domingo, 3 de junho de 2018

O ser e o nada: Ensaio de ontologia fenomenológica (Parte III) – Jean-Paul Sartre

Editora: Vozes
ISBN: 978-85-3261-762-0
Tradução e notas: Paulo Perdigão
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 784
Sinopse: Ver Parte I



“Devemos tomar cuidado, todavia, quanto ao fato de que o Outro só é objeto para mim na medida que eu posso ser objeto para ele. O outro irá objetivar-se, portanto, como parcela não individualizada do “se” impessoal ou como “ausente”, puramente representado por suas cartas ou notícias, ou como um este presente de fato, conforme eu mesmo tenha sido para ele elemento do “se”, um “querido ausente” ou um este concreto. O que decide, em cada caso, o tipo de objetivação do outro e de suas qualidades é, ao mesmo tempo, minha situação no mundo e a situação dele, ou seja, os complexos-utensílios que cada um de nós organizou e os diferentes istos que aparecem a um e a outro sobre fundo de mundo. Tudo isso nos reconduz naturalmente à facticidade. É minha facticidade e a facticidade do outro que decidem se o Outro pode me ver e se eu posso ver este Outro em particular. Mas o problema da facticidade ultrapassa os limites desta exposição geral.
Assim, experimento a presença do Outro como quase-totalidade dos sujeitos em meu ser-objeto-para-Outro, e, sobre o fundo desta totalidade, posso experimentar mais particularmente a presença de um sujeito concreto, sem conseguir, todavia, especificá-la como sendo a de tal ou qual Outro. Minha reação de defesa à minha objetidade irá fazer com que o Outro compareça frente a mim a título de tal ou qual objeto. A esse título, ele me aparecerá como um “este”, ou seja, sua quasetotalidade subjetiva se degrada, tornando-se totalidade-objeto co-extensiva à totalidade do Mundo. Esta totalidade revela-se a mim sem referência à subjetividade do Outro: a relação entre o Outro-sujeito e o Outro-objeto de modo algum se compara à que se costuma estabelecer, por exemplo, entre o objeto da física e o objeto da percepção. O Outro-objeto revela-se a mim pelo que é, e não remete senão a si mesmo. Simplesmente, o Outro-objeto é tal como me aparece, no plano da objetidade em geral e em seu ser-objeto; sequer é concebível que eu possa referir um conhecimento qualquer que tenha dele à sua subjetividade, tal como a experimento por ocasião do olhar. O Outro-objeto é somente objeto, mas a minha apreensão dele inclui a compreensão de que poderei sempre e por princípio fazer dele outra experiência, colocando-me em outro plano de ser; esta compreensão é constituída, por um lado, pelo saber de minha experiência passada, que é, além disso, como vimos, o puro passado (fora de alcance e que tenho-de-ser) desta experiência, e, por outro lado, por uma apreensão implícita da dialética do outro: o outro é, no presente, aquilo que me faço não ser. Mas, embora eu possa neste momento livrar-me dele e escapar-lhe, permanece à sua volta a possibilidade permanente de fazer-se outro. Contudo, tal possibilidade, pressentida em uma espécie de embaraço e aflição que constitui a especificidade de minha atitude frente ao outro-objeto, é, propriamente falando, inconcebível: primeiro, porque não posso conceber possibilidade que não seja minha possibilidade ou apreender transcendência a não ser transcendendo-a, ou seja, captando-a como transcendência-transcendida; segundo, porque esta possibilidade pressentida não é a possibilidade do outro-objeto: as possibilidades do outro-objeto são mortipossibilidades que remetem a outros aspectos objetivos do outro; a possibilidade própria de captar-me como objeto, sendo possibilidade do outro-sujeito, não é para mim, presentemente, senão possibilidade de ninguém: é possibilidade absoluta – que só tem sua fonte em si mesmo – do surgimento, sobre fundo de nadificação total do outro-objeto, de um outro-sujeito que irei experimentar através de minha objetividade-para-ele. Assim, o outro-objeto é um instrumento explosivo que manejo com cuidado, porque antevejo em torno dele a possibilidade permanente de que se o façam explodir e, com esta explosão, eu venha a experimentar de súbito a fuga do mundo para fora de mim e a alienação de meu ser. Meu cuidado constante é, portanto, conter o outro em sua objetividade, e minhas relações com o outro-objeto são feitas essencialmente de ardis destinados a fazê-lo permanecer como objeto. Mas basta um olhar do outro para que todos esses artifícios desabem e eu experimente de novo a transfiguração do outro. Assim, sou remetido da transfiguração à degradação e da degradação à transfiguração, sem poder jamais, seja formar uma visão de conjunto desses dois modos de ser do outro – porque cada um deles basta a si mesmo e só remete a si mesmo –, seja ater-me firmemente a um deles – porque cada um tem instabilidade própria e desmorona-se para que o outro surja de suas ruínas: só os mortos podem ser perpetuamente objetos sem converter-se jamais em sujeitos – porque morrer não é perder a própria objetividade no meio do mundo: todos os mortos estão aí, no mundo à nossa volta; morrer é perder toda possibilidade de revelar-se como sujeito a um outro.”


“Significará que esse caráter antinômico da totalidade é irredutível? Ou, de um ponto de vista superior, podemos fazê-lo desaparecer? Deveríamos afirmar que o espírito é o ser que é e não é, assim como tínhamos afirmado que o Para-si é o que não é e não é o que é? A questão carece de sentido. Pressupõe, com efeito, que temos a possibilidade de assumir um ponto de vista sobre a totalidade, ou seja, de considerá-la vista do exterior. Mas é impossível, porque, exatamente, existo como eu mesmo sobre o fundamento desta totalidade e na medida que estou comprometido nela. Nenhuma consciência, ainda que de Deus, poderia “ver o reverso”, ou seja, captar a totalidade enquanto tal. Porque, se Deus é consciência, está integrado na totalidade. E se, por sua natureza, é um ser para-além da consciência, ou seja, um Em-si que seria fundamento de si mesmo, a totalidade só pode aparecer-lhe ou como objeto – e, neste caso, carece da desagregação interna da totalidade como esforço subjetivo de recuperação de si ou como sujeito – caso em que, não sendo esse sujeito, só pode experimentá-lo sem conhecê-lo. Assim, não se pode conceber qualquer ponto de vista sobre a totalidade: a totalidade não tem ‘‘lado de fora”, e a própria questão sobre o sentido de seu “reverso” é desprovida de significação. Não podemos ir mais longe. Chegamos ao fim desta exposição. Constatamos que a existência do outro é experimentada com evidência no e pelo fato de minha objetividade. E vimos também que minha reação à minha própria alienação para outro traduz-se pela apreensão do outro como objeto. Em suma, o outro pode existir para nós de duas formas: se o experimento com evidência, não posso conhecê-lo; se o conheço, se atuo sobre ele, só alcanço seu ser-objeto e sua existência provável no meio do mundo. Nenhuma síntese dessas duas formas é possível.”


“O ponto de vista do conhecimento puro é contraditório: só existe o ponto de vista do conhecimento comprometido. Equivale a dizer que conhecimento e ação não passam de duas faces abstratas de uma relação original e concreta. O espaço real do mundo é o espaço que Lewin denomina “hodológico”. Um conhecimento puro, com efeito, seria conhecimento sem ponto de vista, logo, conhecimento do mundo situado, por princípio, fora do mundo. Mas isso não faz sentido: o ser cognoscitivo seria somente conhecimento, posto que iria definir-se por seu objeto e seu objeto desvanecer-se-ia na indistinção total de relações recíprocas. Assim, o conhecimento só pode ser surgimento comprometido no determinado ponto de vista que somos. Ser, para a realidade humana, é ser-aí; ou seja, “aí, sentado na cadeira”, “aí, junto a esta mesa”, “aí, no alto desta montanha, com tais dimensões, tal direção etc.” É uma necessidade ontológica.”


“Assim, a condição para que eu projete a identificação do outro comigo é a de que eu persista em minha negação de ser o outro. Por fim, esse projeto de unificação é fonte de conflito, posto que, enquanto experimento-me como objeto para o outro e projeto assimilar o outro na e por esta experiência, o outro apreende-me como objeto no meio do mundo e não projeta de modo algum identificar-me com ele. Portanto, seria necessário – já que o ser-Para-outro comporta uma dupla negação interna – agir sobre a negação interna pela qual o outro transcende minha transcendência e faz-me existir Para-outro, ou seja, agir sobre a liberdade do outro.
Este ideal irrealizável, enquanto impregna meu projeto de mim mesmo em presença do outro, não é assimilável ao amor, na medida que o amor é um empreendimento, ou seja, um conjunto orgânico de projetos rumo a minhas possibilidades próprias. Mas é o ideal do amor, seu motivo e sua finalidade, seu valor próprio. O amor, como relação primitiva com o outro, é o conjunto dos projetos pelos quais viso realizar este valor.
Esses projetos colocam-me em conexão direta com a liberdade do outro. É nesse sentido que o amor é conflito. Sublinhamos, com efeito, que a liberdade do outro é fundamento de meu ser. Mas, precisamente porque existo pela liberdade do outro, não tenho segurança alguma, estou em perigo nesta liberdade; ela modela meu ser e me faz ser, confere-me valores e os suprime, e meu ser dela recebe um perpétuo escapar passivo de si mesmo. Irresponsável e fora de alcance, esta liberdade proteiforme na qual me comprometi pode, por sua vez, comprometer-me em mil maneiras diferentes de ser. Meu projeto de recuperar meu ser só pode realizar-se caso me apodere desta liberdade e a reduza a ser liberdade submetida à minha. Simultaneamente, é a única maneira pela qual posso agir sobre a livre negação de interioridade por meio de que o Outro constitui-me em Outro, ou seja, a única maneira pela qual posso preparar os caminhos de uma futura identificação do Outro comigo. Talvez isso fique mais claro se meditarmos sobre a questão pelo aspecto puramente psicológico: por que o amante quer ser amado? Se o Amor, com efeito, fosse puro desejo de posse física, poderia ser, em muitos casos, facilmente satisfeito. Por exemplo: o herói de Proust, que instala sua amante em sua casa, pode vê-la e possuí-la a qualquer hora do dia, e soube deixá-la em total dependência material, deveria ficar livre da inquietação. Todavia, sabemos que, pelo contrário, acha-se atormentado por preocupações. É por sua consciência que Albertine escapa de Marcel, mesmo quando ele está a seu lado, e é por isso que ele só se tranquiliza quando a contempla dormindo. Não há dúvida, portanto, de que o amor deseja capturar a “consciência”. Mas por que o deseja? E como?
Esta noção de “propriedade”, pela qual tão comumente se explica o amor, não poderia ser primordial, com efeito. Por que iria eu querer apropriar-me do outro não fosse precisamente na medida que o Outro faz-me ser? Mas isso comporta justamente certo modo de apropriação: é da liberdade do outro enquanto tal que queremos nos apoderar. E não por vontade de poder: o tirano escarnece do amor, contenta-se com o medo. Se busca o amor de seus súditos, é por razões políticas, e, se encontra um meio mais econômico de subjugá-los, adota-o imediatamente. Ao contrário, aquele que quer ser amado não deseja a servidão do amado. Não quer converter-se em objeto de uma paixão transbordante e mecânica. Não quer possuir um automatismo, e, se pretendemos humilhá-lo, basta descrever-lhe a paixão do amado como sendo o resultado de um determinismo psicológico: o amante sentir-se-á desvalorizado em seu amor e em seu ser. Se Tristão e Isolda ficam apaixonados por ingerir uma poção do amor, tornam-se menos interessantes; e chega até a ocorrer o fato de que a total servidão do ser amado venha a matar o amor do amante. A meta foi ultrapassada: o amante sente-se só, caso o amado tenha se transformado em autômato. Assim, o amante não deseja possuir o amado como se possui uma coisa; exige um tipo especial de apropriação. Quer possuir uma liberdade enquanto liberdade.
Mas, por outro lado, o amante não poderia satisfazer-se com esta forma eminente de liberdade que é o compromisso livre e voluntário. Quem iria contentar-se com um amor que se desse como pura fidelidade juramentada? Quem iria satisfazer-se se lhe dissessem: “Eu te amo porque me comprometi livremente a te amar e não quero me desdizer; eu te amo por fidelidade a mim mesmo”? Assim, o amante requer o juramento, e o juramento o exaspera. Quer ser amado por uma liberdade, e exige que tal liberdade, como liberdade, não seja mais livre. Quer, ao mesmo tempo, que a liberdade do Outro determine-se a si própria a converter-se em amor – e isso, não apenas no começo do romance, mas a cada instante – e que esta liberdade seja subjugada por ela mesmo, reverta-se sobre si própria, como na loucura, como no sonho, para querer seu cativeiro. E este cativeiro deve ser abdicação livre e, ao mesmo tempo, acorrentada em nossas mãos. No amor, não é o determinismo passional que desejamos no outro, nem uma liberdade fora de alcance, mas sim uma liberdade que desempenhe o papel de determinismo passional e fique aprisionada nesse papel. E, para si mesmo, o amante não exige ser a causa, mas sim a ocasião única e privilegiada desta modificação radical da liberdade. Com efeito, não poderia querer ser a causa sem fazer submergir de imediato o amado no meio do mundo como um utensílio que pode ser transcendido. Não é essa a essência do amor. No Amor, ao contrário, o amante quer ser “o mundo inteiro” para o amado: significa que se coloca do lado do mundo; é ele que resume e simboliza o mundo, é um isto que encerra todos os outros “istos”; é e aceita ser objeto. Mas, por outro lado, quer ser o objeto no qual a liberdade do outro aceita perder-se, o objeto no qual o outro aceita encontrar, como sua segunda facticidade, o seu ser e sua razão de ser; quer ser o objeto-limite da transcendência, aquele rumo ao qual a transcendência do Outro transcende todos os outros objetos, mas ao qual não pode de modo algum transcender. E, por toda parte, o amante deseja o círculo da liberdade do Outro; ou seja, deseja que, a cada instante, no ato pelo qual a liberdade do Outro aceita este limite à sua transcendência, tal aceitação esteja presente como móvel da aceitação considerada. É a título de meta já escolhida que o amante quer ser escolhido como meta. Isso permite-nos captar a fundo o que o amante exige do amado: não quer agir sobre a liberdade do Outro, mas existir a priori como limite objetivo desta liberdade, ou seja, surgir ao mesmo tempo com ela e no seu próprio surgimento como o limite que ela deve aceitar para ser livre. Por esse fato, o que o amante exige é que a liberdade do outro seja enviscada e empastada por si própria: este limite de estrutura, com efeito, é algo dado, e a única aparição do dado como limite da liberdade significa que a liberdade faz-se existir a si mesmo no interior do dado como sendo sua própria proibição de transcendê-lo. E esta proibição é tida pelo amante ao mesmo tempo como vivida, ou seja, como padecida – em uma palavra, como facticidade – e como livremente consentida. Deve poder ser livremente consentida porque deve identificar-se com o surgimento de uma liberdade que elege-se como liberdade. Mas deve ser somente vivida, porque deve ser uma impossibilidade sempre presente, uma facticidade que reflui sobre a liberdade do Outro até seu bojo; e isso se exprime psicologicamente pela exigência de que a livre decisão de me amar, antes tomada pelo amado, deslize como móvel enfeitiçado no interior de seu livre compromisso presente.
Captamos agora o sentido desta exigência: esta facticidade que deve ser limite de fato para o Outro, em minha exigência de ser amado, e que deve terminar sendo sua própria facticidade, é a minha facticidade. Na medida em que sou o objeto que o Outro faz vir ao ser é que devo ser o limite inerente à sua própria transcendência; de modo que o Outro, surgindo ao ser, faz-me ser como o inexcedível e o absoluto, não enquanto Para-si nadificador, mas como ser-Para-outro-no-meio-do-mundo. Assim, querer ser amado é impregnar o Outro com sua própria facticidade, é querer constrangê-lo a recriar-nos perpetuamente como condição de uma liberdade que se submete e se compromete; é querer, ao mesmo tempo, que a liberdade fundamente o fato e que o fato tenha preeminência sobre a liberdade. Se esse resultado pudesse ser alcançado, resultaria, em primeiro lugar, que eu estaria em segurança na consciência do Outro. Primeiro, porque o motivo de minha inquietação e minha vergonha é o fato de que me apreendo e me experimento em meu ser-Para-outro como aquele que pode sempre ser transcendido rumo a outra coisa, aquele que é puro objeto de juízo de valor, puro meio, pura ferramenta. Minha inquietação provém do fato de que assumo necessária e livremente este ser que um outro me faz ser em absoluta liberdade: “Sabe Deus o que sou para ele! Sabe Deus o que pensa de mim!” Isso significa: “Sabe Deus como o outro me faz ser”, e sou impregnado por este ser que temo encontrar um dia em uma curva de um caminho, que me é tão estranho e, todavia, é o meu ser, sabendo também que, apesar de meus esforços, não me encontrarei com ele jamais. Mas, se o Outro me ama, torno-me o inexcedível, o que significa que devo ser a meta absoluta; nesse sentido, estou a salvo da utensilidade; minha existência no meio do mundo converte-se no exato correlato de minha transcendência-para-mim, posto que minha independência é absolutamente salvaguardada. O objeto que o outro deve me fazer ser é um objeto-transcendência, um centro de referência absoluto, em torno do qual se ordenam, como puros meios, todas as coisas-utensílios do mundo. Ao mesmo tempo, como limite absoluto da liberdade, ou seja, da fonte absoluta de todos os valores, estou protegido contra qualquer eventual desvalorização, sou o valor absoluto. E, na medida em que assumo meu ser-Para-outro, me assumo como valor. Assim, querer ser amado é querer situar-se para-além de todo sistema de valores, colocado pelo outro como condição de toda valorização e como fundamento objetivo de todos os valores. Tal exigência constitui o tema usual das conversações entre amantes: ou bem, como em La Porte Étroite*, a mulher que quer ser amada identifica-se com uma moral ascética de transcendência de si e almeja encarnar o limite ideal desse transcender, ou bem, como é mais comum, o amante exige que o amado, em seu favor, sacrifique em seus atos a moral tradicional, ansioso por saber se o amado trairia seus amigos por ele, “roubaria por ele”, “mataria por ele” etc. Desse ponto de vista, meu ser deve escapar ao olhar do amado; ou melhor, deve ser objeto de um olhar de outra estrutura: não devo mais ser visto sobre fundo de mundo como um “isto” entre outros istos, mas o mundo deve revelar-se a partir de mim. Com efeito, na medida que o surgimento da liberdade faz com que um mundo exista, devo ser, como condição-limite desse surgimento, a própria condição do surgimento de um mundo. Devo ser aquele cuja função é fazer existir as árvores e a água, as cidades e os campos, os outros homens, para dá-los em seguida ao outro, que os dispõe em mundo, da mesma forma como a mãe, nas sociedades matrilineares, recebe os títulos nominativos e o nome de família, não para guardá-los, mas para transmiti-los imediatamente aos filhos. Em certo sentido, se devo ser amado, sou o objeto por intermédio do qual o mundo existirá para o outro; e, em outro sentido, sou o mundo. Em vez de ser um “isto” destacando-se sobre fundo de mundo, sou o objeto-fundo sobre o qual o mundo se destaca. Assim, fico tranquilo: o olhar do outro já não mais me repassa de finitude; já não mais coagula meu ser como aquilo que sou, simplesmente; não poderei ser visto como feio, pequeno, covarde, posto que tais caracteres representam necessariamente uma limitação de fato de meu ser e uma apreensão de minha finitude como finitude. Decerto, meus possíveis permanecem como possibilidades transcendidas, mortipossibilidades; mas tenho todos os possíveis; sou todas as mortipossibilidades do mundo; com isso, deixo de ser o ser que se compreende a partir de outros seres ou a partir de seus atos; mas, na intuição amorosa que exijo, devo ser dado como uma totalidade absoluta a partir da qual todos os seres e todos os seus atos próprios devem ser compreendidos. Poder-se-ia dizer, deformando um pouco uma célebre fórmula estoica, que “o amado pode espernear o quanto quiser”. O ideal do sábio e o ideal daquele que quer ser amado, com efeito, coincidem no fato de que um e outro querem ser totalidade-objeto acessível a uma intuição global que irá captar as ações no mundo do amado e do sábio como estruturas parciais interpretadas a partir da totalidade. E, assim como a sabedoria propõe-se a ser como um estado que se alcançará por uma metamorfose absoluta, também a liberdade do outro deve metamorfosear-se absolutamente para dar-me acesso ao estado de amado.
Esta descrição poderia enquadrar-se bem, até aqui, na famosa descrição hegeliana das relações entre o amo e o escravo. O que o amo hegeliano é para o escravo, o amante quer ser para o amado. Mas a analogia termina aqui, porque o amo, em Hegel, só exige lateralmente, e, por assim dizer, implicitamente, a liberdade do escravo, enquanto que o amante exige antes de tudo a liberdade do amado. Nesse sentido, se devo ser amado pelo outro, devo ser livremente escolhido como amado. Sabemos que, na terminologia corrente do amor, o amado é designado com o termo o eleito. Mas essa escolha não deve ser relativa e contingente: o amante exaspera-se e julga-se desvalorizado quando pensa que o amante o escolheu entre outros. “Então, se eu não tivesse vindo a esta cidade, se não houvesse frequentado a casa de fulano, você não me teria conhecido, não teria me amado?” Tal pensamento aflige o amante: seu amor torna-se em amor entre outros, limitado pela facticidade do amado e por sua própria facticidade, ao mesmo tempo que pela contingência dos encontros; torna-se amor no mundo, objeto que pressupõe o mundo e pode, por sua vez, existir para outros. O que o amante exige é por ele traduzido com palavras desajeitadas e contaminadas de “modos de coisa” (choisismes”); diz ele: “Fomos feitos um para o outro”, ou usa ainda a expressão “almas gêmeas”. Mas é preciso interpretar assim: o amante bem sabe que o “serem feitos um para o outro” refere-se a uma escolha originária. Essa escolha pode ser a de Deus, enquanto ser que é escolha absoluta; mas Deus só representa aqui a passagem ao extremo limite dessa exigência do absoluto. Na verdade, o que o amante exige é que o amado dele faça a escolha absoluta. Significa que o ser-no-mundo do amado deve ser um ser-amante. Esse surgimento do amado deve ser livre escolha do amante. E, como o outro é fundamento de meu ser-objeto, dele exijo que o livre surgimento de seu ser tenha por fim único e absoluto a sua escolha de mim, ou seja, que tenha escolhido ser para fundamentar minha objetividade e minha facticidade. Assim, minha facticidade é “salva”. Deixa de ser esse dado impensável e insuperável do qual fujo: é aquilo para o qual o outro faz-se existir livremente; é como uma meta que o outro dá a si mesmo. Eu impregnei-o de minha facticidade, mas, como é enquanto liberdade que ele foi impregnado, ele me devolve essa facticidade como facticidade recuperada e consentida: o outro é o fundamento dessa facticidade para que ela constitua sua meta. A partir deste amor, portanto, capto de outro modo minha alienação e minha facticidade própria. Esta é – enquanto Para-outro – não mais um fato, mas um direito. Minha existência é por ser reclamada. Esta existência, enquanto a assumo, converte-se em puro benefício para mim. Sou porque me prodigalizo. Essas amadas veias em minhas mãos existem beneficamente. Que bom é ter olhos, cabelos, sobrancelhas, e esbanjá-los incansavelmente em um transbordamento de generosidade a esse desejo infatigável que o outro faz-se livremente ser. Em vez de nos sentirmos, como antes de sermos amados, apreensivos por esta protuberância injustificada e injustificável que era a nossa existência, em vez de sentirmo-nos “supérfluos”, agora sentimos que esta existência é recuperada e querida em seus menores detalhes por uma liberdade absoluta, a qual nossa existência ao mesmo tempo condiciona e nós mesmos queremos com nossa própria liberdade. Este, o fundo da alegria do amor, quando existe: sentimos que nossa existência é justificada.
Ao mesmo tempo, se o amado pode nos amar, está prestes a ser assimilado por nossa liberdade: porque esse ser-amado que cobiçamos já é a prova ontológica aplicada a nosso ser-Para-outro. Nossa essência objetiva implica a existência do outro, e, reciprocamente, é a liberdade do outro que fundamenta nossa essência. Se pudéssemos interiorizar todo o sistema, seríamos nosso próprio fundamento.
* Romance de André Gide (1909). Em português: A Porta Estreita (Rio, Nova Fronteira, 1984) (N. do T.).


“Um louco não faz jamais senão realizar à sua maneira a condição humana.”


“Todavia, o Outro enquanto liberdade e minha objetividade enquanto eu-alienado estão aí, despercebidos, não tematizados, mas dados em minha própria compreensão do mundo e de meu ser no mundo. (...) Daí um sentimento perpétuo de falta e mal-estar. Isso porque meu projeto fundamental com relação ao Outro – qualquer que seja a atitude que adote – é duplo: por um lado, trata-se de me proteger contra o perigo que me faz correr meu ser-fora-na-liberdade-do-Outro, e, por outro lado, de utilizar o Outro para totalizar finalmente a totalidade-destotalizada que sou, de modo a fechar o círculo aberto e fazer com que eu seja, por fim, fundamento de mim mesmo. Mas, por um lado, a desaparição do Outro enquanto olhar me arremessa novamente em minha injustificável subjetividade e reduz meu ser a esta perpétua perseguição-perseguida rumo a um Em-si-Para-si inapreensível; sem o outro, capto em plenitude e desnudez esta terrível necessidade de ser livre que constitui minha sina, ou seja, o fato de que não posso confiar a ninguém, salvo a mim mesmo, o cuidado de me fazer ser, ainda que não tenha escolhido ser e haja nascido. Mas, por outro lado, embora a cegueira com relação ao Outro me livre em aparência do temor de estar em perigo na liberdade do Outro, ela encerra, apesar de tudo, uma compreensão implícita desta liberdade. Coloca-me, pois, no último grau de objetividade, no momento mesmo em que posso me crer uma subjetividade absoluta e única, posto que sou visto sem sequer poder experimentar o fato de que sou visto e sem poder me defender, por meio deste experimentar, contra meu “ser-visto”. Sou possuído sem poder voltar-me contra aquele que me possui. Na experiência direta do Outro enquanto olhar, defendo-me experimentando o Outro, e resta-me a possibilidade de transformar o Outro em objeto. Mas, se o Outro é objeto para mim enquanto me olha, então estou em perigo sem saber. Assim, minha cegueira é inquietação, por ser acompanhada da consciência de um “olhar errante” e inapreensível que ameaça alienar-me sem que eu o saiba. Esse mal-estar deve ocasionar uma nova tentativa de apropriar-me da liberdade do Outro. Mas isso significa que irei voltar-me contra o Objeto-Outro que me toca de leve e tentar utilizá-lo como instrumento de modo a alcançar sua liberdade. Só que, precisamente porque me dirijo ao objeto “Outro”, não posso pedir-lhe que preste contas de sua transcendência, e, estando eu no plano da objetivação do Outro, sequer posso conceber o que quero me apropriar. Assim, estou em uma atitude exasperante e contraditória com relação a este objeto em consideração: não apenas não posso obter dele o que quero, mas, além disso, esta investigação provoca um desaparecimento do próprio saber concernente ao que quero; comprometo-me em uma busca desesperada da liberdade do Outro e, no meio do caminho, encontro-me comprometido em uma busca que perdeu seu sentido; todos os meus esforços para devolver à busca o seu sentido só têm por efeito fazer com que tal sentido se perca mais ainda e provocar minha perplexidade e meu mal-estar, exatamente como quando tento reaver a lembrança de um sonho e essa lembrança se liquefaz entre meus dedos, deixando uma vaga e exasperante impressão de conhecimento total e sem objeto; ou exatamente como quando tento explicar o conteúdo de uma falsa reminiscência e a própria explicação faz com que ela se dissolva em translucidez.”


“A carícia de modo algum difere do desejo: acariciar com os olhos e desejar são a mesma coisa: o desejo se expressa pela carícia assim como o pensamento pela linguagem. E, precisamente, a carícia revela a carne do Outro enquanto carne, tanto para mim como para o outro. Mas revela esta carne de maneira muito particular: segurar o Outro revela a este sua inércia e sua passividade de transcendência-transcendida; mas isso não é acariciá-lo. Na carícia, não é meu corpo enquanto forma sintética em ação que acaricia o Outro, mas é meu corpo de carne que faz nascer a carne do outro. A carícia destina-se a fazer nascer por meio do prazer o corpo do Outro, para o Outro e para mim, como passividade apalpada, na medida que meu corpo faz-se carne para apalpar o corpo do Outro com sua própria passividade, ou seja, acariciando-se nele, mais do que o acariciando. Daí por que os gestos amorosos têm uma languidez que quase dir-se-ia estudada: não se trata tanto de possuir uma parte do corpo do outro quanto de levar o próprio corpo contra o corpo do outro. Nem de empurrar ou tocar, no sentido ativo, mas de pôr contra. Parece que levo o próprio braço como objeto inanimado e o ponho contra o flanco da mulher desejada; que meus dedos, que faço passear pelo seu braço, são inertes na extremidade de minha mão. Assim, a revelação da carne do outro se faz por minha própria carne; no desejo e na carícia que o exprime, encarno-me para realizar a encarnação do outro; e a carícia, realizando a encarnação do Outro, revela-me minha própria encarnação; ou seja, faço-me carne para induzir o Outro a realizar Para-si e para mim sua própria carne, e minhas carícias fazem minha carne nascer para mim, na medida que é~ para o outro, carne que o faz nascer como carne; faço-o saborear minha carne por meio de sua carne, de modo a obrigá-lo a sentir-se carne. De sorte que a posse aparece verdadeiramente como dupla encarnação recíproca. Assim, no desejo, há uma tentativa de encarnação da consciência (aquilo que anteriormente chamamos de empastamento da consciência, consciência turva etc.) a fim de realizar a encarnação do Outro.”


“É desta situação singular que parece ter origem a noção de culpabilidade e pecado. É diante do outro que sou culpado. Culpado, em primeiro lugar, quando, sob seu olhar, experimento minha alienação e minha nudez como um decaimento que devo assumir; este, o sentido do famoso “eles descobriram que estavam nus” da Escritura. Culpado, além disso, quando, por minha vez, olho o outro, porque, pelo próprio fato de minha afirmação de mim mesmo, constituo-o como objeto e instrumento, e faço com que sobrevenha-lhe esta alienação que deve assumir. Assim, o pecado original é meu surgimento em um mundo onde há o outro, e, quaisquer que sejam minhas relações ulteriores com o outro, nada mais serão que variações sobre o tema original de minha culpabilidade.”


“Mas o ódio, por sua vez, é um fracasso. Seu projeto inicial, com efeito, consiste em suprimir as outras consciências. Porém, ainda que o conseguisse, ou seja, ainda que pudesse abolir o outro no momento presente, não poderia fazer com que o outro não houvesse sido. Melhor ainda: a abolição do outro, por ser vivida como triunfo da ira, pressupõe o reconhecimento explícito de que o outro existiu. Sendo assim, meu ser-Para-outro, deslizando ao passado, converte-se em uma dimensão irremediável de mim mesmo. É o que tenho-de-ser enquanto o havendo-sido. Portanto, não poderia livrar-me dele. Dir-se-á que, pelo menos, dele escapo pelo presente e dele escaparei pelo futuro: mas não. Aquele que, uma vez, foi Para-outro está contaminado em seu ser pelo resto de seus dias, mesmo que o outro tenha sido inteiramente suprimido: não deixará de captar sua dimensão de ser-Para-outro como uma possibilidade permanente de seu ser. Não poderá reconquistar aquilo que alienou; inclusive, perdeu toda esperança de agir sobre esta alienação e volvê-la a seu favor, já que o outro, destruído, levou para o túmulo a chave desta alienação. Aquilo que fui para o outro fica estabelecido pela morte do outro, e o serei irremediavelmente no passado; também o serei, e da mesma maneira, no presente, caso persevere na atitude, nos projetos e no modo de vida que foram julgados pelo outro. A morte do outro constitui-me como objeto irremediável, exatamente como minha própria morte. Assim, em seu próprio surgimento, o triunfo da ira se transforma em fracasso. O ódio não permite sair do círculo vicioso. Representa simplesmente a última tentativa, a tentativa do desespero. Após o fracasso desta tentativa, só resta ao Para-si retornar ao círculo e deixar-se oscilar indefinidamente entre uma e outra das duas atitudes fundamentais.”


“É estranho que se tenha podido argumentar interminavelmente sobre o determinismo e o livre-arbítrio, citando exemplos a favor de uma ou outra tese, sem tentar previamente explicitar as estruturas contidas na própria ideia de ação. O conceito de ato, com efeito, contém numerosas noções subordinadas que devemos organizar e hierarquizar: agir é modificar a figura do mundo, é dispor de meios com vistas a um fim, é produzir um complexo instrumental e organizado de tal ordem que, por uma série de encadeamentos e conexões, a modificação efetuada em um dos elos acarrete modificações em toda a série e, para finalizar, produza um resultado previsto. Mas ainda não é isso o que nos importa. Com efeito, convém observar, antes de tudo, que uma ação é por princípio intencional. O fumante desastrado que, por negligência, fez explodir uma fábrica de pólvora não agiu. Ao contrário, o operário que, encarregado de dinamitar uma pedreira, obedeceu às ordens dadas, agiu quando provocou a explosão prevista: sabia, com efeito, o que fazia, ou, se preferirmos, realizava intencionalmente um projeto consciente. Não significa, por certo, que devam ser previstas todas as consequências de um ato: o imperador Constantino, ao estabelecer-se em Bizâncio, não previa que iria criar uma cidade de cultura e língua gregas, cuja aparição provocaria ulteriormente um cisma na Igreja cristã e contribuiria para debilitar o Império Romano. Contudo, executou um ato na medida em que realizou seu projeto de criar uma nova residência no Oriente para os imperadores. A adequação do resultado à intenção é aqui suficiente para que possamos falar de ação. Mas, se assim há de ser, constatamos que a ação implica necessariamente como sua condição o reconhecimento de um “desideratum”, ou seja, de uma falta objetiva, ou uma negatividade. A intenção de suscitar uma rival para Roma só pode advir a Constantino pela captação de uma falta objetiva: Roma carece de um contrapeso; a esta cidade profundamente pagã era preciso opor uma cidade cristã que, no momento, fazia falta. Criar Constantinopla só pode ser compreendido como ato se, primeiramente, a concepção de uma cidade nova precedeu a própria ação, ou, ao menos, esta concepção tenha servido de tema organizador a todos os tramites ulteriores. Mas esta concepção não poderia ser a pura representação da cidade como possível, e sim a apreensão da mesma em sua característica essencial, que é a de ser um possível desejável e não realizado. Significa que, desde a concepção do ato, a consciência pode se retirar do mundo pleno do qual é consciência e abandonar o terreno do ser para abordar francamente o do não-ser. Enquanto algo considerado exclusivamente em seu ser, a consciência é remetida perpetuamente do ser ao ser e não poderia encontrar no ser um motivo para descobrir o não-ser. O sistema imperial, na medida que sua capital é Roma, funciona positivamente e de certa maneira real que transparece facilmente. Dir-se-á que os impostos são mal cobrados, que Roma não está ao abrigo de invasores, que não tem a situação geográfica conveniente a capital de um império mediterrâneo ameaçado pelos bárbaros, que a corrupção dos costumes dificulta a difusão da religião cristã? Como não ver que todas essas considerações são negativas, ou seja, visam aquele que não é, e não aquilo que é? Dizer que 60% dos impostos previstos foram arrecadados pode passar, a rigor, por uma apreciação positiva da situação tal qual é. Dizer que são mal arrecadados é considerar a situação através de uma situação posta como fim absoluto e que, precisamente, não é. Dizer que a corrupção dos costumes entrava a difusão do cristianismo não é considerar esta difusão pelo que é, ou seja, uma propagação em ritmo que os informes dos eclesiásticos podem nos deixar em condições de determinar: é colocá-la em si mesmo como insuficiente, ou seja, padecendo de um nada secreto. Mas tal difusão só aparece desse modo, justamente, se a transcendermos rumo a uma situação-limite colocada a priori como valor – por exemplo, rumo a certo ritmo das conversões religiosas, a certa moralidade de massa; e esta situação-limite não pode ser concebida a partir da simples consideração do estado real das coisas, pois, assim como a jovem mais bela do mundo não pode dar mais do que tem*, também a situação mais miserável só pode ser designada por si mesmo como é, sem qualquer referência a um nada ideal. Enquanto imerso na situação histórica, o homem sequer chega a conceber as deficiências e faltas de uma organização política ou econômica determinada, não porque “está acostumado”, como tolamente se diz, mas porque apreende-a em sua plenitude de ser e nem mesmo é capaz de imaginar que possa ser de outro modo. Pois é preciso inverter aqui a opinião geral e convir que não é a rigidez de uma situação ou os sofrimentos que ela impõe que constituem motivos para que se conceba outro estado de coisas, no qual tudo sairá melhor para todos; pelo contrário, é a partir do dia em que se pode conceber outro estado de coisas que uma luz nova ilumina nossas penúrias e sofrimentos e decidimos que são insuportáveis. O proletário de 1830 é capaz de rebelar-se se lhe baixam os salários, pois concebe facilmente uma situação em que seu miserável nível de vida seja menos baixo do que aquele que querem lhe impor. Mas ele não retrata seus sofrimentos como intoleráveis: acomoda-se a eles, não por resignação, mas por lhe faltarem cultura e reflexão necessárias a fazê-lo conceber um estado social em que tais sofrimentos não existam. Consequentemente, não age. Apoderando-se de Lyon após uma rebelião, os proletários de Croix-Rousse não sabem o que fazer de sua vitória; voltam às suas casas, desorientados, e o exército não tem dificuldades em surpreendê-los. Seus infortúnios não lhes parecem “habituais”, mas antes naturais; são, eis tudo; constituem a condição do proletário; não são postos em relevo, não são vistos com clareza, e, por conseguinte, são integrados pelo proletário ao seu ser; ele sofre, sem levar seu sofrimento em consideração ou conferir-lhe valor: sofrer e ser são a seu ver a mesma coisa; seu sofrimento é o puro teor afetivo de sua consciência não-posicional, mas ele não o contempla. Portanto, esse sofrimento não poderia ser por si mesmo um móbil para seus atos. Exatamente o contrário: é ao fazer o projeto de modificá-lo que o sofrimento parecer-lhe-á intolerável. Significa que deverá ter tomado distância com relação a ele e operado uma dupla nadificação: por um lado, com efeito, será preciso que posicione um estado de coisas ideal como puro nada presente; por outro, que posicione a situação atual como nada em relação a este estado de coisas. Terá de conceber uma felicidade vinculada à sua classe como puro possível – ou seja, presentemente como certo nada; de outra parte, retornará sobre a situação presente para iluminá-la à luz desse nada e para nadificá-la, por sua vez, declarando: “Não sou feliz”. Seguem-se duas importantes consequências: 1º) Nenhum estado de fato, qualquer que seja (estrutura política ou econômica da sociedade, ‘‘estado” psicológico, etc.) é capaz de motivar por si mesmo qualquer ato. Pois um ato é uma projeção do Para-si rumo a algo que não é, e aquilo que é não pode absolutamente, por si mesmo, determinar o que não é. 2º) Nenhum estado de fato pode determinar a consciência a captá-lo como negatividade ou como falta. Melhor ainda: nenhum estado de fato pode determinar a consciência a defini-lo e circunscrevê-lo, pois, como vimos, continua sendo profundamente verdadeira a fórmula de Spinoza: “Omnis determinatio est negatio”. Bem, toda ação tem por condição expressa não somente a descoberta de um estado de coisas como “falta de... “, ou seja, como negatividade, mas também – e previamente – a constituição em sistema isolado do estado de coisas em consideração. Não há estado de fato – satisfatório ou não – salvo por meio da potência nadificadora do Para-si. Mas esta potência de nadificação não pode limitar-se a realizar um simples recuo com relação ao mundo. Com efeito, na medida em que a consciência está “investida” pelo ser, na medida em que simplesmente padece daquilo que é, deve ser englobada no ser: é a forma organizada proletário-achando-seu-sofrimento-natural que deve ser superada e negada para poder tornar-se objeto de uma contemplação reveladora. Significa evidentemente que é por puro desprendimento de si e do mundo que o proletário pode posicionar seu sofrimento como insuportável e, por conseguinte, fazer dele o móbil de sua ação revolucionária. Portanto, significa para a consciência a possibilidade permanente de efetuar uma ruptura com seu próprio passado, de desprender-se dele para poder considerá-lo à luz de um não-ser e conferir-lhe a significação que tem a partir do projeto de um sentido que não tem. Em caso algum e de nenhuma maneira o passado, por si mesmo, pode produzir um ato, ou seja, o posicionamento de um fim que sobre ele volta-se para iluminá-lo. Foi o que entreviu Hegel ao escrever que “o espírito é negativo”, embora não pareça ter-se lembrado disso ao expor sua própria teoria da ação e da liberdade. Com efeito, uma vez que atribuímos à consciência esse poder negativo com relação ao mundo e a si mesmo, uma vez que a nadificação faz parte integrante do posicionamento de um fim, é preciso reconhecer que a condição indispensável e fundamental de toda ação é a liberdade do ser atuante.”
* Provérbio francês (N. do T.).

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