos os casos enumerações tão completas, e as revisões tão gerais, que possa ser assegurado que nada foi omitido. (Descartes, 2011, p. 25-26)
Agora, todo esse método de inspiração matemática – ou melhor, inspirado na aritmética e na geometria dos antigos – faz suscitar uma passagem das Regras, na qual Descartes diz: “Daí resulta que deve haver uma ciência geral que explique tudo quanto se pode procurar referente à ordem e à medida, sem as aplicar a uma matéria especial: essa ciência se designa, [...] pelo nome, já antigo e consagrado pelo uso, Matemática universal [mathesis universalis]” (Descartes, 2012, p. 27).”


“Bem, antes de entrarmos nos detalhes do falseacionismo, é válido fazer uma introdução aos seus pressupostos. Para isso, trazemos as palavras de Chalmers (O que é ciência afinal?, 2010, p. 63):
O falsificacionista admite livremente que a observação é orientada pela teoria e a pressupõe. Ele também abandona com alegria qualquer afirmação que faz supor que as teorias podem ser estabelecidas como verdadeiras ou provavelmente verdadeiras à luz da evidência observativa. As teorias são interpretadas como conjecturas especulativas ou suposições criadas livremente pelo intelecto humano no sentido de superar problemas encontrados por teorias anteriores e dar uma explicação adequada do comportamento de alguns aspectos do mundo ou universo. Uma vez propostas, as teorias especulativas devem ser rigorosas e inexoravelmente testadas por observação e experimento. Teorias que não resistem a testes de observação e experimentais devem ser eliminadas e substituídas por conjecturas especulativas ulteriores. A ciência progride por tentativa e erro, por conjecturas e refutações. Apenas as teorias mais adaptadas sobrevivem. Embora nunca se possa dizer legitimamente de uma teoria que ela é verdadeira, pode-se confiantemente dizer que ela é a melhor disponível, que é melhor do que qualquer coisa que veio antes.
Tal como Popper defende (citado por Thornton, The Stanford Encyclopedia of Philosophy Archive, 2013), o problema central da filosofia da ciência é a demarcação, ou seja, a distinção entre ciência e não ciência (lógica, metafísica, psicologia etc.). Popper, ao contrário dos filósofos contemporâneos, aceita a validade da crítica humana da indução. Ele vai além, ao argumentar que a indução nunca foi usada de fato na ciência, embora não admita que isso acarrete ceticismo, o qual é associado a Hume. Ele argumenta que a insistência de Bacon e de Newton na primazia da observação “pura” como passo inicial na formação de teorias é um equívoco, pois toda observação é seletiva e carregada de teoria (não existe observação pura ou livre de teoria). Desse modo, ele desorienta a visão tradicional de que a ciência pode ser separada da não-ciência com base no método indutivo. Popper sustenta que não existe uma metodologia única especifica da ciência. Esta, como qualquer atividade humana, para Popper, consiste amplamente em solucionar problemas.”

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