domingo, 3 de junho de 2018

O ser e o nada: Ensaio de ontologia fenomenológica (Parte II) – Jean-Paul Sartre

Editora: Vozes
ISBN: 978-85-3261-762-0
Tradução e notas: Paulo Perdigão
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 784
Sinopse: Ver Parte I

“Nosso olhar ou nossa atenção, ou seja, fixar simplesmente os olhos em outro objeto qualquer; a partir desse momento, cada realidade – a minha e a do objeto – retoma sua vida própria, e a relação acidental que unia a consciência à coisa desaparece sem alterar por isso nem uma nem outra existência. Mas se aquilo que quero velar sou eu, a questão assume outra fisionomia; não posso querer “não ver” certo aspecto de meu ser, com efeito, salvo se estiver precisamente ciente do aspecto que não quero ver. Significa que preciso indicá-lo em meu ser para poder afastar-me dele: melhor dito, é necessário que pense nele constantemente para evitar pensar nele. Não se deve entender por isso apenas que, por necessidade, devo levar perpetuamente comigo aquilo de que quero fugir, mas também que devo encarar o objeto de minha fuga para evitá-lo, o que significa que angústia, enfoque intencional da angústia e fuga da angústia rumo a mitos tranquilizadores precisam ser dados na unidade de uma mesma consciência. Em resumo, fujo para ignorar, mas não posso ignorar que fujo, e a fuga da angústia não passa de um modo de tomar consciência da angústia. Assim, esta não pode ser, propriamente falando, nem mascarada nem evitada. Fugir da angústia e ser angústia, todavia, não podem ser exatamente a mesma coisa: se eu sou minha angústia para dela fugir, isso pressupõe que sou capaz de me desconcentrar com relação ao que sou, posso ser angústia sob a forma de “não sê-la”, posso dispor de um poder nadificador no bojo da própria angústia. Este poder nadifica a angústia enquanto dela fujo e nadifica a si enquanto sou angústia para dela fugir. É o que se chama de má-fé. Não se trata, pois, de expulsar a angústia da consciência ou constituí-la em fenômeno psíquico inconsciente; simplesmente, posso ficar de má-fé na apreensão da angústia que sou, e esta má-fé, destinada a preencher o nada que sou na minha relação comigo mesmo, implica precisamente esse nada que ela suprime.”


“Se quisermos sair dessa dificuldade, convém examinar mais de perto condutas de má-fé e tentar uma descrição que talvez nos permita estabelecer com mais nitidez as condições de possibilidade de má-fé, ou seja, responder à questão inicial: “Que há de ser o homem em seu ser para poder ser de má-fé?”
Eis, por exemplo, o caso de uma mulher que vai a um primeiro encontro. Ela sabe perfeitamente as intenções que o homem que lhe fala tem a seu respeito. Também sabe que, cedo ou tarde, terá de tomar uma decisão. Mas não quer sentir a urgência disso: atém-se apenas ao que de respeitoso e discreto oferece a atitude do companheiro. Não a apreende como tentativa de estabelecer os chamados “primeiros contatos”, ou seja, não quer ver as possibilidades de desenvolvimento temporal apresentadas por essa conduta: limita-a ao que é no presente, só quer interpretar nas frases que ouve o seu sentido explícito, e se lhe dizem “eu te amo muito”, despoja a frase de seu âmago sexual: vincula aos discursos e à conduta de seu interlocutor significações imediatas, que encara como qualidades objetivas. O homem que fala parece sincero e respeitoso, como a mesa é redonda ou quadrada, o revestimento de parede azul ou cinzento. E qualidades assim atribuídas à pessoa a quem ouve são então fixadas em uma permanência coisificante que não passa de projeção do estrito presente no fluxo temporal. A mulher não se dá conta do que deseja: é profundamente sensível ao desejo que inspira, mas o desejo nu e cru a humilharia e lhe causaria horror. Contudo, não haveria encanto algum em um respeito que fosse apenas respeito. Para satisfazê-la, é necessário um sentimento que se dirija por inteiro à sua pessoa, ou seja, à sua liberdade plenária, e seja reconhecimento de sua liberdade. Mas é preciso, ao mesmo tempo, que tal sentimento seja todo inteiro desejo, quer dizer, dirija-se a seu corpo como objeto. Portanto, desta vez ela se nega a captar o desejo como é, sequer lhe dá nome, só o reconhece na medida em que se transcende para a admiração, a estima, o respeito, e se absorve inteiramente nas formas mais elevadas que produz, a ponto de já não constar delas a não ser como uma espécie de calor e densidade. Mas eis que lhe seguram a mão. O gesto de seu interlocutor ameaça mudar a situação, provocando uma decisão imediata: abandonar a mão é consentir no flerte, comprometer-se; retirá-la é romper com a harmonia turva e instável que constitui o charme do momento. Trata-se de retardar o mais possível a hora da decisão. O que acontece então é conhecido: a jovem abandona a mão, mas não percebe que a abandona. Não percebe porque, casualmente, nesse momento ela é puro espírito. Conduz seu interlocutor às regiões mais elevadas da especulação sentimental, fala da vida, de sua vida, mostra-se em seu aspecto essencial: uma pessoa, uma consciência. E, entrementes, realizou-se o divórcio entre corpo e alma: a mão repousa inerte entre as mãos cálidas de seu companheiro, nem aceitante, nem resistente – uma coisa.
Diremos que essa mulher está de má-fé. Mas, em seguida, vemos que recorre a vários procedimentos para nela se manter. Desarmou as ações do companheiro, reduzindo-as a não ser mais do que são, ou seja, a existir à maneira do Em-si. Mas ela se permite desfrutar do desejo, na medida em que o apreenda como não sendo o que é, ou seja, o reconheça em sua transcendência. Por último, sem deixar de sentir profundamente a presença do próprio corpo – talvez a ponto de se abalar – ela se vê como não sendo o próprio corpo e o contempla do alto, como objeto passivo, com o qual podem ocorrer certos fatos, mas que é incapaz de provocá-los ou evitá-los, pois seus possíveis todos estão de fora. Que unidade encontramos nesses aspectos da má-fé?
Certa arte de formar conceitos contraditórios, quer dizer, que unam em si determinada idéia e a negação dessa idéia. O conceito de base assim engendrado utiliza a dupla propriedade do ser humano de ser facticidade e transcendência. Na verdade, dois aspectos da realidade humana que são e devem ser muito bem coordenados. Mas a má-fé não pretende coordená-los ou superá-los em uma síntese. Para ela, trata-se de afirmar a identidade de ambos, conservando suas diferenças. É preciso afirmar a facticidade como sendo transcendência e a transcendência como sendo facticidade, de modo que se possa, no momento que captamos uma, deparar bruscamente com a outra. O protótipo das fórmulas de má-fé será dado por certas frases célebres, concebidas justamente para produzir o maior efeito, no espírito da má-fé. Por exemplo, o título de uma obra de Jacques Chardonne: “O amor é bem mais que amor”. Faz-se aqui a unidade entre o amor presente em sua facticidade, “contato de duas epidermes”, sensualidade, egoísmo, mecanismo proustiano do ciúme, luta adleriana dos sexos, etc., e o amor como transcendência, o “rio de fogo” de Mauriac, chamado do infinito, eras platônico, surda intuição cósmica de Lawrence, etc. Partimos da facticidade para nos encontrarmos de súbito – além do presente e da condição fatual do homem, além do psicológico – em plena metafísica. Ao contrário, o título de uma peça de Sarment, Sou grande demais para mim*, que também ostenta caracteres da má-fé, nos coloca primeiro em plena transcendência para de repente nos aprisionar nos estreitos limites de nossa essência fatual. Idênticas estruturas se acham na famosa frase “ele se tornou o que era”**, ou no seu inverso não menos conhecido, “como a eternidade o transforma afinal nele mesmo”***. Claro que essas fórmulas têm apenas aparência de má-fé, e foram explicitamente concebidas dessa forma paradoxal para surpreender o espírito e desconcertá-lo com um enigma. Mas é exatamente esta aparência que interessa. Importa que tais fórmulas não constituam noções novas e solidamente estruturadas; ao contrário, estão construídas de forma a permanecer em perpétua desagregação e tornar possível perpétuo deslizamento do presente naturalista à transcendência e vice-versa. Nota-se, de fato, o uso que a má-fé pode fazer desses juízos tendentes a estabelecer que eu não sou o que sou. Se não fosse o que sou, poderia, por exemplo, encarar seriamente a crítica que me fazem, interrogar-me com escrúpulo e talvez me visse forçado a reconhecer sua verdade. Mas, precisamente, pela transcendência, escapo a tudo que sou. Sequer tenho de discutir se a censura está bem ou mal fundamentada, no sentido em que Susana diz a Figaro: “Mostrar que tenho razão seria reconhecer que posso estar errada”. Estou em um plano onde nenhuma crítica pode me atingir, pois o que verdadeiramente sou é minha transcendência: fujo, me liberto, deixo meus andrajos nas mãos de meu censor. Só que a ambiguidade necessária à má-fé advém da afirmação de que sou minha transcendência à maneira de ser da coisa. E só assim, de fato, posso me sentir livre da censura. Nesse sentido, nossa jovem purifica o desejo, livrando-o do que possa ter de humilhante, ao querer levar em conta apenas sua pura transcendência, chegando a evitar dar-lhe nome sequer. Mas, ao contrário, o “sou grande demais para mim”, ao mostrar a transcendência transformada em facticidade, é fonte de infinidade de desculpas para nossos fracassos ou fraquezas. Da mesma forma, a jovem coquette mantém a transcendência na medida em que o respeito e a estima manifestados pelas condutas de seu pretendente já se acham no plano do transcendente. Mas ela detém a transcendência nesse ponto, empastando-a com toda a facticidade do presente: o respeito não é mais que respeito, transcender coagulado que já não se transcende para nada.”
* Em francês: Je suis trop grand pour moi {N. do T.). / ** Em francês: “li est devenu ce qu’il était” (N. do T.). / ***Verso de Mallarmé. Em francês: “Tel qu’en lui-même enfin l’éternité le change” (N. do T.).


“O verdadeiro problema da má-fé decorre, evidentemente, do fato de que a má-fé é fé. Não pode ser mentira cínica nem evidência, sendo a evidência possessão intuitiva do objeto. Mas, se denominamos crença a adesão do ser ao seu objeto, quando este não está dado ou é dado indistintamente, então a má-fé é crença, e o problema essencial da má-fé um problema de crença. Como podemos crer de má-fé em conceitos que forjamos expressamente para nos persuadir? Observe-se, com efeito, que o projeto de má-fé deve ser ele próprio de má-fé: não sou de má-fé apenas ao fim do meu esforço, depois de ter construído meus conceitos anfibológicos e deles me persuadir. Para dizer a verdade, não me persuadi: na medida em que pude estar persuadido, estive assim sempre. Foi preciso que, no momento mesmo em que me dispus a me fazer de má-fé, já fosse de má-fé com relação a essas próprias disposições. Se eu as representasse como de má-fé, seria cinismo; acreditá-las sinceramente inocentes teria sido de boa-fé. A decisão de ser de má-fé não ousa dizer seu nome, acredita-se e não se acredita de má-fé. E, desde a aparição da má-fé, decide ela mesma sobre toda atitude ulterior e, em certo modo, sobre a Weltanschauung* da má-fé. Porque a má-fé não conserva as normas e critérios da verdade tal como aceitos pelo pensamento crítico de boa-fé. De fato, o que ela decide inicialmente é a natureza da verdade. Com a má-fé aparecem uma verdade, um método de pensar, um tipo de ser dos objetos; e esse mundo de má-fé, que de pronto cerca o sujeito, tem por característica ontológica o fato de que, nele o ser é o que não é e não é o que é. Em consequência, surge um tipo singular de evidência: a evidência não persuasiva. A má-fé apreende evidências, mas está de antemão resignada a não ser preenchida por elas, não ser persuadida e transformada em boa-fé: faz-se humildade e modesta, não ignora – diz – que fé é decisão, e que, após cada intuição, é preciso decidir e querer aquilo que é. Assim, a má-fé, em seu projeto definitivo, e desde sua aparição, decide sobre a natureza exata de suas exigências, se delineia inteira na resolução de não pedir demais, dá-se por satisfeita quando mal persuadida, força por decisão suas adesões a verdades incertas. Esse projeto inicial de má-fé é uma decisão de má-fé sobre a natureza da fé. Entendamos bem que não se trata de uma decisão reflexiva e voluntária, e sim de uma determinação espontânea de nosso ser. Fazemo-nos de má-fé como quem adormece e somos de má-fé como quem sonha. Uma vez realizado esse modo de ser, é tão difícil sair dele quanto alguém despertar a si próprio: a má-fé é um tipo de ser no mundo, como a vigília ou o sonho, e tende por si a perpetuar-se, embora sua estrutura seja do tipo metaestável. Mas a má-fé é consciente de sua estrutura e tomou precauções, decidindo que a estrutura metaestável era a estrutura do ser e a não-persuasão a estrutura de todas as convicções. Resulta, portanto, que se a má-fé é fé e implica em seu primeiro projeto sua própria negação (determina-se a estar mal persuadida para persuadir-se de que sou o que não sou), é preciso que, em sua origem, seja possível uma fé que queira estar mal convencida.”
* Em alemão: mundividência, cosmovisão (N. do T.).


“Por outro lado, não se deve conceber este ser como presente à consciência apenas com os caracteres abstratos que nossas investigações estabeleceram. A consciência concreta surge em situação, e é consciência singular e individualizada desta situação e (de) si mesmo em situação. A esta consciência concreta está presente o si, e todos os caracteres concretos da consciência têm seus correlatos na totalidade do si. O si é individual e impregna o Para-si como seu acabamento individual. Um sentimento, por exemplo, é sentimento em presença de uma norma, ou seja, de um sentimento do mesmo tipo, mas que fosse o que e. Esta norma ou totalidade do si afetivo está diretamente presente como falta padecida no próprio âmago do sofrimento. Sofremos, e sofremos por não sofrer o bastante. O sofrimento de que falamos jamais é exatamente aquele que sentimos. Aquilo que chamamos de sofrimento “nobre”, “bom” ou “verdadeiro” e que nos comove é o sofrimento que lemos no rosto dos outros, ou, melhor ainda, nos retratos, na face de uma estátua, em uma máscara trágica. Um sofrimento que tem ser. É nos apresentado como um todo compacto e objetivo, que não aguardava nossa chegada para ser e excede a consciência que temos dele· está aí, no meio do mundo, impenetrável e denso, como esta árvore ou esta pedra, perdurando; enfim, é o que é. Dele podemos dizer: este sofrimento que se expressa por esse ríctus, esse franzir de sobrancelhas. Acha-se sustentado e é expresso pela fisionomia, mas não é criado por ela. Colocou-se sobre a fisionomia, está mais além tanto da passividade como da atividade, tanto da negação como da afirmação: simplesmente é. E, todavia, não pode ser salvo como consciência de si. Bem sabemos que essa máscara não exprime o esgar inconsciente de quem dorme, nem o ríctus de um morto: remete a possíveis, a uma situação no mundo. O sofrimento é a relação consciente a esses possíveis, a esta situação, porém solidificado, fundido no bronze do ser: e é enquanto tal que nos fascina: é como uma aproximação degradada deste sofrimento-em-si que impregna nosso próprio sofrimento. O sofrimento que eu experimento, ao contrário, nunca é sofrimento bastante, posto que se nadifica como Em-si pelo próprio ato com que se fundamenta. Escapa como sofrimento rumo à consciência de sofrer. Jamais posso ser surpreendido por ele, porque o sofrimento só é na medida exata em que o experimento. Sua translucidez o priva de toda profundidade. Não posso observá-lo como observo o sofrimento da estátua, porque eu o constituo e o conheço. Se fosse necessário sofrer, gostaria que meu sofrimento se apoderasse de mim e me inundasse como uma tempestade: mas, ao contrário, é preciso que eu o traga à existência em minha livre espontaneidade. Gostaria de sê-lo e padecê-lo ao mesmo tempo, mas este sofrimento enorme e opaco que me transportaria para fora de mim continuamente me roça com sua asa e não posso captá-lo, só encontro a mim mesmo; a mim, que lamento e gemo; a mim, que devo representar sem trégua a farsa de sofrer de modo a realizar este sofrimento que sou. Agito os braços, grito, para que seres Em-si – sons, gestos – circulem pelo mundo, conduzidos pelo sofrimento Em-si que não posso ser. Cada lamento, cada fisionomia de quem sofre aspira a esculpir uma estátua Em-si do sofrimento. Mas esta estátua jamais existirá, salvo pelos outros e para os outros. Meu sofrimento sofre por ser o que não é, por não ser o que é; a ponto de encontrar-se consigo mesmo, escapa, separado de si por nada, por esse nada do qual é o fundamento. Por não ser o bastante, tagarela, mas seu ideal é o silêncio. O silêncio da estátua, do homem abatido que abaixa a cabeça e cobre o rosto sem dizer nada. Mas este homem silencioso só se cala para mim. Em si mesmo, tagarela inesgotavelmente, porque as palavras da linguagem interior são como esboços do “si” do sofrimento. Somente a meus olhos é que ele está “esmagado” pelo sofrimento: em si mesmo, sente-se responsável por esta dor que ele deseja sem desejar e não deseja desejando, e está impregnada por perpétua ausência – a ausência do sofrimento imóvel e mudo que é o si, a totalidade concreta e inatingível do Para-si que sofre, o para da Realidade-humana sofredora. Como se vê, este sofrimento-si que visita meu sofrimento jamais é posicionado por este. E meu sofrimento real não é um esforço para alcançar o si. Mas só pode ser sofrimento como consciência (de) não ser suficiente· mente sofrimento em presença deste sofrimento pleno e ausente.”


“Concretamente, cada Para-si é falta de certa coincidência consigo mesmo. Significa que está impregnado pela presença daquilo com que deveria coincidir para ser si mesmo. Mas, como esta coincidência em Si é também coincidência com o Si, o que falta ao Para-si, enquanto ser cuja assimilação a si o tornaria Si, é também Para-si. Vimos que o Para-si era “presença a si”: o que falta à presença a si só pode lhe faltar como presença a si. A relação determinante entre o Para-si e seu possível é um afrouxamento nadificador do nexo de presença a si: esse afrouxamento se estende à transcendência, pois a presença a si que falta ao Para-si é presença a si que não é. Assim, o Para-si, na medida em que não é si mesmo, é uma presença a si à qual falta certa presença a si, e, precisamente, é a falta desta presença que constitui o Para-si. Toda consciência é falta de... para... Mas devemos entender que a falta não vem de fora, como a fatia de lua que falta à lua crescente. A falta do Para-si é uma falta que ele é. O que constitui o ser do Para-si como fundamento de seu próprio nada é o esboço de uma presença a si enquanto aquilo que falta ao Para-si. O possível é uma ausência constitutiva da consciência na medida em que esta se faz a si mesmo. A sede, por exemplo, jamais é suficientemente sede, na medida que se faz sede: acha-se repassada pela presença do Si, ou Sede-si. Mas, infestada por este valor concreto, coloca-se em questão em seu ser como carente de certo Para-si que a realizaria como sede saciada e lhe conferiria o serEm-si. Este Para-si faltante é o Possível. Não é certo, com efeito, que uma Sede propenda a seu aniquilamento enquanto sede: não há consciência que vise sua supressão como tal. Contudo, a sede é uma falta, como observamos. Como sede, almeja saciar-se, mas esta sede saciada, que se realizaria por assimilação sintética em um ato de coincidência do Para-si-desejo (ou Sede) com o Para-si-reflexão (ou ato de beber), não é visada enquanto supressão da sede, pelo contrário: é sede transportada à plenitude de ser, a sede que capta e incorpora a repleção, tal como a forma aristotélica capta e transforma a matéria; torna-se sede eterna. É muito posterior e reflexivo o ponto de vista do homem que bebe para livrar-se da sede, bem como do homem que vai a bordéis para livrar-se do desejo sexual. A sede, o desejo sexual, no estado irrefletido e ingênuo, querem desfrutar de si mesmos, buscam esta coincidência consigo mesmo que é a satisfação, na qual a sede se conhece como sede ao mesmo tempo que o beber a sacia, na qual, pelo próprio fato de saciar-se, a sede perde seu caráter de falta ao fazer-se sede na e pela satisfação. Assim, Epicuro está ao mesmo tempo certo e errado: por si mesmo, de fato, o desejo é um vazio. Mas nenhum projeto irrefletido tende simplesmente a suprimir esse vazio. Por si mesmo, o desejo tende a perpetuar-se; o homem se apega encarniçadamente a seus desejos. O que o desejo almeja é ser um vazio preenchido que forma sua repleção assim como um molde forma o bronze vertido dentro dele. O possível da consciência de sede é a consciência de beber. Sabe-se, além disso, que a coincidência do si é impossível, porque o Para-si alcançado pela realização do Possível se fará a si mesmo como Para-si, ou seja, com outro horizonte de possíveis. Daí a decepção constante que acompanha a repleção, o famoso “não era mais do que isso?”, que não visa o prazer concreto obtido pela satisfação, mas a evanescência da coincidência com o si. Entrevemos aqui a origem da temporalidade, uma vez que a sede é seu possível ao mesmo tempo que não o é. Esse nada que separa a realidade humana de si mesmo encontra-se na fonte do tempo. O que se deve notar é que o Para-si está separado da Presença a si que lhe falta e é seu possível próprio, separado em certo sentido por Nada, e, em outro, pela totalidade do existente no mundo, na medida em que o Para-si faltante (ou possível) é Para-si enquanto presença a certo estado do mundo. Nesse sentido, o ser para além do qual o Para-si projeta a coincidência com o si é o mundo, ou distância de ser infinita para além da qual o homem deve encontrar seu possível.”


“Mas a lei de ser do instante intramundano, como vimos, pode ser expressa por essas simples palavras: “O ser é” – que indicam uma plenitude maciça de positividades, onde nada do que não é pode ser representado de alguma forma, sequer por um vestígio, um vazio, um sinal, uma “histerese”. O ser que é esgota-se inteiramente no ato de ser; nada tem a ver com o que não é e com o que não é mais. Nenhuma negação, seja radical ou suavizada em “não... mais”, pode ter lugar nesta densidade absoluta. Posto isso, o passado bem pode existir à sua maneira: as pontes estão cortadas. O ser nem mesmo “esqueceu” seu passado: seria ainda uma forma de conexão. O passado lhe escapuliu como um sonho.
Se a concepção de Descartes e a de Bergson podem ser rechaçadas ombro a ombro, é porque ambas incidem na mesma objeção. Que se trate de nadificar o passado ou conservar sua existência de um deus doméstico, esses autores consideraram seu destino à parte, isolando-o do presente; e, qualquer que fosse sua concepção da consciência, conferiram a esta a existência de Em-si, tomaram-na como sendo aquilo que é. Não há por que se admirar depois que tenham fracassado na tentativa de religar o passado ao presente, pois o presente assim concebido irá negar com todas as forças o passado. Se houvessem considerado o fenômeno temporal em sua totalidade, teriam visto que “meu” passado é antes de tudo “meu”, ou seja, existe em função de certo ser que eu sou. O passado não é nada, também não é o presente, mas em sua própria fonte acha-se vinculado a certo presente e certo futuro. Esta qualidade de pertencer-a-mim de que falava Claparede não é uma nuança subjetiva que vem romper a recordação: é uma relação ontológica que une o passado ao presente. Meu passado não aparece jamais no isolamento de sua “preteridade”; seria até absurdo considerar que pudesse existir como tal: é originariamente passado deste presente. E é assim que deve ser elucidado previamente.”


“O que há de terrível na morte é que transforma a vida em destino”. (Malraux)


“A finalidade é a causalidade invertida, ou seja, a eficiência do estado futuro.”


“Ser livre é estar condenado a ser livre.”


“Mas, se o reflexivo é o refletido, se esta unidade de ser fundamenta e limita os direitos da reflexão, convém acrescentar que o próprio refletido é seu passado e seu porvir. Não resta dúvida de que o reflexivo, embora perpetuamente excedido pela totalidade do refletido que ele é à maneira do não ser, estende seus direitos apodícticos a esta totalidade que ele é. Assim, a conquista reflexiva de Descartes, o cogito, não deve ser limitada ao instante infinitesimal. Por outro lado, é isso que poderíamos concluir do fato de que o pensamento é um ato que compromete o passado e faz-se pré-esboçar pelo porvir. Duvido, logo sou, diz Descartes. Mas que restaria da dúvida metódica se pudéssemos limitá-la ao instante? Talvez uma suspensão do juízo. Mas suspensão de juízo não é dúvida, é apenas uma estrutura necessária à dúvida. Para que haja dúvida, é preciso que esta suspensão seja motivada pela insuficiência das razões para afirmar ou negar – o que remete ao passado – e seja deliberadamente mantida até a intervenção de elementos novos, o que já é projeto de porvir. A dúvida aparece sobre o fundo de uma compreensão pré-ontológica do conhecer e de exigências concernentes à verdade. Esta compreensão e essas exigências, que conferem à dúvida toda a sua significação, comprometem a totalidade da realidade humana e seu ser no mundo, pressupõem a existência de um objeto de conhecimento e dúvida, ou seja, uma permanência transcendente no tempo universal; portanto, a dúvida é uma conduta que representa um dos modos de ser-no-mundo da realidade humana. Descobrir-se duvidando já é estar adiante de si mesmo, no futuro (que encobre o objetivo, a cessação e a significação dessa dúvida) estar atrás de si, no passado (que oculta as motivações constituintes da dúvida e suas fases de desenvolvimento) e estar fora de si, no mundo (como presença ao objeto de que se duvida). As mesmas observações poderiam ser aplicadas a qualquer constatação reflexiva: leio, sonho, percebo, atuo. Elas devem nos conduzir a negar evidência apodíctica à reflexão, e aí o conhecimento originário que tenho de mim desfaz-se no provável e minha própria existência não passa de uma probabilidade, porque meu ser-no instante não é um ser – ou então aquelas observações devem estender os direitos da reflexão à totalidade humana, ou seja, ao passado, ao porvir, à presença, ao objeto.”


“Encontro-me por toda parte entre mim mesmo e o ser, como um nada que não é o ser. O mundo é humano. Podemos ver a posição muito particular da consciência: o ser está por toda parte, contra mim, à minha volta, pesa sobre mim, assedia-me, e sou perpetuamente remetido de ser em ser; esta mesa que aí está é ser e nada mais; este rochedo, esta árvore, essa paisagem: o ser e, fora disso, nada. Quero captar este ser e não encontro senão eu mesmo. O conhecimento, intermediário entre o ser e o não-ser, remete-me ao ser absoluto se pretendo fazê-lo subjetivo e a mim mesmo quando suponho captar o absoluto. O sentido mesmo do conhecimento é ser o que não é e não ser o que é, porque, para conhecer o ser tal como é, seria necessário ser este ser; mas não há esse “tal como é” salvo porque não sou o ser que conheço, e, se me convertesse nele, o “tal como é” desvanecer-se-ia e já nem sequer poderia ser pensado. Não se trata aqui de ceticismo – o qual pressupõe precisamente que o “tal como é” pertence ao ser –, nem de relativismo. O conhecimento coloca-nos em presença do absoluto, e há uma verdade do conhecimento. Mas esta verdade, embora nos entregue nem mais nem menos que o absoluto, permanece estritamente humana.”


“Consideremos, por exemplo, a vergonha. Trata-se de um modo de consciência cuja estrutura é idêntica a todas que descrevemos anteriormente. É consciência não-posicional (de) si como vergonha e, como tal, um exemplo do que os alemães denominam “Erlebnis”; é acessível à reflexão. Além disso, sua estrutura é intencional; é apreensão vergonhosa de algo, e esse algo sou eu. Tenho vergonha do que sou. A vergonha, portanto, realiza uma relação íntima de mim comigo mesmo: pela vergonha, descobri um aspecto de meu ser. E, todavia, ainda que certas formas complexas e derivadas da vergonha possam aparecer no plano reflexivo, a vergonha não é originariamente um fenômeno de reflexão. Com efeito, quaisquer que sejam os resultados que se possam obter na solidão pela prática religiosa da vergonha, a vergonha, em sua estrutura primeira, é vergonha diante de alguém. Acabo de cometer um gesto desastrado ou vulgar: esse gesto gruda em mim, não o julgo nem o censuro, apenas o vivencio, realizo-o ao modo do Para-si. Mas, de repente, levanto a cabeça: alguém estava ali e me viu. Constato subitamente toda a vulgaridade de meu gesto e sinto vergonha. Decerto, minha vergonha não é reflexiva, pois a presença do outro à minha consciência, ainda que à maneira de um catalisador, é incompatível com a atitude reflexiva: no campo da minha reflexão, só posso encontrar a consciência que é minha. O outro é o mediador indispensável entre mim e mim mesmo: sinto vergonha de mim tal como apareço ao outro. E, pela aparição mesmo do outro, estou em condições de formular sobre mim um juízo igual ao juízo sobre um objeto, pois é como objeto que apareço ao outro. Contudo, este objeto que apareceu ao outro não é uma imagem vã na mente de outro. Esta imagem, com efeito, seria inteiramente imputável ao outro e não poderia me “tocar”. Eu poderia sentir irritação ou ódio diante dela, como diante de um mau retrato meu, que me desse uma feiura ou uma vileza de expressão que não tenho; mas tal imagem não poderia alcançar-me até a medula: a vergonha é, por natureza, reconhecimento. Reconheço que sou como o outro me vê. Não se trata, contudo, de comparação entre o que sou para mim e o que sou para o outro, como se eu encontrasse em mim, ao modo de ser do Para-si, um equivalente do que sou para o outro. Em primeiro lugar, esta comparação não se encontra em nós a título de operação psíquica concreta: a vergonha é um arrepio imediato que me percorre da cabeça aos pés sem qualquer preparação discursiva. Depois, tal comparação é impossível: não posso relacionar o que sou, na intimidade sem distância, sem recuo, sem perspectiva, do Para-si, com este ser injustificável e Em-si que sou para o outro. Não há aqui padrão ou tabela de correspondência. A própria noção de vulgaridade encerra, por outro lado, uma relação intermonadária. Não se é vulgar sozinho. Assim, o outro não apenas revelou-me o que sou: constituiu-me em novo tipo de ser que deve sustentar qualificações novas. Este ser não estava em mim em potência antes da aparição do outro, pois não teria encontrado lugar no Para-si; e, mesmo se algo se satisfizesse em me dotar de um corpo inteiramente constituído antes que esse corpo fosse para os outros, nem minha vulgaridade nem minha inépcia poderiam alojar-se nele em potência, pois estas são significações e, como tais, transcendem o corpo e remetem ao mesmo tempo a uma testemunha capaz de compreendê-las e à totalidade de minha realidade humana. Mas este novo ser que aparece para o outro não reside no outro: eu sou responsável por ele, como bem demonstra o sistema educativo que consiste em “envergonhar as crianças” pelo que são. Assim, a vergonha é vergonha de si diante do outro; essas duas estruturas são inseparáveis. Mas, ao mesmo tempo, necessito do outro para captar plenamente todas as estruturas de meu ser; o Para-si remete ao Para-outro.”


“A reflexão é o drama do ser que não pode ser objeto para si mesmo.”


Não é a mesma coisa ficar em casa porque está chovendo e ficar em casa porque me proíbem de sair. No primeiro caso, eu mesmo me determino a não sair, em consideração às consequências de meus atos: transcendo o obstáculo “chuva” rumo a mim mesmo e faço dele um instrumento. No segundo caso, são minhas próprias possibilidades de sair ou ficar que me são apresentadas como transcendidas e determinadas e que uma liberdade ao mesmo tempo prevê e previne. Não é por mero capricho se, costumeiramente, fazemos com a maior naturalidade e sem aborrecimento aquilo que nos teria irritado se fosse ordenado por outro. É porque o mando e a proibição exigem que façamos a prova da liberdade do outro através de nossa própria escravidão. Assim, no olhar, a morte de minhas possibilidades faz-me experimentar a liberdade do outro; essa morte realiza-se somente no cerne desta liberdade, e eu – inacessível a mim mesmo e, no entanto, eu mesmo – sou arremessado, deixado aí, no âmago da liberdade do outro.”


“O objeto é aquilo que minha consciência não é, e, por conseguinte, aquilo que não tem os caracteres da consciência, pois o único existente que tem para mim os caracteres da consciência é a consciência que é minha. Assim, o eu-objeto-para-mim é um eu que não é para mim, ou seja, que não tem os caracteres da consciência. É consciência degradada; a objetivação é uma metamorfose radical e, ainda que eu pudesse me ver clara e distintamente como objeto, iria ver, não a representação adequada do que sou em mim e para mim mesmo – esse “monstro incomparável e preferível a tudo” de que fala Malraux –, mas a captação de meu ser-fora-de-mim pelo outro, ou seja, a captação objetiva de meu outro-ser, radicalmente diferente de meu ser-para-mim e que não se refere a este. Captar-me como malvado, por exemplo, não poderia ser referir-me ao que sou para mim, pois não sou nem posso ser malvado para mim mesmo. Primeiro, porque não sou malvado para mim mesmo, assim como não “sou” médico ou funcionário público. Sou, com efeito, ao modo do não ser o que sou e ser o que não sou. A qualificação de malvado, ao contrário, caracteriza-me como um Em-si. Em segundo lugar, porque, se eu pudesse ser malvado para mim, seria preciso que o fosse à maneira do ter-de-ser, ou seja, deveria captar-me e querer-me como malvado. Mas isso significaria que devo me descobrir querendo o que me aparece como o contrário de meu Bem, precisamente porque é o Mal, ou o contrário de meu Bem. Portanto, seria necessário expressamente que eu quisesse o contrário do que quero ao mesmo tempo e conforme a mesma relação, ou seja, que odiasse a mim mesmo, precisamente sendo eu mesmo. E, para realizar plenamente esta essência da maldade no terreno do Para-si, seria preciso que me assumisse como malvado, ou seja, que me aprovasse pelo mesmo ato com que me reprovo. Logo, vê-se que esta noção de maldade de forma alguma poderia obter sua origem de mim, enquanto eu sou eu. E seria inútil levar a seus extremos limites o ek-stase, ou desprendimento de mim, que me constitui para-mim; jamais lograria conferir-me a maldade ou sequer concebê-la estando entregue a meus próprios recursos. Porque sou meu desprendimento de mim, sou meu próprio nada; basta que eu seja meu próprio mediador entre mim e mim mesmo para que toda objetividade desapareça. Não devo ser esse nada que me separa do objeto-eu, porque é preciso que haja apresentação a mim do objeto que sou. Assim, eu não poderia conferir a mim qualquer qualidade sem a mediação de um poder objetivador, o qual não é meu próprio poder e não posso inventar ou forjar. Sem dúvida, isso não é novidade: há muito se dizia que o outro me ensina o que sou. Mas os mesmos que sustentavam esta tese afirmavam, por outro lado, que extraímos o conceito de outro de nós mesmos, por reflexão sobre meus próprios poderes e por projeção ou analogia. Permaneciam, pois, em um círculo vicioso do qual não podiam sair. De fato, o outro não poderia ser o sentido de minha objetividade: é, sim, sua condição concreta e transcendente. Por isso, com efeito, essas qualidades de “malvado”, “ciumento”, “simpático ou antipático” etc., não são sonhos vazios: quando as emprego para qualificar o outro, estou ciente de que pretendo alcançá-lo em seu ser. E, todavia, não posso vivê-las enquanto realidades minhas: se o outro as atribui a mim, são admitidas pelo que sou para mim, mas, quando o outro faz uma descrição de meu caráter, não me “reconheço”, e, contudo, sei que “sou eu”. Este estranho que me apresentam, eu o assumo em seguida, sem que deixe de ser um estranho. Isso porque não se trata de simples unificação de minhas representações subjetivas, ou de um “Eu” que eu sou, no sentido do “lch bin lch* (de Hegel)”, ou de uma imagem vã que o outro faz de mim e da qual é o único responsável: esse eu, incomparável ao eu que tenho-de-ser, continua sendo eu, mas metamorfoseado por um meio novo e adaptado a esse meio; é um ser, meu ser, mas com dimensões de ser e de modalidades inteiramente novas; sou eu separado de mim por um nada intransponível, porque sou esse eu, mas não sou esse nada que me separa de mim. É o eu que sou por um ek-stase último que transcende todos os meus ek-stases, pois não é o ek-stase que tenho-de-ser. Meu ser Para-outro é uma queda através do vazio absoluto em direção à objetividade. E, como esta queda é alienação, não posso fazer-me objeto para mim, uma vez que em nenhum caso posso alienar-me de mim mesmo. (...)
Mesmo quando a linguagem me revelou que o outro me considera malvado ou ciumento, jamais terei uma intuição concreta de minha maldade ou meu ciúme. Jamais serão mais que noções fugazes, cuja natureza mesmo será a de escapar-me: não irei captar minha maldade, mas sim, a propósito de tal ou qual ato, irei escapar a mim, sentir minha alienação e meu fluir rumo a ... um ser que só poderei pensar no vazio como malvado e, no entanto, sentirei ser, um ser que irei viver à distância, pela vergonha ou pelo medo.
Assim, meu eu-objeto não é conhecimento nem unidade de conhecimento, mas mal-estar, desprendimento vivido da unidade ek-stática do Para-si, limite que não posso alcançar e, todavia, sou. E o outro, através do qual esse eu me advém, não é conhecimento nem categoria, mas o fato da presença de uma liberdade estranha. Na verdade, meu desprendimento de mim e o surgimento da liberdade do outro constituem uma só coisa; só posso senti-los e vivê-los juntos; sequer posso tentar conceber um sem o outro. O fato do outro é incontestável e me alcança em meu âmago. Dele me dou conta pelo mal-estar; através dele estou perpetuamente em perigo em um mundo que é esse mundo e que, no entanto, só posso pressentir; e o outro não me aparece como um ser que fosse primeiro constituído para encontrar-se comigo depois, mas como ser que surge em relação originária de ser comigo, tão indubitável como minha própria consciência e com igual necessidade de fato.
*Em alemão: “Eu sou eu” (N. do T.).


“Se ocorre de aparecermos “em público” para interpretar um papel ou dar uma conferência, não esquecemos o fato de que somos vistos e executamos o conjunto dos atos que viemos fazer em presença do olhar, ou melhor, tentamos constituir um ser e um conjunto de objetos para esse olhar. Mas não enumeramos o olhar. Enquanto falamos, atentos apenas às ideias que queremos desenvolver, a presença do outro permanece indiferenciada. Seria falso unificá-la sob os rótulos de “classe”, “auditório” etc.: temos, com efeito, consciência de um ser concreto e individualizado, com uma consciência coletiva; são imagens que poderão servir para traduzir depois nossa experiência, mas não corresponderão a ela nem pela metade. Mas tampouco captamos um olhar plural. Trata-se, sobretudo, de uma realidade impalpável, fugaz e onipresente, que realiza, frente a nós, o nosso eu não-revelado e que colabora conosco na produção desse Eu que nos escapa. Se, ao contrário, quero verificar se meu pensamento foi bem compreendido e, por minha vez, olho o auditório, verei subitamente aparecerem as cabeças e os olhos. Objetivando-se, a realidade pré-numérica do outro é decomposta e pluralizada. Mas desapareceu também o olhar. É a esta realidade pré-numérica e concreta, bem mais que a um estado de inautenticidade da realidade humana, que convém reservar o termo “se”. Perpetuamente, onde quer que esteja, olha-se para mim. O se jamais é captado como objeto: desagrega instantaneamente.
Assim, o olhar colocou-nos no encalço de nosso ser-Para-outro e nos revelou a existência indubitável deste outro para o qual somos. Mas não poderia nos levar mais longe.”

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