Editora: Vozes
ISBN: 978-85-3261-762-0
Tradução e notas: Paulo Perdigão
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 784
Sinopse: Ver Parte
I
“Nosso olhar ou nossa atenção, ou seja, fixar
simplesmente os olhos em outro objeto qualquer; a partir desse momento, cada
realidade – a minha e a do objeto – retoma sua vida própria, e a relação
acidental que unia a consciência à coisa desaparece sem alterar por isso nem
uma nem outra existência. Mas se aquilo que quero velar sou eu, a
questão assume outra fisionomia; não posso querer “não ver” certo aspecto de
meu ser, com efeito, salvo se estiver precisamente ciente do aspecto que não
quero ver. Significa que preciso indicá-lo em meu ser para poder afastar-me
dele: melhor dito, é necessário que pense nele constantemente para evitar
pensar nele. Não se deve entender por isso apenas que, por necessidade, devo
levar perpetuamente comigo aquilo de que quero fugir, mas também que devo
encarar o objeto de minha fuga para evitá-lo, o que significa que angústia,
enfoque intencional da angústia e fuga da angústia rumo a mitos
tranquilizadores precisam ser dados na unidade de uma mesma consciência. Em
resumo, fujo para ignorar, mas não posso ignorar que fujo, e a fuga da angústia
não passa de um modo de tomar consciência da angústia. Assim, esta não pode
ser, propriamente falando, nem mascarada nem evitada. Fugir da angústia e ser
angústia, todavia, não podem ser exatamente a mesma coisa: se eu sou minha
angústia para dela fugir, isso pressupõe que sou capaz de me desconcentrar com
relação ao que sou, posso ser angústia sob a forma de “não sê-la”, posso dispor
de um poder nadificador no bojo da própria angústia. Este poder nadifica a
angústia enquanto dela fujo e nadifica a si enquanto sou angústia para dela
fugir. É o que se chama de má-fé. Não se trata, pois, de expulsar a
angústia da consciência ou constituí-la em fenômeno psíquico inconsciente;
simplesmente, posso ficar de má-fé na apreensão da angústia que sou, e esta
má-fé, destinada a preencher o nada que sou na minha relação comigo
mesmo, implica precisamente esse nada que ela suprime.”
“Se quisermos sair dessa dificuldade, convém
examinar mais de perto condutas de má-fé e tentar uma descrição que talvez nos
permita estabelecer com mais nitidez as condições de possibilidade de má-fé, ou
seja, responder à questão inicial: “Que há de ser o homem em seu ser para poder
ser de má-fé?”
Eis, por exemplo, o caso de uma mulher que
vai a um primeiro encontro. Ela sabe perfeitamente as intenções que o homem que
lhe fala tem a seu respeito. Também sabe que, cedo ou tarde, terá de tomar uma
decisão. Mas não quer sentir a urgência disso: atém-se apenas ao que de
respeitoso e discreto oferece a atitude do companheiro. Não a apreende como
tentativa de estabelecer os chamados “primeiros contatos”, ou seja, não quer
ver as possibilidades de desenvolvimento temporal apresentadas por essa
conduta: limita-a ao que é no presente, só quer interpretar nas frases que ouve
o seu sentido explícito, e se lhe dizem “eu te amo muito”, despoja a frase de
seu âmago sexual: vincula aos discursos e à conduta de seu interlocutor
significações imediatas, que encara como qualidades objetivas. O homem que fala
parece sincero e respeitoso, como a mesa é redonda ou quadrada, o revestimento
de parede azul ou cinzento. E qualidades assim atribuídas à pessoa a quem ouve
são então fixadas em uma permanência coisificante que não passa de projeção do
estrito presente no fluxo temporal. A mulher não se dá conta do que deseja: é
profundamente sensível ao desejo que inspira, mas o desejo nu e cru a
humilharia e lhe causaria horror. Contudo, não haveria encanto algum em um
respeito que fosse apenas respeito. Para satisfazê-la, é necessário um
sentimento que se dirija por inteiro à sua pessoa, ou seja, à sua
liberdade plenária, e seja reconhecimento de sua liberdade. Mas é preciso, ao
mesmo tempo, que tal sentimento seja todo inteiro desejo, quer dizer, dirija-se
a seu corpo como objeto. Portanto, desta vez ela se nega a captar o desejo como
é, sequer lhe dá nome, só o reconhece na medida em que se transcende para a
admiração, a estima, o respeito, e se absorve inteiramente nas formas mais
elevadas que produz, a ponto de já não constar delas a não ser como uma espécie
de calor e densidade. Mas eis que lhe seguram a mão. O gesto de seu
interlocutor ameaça mudar a situação, provocando uma decisão imediata:
abandonar a mão é consentir no flerte, comprometer-se; retirá-la é romper com a
harmonia turva e instável que constitui o charme do momento. Trata-se de retardar
o mais possível a hora da decisão. O que acontece então é conhecido: a jovem
abandona a mão, mas não percebe que a abandona. Não percebe porque,
casualmente, nesse momento ela é puro espírito. Conduz seu interlocutor às
regiões mais elevadas da especulação sentimental, fala da vida, de sua vida,
mostra-se em seu aspecto essencial: uma pessoa, uma consciência. E,
entrementes, realizou-se o divórcio entre corpo e alma: a mão repousa inerte
entre as mãos cálidas de seu companheiro, nem aceitante, nem resistente – uma
coisa.
Diremos que essa mulher está de má-fé. Mas,
em seguida, vemos que recorre a vários procedimentos para nela se manter.
Desarmou as ações do companheiro, reduzindo-as a não ser mais do que são, ou
seja, a existir à maneira do Em-si. Mas ela se permite desfrutar do desejo, na
medida em que o apreenda como não sendo o que é, ou seja, o reconheça em sua
transcendência. Por último, sem deixar de sentir profundamente a presença do
próprio corpo – talvez a ponto de se abalar – ela se vê como não sendo o
próprio corpo e o contempla do alto, como objeto passivo, com o qual podem ocorrer
certos fatos, mas que é incapaz de provocá-los ou evitá-los, pois seus
possíveis todos estão de fora. Que unidade encontramos nesses aspectos da
má-fé?
Certa arte de formar conceitos
contraditórios, quer dizer, que unam em si determinada idéia e a negação dessa
idéia. O conceito de base assim engendrado utiliza a dupla propriedade do ser
humano de ser facticidade e transcendência. Na verdade, dois
aspectos da realidade humana que são e devem ser muito bem coordenados. Mas a
má-fé não pretende coordená-los ou superá-los em uma síntese. Para ela,
trata-se de afirmar a identidade de ambos, conservando suas diferenças. É preciso
afirmar a facticidade como sendo transcendência e a transcendência como sendo
facticidade, de modo que se possa, no momento que captamos uma, deparar
bruscamente com a outra. O protótipo das fórmulas de má-fé será dado por certas
frases célebres, concebidas justamente para produzir o maior efeito, no
espírito da má-fé. Por exemplo, o título de uma obra de Jacques Chardonne: “O
amor é bem mais que amor”. Faz-se aqui a unidade entre o amor presente em
sua facticidade, “contato de duas epidermes”, sensualidade, egoísmo, mecanismo
proustiano do ciúme, luta adleriana dos sexos, etc., e o amor como transcendência,
o “rio de fogo” de Mauriac, chamado do infinito, eras platônico, surda
intuição cósmica de Lawrence, etc. Partimos da facticidade para nos
encontrarmos de súbito – além do presente e da condição fatual do homem, além
do psicológico – em plena metafísica. Ao contrário, o título de uma peça de
Sarment, Sou grande demais para mim*, que também ostenta caracteres da
má-fé, nos coloca primeiro em plena transcendência para de repente nos
aprisionar nos estreitos limites de nossa essência fatual. Idênticas estruturas
se acham na famosa frase “ele se tornou o que era”**, ou no seu inverso não
menos conhecido, “como a eternidade o transforma afinal nele mesmo”***. Claro
que essas fórmulas têm apenas aparência de má-fé, e foram explicitamente
concebidas dessa forma paradoxal para surpreender o espírito e desconcertá-lo
com um enigma. Mas é exatamente esta aparência que interessa. Importa que tais
fórmulas não constituam noções novas e solidamente estruturadas; ao contrário,
estão construídas de forma a permanecer em perpétua desagregação e tornar
possível perpétuo deslizamento do presente naturalista à transcendência e
vice-versa. Nota-se, de fato, o uso que a má-fé pode fazer desses juízos
tendentes a estabelecer que eu não sou o que sou. Se não fosse o que sou, poderia,
por exemplo, encarar seriamente a crítica que me fazem, interrogar-me com
escrúpulo e talvez me visse forçado a reconhecer sua verdade. Mas,
precisamente, pela transcendência, escapo a tudo que sou. Sequer tenho de
discutir se a censura está bem ou mal fundamentada, no sentido em que Susana
diz a Figaro: “Mostrar que tenho razão seria reconhecer que posso estar errada”.
Estou em um plano onde nenhuma crítica pode me atingir, pois o que verdadeiramente
sou é minha transcendência: fujo, me liberto, deixo meus andrajos nas
mãos de meu censor. Só que a ambiguidade necessária à má-fé advém da afirmação
de que sou minha transcendência à maneira de ser da coisa. E só assim,
de fato, posso me sentir livre da censura. Nesse sentido, nossa jovem purifica
o desejo, livrando-o do que possa ter de humilhante, ao querer levar em conta
apenas sua pura transcendência, chegando a evitar dar-lhe nome sequer. Mas, ao
contrário, o “sou grande demais para mim”, ao mostrar a transcendência
transformada em facticidade, é fonte de infinidade de desculpas para nossos
fracassos ou fraquezas. Da mesma forma, a jovem coquette mantém a
transcendência na medida em que o respeito e a estima manifestados pelas
condutas de seu pretendente já se acham no plano do transcendente. Mas ela
detém a transcendência nesse ponto, empastando-a com toda a facticidade do
presente: o respeito não é mais que respeito, transcender coagulado que já não
se transcende para nada.”
* Em francês: Je suis trop grand pour moi {N.
do T.). / ** Em francês: “li est devenu ce qu’il était” (N. do T.). / ***Verso
de Mallarmé. Em francês: “Tel qu’en lui-même enfin l’éternité le change” (N. do
T.).
“O verdadeiro problema da má-fé decorre,
evidentemente, do fato de que a má-fé é fé. Não pode ser mentira cínica
nem evidência, sendo a evidência possessão intuitiva do objeto. Mas, se
denominamos crença a adesão do ser ao seu objeto, quando este não está dado ou
é dado indistintamente, então a má-fé é crença, e o problema essencial da má-fé
um problema de crença. Como podemos crer de má-fé em conceitos que forjamos
expressamente para nos persuadir? Observe-se, com efeito, que o projeto de
má-fé deve ser ele próprio de má-fé: não sou de má-fé apenas ao fim do meu
esforço, depois de ter construído meus conceitos anfibológicos e deles me
persuadir. Para dizer a verdade, não me persuadi: na medida em que pude estar
persuadido, estive assim sempre. Foi preciso que, no momento mesmo em que me
dispus a me fazer de má-fé, já fosse de má-fé com relação a essas próprias
disposições. Se eu as representasse como de má-fé, seria cinismo; acreditá-las
sinceramente inocentes teria sido de boa-fé. A decisão de ser de má-fé não ousa
dizer seu nome, acredita-se e não se acredita de má-fé. E, desde a aparição da
má-fé, decide ela mesma sobre toda atitude ulterior e, em certo modo, sobre a Weltanschauung*
da má-fé. Porque a má-fé não conserva as normas e critérios da verdade tal
como aceitos pelo pensamento crítico de boa-fé. De fato, o que ela decide
inicialmente é a natureza da verdade. Com a má-fé aparecem uma verdade, um
método de pensar, um tipo de ser dos objetos; e esse mundo de má-fé, que de
pronto cerca o sujeito, tem por característica ontológica o fato de que, nele o
ser é o que não é e não é o que é. Em consequência, surge um tipo singular de
evidência: a evidência não persuasiva. A má-fé apreende evidências, mas
está de antemão resignada a não ser preenchida por elas, não ser persuadida e
transformada em boa-fé: faz-se humildade e modesta, não ignora – diz – que fé é
decisão, e que, após cada intuição, é preciso decidir e querer aquilo que é.
Assim, a má-fé, em seu projeto definitivo, e desde sua aparição, decide
sobre a natureza exata de suas exigências, se delineia inteira na resolução de não
pedir demais, dá-se por satisfeita quando mal persuadida, força por decisão
suas adesões a verdades incertas. Esse projeto inicial de má-fé é uma decisão
de má-fé sobre a natureza da fé. Entendamos bem que não se trata de uma decisão
reflexiva e voluntária, e sim de uma determinação espontânea de nosso ser. Fazemo-nos
de má-fé como quem adormece e somos de má-fé como quem sonha. Uma vez
realizado esse modo de ser, é tão difícil sair dele quanto alguém despertar a
si próprio: a má-fé é um tipo de ser no mundo, como a vigília ou o sonho, e
tende por si a perpetuar-se, embora sua estrutura seja do tipo metaestável. Mas
a má-fé é consciente de sua estrutura e tomou precauções, decidindo que a
estrutura metaestável era a estrutura do ser e a não-persuasão a estrutura de
todas as convicções. Resulta, portanto, que se a má-fé é fé e implica em
seu primeiro projeto sua própria negação (determina-se a estar mal persuadida
para persuadir-se de que sou o que não sou), é preciso que, em sua origem, seja
possível uma fé que queira estar mal convencida.”
* Em alemão: mundividência, cosmovisão (N. do
T.).
“Por outro lado, não se deve conceber este
ser como presente à consciência apenas com os caracteres abstratos que nossas
investigações estabeleceram. A consciência concreta surge em situação, e é
consciência singular e individualizada desta situação e (de) si mesmo em
situação. A esta consciência concreta está presente o si, e todos os caracteres
concretos da consciência têm seus correlatos na totalidade do si. O si é individual
e impregna o Para-si como seu acabamento individual. Um sentimento, por
exemplo, é sentimento em presença de uma norma, ou seja, de um sentimento do
mesmo tipo, mas que fosse o que e. Esta norma ou totalidade do si afetivo está
diretamente presente como falta padecida no próprio âmago do sofrimento.
Sofremos, e sofremos por não sofrer o bastante. O sofrimento de que falamos jamais
é exatamente aquele que sentimos. Aquilo que chamamos de sofrimento “nobre”, “bom”
ou “verdadeiro” e que nos comove é o sofrimento que lemos no rosto dos outros,
ou, melhor ainda, nos retratos, na face de uma estátua, em uma máscara trágica.
Um sofrimento que tem ser. É nos apresentado como um todo compacto e
objetivo, que não aguardava nossa chegada para ser e excede a consciência que
temos dele· está aí, no meio do mundo, impenetrável e denso, como esta árvore ou
esta pedra, perdurando; enfim, é o que é. Dele podemos dizer: este sofrimento
que se expressa por esse ríctus, esse franzir de sobrancelhas. Acha-se
sustentado e é expresso pela fisionomia, mas não é criado por ela. Colocou-se
sobre a fisionomia, está mais além tanto da passividade como da atividade,
tanto da negação como da afirmação: simplesmente é. E, todavia, não pode ser
salvo como consciência de si. Bem sabemos que essa máscara não exprime o esgar
inconsciente de quem dorme, nem o ríctus de um morto: remete a possíveis, a uma
situação no mundo. O sofrimento é a relação consciente a esses possíveis, a
esta situação, porém solidificado, fundido no bronze do ser: e é enquanto tal
que nos fascina: é como uma aproximação degradada deste sofrimento-em-si que
impregna nosso próprio sofrimento. O sofrimento que eu experimento, ao
contrário, nunca é sofrimento bastante, posto que se nadifica como Em-si pelo
próprio ato com que se fundamenta. Escapa como sofrimento rumo à consciência de
sofrer. Jamais posso ser surpreendido por ele, porque o sofrimento só é
na medida exata em que o experimento. Sua translucidez o priva de toda
profundidade. Não posso observá-lo como observo o sofrimento da estátua, porque
eu o constituo e o conheço. Se fosse necessário sofrer, gostaria que meu
sofrimento se apoderasse de mim e me inundasse como uma tempestade: mas, ao
contrário, é preciso que eu o traga à existência em minha livre espontaneidade.
Gostaria de sê-lo e padecê-lo ao mesmo tempo, mas este sofrimento enorme e
opaco que me transportaria para fora de mim continuamente me roça com sua asa e
não posso captá-lo, só encontro a mim mesmo; a mim, que lamento e gemo;
a mim, que devo representar sem trégua a farsa de sofrer de modo a realizar
este sofrimento que sou. Agito os braços, grito, para que seres Em-si – sons,
gestos – circulem pelo mundo, conduzidos pelo sofrimento Em-si que não posso
ser. Cada lamento, cada fisionomia de quem sofre aspira a esculpir uma estátua
Em-si do sofrimento. Mas esta estátua jamais existirá, salvo pelos outros e
para os outros. Meu sofrimento sofre por ser o que não é, por não ser o que é;
a ponto de encontrar-se consigo mesmo, escapa, separado de si por nada, por
esse nada do qual é o fundamento. Por não ser o bastante, tagarela, mas seu
ideal é o silêncio. O silêncio da estátua, do homem abatido que abaixa a cabeça
e cobre o rosto sem dizer nada. Mas este homem silencioso só se cala para
mim. Em si mesmo, tagarela inesgotavelmente, porque as palavras da
linguagem interior são como esboços do “si” do sofrimento. Somente a meus olhos
é que ele está “esmagado” pelo sofrimento: em si mesmo, sente-se responsável
por esta dor que ele deseja sem desejar e não deseja desejando, e está
impregnada por perpétua ausência – a ausência do sofrimento imóvel e mudo que é
o si, a totalidade concreta e inatingível do Para-si que sofre, o para
da Realidade-humana sofredora. Como se vê, este sofrimento-si que visita
meu sofrimento jamais é posicionado por este. E meu sofrimento real não é um esforço
para alcançar o si. Mas só pode ser sofrimento como consciência (de)
não ser suficiente· mente sofrimento em presença deste sofrimento pleno
e ausente.”
“Concretamente, cada Para-si é falta
de certa coincidência consigo mesmo. Significa que está impregnado pela
presença daquilo com que deveria coincidir para ser si mesmo. Mas, como
esta coincidência em Si é também coincidência com o Si, o que falta ao Para-si,
enquanto ser cuja assimilação a si o tornaria Si, é também Para-si. Vimos que o
Para-si era “presença a si”: o que falta à presença a si só pode lhe faltar
como presença a si. A relação determinante entre o Para-si e seu possível é um
afrouxamento nadificador do nexo de presença a si: esse afrouxamento se estende
à transcendência, pois a presença a si que falta ao Para-si é presença a si que
não é. Assim, o Para-si, na medida em que não é si mesmo, é uma
presença a si à qual falta certa presença a si, e, precisamente, é a falta
desta presença que constitui o Para-si. Toda consciência é falta de...
para... Mas devemos entender que a falta não vem de fora, como a fatia de
lua que falta à lua crescente. A falta do Para-si é uma falta que ele é. O que
constitui o ser do Para-si como fundamento de seu próprio nada é o esboço de
uma presença a si enquanto aquilo que falta ao Para-si. O possível é uma
ausência constitutiva da consciência na medida em que esta se faz a si mesmo. A
sede, por exemplo, jamais é suficientemente sede, na medida que se faz sede:
acha-se repassada pela presença do Si, ou Sede-si. Mas, infestada por este
valor concreto, coloca-se em questão em seu ser como carente de certo Para-si
que a realizaria como sede saciada e lhe conferiria o serEm-si. Este
Para-si faltante é o Possível. Não é certo, com efeito, que uma Sede propenda a
seu aniquilamento enquanto sede: não há consciência que vise sua supressão como
tal. Contudo, a sede é uma falta, como observamos. Como sede, almeja saciar-se,
mas esta sede saciada, que se realizaria por assimilação sintética em um
ato de coincidência do Para-si-desejo (ou Sede) com o Para-si-reflexão (ou ato
de beber), não é visada enquanto supressão da sede, pelo contrário: é sede
transportada à plenitude de ser, a sede que capta e incorpora a repleção, tal
como a forma aristotélica capta e transforma a matéria; torna-se sede eterna. É
muito posterior e reflexivo o ponto de vista do homem que bebe para livrar-se
da sede, bem como do homem que vai a bordéis para livrar-se do desejo sexual. A
sede, o desejo sexual, no estado irrefletido e ingênuo, querem desfrutar de si
mesmos, buscam esta coincidência consigo mesmo que é a satisfação, na qual a
sede se conhece como sede ao mesmo tempo que o beber a sacia, na qual, pelo
próprio fato de saciar-se, a sede perde seu caráter de falta ao fazer-se sede
na e pela satisfação. Assim, Epicuro está ao mesmo tempo certo e errado: por si
mesmo, de fato, o desejo é um vazio. Mas nenhum projeto irrefletido tende
simplesmente a suprimir esse vazio. Por si mesmo, o desejo tende a
perpetuar-se; o homem se apega encarniçadamente a seus desejos. O que o desejo
almeja é ser um vazio preenchido que forma sua repleção assim como um molde
forma o bronze vertido dentro dele. O possível da consciência de sede é a
consciência de beber. Sabe-se, além disso, que a coincidência do si é
impossível, porque o Para-si alcançado pela realização do Possível se fará a si
mesmo como Para-si, ou seja, com outro horizonte de possíveis. Daí a decepção
constante que acompanha a repleção, o famoso “não era mais do que isso?”, que
não visa o prazer concreto obtido pela satisfação, mas a evanescência da
coincidência com o si. Entrevemos aqui a origem da temporalidade, uma vez que a
sede é seu possível ao mesmo tempo que não o é. Esse nada que
separa a realidade humana de si mesmo encontra-se na fonte do tempo. O que se
deve notar é que o Para-si está separado da Presença a si que lhe falta e é seu
possível próprio, separado em certo sentido por Nada, e, em outro, pela
totalidade do existente no mundo, na medida em que o Para-si faltante (ou
possível) é Para-si enquanto presença a certo estado do mundo. Nesse
sentido, o ser para além do qual o Para-si projeta a coincidência com o si é o
mundo, ou distância de ser infinita para além da qual o homem deve encontrar
seu possível.”
“Mas a lei de ser do instante intramundano,
como vimos, pode ser expressa por essas simples palavras: “O ser é” – que
indicam uma plenitude maciça de positividades, onde nada do que não é pode
ser representado de alguma forma, sequer por um vestígio, um vazio, um sinal,
uma “histerese”. O ser que é esgota-se inteiramente no ato de ser; nada
tem a ver com o que não é e com o que não é mais. Nenhuma negação, seja radical
ou suavizada em “não... mais”, pode ter lugar nesta densidade absoluta. Posto
isso, o passado bem pode existir à sua maneira: as pontes estão cortadas. O ser
nem mesmo “esqueceu” seu passado: seria ainda uma forma de conexão. O passado
lhe escapuliu como um sonho.
Se a concepção de Descartes e a de Bergson
podem ser rechaçadas ombro a ombro, é porque ambas incidem na mesma objeção.
Que se trate de nadificar o passado ou conservar sua existência de um deus
doméstico, esses autores consideraram seu destino à parte, isolando-o do
presente; e, qualquer que fosse sua concepção da consciência, conferiram a esta
a existência de Em-si, tomaram-na como sendo aquilo que é. Não há por que se
admirar depois que tenham fracassado na tentativa de religar o passado ao
presente, pois o presente assim concebido irá negar com todas as forças o
passado. Se houvessem considerado o fenômeno temporal em sua totalidade, teriam
visto que “meu” passado é antes de tudo “meu”, ou seja, existe em função
de certo ser que eu sou. O passado não é nada, também não é o
presente, mas em sua própria fonte acha-se vinculado a certo presente e certo
futuro. Esta qualidade de pertencer-a-mim de que falava Claparede não é uma
nuança subjetiva que vem romper a recordação: é uma relação ontológica que une
o passado ao presente. Meu passado não aparece jamais no isolamento de sua “preteridade”;
seria até absurdo considerar que pudesse existir como tal: é
originariamente passado deste presente. E é assim que deve ser elucidado
previamente.”
“O que há de terrível na morte é que
transforma a vida em destino”. (Malraux)
“A finalidade é a causalidade invertida, ou
seja, a eficiência do estado futuro.”
“Ser livre é estar condenado a ser livre.”
“Mas, se o reflexivo é o refletido, se esta
unidade de ser fundamenta e limita os direitos da reflexão, convém acrescentar
que o próprio refletido é seu passado e seu porvir. Não resta dúvida de que o
reflexivo, embora perpetuamente excedido pela totalidade do refletido que ele é
à maneira do não ser, estende seus direitos apodícticos a esta totalidade que
ele é. Assim, a conquista reflexiva de Descartes, o cogito, não deve ser
limitada ao instante infinitesimal. Por outro lado, é isso que poderíamos
concluir do fato de que o pensamento é um ato que compromete o passado e
faz-se pré-esboçar pelo porvir. Duvido, logo sou, diz Descartes. Mas que
restaria da dúvida metódica se pudéssemos limitá-la ao instante? Talvez uma
suspensão do juízo. Mas suspensão de juízo não é dúvida, é apenas uma estrutura
necessária à dúvida. Para que haja dúvida, é preciso que esta suspensão seja
motivada pela insuficiência das razões para afirmar ou negar – o que remete ao
passado – e seja deliberadamente mantida até a intervenção de elementos novos,
o que já é projeto de porvir. A dúvida aparece sobre o fundo de uma compreensão
pré-ontológica do conhecer e de exigências concernentes à verdade. Esta
compreensão e essas exigências, que conferem à dúvida toda a sua significação,
comprometem a totalidade da realidade humana e seu ser no mundo, pressupõem a
existência de um objeto de conhecimento e dúvida, ou seja, uma
permanência transcendente no tempo universal; portanto, a dúvida é uma conduta
que representa um dos modos de ser-no-mundo da realidade humana.
Descobrir-se duvidando já é estar adiante de si mesmo, no futuro (que encobre o
objetivo, a cessação e a significação dessa dúvida) estar atrás de si, no
passado (que oculta as motivações constituintes da dúvida e suas fases de
desenvolvimento) e estar fora de si, no mundo (como presença ao objeto de que
se duvida). As mesmas observações poderiam ser aplicadas a qualquer constatação
reflexiva: leio, sonho, percebo, atuo. Elas devem nos conduzir a negar
evidência apodíctica à reflexão, e aí o conhecimento originário que tenho de
mim desfaz-se no provável e minha própria existência não passa de uma
probabilidade, porque meu ser-no instante não é um ser – ou então aquelas
observações devem estender os direitos da reflexão à totalidade humana, ou
seja, ao passado, ao porvir, à presença, ao objeto.”
“Encontro-me por toda parte entre mim mesmo e
o ser, como um nada que não é o ser. O mundo é humano. Podemos ver a
posição muito particular da consciência: o ser está por toda parte, contra mim,
à minha volta, pesa sobre mim, assedia-me, e sou perpetuamente remetido de ser
em ser; esta mesa que aí está é ser e nada mais; este rochedo, esta
árvore, essa paisagem: o ser e, fora disso, nada. Quero captar este ser
e não encontro senão eu mesmo. O conhecimento, intermediário entre o ser
e o não-ser, remete-me ao ser absoluto se pretendo fazê-lo subjetivo e a mim
mesmo quando suponho captar o absoluto. O sentido mesmo do conhecimento é ser o
que não é e não ser o que é, porque, para conhecer o ser tal como é, seria
necessário ser este ser; mas não há esse “tal como é” salvo porque não sou o
ser que conheço, e, se me convertesse nele, o “tal como é” desvanecer-se-ia e
já nem sequer poderia ser pensado. Não se trata aqui de ceticismo – o qual
pressupõe precisamente que o “tal como é” pertence ao ser –, nem de
relativismo. O conhecimento coloca-nos em presença do absoluto, e há uma
verdade do conhecimento. Mas esta verdade, embora nos entregue nem mais nem
menos que o absoluto, permanece estritamente humana.”
“Consideremos, por exemplo, a vergonha.
Trata-se de um modo de consciência cuja estrutura é idêntica a todas que
descrevemos anteriormente. É consciência não-posicional (de) si como vergonha
e, como tal, um exemplo do que os alemães denominam “Erlebnis”; é acessível à reflexão.
Além disso, sua estrutura é intencional; é apreensão vergonhosa de algo,
e esse algo sou eu. Tenho vergonha do que sou. A vergonha,
portanto, realiza uma relação íntima de mim comigo mesmo: pela vergonha,
descobri um aspecto de meu ser. E, todavia, ainda que certas formas
complexas e derivadas da vergonha possam aparecer no plano reflexivo, a
vergonha não é originariamente um fenômeno de reflexão. Com efeito, quaisquer
que sejam os resultados que se possam obter na solidão pela prática religiosa
da vergonha, a vergonha, em sua estrutura primeira, é vergonha diante de
alguém. Acabo de cometer um gesto desastrado ou vulgar: esse gesto gruda em
mim, não o julgo nem o censuro, apenas o vivencio, realizo-o ao modo do
Para-si. Mas, de repente, levanto a cabeça: alguém estava ali e me viu.
Constato subitamente toda a vulgaridade de meu gesto e sinto vergonha. Decerto,
minha vergonha não é reflexiva, pois a presença do outro à minha consciência,
ainda que à maneira de um catalisador, é incompatível com a atitude reflexiva:
no campo da minha reflexão, só posso encontrar a consciência que é minha. O
outro é o mediador indispensável entre mim e mim mesmo: sinto vergonha de mim tal
como apareço ao outro. E, pela aparição mesmo do outro, estou em
condições de formular sobre mim um juízo igual ao juízo sobre um objeto, pois é
como objeto que apareço ao outro. Contudo, este objeto que apareceu ao outro
não é uma imagem vã na mente de outro. Esta imagem, com efeito, seria
inteiramente imputável ao outro e não poderia me “tocar”. Eu poderia
sentir irritação ou ódio diante dela, como diante de um mau retrato meu, que me
desse uma feiura ou uma vileza de expressão que não tenho; mas tal imagem não
poderia alcançar-me até a medula: a vergonha é, por natureza, reconhecimento.
Reconheço que sou como o outro me vê. Não se trata, contudo, de
comparação entre o que sou para mim e o que sou para o outro, como se eu
encontrasse em mim, ao modo de ser do Para-si, um equivalente do que sou para o
outro. Em primeiro lugar, esta comparação não se encontra em nós a título de
operação psíquica concreta: a vergonha é um arrepio imediato que me percorre da
cabeça aos pés sem qualquer preparação discursiva. Depois, tal comparação é impossível:
não posso relacionar o que sou, na intimidade sem distância, sem recuo, sem
perspectiva, do Para-si, com este ser injustificável e Em-si que sou para o
outro. Não há aqui padrão ou tabela de correspondência. A própria noção de vulgaridade
encerra, por outro lado, uma relação intermonadária. Não se é vulgar
sozinho. Assim, o outro não apenas revelou-me o que sou: constituiu-me em novo
tipo de ser que deve sustentar qualificações novas. Este ser não estava em mim
em potência antes da aparição do outro, pois não teria encontrado lugar no
Para-si; e, mesmo se algo se satisfizesse em me dotar de um corpo inteiramente
constituído antes que esse corpo fosse para os outros, nem minha
vulgaridade nem minha inépcia poderiam alojar-se nele em potência, pois estas
são significações e, como tais, transcendem o corpo e remetem ao mesmo tempo a
uma testemunha capaz de compreendê-las e à totalidade de minha realidade
humana. Mas este novo ser que aparece para o outro não reside no outro:
eu sou responsável por ele, como bem demonstra o sistema educativo que consiste
em “envergonhar as crianças” pelo que são. Assim, a vergonha é vergonha de
si diante do outro; essas duas estruturas são inseparáveis. Mas, ao mesmo
tempo, necessito do outro para captar plenamente todas as estruturas de meu
ser; o Para-si remete ao Para-outro.”
“A reflexão é o drama do ser que não pode ser
objeto para si mesmo.”
“Não é a mesma coisa ficar em casa porque está chovendo e ficar em casa
porque me proíbem de sair. No primeiro caso, eu mesmo me determino a não sair,
em consideração às consequências de meus atos: transcendo o obstáculo “chuva”
rumo a mim mesmo e faço dele um instrumento. No segundo caso, são minhas
próprias possibilidades de sair ou ficar que me são apresentadas como
transcendidas e determinadas e que uma liberdade ao mesmo tempo prevê e
previne. Não é por mero capricho se, costumeiramente, fazemos com a maior
naturalidade e sem aborrecimento aquilo que nos teria irritado se fosse
ordenado por outro. É porque o mando e a proibição exigem que façamos a prova
da liberdade do outro através de nossa própria escravidão. Assim, no olhar, a
morte de minhas possibilidades faz-me experimentar a liberdade do outro; essa
morte realiza-se somente no cerne desta liberdade, e eu – inacessível a mim
mesmo e, no entanto, eu mesmo – sou arremessado, deixado aí, no âmago da
liberdade do outro.”
“O objeto é aquilo que minha consciência não
é, e, por conseguinte, aquilo que não tem os caracteres da consciência, pois o
único existente que tem para mim os caracteres da consciência é a consciência
que é minha. Assim, o eu-objeto-para-mim é um eu que não é para
mim, ou seja, que não tem os caracteres da consciência. É consciência degradada;
a objetivação é uma metamorfose radical e, ainda que eu pudesse me ver
clara e distintamente como objeto, iria ver, não a representação adequada do
que sou em mim e para mim mesmo – esse “monstro incomparável e preferível a
tudo” de que fala Malraux –, mas a captação de meu ser-fora-de-mim pelo outro,
ou seja, a captação objetiva de meu outro-ser, radicalmente diferente de meu
ser-para-mim e que não se refere a este. Captar-me como malvado, por
exemplo, não poderia ser referir-me ao que sou para mim, pois não sou nem posso
ser malvado para mim mesmo. Primeiro, porque não sou malvado para mim
mesmo, assim como não “sou” médico ou funcionário público. Sou, com efeito, ao
modo do não ser o que sou e ser o que não sou. A qualificação de malvado, ao
contrário, caracteriza-me como um Em-si. Em segundo lugar, porque, se eu
pudesse ser malvado para mim, seria preciso que o fosse à maneira do ter-de-ser,
ou seja, deveria captar-me e querer-me como malvado. Mas isso significaria
que devo me descobrir querendo o que me aparece como o contrário de meu Bem,
precisamente porque é o Mal, ou o contrário de meu Bem. Portanto, seria
necessário expressamente que eu quisesse o contrário do que quero ao mesmo
tempo e conforme a mesma relação, ou seja, que odiasse a mim mesmo,
precisamente sendo eu mesmo. E, para realizar plenamente esta essência da
maldade no terreno do Para-si, seria preciso que me assumisse como malvado, ou
seja, que me aprovasse pelo mesmo ato com que me reprovo. Logo, vê-se que esta
noção de maldade de forma alguma poderia obter sua origem de mim, enquanto eu sou
eu. E seria inútil levar a seus extremos limites o ek-stase, ou desprendimento
de mim, que me constitui para-mim; jamais lograria conferir-me a maldade ou
sequer concebê-la estando entregue a meus próprios recursos. Porque sou meu
desprendimento de mim, sou meu próprio nada; basta que eu seja meu
próprio mediador entre mim e mim mesmo para que toda objetividade desapareça.
Não devo ser esse nada que me separa do objeto-eu, porque é preciso que
haja apresentação a mim do objeto que sou. Assim, eu não poderia
conferir a mim qualquer qualidade sem a mediação de um poder objetivador, o
qual não é meu próprio poder e não posso inventar ou forjar. Sem dúvida, isso
não é novidade: há muito se dizia que o outro me ensina o que sou. Mas os
mesmos que sustentavam esta tese afirmavam, por outro lado, que extraímos o
conceito de outro de nós mesmos, por reflexão sobre meus próprios poderes e por
projeção ou analogia. Permaneciam, pois, em um círculo vicioso do qual não
podiam sair. De fato, o outro não poderia ser o sentido de minha objetividade:
é, sim, sua condição concreta e transcendente. Por isso, com efeito, essas
qualidades de “malvado”, “ciumento”, “simpático ou antipático” etc., não são
sonhos vazios: quando as emprego para qualificar o outro, estou ciente de que
pretendo alcançá-lo em seu ser. E, todavia, não posso vivê-las enquanto
realidades minhas: se o outro as atribui a mim, são admitidas pelo que sou para
mim, mas, quando o outro faz uma descrição de meu caráter, não me “reconheço”,
e, contudo, sei que “sou eu”. Este estranho que me apresentam, eu o assumo em
seguida, sem que deixe de ser um estranho. Isso porque não se trata de simples
unificação de minhas representações subjetivas, ou de um “Eu” que eu sou, no
sentido do “lch bin lch* (de Hegel)”, ou de uma imagem vã que o outro faz de
mim e da qual é o único responsável: esse eu, incomparável ao eu que
tenho-de-ser, continua sendo eu, mas metamorfoseado por um meio novo e adaptado
a esse meio; é um ser, meu ser, mas com dimensões de ser e de modalidades
inteiramente novas; sou eu separado de mim por um nada intransponível, porque sou
esse eu, mas não sou esse nada que me separa de mim. É o eu que sou por um
ek-stase último que transcende todos os meus ek-stases, pois não é o
ek-stase que tenho-de-ser. Meu ser Para-outro é uma queda através do vazio
absoluto em direção à objetividade. E, como esta queda é alienação, não
posso fazer-me objeto para mim, uma vez que em nenhum caso posso alienar-me de
mim mesmo. (...)
Mesmo quando a linguagem me revelou que o
outro me considera malvado ou ciumento, jamais terei uma intuição concreta de
minha maldade ou meu ciúme. Jamais serão mais que noções fugazes, cuja natureza
mesmo será a de escapar-me: não irei captar minha maldade, mas sim, a propósito
de tal ou qual ato, irei escapar a mim, sentir minha alienação e meu fluir rumo
a ... um ser que só poderei pensar no vazio como malvado e, no entanto, sentirei
ser, um ser que irei viver à distância, pela vergonha ou pelo medo.
Assim, meu eu-objeto não é conhecimento nem unidade
de conhecimento, mas mal-estar, desprendimento vivido da unidade ek-stática do
Para-si, limite que não posso alcançar e, todavia, sou. E o outro, através do
qual esse eu me advém, não é conhecimento nem categoria, mas o fato da
presença de uma liberdade estranha. Na verdade, meu desprendimento de mim e o
surgimento da liberdade do outro constituem uma só coisa; só posso senti-los e
vivê-los juntos; sequer posso tentar conceber um sem o outro. O fato do outro é
incontestável e me alcança em meu âmago. Dele me dou conta pelo mal-estar; através
dele estou perpetuamente em perigo em um mundo que é esse mundo e
que, no entanto, só posso pressentir; e o outro não me aparece como um ser que
fosse primeiro constituído para encontrar-se comigo depois, mas como ser que
surge em relação originária de ser comigo, tão indubitável como minha própria
consciência e com igual necessidade de fato.”
*Em alemão: “Eu sou eu” (N. do T.).
“Se ocorre de aparecermos “em público” para
interpretar um papel ou dar uma conferência, não esquecemos o fato de que somos
vistos e executamos o conjunto dos atos que viemos fazer em presença do
olhar, ou melhor, tentamos constituir um ser e um conjunto de objetos para esse
olhar. Mas não enumeramos o olhar. Enquanto falamos, atentos apenas às ideias
que queremos desenvolver, a presença do outro permanece indiferenciada. Seria
falso unificá-la sob os rótulos de “classe”, “auditório” etc.: temos, com
efeito, consciência de um ser concreto e individualizado, com uma consciência
coletiva; são imagens que poderão servir para traduzir depois nossa
experiência, mas não corresponderão a ela nem pela metade. Mas tampouco
captamos um olhar plural. Trata-se, sobretudo, de uma realidade impalpável,
fugaz e onipresente, que realiza, frente a nós, o nosso eu não-revelado e que
colabora conosco na produção desse Eu que nos escapa. Se, ao contrário, quero
verificar se meu pensamento foi bem compreendido e, por minha vez, olho o
auditório, verei subitamente aparecerem as cabeças e os olhos.
Objetivando-se, a realidade pré-numérica do outro é decomposta e pluralizada.
Mas desapareceu também o olhar. É a esta realidade pré-numérica e concreta, bem
mais que a um estado de inautenticidade da realidade humana, que convém
reservar o termo “se”. Perpetuamente, onde quer que esteja, olha-se para mim. O
se jamais é captado como objeto: desagrega instantaneamente.
Assim, o olhar colocou-nos no encalço de
nosso ser-Para-outro e nos revelou a existência indubitável deste outro
para o qual somos. Mas não poderia nos levar mais longe.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário