Editora: InterSaberes
“A
redução do círculo hermenêutico ao método hipotético-dedutivo das ciências naturais
não é de todo tão simples. Existem pelo menos duas boas razões para isso. Em
primeiro lugar, ao considerar os pontos de partida da investigação empírica e
da interpretação da ação humana. “As hipóteses científicas podem ter múltiplas
origens; podem ser sugeridas pela observação, mas também podem resultar de
rasgos imaginativos, especulações metafísicas ou mesmo de crenças religiosas”
(Silva, O círculo hermenêutico e a distinção entre ciências humanas e ciências
naturais, 2012, p. 68). Lembra Silva (2012), a respeito de Popper, que
regras metodológicas são empregadas somente para o teste empírico das
hipóteses, cuja formação (liberal) não depende de quaisquer regras. Isso é bem
diferente daquilo que Gadamer assevera em relação ao círculo hermenêutico,
pois, “na interpretação de entidades ou acontecimentos com sentido, o ponto de partida
é constituído por pressuposições de
racionalidade” (Silva, 2012, p. 68, grifo do original). Essa expressão é
mais comum no círculo anglo-saxônico em discussões acerca da interpretação e da
explicação da ação humana. Gadamer diria se tratar de um princípio do círculo
hermenêutico, a saber, “antecipação da perfeição” (Gadamer, citado por Silva,
2012, p. 68). É um princípio consequente do círculo hermenêutico que consiste
na compreensão exclusiva diante da apresentação efetiva de uma unidade de
sentido perfeita e na pressuposição da verdade do que é dito (Gadamer, Warheit
und Methode, 1990). Esse último ponto vai de encontro a um sentido da
hermenêutica gadameriana: “que a interpretação do sentido é indissociável de
uma busca da verdade sobre o tema em questão” (Silva, 2012, p. 68). Essas são
as pressuposições de racionalidade das quais o círculo hermenêutico parte, e
isso marca a sua especificidade em relação à investigação científico-natural.”
“Uma
diferença objetiva fundamental entre o círculo hermenêutico das ciências
humanas e o método hipotético-dedutivo das ciências naturais é que “o próprio
objeto da investigação se move num domínio normativo e regula-se por
interpretações” (Silva, 2012, p. 70). Outra diferença toca o âmbito do método
e, para entendê-la melhor, Silva (2012) apela à tese de uma “hermenêutica dupla”
nas ciências humanas. Enquanto nas ciências naturais o cientista tem acesso à
realidade empírica a partir de uma tradição científica determinada em certo
quadro conceitual, as ciências humanas apresentam sua questão epistemológica complexificada
em função do objeto (comportamento ou ação que se pretende explicar) e de seu
intérprete (sujeito da investigação), os quais se caracterizam por uma rede
interpretativa.
O domínio das ciências humanas não é só estudado a partir dos
princípios normativos de racionalidade, como além disso é constituído por
normas e racionalidade; não é só investigado a partir de um quadro
interpretativo, como além disso se regula por quadros interpretativos. (Silva, 2012, p. 71)
Nas
palavras de Taylor, sintetiza Silva, os seres humanos são “self-interpreting
animals” (Taylor, citado por Silva, 2012, p. 71), ou seja, são seres capazes de
definirem a si próprios de modos múltiplos, “moldando com estas interpretações
o próprio objeto estudo das ciências humanas, que se caracteriza, assim, por
uma instabilidade que não tem paralelo nas ciências naturais” (Silva, 2012, p.
71). Essa é uma das razões por que explicações nomológicas têm um alcance limitado
nas ciências humanas e sociais. Ora, pelo fato de o homem caracterizar-se como
um ser capaz de inovar no âmbito do pensamento (com novos conceitos e novas
interpretações), isso se reflete no nível da ação (com novos comportamentos e
novas práticas). Assim, regularidades no comportamento humano (mesmo que estáveis)
não devem ser confundidas com regularidades naturais, pois a imprevisibilidade
e a instabilidade são características próprias de um animal que se interpreta
por si próprio. Contudo, muitas generalizações nas ciências humanas não deixam
de ser úteis e de ter, em certos casos, um poder explicativo relevante. O
problema é que “terão de ser complementadas por métodos interpretativos que
apreendam as razões da ação ou as crenças e valores que dão sentido ao
comportamento humano” (Silva, 2012, p. 71). Métodos como esses têm a capacidade
de explicar exceções às generalizações das ciências humanas e esclarecem uma
importante dimensão de nossa ação que não se revela quando fazemos uso de uma concepção
de ciência orientada apenas para a descoberta de regularidades e de correlações
entre variáveis. Silva (2012, p. 71) conclui seu belíssimo artigo, base de
nosso capítulo, afirmando que:
devemos evitar quer um unitarismo epistemológico que defende a
existência de um modelo metodológico comum a todas as ciências, quer a tese de
um abismo metodológico entre ciências humanas e ciências naturais. Tal como a
análise do círculo hermenêutico aqui proposta procurou mostrar, os
procedimentos hermenêuticos revelam afinidades importantes com a metodologia
das ciências empíricas, não sendo, todavia, redutíveis a estas.”
“A
questão de Karl Popper de certa forma se expressava na admiração de seus
colegas pela capacidade de explicação que as teorias do materialismo
histórico de Marx, a psicanálise de Freud e a psicologia individual de Alfred
Adler apresentavam. Praticamente, elas explicavam tudo em seus campos de
atuação! Parecia, a Popper, que elas produziam um efeito similar ao de uma
revelação intelectual ou mesmo de uma conversão daqueles que se dedicavam a
estudá-las. A esses, parecia que o mundo estava repleto de verificações ou
confirmações das verdades contidas nessas teorias. A característica principal
delas era o fluxo incessante e constante de confirmações, de observações que as
verificavam. Por exemplo, os jornais as confirmavam pelas notícias presentes (e
também ausentes) e evidenciavam o preconceito a determinadas classes oprimidas
(teoria de Marx); as observações clínicas verificavam abundantemente as teorias
de Freud; bem como de Adler, com sua teoria do sentimento de inferioridade, a qual
era capaz de generalizar, para muitos casos, verificações em situações nas quais
caberiam muito bem controvérsias (a um custo de uma certeza indutiva
fundamentada em casos anteriores).
Depois
de certa reflexão, admite Popper, qualquer caso poder ser uma confirmação, seja
para a psicanálise, seja para a psicologia individual. Ele usa como exemplo o
caso de um homem que tenta afogar uma criança jogando-a intencionalmente na
água e de outro que arrisca a vida para salvá-la. À luz da psicanálise, o
primeiro homem sofria de repressão (por algum componente do complexo de Édipo),
e o segundo alcançara a sublimação. À luz da psicologia individual, ambos
sofriam de um sentimento de inferioridade, pois o primeiro quis provar a si ser
capaz de cometer um crime, e o segundo, ser capaz de salvar uma criança.
Não conseguia imaginar
qualquer tipo de comportamento humano que ambas as teorias fossem incapazes de
explicar. Era precisamente esse fato — elas sempre serviam e eram sempre
confirmadas — que constituía o mais forte argumento a seu favor. Comecei a perceber
aos poucos que essa força aparente era, na verdade, uma fraqueza. (Popper, 1980, p. 3)
Popper
enfatiza que o mesmo não ocorria com a relatividade geral, e a confirmação
observacional efetuada por Eddington desempenhou um papel fundamental para
isso. Einstein. com sua teoria, havia chegado à conclusão de que a luz também
era atraída por corpos celestes, como o Sol, devido a suas grandes massas, da
mesma forma que os corpos materiais. Isso produziria um efeito especial na posição
das estrelas para um observador na Terra, porque as luzes das estrelas, ao
passarem próximas do Sol, sofreriam uma atração. Esta as desviaria de suas
trajetórias originais devido à atração gravitacional, ocasionando uma posição
aparente mais distante em relação ao Sol, para quem as observa da Terra, do que
elas realmente se encontram. Só poderíamos identificar esse desvio durante um
eclipse solar, pois, quando a luz intensa do Sol é ofuscada pela Lua, conseguimos
ver as estrelas no céu mesmo durante o dia.
“O mais impressionante
neste caso é o risco envolvido numa predição desse tipo. Se a observação
mostrar que o efeito previsto definitivamente não ocorre, a teoria é
simplesmente refutada; ele É INCOMPATÍVEL COM CERTOS RESULTADOS PASSÍVEIS DA
OBSERVAÇÃO; de fato, resultados que todos esperariam antes de Einstein. Essa
situação é bastante diferente da que descrevi anteriormente, pois tornou-se
evidente que as teorias em questão eram incompatíveis com o comportamento
humano extremamente divergente, de modo que era praticamente impossível
descrever um tipo de comportamento que não servisse para verificá-las. (Popper, Conjecturas e
refutações, 1980, p. 4, grifo do original).
Popper
nos apresenta, então, suas conclusões preliminares que começam a delinear sua
teoria do falseacionismo (critério metodológico capaz de justificar, por um
método não indutivo, e, principalmente, discriminar o que é o resultado da
prática científica, ou seja, a própria ciência):
(1) E fácil obter
confirmações ou verificações para quase toda teoria — desde que as procuremos.
(2) As confirmações só
devem ser consideradas se resultarem de predições arriscadas; isto é, se não
esclarecidos [sic] pela teoria em questão, esperarmos um acontecimento
incompatível com a teoria e que a teria refutado.
(3) Toda teoria científica
“boa” é uma proibição: ela proíbe certas coisas de acontecer. Quanto mais uma
teoria proíbe, melhor ela é.
(4) A teoria que não for
refutada por qualquer acontecimento concebível não é científica. A
irrefutabilidade não é uma virtude, como frequentemente se pensa, mas um vício.
(5) Todo teste genuíno de uma teoria é uma tentativa de refutá-la. A
possibilidade de testar uma teoria implica igual possibilidade de demonstrar
que [a teoria] é falsa. Há, porém, diferentes graus na capacidade de se testar
uma teoria: algumas são mais “testáveis”, mais expostas refutação do que
outras; correm, por assim dizer, mais riscos.
(6) A evidência
confirmadora não deve ser considerada SE NÃO RESULTAR DE UM TESTE GENUÍNO DA
TEORIA; 0 teste pode se apresentar como uma tentativa séria porém malograda de
refutar a teoria. (Refiro-me a casos como o da “evidência corroborativa”).
(7) Algumas teorias
genuinamente “testáveis”, quando se revelam falsas, continuam a ser sustentadas
por admiradores, que introduzem, por exemplo, alguma posição auxiliar AD HOC,
ou reinterpretam a teoria AD HOC de tal maneira que ela escapa à refutação. Tal
procedimento é sempre possível, mas salva a teoria da refutação apenas ao preço
de destruir (ou pelo menos aviltar) seu padrão científico. (Popper, 1980, p. 4-5,
grifo do original)”
“Popper
(1980) afirma que sofre de uma reação de incredulidade por parte de quem
acredita forte e amplamente que a ciência avança da observação à teoria (como
se fosse algo que supostamente “ninguém” pudesse negar). Ele defende que é um
absurdo a crença de que a ciência começa exclusivamente com observações. O
próprio verbo observar exige um objeto e é, pois, um verbo relativo,
porque precisa de uma tarefa definida, de um ponto de vista, de um interesse
especial, de um problema. Para descrever o que se observa é preciso uma
linguagem apropriada, o que implica similaridade e classificação, que por seu
turno implicam interesses, pontos de vista e problemas.
Popper
retoma uma imagem descrita por Katz, a qual se refere a um animal que divide o
mundo entre coisas (objetos) comestíveis e não comestíveis, caminhos para fuga
e esconderijos; conforme a necessidade e o interesse desse animal, os objetos
mudam, pois podem ser classificados, assemelhados e diferenciados de diversos
modos. Da mesma forma, diz Popper, podemos transpor aos cientistas uma mesma
atitude. Enquanto são as necessidades, os interesses, as expectativas e as
tarefas que devem ser cumpridos no momento que fornecem ao animal um ponto de
vista, para os cientistas são as teorias aceitas, seus interesses teóricos, o
problema a ser investigado, suas conjecturas e antecipações que formam seu
quadro de referências (horizonte de expectativas) (Popper, 1980).”
“6.2.6 Racionalidade na ciência e atitudes “na
prática” científica
Popper
retoma a discussão a respeito de seu problema central (da demarcação)
enfatizando que a atitude dogmática está claramente relacionada à tendência que
temos de verificar nossas leis e esquemas, numa busca de sempre aplicá-los e
confirmá-los até afastar as refutações a eles. Por outro lado, a atitude
crítica dispõe-se a modificá-los (testá-los e, se for possível, refutá-los).
Isso sugere uma identificação da atitude crítica com a científica e a atitude
dogmática com a pseudocientífica. Popper aproxima a atitude pseudocientífica a
algo primitivo, anterior à atitude científica e, portanto, acaba por sugerir
que ela seja uma atitude pré-científica, considerando que tal precedência
apresenta um caráter lógico. Já a atitude crítica não se opõe diametralmente à atitude
dogmática, mas se sobrepõe a ela, pois dirige-se contra crenças dogmáticas ao
requerê-las como “matéria-prima”.
A
ciência, então, não se origina numa coleção de observações ou na invenção de
experimentos, e sim na discussão crítica dos mitos, das técnicas e das práticas
“mágicas”. “A tradição científica se distingue da tradição pré-científica por
apresentar dois estratos; como esta última, ela lega suas teorias, mas lega
também, com elas, uma atitude crítica com relação a essas teorias” (Popper,
1980, p. 19). Assim, as teorias são acompanhadas de um desafio para que sejam
discutidas e aperfeiçoadas, se possível. A atitude crítica é razoável e
racional, por ser uma tradição de livre debate sobre as teorias para
identificar os pontos fracos destas e para combatê-los. O método crítico foi
desenvolvido pelos gregos (tradição helênica que remonta a Tales) e de início
provocou a falsa esperança de que levaria os filósofos à solução de todos os
problemas, de que abriria caminhos para o conhecimento verdadeiro, ajudando na prova
e na justificação das teorias. Mas não passou de um resíduo de uma mentalidade
dogmática. Fora do campo da lógica e da matemática, não existem provas.
Exigir-se provas racionais para o conhecimento científico revela uma falha na
distinção (que deveria ter sido mantida) entre a ampla região da racionalidade
e o campo estreito da certeza racional (exigência que não pode ser atendida).
Contudo,
o argumento lógico (raciocínio lógico-dedutivo) continua com uma função
importante para a abordagem crítica, não pela prova ou pela inferência de
observações, mas pela impossibilidade de se chegar às implicações de teorias
pelo emprego exclusivo da dedução. A atitude crítica, como vimos, procura
identificar os pontos fracos das teorias, os quais em geral são encontrados em
suas consequências lógicas mais remotas, e é nesse momento que o raciocínio
puramente lógico desempenha seu importante valor.
Popper
(1980) considera que Hume tinha razão ao declarar que teorias não podiam ser
validamente inferidas a partir do que conhecemos por verdadeiro (nem de
observações). Nossa crença em teorias, para Hume, segundo Popper (1980), é
irracional. Ele tinha razão, se entendermos por “crença” a “incapacidade de pôr
em dúvida as leis naturais e a constância das regularidades que a natureza nos
oferece” (Popper, 1980, p. 19). Mas, por outro lado, se “crença” for a nossa
aceitação crítica das teorias científicas (como tentativa de aceitar teorias
com a possibilidade de revê-las caso sejam refutadas), então Hume está errado.
Não há, com efeito, nada de errado na aceitação irracional de uma teoria (sejam
elas bem testadas ou não). Se forem bem testadas, então não existe um comportamento
mais racional que esse.
Vamos admitir que aceitamos deliberadamente a tarefa de viver
neste mundo desconhecido, ajustando-nos a ele tanto quanto possível,
aproveitando as oportunidades que ele nos oferece; e que queremos explicá-lo,
SE POSSÍVEL (não será preciso presumir esta possibilidade) e na medida de nossa
possibilidade, com a ajuda de leis e de teorias explicativas. SE ESSA é nossa
tarefa, o procedimento mais racional é o método das tentativas — da conjectura
e da refutação. Precisamos propor teorias, ousadamente; tentar refutá-las;
aceitá-las tentativamente, se fracassarmos. (Popper, 1980, p. 20, grifo do original)
Desse
ponto de vista, todas as teorias e leis são, em essência, tentativas conjecturais
e hipotéticas (mesmo se não for mais possível pô-las em dúvida). Antes de
refutar qualquer teoria, não temos como saber como elas têm de ser modificadas.
O método das tentativas não se identifica com o método crítico (científico),
processo de conjecturas e refutações. O primeiro deles é empregado por todos,
sem exceção (do mais inteligente dos seres ao micro-organismo mais diminuto). A
diferença está na atitude crítica e construtiva assumida perante os erros, não
nas tentativas.
“Erros
que o cientista procura eliminar, consciente e cuidadosamente, na tentativa de
refutar suas teorias com argumentos penetrantes — inclusive [com] o apelo aos
testes experimentais mais severos que suas teorias e engenho lhe permitem
preparar” (Popper, 1980, p. 20).
Assim,
a atitude crítica, nas palavras de Popper (1980), é a tentativa consciente de
submeter nossas teorias e conjecturas à “luta pela sobrevivência”, em que as
mais aptas triunfam. Ela possibilita desde a sobrevivência de uma teoria até a
eliminação de uma hipótese inadequada. “Adotamos assim a teoria mais apta a
nosso alcance, eliminando as que são menos aptas. [...] Na minha opinião, este
procedimento nada tem de irracional, nem precisa de maior justificação racional”
(Popper, 1980, p. 20).”
“Para
Bachelard, temos uma filosofia das ciências que não mostra em que condições (ao
mesmo tempo subjetivas e objetivas) princípios gerais conduzem a resultados
particulares e vice-versa.
Se pudéssemos então traduzir filosoficamente o duplo movimento
que atualmente anima o pensamento científico, aperceber-nos-íamos de que a
alternância do A PRIORI e do A POSTERIORI é obrigatória, que o empirismo e o
racionalismo estão ligados, no pensamento científico, por um estranho laço, tão
forte como o que une o prazer à dor. (Bachelard, A filosofia do não, 1978, p.
4, grifo do original)
Um
deles se sobrepõe ao outro:
o empirismo precisa ser
compreendido; o racionalismo precisa ser aplicado. Um empirismo sem leis
claras, sem leis coordenadas, sem leis dedutivas não pode ser pensado nem
ensinado; um racionalismo sem provas palpáveis, sem aplicação à realidade
imediata não pode convencer plenamente. O valor de uma lei empírica prova-se
fazendo dela a base de um raciocínio. Legitima-se um raciocínio fazendo dele a
base de uma experiência. (Bachelard, 1978, p. 4-5)
A ciência necessita dos
dois polos (provas/experiência, regras/leis, evidências/fatos) de um
desenvolvimento dialético, porque cada noção se complementa e nisso se
esclarecem segundo dois pontos de vista filosóficos distintos. Bachelard não
está reduzindo a filosofia da ciência a um dualismo:
Pelo contrário, a
polaridade epistemológica é para nós a prova de que cada uma das doutrinas
filosóficas que esquematizamos pelos nomes de empirismo e racionalismo é o
complemento efetivo da outra. Uma acaba a outra. Pensar cientificamente é
colocar-se no campo epistemológico intermediário entre teoria e prática, entre
matemática e experiência. Conhecer cientificamente uma lei natural, [sic] é
conhecê-la simultaneamente como fenômeno e como número. (Bachelard, 1978, p. 5)
O
filósofo afirma que uma dessas duas direções metafísicas deve ser supervalorizada:
justamente a que vai do racionalismo à experiência. O esforço de Bachelard é de
interpretar no sentido do racionalismo e da supremacia da física-matemática, e
é por meio desse movimento epistemológico que ele tenta caracterizar a
filosofia da ciência contemporânea. Esse racionalismo aplicado (prospector ou
matemático), tal como Bachelard o caracteriza,
que retoma os ensinamentos
fornecidos pela realidade para os traduzir em programa de realização, goza
aliás, segundo pensamos, de um privilégio recente. Para este racionalismo
prospector, muito diferente por isso do racionalismo tradicional, a aplicação
não é uma mutilação; a ação científica guiada pelo racionalismo matemático não
é uma transigência aos princípios. (Bachelard, 1978, p. 5)
“Lembra
Cupani (2004, Scientiae Studia, p. 494) que a técnica, “capacidade
humana de modificar deliberadamente materiais, objetos e eventos”, produzindo elementos
novos não existentes na natureza, “define o ser humano como homo faber” (Cupani, 2004, p. 494, grifo
do original). O fazer, ou melhor ainda, o saber
fazer, difere-se de outras capacidades humanas como contemplar, agir,
experimentar sentimentos e expressar-se em linguagem articulada, em especial a
enunciativa. Segundo nosso autor, “Esse caráter da técnica deve ser levado em
consideração ao entender a tecnologia como modo de vida, sobretudo na medida em
que esse modo de vida afeta outros modos em que podem prevalecer aquelas outras
capacidades humanas antes mencionadas” (Cupani, 2004, p. 494).”
“Para
Feenberg, nos lembra Cupani (2004, p. 508), a tecnologia é um fenômeno típico
da modernidade e constitui sua “estrutura material” (Cupani, 2004, p. 508).
Contudo, não se trata de um instrumento neutro porque, devido a uma vinculação
com o capitalismo, está imbuída de valores antidemocráticos e manifestos numa
cultura empresarial que visa ao controle, à eficiência e aos recursos. As
classes dominantes inscrevem seus valores e seus interesses nas decisões que os
originam e os mantêm no próprio esboço de máquinas e de procedimentos. A conquista
da natureza começa com o domínio social, indissociável do controle do homem
pelo homem, traduzível em outros fenômenos, também típicos de nossa época, como
a degradação do meio ambiente, do trabalho e da educação. A tecnologia não pode
ser modificada, por exemplo, por reformas morais, porque é uma manifestação de racionalidade política. É preciso uma
modificação cultural proveniente de avanços democráticos. A posição de Feenberg é “não determinista”, cujas
teses são:
1. O desenvolvimento
tecnológico está sobredeterminado tanto por critérios técnicos quanto sociais
de progresso, podendo, por conseguinte, bifurcar-se em qualquer uma de diversas
direções, conforme a hegemonia que prevalecer.
2. Enquanto as
instituições se adaptam ao desenvolvimento tecnológico, o processo de adaptação
é recíproco, e a tecnologia muda em resposta às condições em que se encontra
tanto quanto ela as influencia. (Eeenberg, citado por Cupani, 2004, p. 508)
Reconhecer
a diferença básica entre quem manda e quem obedece nesta civilização
tecnológica, na qual o poder tecnológico é a sua maior forma de poder, acaba por constituir um elemento crucial para se
apreender uma mudança da tecnologia. Ora, exerce-se poder pela administração e
pelo controle estratégico das atividades pessoais e sociais. Cupani (2004)
salienta o conceito feenbergniano de autonomia
operacional de administradores (capitalistas e tecnocratas), qual seja, “liberdade
para tomar decisões independentes sem considerar os interesses dos agentes
subordinados nem da comunidade, ignorando também as consequências ambientais”
(Cupani, 2004, p. 509). O metaobjetivo da autonomia operacional de
administradores é a sua preservação indefinida, garantida por sua racionalidade, intrínseca à tecnologia,
amparada pelo caráter aparentemente absoluto da justificação pela eficiência (Cupani, 2004).
A
eficiência, valor característico dessa dimensão humana, parece centralizar as
decisões tecnológicas. Mas não basta para determinar o desenvolvimento da
tecnologia, porque ela pode ser definida conforme interesses sociais. “Os
objetivos técnicos são também objetivos sociais”, sendo que o desenvolvimento
tecnológico “é um cenário de luta social” (Feenberg, citado por Cupani, 2004, p.
509). Como se o desenvolvimento tecnológico fosse semelhante à linguagem, em
que a “gramática condiciona o significado, mas não decide o propósito” (Cupani,
2004, p. 510). Assim, afirma Feenberg (citado por Cupani, 2004), existe um código
social da tecnologia que associa eficiência e propósito.
A
mais importante medida da eficiência é, sob o código do capitalismo, o lucro,
adquirido pela venda de mercadorias. Ele subjuga quaisquer outras considerações
e ignora preocupações outras (por exemplo, qualidade de vida, educação etc.),
pois as reduz a meras “externalidades”. Por seu turno, eficiência pode ser
concebida por outro código social, “que respondesse a exigências da vida humana
hoje não realizadas e que aparecem em forma de reinvindicações econômicas e morais”
(Cupani, 2004, p. 510), Procedimentos e artefatos eficientes precisam fazer
abstração apenas ao que se refere a lucro, poder e “padrão de vida” (Cupani,
2004).
Cupani
evidencia a opinião de Feenberg de que o capitalismo, bem como o socialismo
burocrático, incentiva realizações tecnológicas que reforçam estruturas sociais
hierarquizadas e centralizadas; de modo geral, ele controla desde o início
todos os setores da vida humana (trabalho, educação, saúde, comunicação etc.).
Existe, em resumo, uma “mediação técnica generalizada”, ao
serviço de interesses privilegiados, que reduz em todas as partes, em nome da
eficiência, as possibilidades humanas, impondo em todo lugar, como medidas
óbvias, a disciplina, a vigilância, a padronização. Reciprocamente, a mediação
de determinados interesses sociais faz com que as realizações tecnológicas
sejam atualmente ABSTRATAS e DESCONTEXTUALIZADAS. Trata-se de objetos e
procedimentos que não parecem pertencer a nenhum mundo cultural em especial, e
de sujeitos que se compreendem a si mesmos pela sua função e se acreditam
livres de responsabilidade quanto às consequências das suas atividades. São
esses, argumenta Feenberg, “momentos” típicos da REIFICAÇÃO social que a
tecnologia representa.
(Cupani, 2004, p. 510, grifo do original)
Contudo,
a percepção dessas limitações e deformações pode estimular movimentos políticos
transformadores. Tal esperança de Feenberg, segundo Cupani (2004), está
fundamentada na impossibilidade da hegemonia do “código técnico” de impedir
iniciativas contrárias (margem de manobra).
No
entanto, ocorre a possibilidade de haver táticas contestadoras, devido à falta
de controle absoluto da evolução tecnológica, e seus resultados tampouco podem
ser previstos; ou
os resultados das táticas dos dominados são reabsorvidos pela
lógica dominante. Outras vezes, no entanto, as modificações podem se
estabelecer. A contestação do rumo autoritário da tecnologia não seria
possível, no entanto, se a tecnologia não fosse AMBIVALENTE, podendo ser instrumentalizada
em função de diferentes projetos políticos. Como argumenta Feenherg, “a
tecnologia é em grande medida um produto cultural e, assim, toda ordem
tecnológica é um ponto de partida potencial para desenvolvimentos divergentes,
conforme o ambiente cultural que lhe dá forma”. Mais ainda, para ele, é
possível perceber na tecnologia uma “dupla instrumentalização” que sugere a
possibilidade de que ela venha a ter um diferente rumo. A tecnologia constitui
basicamente uma atitude ou ORIENTAÇÃO com relação à realidade (“instrumentalização
primária”). No entanto, ela é também um modo de ação ou realização no mundo
social.
(Cupani, 2004, p. 511, grifo do original)
“A
“essência da tecnologia reside na união (dialética) entre ambos níveis de instrumentalização”
(Feenberg, citado por Cupani, 2004, p. 511).
Feenberg,
conforme apresenta Cupani (2004), resgata da “tradição humanista” os critérios
de progresso em direção da realização humana que a mudança social sugerida
precisa, pois ele entende que, à medida que aumenta a capacidade das pessoas em
assumir responsabilidade política, permite-se a liberdade de pensamento,
respeita-se a individualidade, estimula-se a criatividade e a sociedade
progride.
Conforme
Cupani (2004), a seguinte pergunta se faz necessária: Para que tipo de sociedade estaria orientada essa transformação?
Uma vez que Feenberg reconhece o fracasso histórico dos sistemas comunistas (em
termos econômicos e democráticos) e a desconfiança de economistas em relação à
economia de mercado, ele propõe “uma nova ação do socialismo como meta de uma transformação cultural” (Cupani, 2004, p.512,
grifo do original), e retoma de forma crítica as ideias de Marx e da Escola de
Frankfurt. Sua proposta é interpretar o socialismo como uma transição gradual para um outro tipo de
civilização, em que determinadas potencialidades humanas hoje negadas sejam
desenvolvidas. Assim, o socialismo se tornaria “uma sociedade que privilegia
bens específicos que não são de mercado e emprega uma regulação e uma propriedade
públicas substancialmente mais extensas que as existentes nas sociedades
capitalistas para obtê-los” (Feenberg, citado por Cupani, 2004, p. 512). Esse
socialismo não estaria “em imediata oposição” ao capitalismo, mas poderia
representar uma evolução “a partir dos atuais estados de bem-estar social”
(Cupani, 2004, p. 512).
A transição para o socialismo pode ser identificada pela
presença de fenômenos que, tomados separadamente, parecem economicamente irracionais
ou administrativamente não efetivos desde o ponto de vista da racionalidade
tecnológica capitalista, mas que juntos iniciam um processo de mudança
civilizatória.
(Feenberg, citado por Cupani, 2004, p. 512)
Feenberg,
como mostra Cupani, sugere alguns exemplos de medidas que serviriam de índice
de avanço social para além do capitalismo atual. As medidas que poderiam
colocar em movimento tal processo seriam, por exemplo:
a extensão da propriedade pública, a democratização da
administração, a ampliação do tempo de vida dedicado à aprendizagem para além
das necessidades imediatas da economia, e a transformação das técnicas e do
treinamento profissional para incluir um leque cada vez maior de necessidades
humanas no código técnico. (Cupani, 2004, p. 513)
Esse
é um processo que, alerta Feenberg, não é simples, talvez sequer provável. Mas
se trata de um horizonte possível para um socialismo em circunstâncias
favoráveis, fruto de uma heurística que visa romper a ilusão de necessidade com
a qual o mundo está recoberto (Cupani, 2004).”
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