Editora: Vozes
ISBN: 978-85-3261-762-0
Tradução e notas: Paulo Perdigão
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 784
Sinopse: Ver Parte
I
“Devemos tomar cuidado, todavia, quanto ao
fato de que o Outro só é objeto para mim na medida que eu posso ser objeto para
ele. O outro irá objetivar-se, portanto, como parcela não individualizada do “se”
impessoal ou como “ausente”, puramente representado por suas cartas ou
notícias, ou como um este presente de fato, conforme eu mesmo tenha sido
para ele elemento do “se”, um “querido ausente” ou um este concreto. O que
decide, em cada caso, o tipo de objetivação do outro e de suas qualidades é, ao
mesmo tempo, minha situação no mundo e a situação dele, ou seja, os
complexos-utensílios que cada um de nós organizou e os diferentes istos que
aparecem a um e a outro sobre fundo de mundo. Tudo isso nos reconduz
naturalmente à facticidade. É minha facticidade e a facticidade do outro que
decidem se o Outro pode me ver e se eu posso ver este Outro em
particular. Mas o problema da facticidade ultrapassa os limites desta exposição
geral.
Assim, experimento a presença do Outro como
quase-totalidade dos sujeitos em meu ser-objeto-para-Outro, e, sobre o fundo
desta totalidade, posso experimentar mais particularmente a presença de um
sujeito concreto, sem conseguir, todavia, especificá-la como sendo a de tal ou
qual Outro. Minha reação de defesa à minha objetidade irá fazer com que
o Outro compareça frente a mim a título de tal ou qual objeto. A esse
título, ele me aparecerá como um “este”, ou seja, sua quasetotalidade subjetiva
se degrada, tornando-se totalidade-objeto co-extensiva à totalidade do Mundo.
Esta totalidade revela-se a mim sem referência à subjetividade do Outro: a
relação entre o Outro-sujeito e o Outro-objeto de modo algum se compara à que
se costuma estabelecer, por exemplo, entre o objeto da física e o objeto da
percepção. O Outro-objeto revela-se a mim pelo que é, e não remete senão a si
mesmo. Simplesmente, o Outro-objeto é tal como me aparece, no plano da
objetidade em geral e em seu ser-objeto; sequer é concebível que eu possa
referir um conhecimento qualquer que tenha dele à sua subjetividade, tal como a
experimento por ocasião do olhar. O Outro-objeto é somente objeto, mas a minha
apreensão dele inclui a compreensão de que poderei sempre e por princípio fazer
dele outra experiência, colocando-me em outro plano de ser; esta compreensão
é constituída, por um lado, pelo saber de minha experiência passada, que
é, além disso, como vimos, o puro passado (fora de alcance e que tenho-de-ser)
desta experiência, e, por outro lado, por uma apreensão implícita da dialética
do outro: o outro é, no presente, aquilo que me faço não ser. Mas, embora eu
possa neste momento livrar-me dele e escapar-lhe, permanece à sua volta a
possibilidade permanente de fazer-se outro. Contudo, tal possibilidade,
pressentida em uma espécie de embaraço e aflição que constitui a especificidade
de minha atitude frente ao outro-objeto, é, propriamente falando, inconcebível:
primeiro, porque não posso conceber possibilidade que não seja minha possibilidade
ou apreender transcendência a não ser transcendendo-a, ou seja, captando-a como
transcendência-transcendida; segundo, porque esta possibilidade pressentida não
é a possibilidade do outro-objeto: as possibilidades do outro-objeto são
mortipossibilidades que remetem a outros aspectos objetivos do outro; a
possibilidade própria de captar-me como objeto, sendo possibilidade do
outro-sujeito, não é para mim, presentemente, senão possibilidade de ninguém: é
possibilidade absoluta – que só tem sua fonte em si mesmo – do surgimento,
sobre fundo de nadificação total do outro-objeto, de um outro-sujeito que irei
experimentar através de minha objetividade-para-ele. Assim, o outro-objeto é um
instrumento explosivo que manejo com cuidado, porque antevejo em torno dele a
possibilidade permanente de que se o façam explodir e, com esta explosão, eu
venha a experimentar de súbito a fuga do mundo para fora de mim e a alienação
de meu ser. Meu cuidado constante é, portanto, conter o outro em sua
objetividade, e minhas relações com o outro-objeto são feitas essencialmente de
ardis destinados a fazê-lo permanecer como objeto. Mas basta um olhar do outro
para que todos esses artifícios desabem e eu experimente de novo a
transfiguração do outro. Assim, sou remetido da transfiguração à degradação e
da degradação à transfiguração, sem poder jamais, seja formar uma visão de
conjunto desses dois modos de ser do outro – porque cada um deles basta a si
mesmo e só remete a si mesmo –, seja ater-me firmemente a um deles – porque
cada um tem instabilidade própria e desmorona-se para que o outro surja de suas
ruínas: só os mortos podem ser perpetuamente objetos sem converter-se jamais em
sujeitos – porque morrer não é perder a própria objetividade no meio do mundo:
todos os mortos estão aí, no mundo à nossa volta; morrer é perder toda
possibilidade de revelar-se como sujeito a um outro.”
“Significará que esse caráter antinômico da
totalidade é irredutível? Ou, de um ponto de vista superior, podemos fazê-lo
desaparecer? Deveríamos afirmar que o espírito é o ser que é e não é,
assim como tínhamos afirmado que o Para-si é o que não é e não é o que é? A
questão carece de sentido. Pressupõe, com efeito, que temos a possibilidade de assumir
um ponto de vista sobre a totalidade, ou seja, de considerá-la vista do
exterior. Mas é impossível, porque, exatamente, existo como eu mesmo sobre o
fundamento desta totalidade e na medida que estou comprometido nela. Nenhuma
consciência, ainda que de Deus, poderia “ver o reverso”, ou seja, captar a
totalidade enquanto tal. Porque, se Deus é consciência, está integrado na totalidade.
E se, por sua natureza, é um ser para-além da consciência, ou seja, um
Em-si que seria fundamento de si mesmo, a totalidade só pode aparecer-lhe ou
como objeto – e, neste caso, carece da desagregação interna da
totalidade como esforço subjetivo de recuperação de si ou como sujeito –
caso em que, não sendo esse sujeito, só pode experimentá-lo sem
conhecê-lo. Assim, não se pode conceber qualquer ponto de vista sobre a
totalidade: a totalidade não tem ‘‘lado de fora”, e a própria questão sobre o
sentido de seu “reverso” é desprovida de significação. Não podemos ir mais
longe. Chegamos ao fim desta exposição. Constatamos que a existência do outro é
experimentada com evidência no e pelo fato de minha objetividade. E vimos
também que minha reação à minha própria alienação para outro traduz-se pela
apreensão do outro como objeto. Em suma, o outro pode existir para nós de duas
formas: se o experimento com evidência, não posso conhecê-lo; se o conheço, se
atuo sobre ele, só alcanço seu ser-objeto e sua existência provável no meio do
mundo. Nenhuma síntese dessas duas formas é possível.”
“O ponto de vista do conhecimento puro é
contraditório: só existe o ponto de vista do conhecimento comprometido. Equivale
a dizer que conhecimento e ação não passam de duas faces abstratas de uma
relação original e concreta. O espaço real do mundo é o espaço que Lewin
denomina “hodológico”. Um conhecimento puro, com efeito, seria conhecimento sem
ponto de vista, logo, conhecimento do mundo situado, por princípio, fora do
mundo. Mas isso não faz sentido: o ser cognoscitivo seria somente conhecimento,
posto que iria definir-se por seu objeto e seu objeto desvanecer-se-ia na
indistinção total de relações recíprocas. Assim, o conhecimento só pode ser
surgimento comprometido no determinado ponto de vista que somos. Ser,
para a realidade humana, é ser-aí; ou seja, “aí, sentado na cadeira”, “aí,
junto a esta mesa”, “aí, no alto desta montanha, com tais dimensões, tal
direção etc.” É uma necessidade ontológica.”
“Assim, a condição para que eu projete a
identificação do outro comigo é a de que eu persista em minha negação de ser o
outro. Por fim, esse projeto de unificação é fonte de conflito, posto
que, enquanto experimento-me como objeto para o outro e projeto assimilar o
outro na e por esta experiência, o outro apreende-me como objeto no meio do
mundo e não projeta de modo algum identificar-me com ele. Portanto, seria
necessário – já que o ser-Para-outro comporta uma dupla negação interna – agir
sobre a negação interna pela qual o outro transcende minha transcendência e
faz-me existir Para-outro, ou seja, agir sobre a liberdade do outro.
Este ideal irrealizável, enquanto impregna
meu projeto de mim mesmo em presença do outro, não é assimilável ao amor, na
medida que o amor é um empreendimento, ou seja, um conjunto orgânico de
projetos rumo a minhas possibilidades próprias. Mas é o ideal do amor, seu
motivo e sua finalidade, seu valor próprio. O amor, como relação
primitiva com o outro, é o conjunto dos projetos pelos quais viso realizar este
valor.
Esses projetos colocam-me em conexão direta
com a liberdade do outro. É nesse sentido que o amor é conflito. Sublinhamos,
com efeito, que a liberdade do outro é fundamento de meu ser. Mas, precisamente
porque existo pela liberdade do outro, não tenho segurança alguma, estou em
perigo nesta liberdade; ela modela meu ser e me faz ser, confere-me valores
e os suprime, e meu ser dela recebe um perpétuo escapar passivo de si mesmo.
Irresponsável e fora de alcance, esta liberdade proteiforme na qual me
comprometi pode, por sua vez, comprometer-me em mil maneiras diferentes de ser.
Meu projeto de recuperar meu ser só pode realizar-se caso me apodere desta
liberdade e a reduza a ser liberdade submetida à minha. Simultaneamente, é a
única maneira pela qual posso agir sobre a livre negação de
interioridade por meio de que o Outro constitui-me em Outro, ou seja, a única
maneira pela qual posso preparar os caminhos de uma futura identificação do
Outro comigo. Talvez isso fique mais claro se meditarmos sobre a questão
pelo aspecto puramente psicológico: por que o amante quer ser amado? Se
o Amor, com efeito, fosse puro desejo de posse física, poderia ser, em muitos
casos, facilmente satisfeito. Por exemplo: o herói de Proust, que instala sua
amante em sua casa, pode vê-la e possuí-la a qualquer hora do dia, e soube
deixá-la em total dependência material, deveria ficar livre da inquietação.
Todavia, sabemos que, pelo contrário, acha-se atormentado por preocupações. É por
sua consciência que Albertine escapa de Marcel, mesmo quando ele está a seu
lado, e é por isso que ele só se tranquiliza quando a contempla dormindo. Não
há dúvida, portanto, de que o amor deseja capturar a “consciência”. Mas por que
o deseja? E como?
Esta noção de “propriedade”, pela qual tão
comumente se explica o amor, não poderia ser primordial, com efeito. Por que
iria eu querer apropriar-me do outro não fosse precisamente na medida que o
Outro faz-me ser? Mas isso comporta justamente certo modo de apropriação: é da
liberdade do outro enquanto tal que queremos nos apoderar. E não por vontade de
poder: o tirano escarnece do amor, contenta-se com o medo. Se busca o amor de
seus súditos, é por razões políticas, e, se encontra um meio mais econômico de
subjugá-los, adota-o imediatamente. Ao contrário, aquele que quer ser amado não
deseja a servidão do amado. Não quer converter-se em objeto de uma paixão
transbordante e mecânica. Não quer possuir um automatismo, e, se pretendemos
humilhá-lo, basta descrever-lhe a paixão do amado como sendo o resultado de um
determinismo psicológico: o amante sentir-se-á desvalorizado em seu amor e em
seu ser. Se Tristão e Isolda ficam apaixonados por ingerir uma poção do amor,
tornam-se menos interessantes; e chega até a ocorrer o fato de que a total
servidão do ser amado venha a matar o amor do amante. A meta foi ultrapassada:
o amante sente-se só, caso o amado tenha se transformado em autômato. Assim, o
amante não deseja possuir o amado como se possui uma coisa; exige um tipo
especial de apropriação. Quer possuir uma liberdade enquanto liberdade.
Mas, por outro lado, o amante não poderia
satisfazer-se com esta forma eminente de liberdade que é o compromisso livre e
voluntário. Quem iria contentar-se com um amor que se desse como pura
fidelidade juramentada? Quem iria satisfazer-se se lhe dissessem: “Eu te amo
porque me comprometi livremente a te amar e não quero me desdizer; eu te amo
por fidelidade a mim mesmo”? Assim, o amante requer o juramento, e o juramento
o exaspera. Quer ser amado por uma liberdade, e exige que tal liberdade, como
liberdade, não seja mais livre. Quer, ao mesmo tempo, que a liberdade do Outro
determine-se a si própria a converter-se em amor – e isso, não apenas no começo
do romance, mas a cada instante – e que esta liberdade seja subjugada por
ela mesmo, reverta-se sobre si própria, como na loucura, como no sonho,
para querer seu cativeiro. E este cativeiro deve ser abdicação livre e, ao
mesmo tempo, acorrentada em nossas mãos. No amor, não é o determinismo
passional que desejamos no outro, nem uma liberdade fora de alcance, mas sim
uma liberdade que desempenhe o papel de determinismo passional e
fique aprisionada nesse papel. E, para si mesmo, o amante não exige ser a causa,
mas sim a ocasião única e privilegiada desta modificação radical da
liberdade. Com efeito, não poderia querer ser a causa sem fazer submergir de
imediato o amado no meio do mundo como um utensílio que pode ser transcendido.
Não é essa a essência do amor. No Amor, ao contrário, o amante quer ser “o
mundo inteiro” para o amado: significa que se coloca do lado do mundo; é ele
que resume e simboliza o mundo, é um isto que encerra todos os outros “istos”;
é e aceita ser objeto. Mas, por outro lado, quer ser o objeto no qual a
liberdade do outro aceita perder-se, o objeto no qual o outro aceita encontrar,
como sua segunda facticidade, o seu ser e sua razão de ser; quer ser o
objeto-limite da transcendência, aquele rumo ao qual a transcendência do Outro
transcende todos os outros objetos, mas ao qual não pode de modo algum
transcender. E, por toda parte, o amante deseja o círculo da liberdade do
Outro; ou seja, deseja que, a cada instante, no ato pelo qual a liberdade do
Outro aceita este limite à sua transcendência, tal aceitação esteja já presente
como móvel da aceitação considerada. É a título de meta já escolhida que o
amante quer ser escolhido como meta. Isso permite-nos captar a fundo o que o
amante exige do amado: não quer agir sobre a liberdade do Outro, mas
existir a priori como limite objetivo desta liberdade, ou seja, surgir
ao mesmo tempo com ela e no seu próprio surgimento como o limite que ela deve
aceitar para ser livre. Por esse fato, o que o amante exige é que a liberdade
do outro seja enviscada e empastada por si própria: este limite de estrutura,
com efeito, é algo dado, e a única aparição do dado como limite da
liberdade significa que a liberdade faz-se existir a si mesmo no
interior do dado como sendo sua própria proibição de transcendê-lo. E esta
proibição é tida pelo amante ao mesmo tempo como vivida, ou seja, como
padecida – em uma palavra, como facticidade – e como livremente consentida.
Deve poder ser livremente consentida porque deve identificar-se com o
surgimento de uma liberdade que elege-se como liberdade. Mas deve ser somente
vivida, porque deve ser uma impossibilidade sempre presente, uma facticidade
que reflui sobre a liberdade do Outro até seu bojo; e isso se exprime
psicologicamente pela exigência de que a livre decisão de me amar, antes tomada
pelo amado, deslize como móvel enfeitiçado no interior de seu livre
compromisso presente.
Captamos agora o sentido desta exigência:
esta facticidade que deve ser limite de fato para o Outro, em minha exigência
de ser amado, e que deve terminar sendo sua própria facticidade, é a minha
facticidade. Na medida em que sou o objeto que o Outro faz vir ao ser é que
devo ser o limite inerente à sua própria transcendência; de modo que o Outro,
surgindo ao ser, faz-me ser como o inexcedível e o absoluto, não enquanto
Para-si nadificador, mas como ser-Para-outro-no-meio-do-mundo. Assim, querer
ser amado é impregnar o Outro com sua própria facticidade, é querer
constrangê-lo a recriar-nos perpetuamente como condição de uma liberdade que se
submete e se compromete; é querer, ao mesmo tempo, que a liberdade fundamente o
fato e que o fato tenha preeminência sobre a liberdade. Se esse resultado
pudesse ser alcançado, resultaria, em primeiro lugar, que eu estaria em
segurança na consciência do Outro. Primeiro, porque o motivo de minha
inquietação e minha vergonha é o fato de que me apreendo e me experimento em
meu ser-Para-outro como aquele que pode sempre ser transcendido rumo a outra
coisa, aquele que é puro objeto de juízo de valor, puro meio, pura ferramenta.
Minha inquietação provém do fato de que assumo necessária e livremente este ser
que um outro me faz ser em absoluta liberdade: “Sabe Deus o que sou para ele!
Sabe Deus o que pensa de mim!” Isso significa: “Sabe Deus como o outro me faz
ser”, e sou impregnado por este ser que temo encontrar um dia em uma curva de
um caminho, que me é tão estranho e, todavia, é o meu ser, sabendo
também que, apesar de meus esforços, não me encontrarei com ele jamais. Mas, se
o Outro me ama, torno-me o inexcedível, o que significa que devo ser a
meta absoluta; nesse sentido, estou a salvo da utensilidade; minha
existência no meio do mundo converte-se no exato correlato de minha
transcendência-para-mim, posto que minha independência é absolutamente
salvaguardada. O objeto que o outro deve me fazer ser é um
objeto-transcendência, um centro de referência absoluto, em torno do qual se
ordenam, como puros meios, todas as coisas-utensílios do mundo. Ao mesmo
tempo, como limite absoluto da liberdade, ou seja, da fonte absoluta de todos
os valores, estou protegido contra qualquer eventual desvalorização, sou o valor
absoluto. E, na medida em que assumo meu ser-Para-outro, me assumo como valor.
Assim, querer ser amado é querer situar-se para-além de todo sistema de
valores, colocado pelo outro como condição de toda valorização e como
fundamento objetivo de todos os valores. Tal exigência constitui o tema usual
das conversações entre amantes: ou bem, como em La Porte Étroite*, a
mulher que quer ser amada identifica-se com uma moral ascética de
transcendência de si e almeja encarnar o limite ideal desse transcender,
ou bem, como é mais comum, o amante exige que o amado, em seu favor, sacrifique
em seus atos a moral tradicional, ansioso por saber se o amado trairia seus
amigos por ele, “roubaria por ele”, “mataria por ele” etc. Desse ponto de
vista, meu ser deve escapar ao olhar do amado; ou melhor, deve ser
objeto de um olhar de outra estrutura: não devo mais ser visto sobre fundo de
mundo como um “isto” entre outros istos, mas o mundo deve revelar-se a
partir de mim. Com efeito, na medida que o surgimento da liberdade faz com que
um mundo exista, devo ser, como condição-limite desse surgimento, a própria
condição do surgimento de um mundo. Devo ser aquele cuja função é fazer existir
as árvores e a água, as cidades e os campos, os outros homens, para dá-los em
seguida ao outro, que os dispõe em mundo, da mesma forma como a mãe, nas
sociedades matrilineares, recebe os títulos nominativos e o nome de família,
não para guardá-los, mas para transmiti-los imediatamente aos filhos. Em certo
sentido, se devo ser amado, sou o objeto por intermédio do qual o mundo
existirá para o outro; e, em outro sentido, sou o mundo. Em vez de ser um “isto”
destacando-se sobre fundo de mundo, sou o objeto-fundo sobre o qual o mundo se
destaca. Assim, fico tranquilo: o olhar do outro já não mais me repassa de
finitude; já não mais coagula meu ser como aquilo que sou, simplesmente;
não poderei ser visto como feio, pequeno, covarde, posto que tais
caracteres representam necessariamente uma limitação de fato de meu ser e uma
apreensão de minha finitude como finitude. Decerto, meus possíveis permanecem
como possibilidades transcendidas, mortipossibilidades; mas tenho todos os
possíveis; sou todas as mortipossibilidades do mundo; com isso, deixo de ser o
ser que se compreende a partir de outros seres ou a partir de seus atos; mas,
na intuição amorosa que exijo, devo ser dado como uma totalidade absoluta a
partir da qual todos os seres e todos os seus atos próprios devem ser
compreendidos. Poder-se-ia dizer, deformando um pouco uma célebre fórmula
estoica, que “o amado pode espernear o quanto quiser”. O ideal do sábio e o ideal
daquele que quer ser amado, com efeito, coincidem no fato de que um e outro
querem ser totalidade-objeto acessível a uma intuição global que irá captar as
ações no mundo do amado e do sábio como estruturas parciais interpretadas a
partir da totalidade. E, assim como a sabedoria propõe-se a ser como um estado
que se alcançará por uma metamorfose absoluta, também a liberdade do outro deve
metamorfosear-se absolutamente para dar-me acesso ao estado de amado.
Esta descrição poderia enquadrar-se bem, até
aqui, na famosa descrição hegeliana das relações entre o amo e o escravo. O que
o amo hegeliano é para o escravo, o amante quer ser para o amado. Mas a
analogia termina aqui, porque o amo, em Hegel, só exige lateralmente, e, por
assim dizer, implicitamente, a liberdade do escravo, enquanto que o amante
exige antes de tudo a liberdade do amado. Nesse sentido, se devo ser
amado pelo outro, devo ser livremente escolhido como amado. Sabemos que, na
terminologia corrente do amor, o amado é designado com o termo o eleito. Mas
essa escolha não deve ser relativa e contingente: o amante exaspera-se e
julga-se desvalorizado quando pensa que o amante o escolheu entre outros. “Então,
se eu não tivesse vindo a esta cidade, se não houvesse frequentado a casa de
fulano, você não me teria conhecido, não teria me amado?” Tal pensamento aflige
o amante: seu amor torna-se em amor entre outros, limitado pela facticidade do
amado e por sua própria facticidade, ao mesmo tempo que pela contingência dos
encontros; torna-se amor no mundo, objeto que pressupõe o mundo e pode,
por sua vez, existir para outros. O que o amante exige é por ele traduzido com
palavras desajeitadas e contaminadas de “modos de coisa” (choisismes”); diz
ele: “Fomos feitos um para o outro”, ou usa ainda a expressão “almas gêmeas”.
Mas é preciso interpretar assim: o amante bem sabe que o “serem feitos um para
o outro” refere-se a uma escolha originária. Essa escolha pode ser a de Deus,
enquanto ser que é escolha absoluta; mas Deus só representa aqui a passagem ao
extremo limite dessa exigência do absoluto. Na verdade, o que o amante exige é
que o amado dele faça a escolha absoluta. Significa que o ser-no-mundo do amado
deve ser um ser-amante. Esse surgimento do amado deve ser livre escolha do
amante. E, como o outro é fundamento de meu ser-objeto, dele exijo que o livre
surgimento de seu ser tenha por fim único e absoluto a sua escolha de mim, ou
seja, que tenha escolhido ser para fundamentar minha objetividade e minha
facticidade. Assim, minha facticidade é “salva”. Deixa de ser esse dado
impensável e insuperável do qual fujo: é aquilo para o qual o outro faz-se
existir livremente; é como uma meta que o outro dá a si mesmo. Eu impregnei-o
de minha facticidade, mas, como é enquanto liberdade que ele foi impregnado,
ele me devolve essa facticidade como facticidade recuperada e consentida: o
outro é o fundamento dessa facticidade para que ela constitua sua meta. A
partir deste amor, portanto, capto de outro modo minha alienação e minha
facticidade própria. Esta é – enquanto Para-outro – não mais um fato, mas um
direito. Minha existência é por ser reclamada. Esta existência, enquanto
a assumo, converte-se em puro benefício para mim. Sou porque me prodigalizo.
Essas amadas veias em minhas mãos existem beneficamente. Que bom é ter olhos,
cabelos, sobrancelhas, e esbanjá-los incansavelmente em um transbordamento de
generosidade a esse desejo infatigável que o outro faz-se livremente ser. Em
vez de nos sentirmos, como antes de sermos amados, apreensivos por esta
protuberância injustificada e injustificável que era a nossa existência, em vez
de sentirmo-nos “supérfluos”, agora sentimos que esta existência é recuperada e
querida em seus menores detalhes por uma liberdade absoluta, a qual nossa
existência ao mesmo tempo condiciona e nós mesmos queremos com nossa própria
liberdade. Este, o fundo da alegria do amor, quando existe: sentimos que nossa
existência é justificada.
Ao mesmo tempo, se o amado pode nos amar, está
prestes a ser assimilado por nossa liberdade: porque esse ser-amado que
cobiçamos já é a prova ontológica aplicada a nosso ser-Para-outro. Nossa
essência objetiva implica a existência do outro, e, reciprocamente, é a
liberdade do outro que fundamenta nossa essência. Se pudéssemos interiorizar
todo o sistema, seríamos nosso próprio fundamento.
* Romance de André Gide (1909). Em português:
A Porta Estreita (Rio, Nova Fronteira, 1984) (N. do T.).
“Um louco não faz jamais senão realizar à sua
maneira a condição humana.”
“Todavia, o Outro enquanto liberdade e minha
objetividade enquanto eu-alienado estão aí, despercebidos, não
tematizados, mas dados em minha própria compreensão do mundo e de meu ser no
mundo. (...) Daí um sentimento perpétuo de falta e mal-estar. Isso porque meu
projeto fundamental com relação ao Outro – qualquer que seja a atitude que
adote – é duplo: por um lado, trata-se de me proteger contra o perigo que me
faz correr meu ser-fora-na-liberdade-do-Outro, e, por outro lado, de utilizar o
Outro para totalizar finalmente a totalidade-destotalizada que sou, de modo a
fechar o círculo aberto e fazer com que eu seja, por fim, fundamento de mim
mesmo. Mas, por um lado, a desaparição do Outro enquanto olhar me arremessa
novamente em minha injustificável subjetividade e reduz meu ser a esta perpétua
perseguição-perseguida rumo a um Em-si-Para-si inapreensível; sem o outro,
capto em plenitude e desnudez esta terrível necessidade de ser livre que
constitui minha sina, ou seja, o fato de que não posso confiar a ninguém, salvo
a mim mesmo, o cuidado de me fazer ser, ainda que não tenha escolhido ser e
haja nascido. Mas, por outro lado, embora a cegueira com relação
ao Outro me livre em aparência do temor de estar em perigo na liberdade do
Outro, ela encerra, apesar de tudo, uma compreensão implícita desta liberdade.
Coloca-me, pois, no último grau de objetividade, no momento mesmo em que posso
me crer uma subjetividade absoluta e única, posto que sou visto sem sequer
poder experimentar o fato de que sou visto e sem poder me defender, por meio
deste experimentar, contra meu “ser-visto”. Sou possuído sem poder voltar-me
contra aquele que me possui. Na experiência direta do Outro enquanto olhar,
defendo-me experimentando o Outro, e resta-me a possibilidade de transformar o
Outro em objeto. Mas, se o Outro é objeto para mim enquanto me olha, então
estou em perigo sem saber. Assim, minha cegueira é inquietação, por ser
acompanhada da consciência de um “olhar errante” e inapreensível que ameaça
alienar-me sem que eu o saiba. Esse mal-estar deve ocasionar uma nova tentativa
de apropriar-me da liberdade do Outro. Mas isso significa que irei voltar-me contra
o Objeto-Outro que me toca de leve e tentar utilizá-lo como instrumento de modo
a alcançar sua liberdade. Só que, precisamente porque me dirijo ao objeto “Outro”,
não posso pedir-lhe que preste contas de sua transcendência, e, estando eu no
plano da objetivação do Outro, sequer posso conceber o que quero me apropriar.
Assim, estou em uma atitude exasperante e contraditória com relação a este
objeto em consideração: não apenas não posso obter dele o que quero, mas, além
disso, esta investigação provoca um desaparecimento do próprio saber
concernente ao que quero; comprometo-me em uma busca desesperada da liberdade
do Outro e, no meio do caminho, encontro-me comprometido em uma busca
que perdeu seu sentido; todos os meus esforços para devolver à busca o seu
sentido só têm por efeito fazer com que tal sentido se perca mais ainda e
provocar minha perplexidade e meu mal-estar, exatamente como quando tento
reaver a lembrança de um sonho e essa lembrança se liquefaz entre meus dedos,
deixando uma vaga e exasperante impressão de conhecimento total e sem objeto;
ou exatamente como quando tento explicar o conteúdo de uma falsa reminiscência
e a própria explicação faz com que ela se dissolva em translucidez.”
“A carícia de modo algum difere do desejo:
acariciar com os olhos e desejar são a mesma coisa: o desejo se
expressa pela carícia assim como o pensamento pela linguagem. E,
precisamente, a carícia revela a carne do Outro enquanto carne, tanto para mim
como para o outro. Mas revela esta carne de maneira muito particular:
segurar o Outro revela a este sua inércia e sua passividade de
transcendência-transcendida; mas isso não é acariciá-lo. Na carícia, não é meu
corpo enquanto forma sintética em ação que acaricia o Outro, mas é meu corpo de
carne que faz nascer a carne do outro. A carícia destina-se a fazer nascer por
meio do prazer o corpo do Outro, para o Outro e para mim, como passividade apalpada,
na medida que meu corpo faz-se carne para apalpar o corpo do Outro com sua
própria passividade, ou seja, acariciando-se nele, mais do que o acariciando.
Daí por que os gestos amorosos têm uma languidez que quase dir-se-ia estudada:
não se trata tanto de possuir uma parte do corpo do outro quanto de levar
o próprio corpo contra o corpo do outro. Nem de empurrar ou tocar, no
sentido ativo, mas de pôr contra. Parece que levo o próprio braço
como objeto inanimado e o ponho contra o flanco da mulher desejada; que
meus dedos, que faço passear pelo seu braço, são inertes na extremidade
de minha mão. Assim, a revelação da carne do outro se faz por minha própria
carne; no desejo e na carícia que o exprime, encarno-me para realizar a
encarnação do outro; e a carícia, realizando a encarnação do Outro,
revela-me minha própria encarnação; ou seja, faço-me carne para induzir o Outro
a realizar Para-si e para mim sua própria carne, e minhas
carícias fazem minha carne nascer para mim, na medida que é~ para o outro, carne
que o faz nascer como carne; faço-o saborear minha carne por
meio de sua carne, de modo a obrigá-lo a sentir-se carne. De sorte que a posse
aparece verdadeiramente como dupla encarnação recíproca. Assim, no
desejo, há uma tentativa de encarnação da consciência (aquilo que anteriormente
chamamos de empastamento da consciência, consciência turva etc.) a fim de
realizar a encarnação do Outro.”
“É desta situação singular que parece ter
origem a noção de culpabilidade e pecado. É diante do outro que sou culpado.
Culpado, em primeiro lugar, quando, sob seu olhar, experimento minha
alienação e minha nudez como um decaimento que devo assumir; este, o sentido do
famoso “eles descobriram que estavam nus” da Escritura. Culpado, além disso,
quando, por minha vez, olho o outro, porque, pelo próprio fato de minha
afirmação de mim mesmo, constituo-o como objeto e instrumento, e faço com que
sobrevenha-lhe esta alienação que deve assumir. Assim, o pecado original é meu
surgimento em um mundo onde há o outro, e, quaisquer que sejam minhas relações
ulteriores com o outro, nada mais serão que variações sobre o tema original de
minha culpabilidade.”
“Mas o ódio, por sua vez, é um fracasso. Seu
projeto inicial, com efeito, consiste em suprimir as outras consciências.
Porém, ainda que o conseguisse, ou seja, ainda que pudesse abolir o outro no
momento presente, não poderia fazer com que o outro não houvesse sido. Melhor
ainda: a abolição do outro, por ser vivida como triunfo da ira, pressupõe o
reconhecimento explícito de que o outro existiu. Sendo assim, meu
ser-Para-outro, deslizando ao passado, converte-se em uma dimensão irremediável
de mim mesmo. É o que tenho-de-ser enquanto o havendo-sido. Portanto, não
poderia livrar-me dele. Dir-se-á que, pelo menos, dele escapo pelo presente e
dele escaparei pelo futuro: mas não. Aquele que, uma vez, foi Para-outro está
contaminado em seu ser pelo resto de seus dias, mesmo que o outro tenha sido
inteiramente suprimido: não deixará de captar sua dimensão de ser-Para-outro
como uma possibilidade permanente de seu ser. Não poderá reconquistar aquilo
que alienou; inclusive, perdeu toda esperança de agir sobre esta alienação e
volvê-la a seu favor, já que o outro, destruído, levou para o túmulo a chave
desta alienação. Aquilo que fui para o outro fica estabelecido pela morte do
outro, e o serei irremediavelmente no passado; também o serei, e da mesma
maneira, no presente, caso persevere na atitude, nos projetos e no modo de vida
que foram julgados pelo outro. A morte do outro constitui-me como objeto
irremediável, exatamente como minha própria morte. Assim, em seu próprio
surgimento, o triunfo da ira se transforma em fracasso. O ódio não permite sair
do círculo vicioso. Representa simplesmente a última tentativa, a tentativa do
desespero. Após o fracasso desta tentativa, só resta ao Para-si retornar ao
círculo e deixar-se oscilar indefinidamente entre uma e outra das duas atitudes
fundamentais.”
“É estranho que se tenha podido argumentar
interminavelmente sobre o determinismo e o livre-arbítrio, citando exemplos a
favor de uma ou outra tese, sem tentar previamente explicitar as estruturas
contidas na própria ideia de ação. O conceito de ato, com efeito, contém
numerosas noções subordinadas que devemos organizar e hierarquizar: agir é
modificar a figura do mundo, é dispor de meios com vistas a um fim, é
produzir um complexo instrumental e organizado de tal ordem que, por uma série
de encadeamentos e conexões, a modificação efetuada em um dos elos acarrete
modificações em toda a série e, para finalizar, produza um resultado
previsto. Mas ainda não é isso o que nos importa. Com efeito, convém observar,
antes de tudo, que uma ação é por princípio intencional. O fumante
desastrado que, por negligência, fez explodir uma fábrica de pólvora não
agiu. Ao contrário, o operário que, encarregado de dinamitar uma
pedreira, obedeceu às ordens dadas, agiu quando provocou a explosão prevista:
sabia, com efeito, o que fazia, ou, se preferirmos, realizava intencionalmente
um projeto consciente. Não significa, por certo, que devam ser previstas todas
as consequências de um ato: o imperador Constantino, ao estabelecer-se em
Bizâncio, não previa que iria criar uma cidade de cultura e língua gregas, cuja
aparição provocaria ulteriormente um cisma na Igreja cristã e contribuiria para
debilitar o Império Romano. Contudo, executou um ato na medida em que realizou
seu projeto de criar uma nova residência no Oriente para os imperadores. A
adequação do resultado à intenção é aqui suficiente para que possamos
falar de ação. Mas, se assim há de ser, constatamos que a ação implica
necessariamente como sua condição o reconhecimento de um “desideratum”, ou seja,
de uma falta objetiva, ou uma negatividade. A intenção de suscitar uma
rival para Roma só pode advir a Constantino pela captação de uma falta objetiva:
Roma carece de um contrapeso; a esta cidade profundamente pagã era preciso opor
uma cidade cristã que, no momento, fazia falta. Criar Constantinopla só
pode ser compreendido como ato se, primeiramente, a concepção de uma cidade
nova precedeu a própria ação, ou, ao menos, esta concepção tenha servido de
tema organizador a todos os tramites ulteriores. Mas esta concepção não poderia
ser a pura representação da cidade como possível, e sim a apreensão da
mesma em sua característica essencial, que é a de ser um possível desejável
e não realizado. Significa que, desde a concepção do ato, a consciência
pode se retirar do mundo pleno do qual é consciência e abandonar o terreno do ser
para abordar francamente o do não-ser. Enquanto algo considerado exclusivamente
em seu ser, a consciência é remetida perpetuamente do ser ao ser e não poderia
encontrar no ser um motivo para descobrir o não-ser. O sistema imperial, na
medida que sua capital é Roma,
funciona positivamente e de certa maneira real que transparece facilmente. Dir-se-á
que os impostos são mal cobrados, que Roma não está ao abrigo de invasores, que
não tem a situação geográfica conveniente a capital de um império mediterrâneo
ameaçado pelos bárbaros, que a corrupção dos costumes dificulta a difusão da
religião cristã? Como não ver que todas essas considerações são negativas, ou
seja, visam aquele que não é, e não aquilo que é? Dizer que 60% dos impostos previstos
foram arrecadados pode passar, a rigor, por uma apreciação positiva da situação
tal qual é. Dizer que são mal arrecadados é considerar a situação
através de uma situação posta como fim absoluto e que, precisamente, não é. Dizer
que a corrupção dos costumes entrava a difusão do cristianismo não é considerar
esta difusão pelo que é, ou seja, uma propagação em ritmo que os informes dos
eclesiásticos podem nos deixar em condições de determinar: é colocá-la em si
mesmo como insuficiente, ou seja, padecendo de um nada secreto. Mas tal difusão
só aparece desse modo, justamente, se a transcendermos rumo a uma
situação-limite colocada a priori como valor – por exemplo, rumo a certo
ritmo das conversões religiosas, a certa moralidade de massa; e esta situação-limite
não pode ser concebida a partir da simples consideração do estado real das
coisas, pois, assim como a jovem mais bela do mundo não pode dar mais do
que tem*, também a situação mais miserável só pode ser designada por si
mesmo como é, sem qualquer referência a um nada ideal. Enquanto imerso
na situação histórica, o homem sequer chega a conceber as deficiências e faltas
de uma organização política ou econômica determinada, não porque “está
acostumado”, como tolamente se diz, mas porque apreende-a em sua plenitude de
ser e nem mesmo é capaz de imaginar que possa ser de outro modo. Pois é preciso
inverter aqui a opinião geral e convir que não é a rigidez de uma situação ou
os sofrimentos que ela impõe que constituem motivos para que se conceba outro estado
de coisas, no qual tudo sairá melhor para todos; pelo contrário, é a partir do
dia em que se pode conceber outro estado de coisas que uma luz nova ilumina
nossas penúrias e sofrimentos e decidimos que são insuportáveis. O
proletário de 1830 é capaz de rebelar-se se lhe baixam os salários, pois
concebe facilmente uma situação em que seu miserável nível de vida seja menos
baixo do que aquele que querem lhe impor. Mas ele não retrata seus sofrimentos
como intoleráveis: acomoda-se a eles, não por resignação, mas por lhe faltarem
cultura e reflexão necessárias a fazê-lo conceber um estado social em que tais
sofrimentos não existam. Consequentemente, não age. Apoderando-se de
Lyon após uma rebelião, os proletários de Croix-Rousse não sabem o que fazer de
sua vitória; voltam às suas casas, desorientados, e o exército não tem
dificuldades em surpreendê-los. Seus infortúnios não lhes parecem “habituais”,
mas antes naturais; são, eis tudo; constituem a condição do proletário;
não são postos em relevo, não são vistos com clareza, e, por conseguinte, são
integrados pelo proletário ao seu ser; ele sofre, sem levar seu sofrimento em
consideração ou conferir-lhe valor: sofrer e ser são a seu ver a mesma
coisa; seu sofrimento é o puro teor afetivo de sua consciência não-posicional,
mas ele não o contempla. Portanto, esse sofrimento não poderia ser por
si mesmo um móbil para seus atos. Exatamente o contrário: é ao fazer o
projeto de modificá-lo que o sofrimento parecer-lhe-á intolerável. Significa
que deverá ter tomado distância com relação a ele e operado uma dupla
nadificação: por um lado, com efeito, será preciso que posicione um estado de
coisas ideal como puro nada presente; por outro, que posicione a
situação atual como nada em relação a este estado de coisas. Terá de conceber
uma felicidade vinculada à sua classe como puro possível – ou seja,
presentemente como certo nada; de outra parte, retornará sobre a situação
presente para iluminá-la à luz desse nada e para nadificá-la, por sua vez,
declarando: “Não sou feliz”. Seguem-se duas importantes consequências: 1º)
Nenhum estado de fato, qualquer que seja (estrutura política ou
econômica da sociedade, ‘‘estado” psicológico, etc.) é capaz de motivar por si
mesmo qualquer ato. Pois um ato é uma projeção do Para-si rumo a algo que não
é, e aquilo que é não pode absolutamente, por si mesmo, determinar o que não é.
2º) Nenhum estado de fato pode determinar a consciência a captá-lo como
negatividade ou como falta. Melhor ainda: nenhum estado de fato pode determinar
a consciência a defini-lo e circunscrevê-lo, pois, como vimos, continua sendo
profundamente verdadeira a fórmula de Spinoza: “Omnis determinatio est negatio”.
Bem, toda ação tem por condição expressa não somente a descoberta de um estado
de coisas como “falta de... “, ou seja, como negatividade, mas também – e
previamente – a constituição em sistema isolado do estado de coisas em
consideração. Não há estado de fato – satisfatório ou não – salvo por
meio da potência nadificadora do Para-si. Mas esta potência de nadificação não
pode limitar-se a realizar um simples recuo com relação ao mundo. Com
efeito, na medida em que a consciência está “investida” pelo ser, na medida em
que simplesmente padece daquilo que é, deve ser englobada no ser: é a forma
organizada proletário-achando-seu-sofrimento-natural que deve ser superada e
negada para poder tornar-se objeto de uma contemplação reveladora. Significa
evidentemente que é por puro desprendimento de si e do mundo que o proletário
pode posicionar seu sofrimento como insuportável e, por conseguinte, fazer
dele o móbil de sua ação revolucionária. Portanto, significa para a
consciência a possibilidade permanente de efetuar uma ruptura com seu próprio
passado, de desprender-se dele para poder considerá-lo à luz de um não-ser e
conferir-lhe a significação que tem a partir do projeto de um sentido
que não tem. Em caso algum e de nenhuma maneira o passado, por si mesmo,
pode produzir um ato, ou seja, o posicionamento de um fim que sobre ele
volta-se para iluminá-lo. Foi o que entreviu Hegel ao escrever que “o espírito
é negativo”, embora não pareça ter-se lembrado disso ao expor sua própria
teoria da ação e da liberdade. Com efeito, uma vez que atribuímos à consciência
esse poder negativo com relação ao mundo e a si mesmo, uma vez que a
nadificação faz parte integrante do posicionamento de um fim, é preciso
reconhecer que a condição indispensável e fundamental de toda ação é a
liberdade do ser atuante.”
* Provérbio francês (N. do T.).
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