quinta-feira, 28 de junho de 2018

O Nomear e a Necessidade – Saul Kripke

Editora: Gradiva
ISBN: 978-98-9616-508-6
Tradução: Ricardo Santos e Teresa Filipe
Opinião: ★☆☆☆☆
Páginas: 252

“Uma das teses intuitivas que irei sustentar nestas palestras é a de que os nomes são designadores rígidos. Parece ser seguro que eles satisfazem o teste intuitivo que mencionei acima: embora seja verdade que o presidente dos EUA em 1970 poderia ter sido outra pessoa que não o presidente dos EUA em 1970 (por exemplo, poderia ter sido Humphrey), no entanto, nenhuma outra pessoa além de Nixon poderia ter sido Nixon. Da mesma maneira, um designador designa rigidamente um certo objeto se designar esse objeto onde quer que ele exista; se, além disso, o objeto é um existente necessário, o designador pode ser chamado fortemente rígido. Por exemplo, «o presidente dos EUA em 1970» designa um certo homem, Nixon; mas alguma outra pessoa (por exemplo, Humphrey) poderia ter sido o presidente em 1970, e Nixon poderia não o ter sido; por isso, este designador não é rígido.
Nestas palestras defenderei, de maneira intuitiva, que os nomes próprios são designadores rígidos, porque apesar de o homem (Nixon) poder não ter sido presidente, não se dá o caso de que ele pudesse não ter sido Nixon (embora pudesse não ter sido chamado «Nixon»). Aqueles que defenderam que, para darmos um sentido à noção de designador rígido, teríamos de, primeiramente, dar sentido à noção de «critérios de identidade transmundial» inverteram as posições da carroça e dos bois; é porque podemos referir Nixon (rigidamente) e estipular que estamos a falar daquilo que lhe poderia ter acontecido a ele (em certas circunstâncias) que as «identificações transmundiais» não levantam qualquer problema em tais casos.”


         “Se uma qualidade é um objeto abstracto, um agregado de qualidades é um objeto de um grau ainda mais elevado de abstracção, e não um particular. Os filósofos chegaram à perspectiva contrária por via de um falso dilema, pois perguntaram: estes objetos estão por detrás do agregado de qualidades, ou será que o objeto não é mais do que o agregado? Nem uma coisa nem outra. Esta mesa é de madeira, é castanha, está na sala, etc. Tem todas estas propriedades, e não é uma coisa sem propriedades, que esteja por detrás delas; mas não deve por essa razão ser identificada com o conjunto, ou «agregado», das suas propriedades, nem com o subconjunto das suas propriedades essenciais. Não perguntem: como é que posso identificar esta mesa noutro mundo possível, se não for através das suas propriedades? Tenho a mesa nas minhas mãos, posso apontar para ela e, quando pergunto se ela poderia estar noutra sala, estou, por definição, a falar dela. Não tenho de a identificar depois de a ver através de um telescópio. Se estou a falar dela, é dela que estou a falar, da mesma maneira que quando digo que as nossas mãos poderiam estar pintadas de verde, estipulei que estou a falar da cor verde. Algumas propriedades podem ser essenciais a um objeto, na medida em que este não poderia não as ter. Mas estas propriedades não são usadas para identificar o objeto noutro mundo possível, pois não é necessária essa identificação. E as propriedades essenciais de um objeto não têm de ser usadas para o identificar no mundo atual, se é que o identificamos no mundo atual por meio de propriedades (tenho até agora deixado a questão em aberto).
Portanto: a questão da identificação transmundial tem algum sentido, quando é colocada como pergunta pela identidade de um objeto via questões acerca das partes que o compõem. Mas estas partes não são qualidades e o que está em questão não é um objeto semelhante àquele que nos é dado. Os teóricos têm dito muitas vezes que identificamos os objetos ao longo dos mundos possíveis como objetos que se assemelham, nos aspectos mais importantes, àquele que nos é dado. Pelo contrário, Nixon, se tivesse decidido agir de outro modo, poderia ter fugido da política, porém, alimentando em privado opiniões radicais. E muito importante observar que, mesmo quando podemos substituir questões acerca de um objeto por questões acerca das suas partes, não temos de o fazer. Podemos referir-nos ao objeto e perguntar o que lhe poderia ter acontecido a ele. Portanto, não começamos por ter mundos (a respeito dos quais se supõe que são de alguma maneira reais e que podemos percepcionar as suas qualidades, mas não os seus objetos), para perguntarmos depois pelos critérios de identificação transmundial; pelo contrário, começamos pelos objetos, que temos, e que podemos identificar no mundo atual. Depois podemos perguntar se certas coisas poderiam ser verdadeiras dos objetos.”


“Em primeiro lugar, defendi que uma maneira muito comum de conceber como é que os nomes adquirem a sua referência, em geral, não se aplica. A referência de um nome não é geralmente determinada por certas marcas que identificam o objeto de modo único, por certas propriedades que são satisfeitas unicamente pelo referente e que o falante sabe ou acredita que são verdadeiras desse referente. Primeiro, as propriedades em que o falante acredita não têm de ser especificadoras de um objeto único. Segundo, mesmo quando o são, pode acontecer que não sejam unicamente verdadeiras do referente que o falante tem efetivamente em vista, mas sim de alguma outra coisa ou de nenhuma. E o que acontece quando o falante tem crenças erradas acerca de uma pessoa. Ele não tem crenças corretas acerca de outra pessoa, mas sim crenças erradas acerca de uma certa pessoa. Nesses casos, a referência parece ser efetivamente determinada pelo facto de o falante ser um membro de uma comunidade de falantes que usam o nome. O nome foi-lhe transmitido por tradição, passando de elo em elo.
Em segundo lugar, defendi que, mesmo que nalguns casos especiais, nomeadamente em casos de baptismo inicial, um referente seja determinado por uma descrição, por alguma propriedade unicamente identificadora, o que essa propriedade faz, em muitos casos de designação, não é fornecer um sinónimo, fornecer algo que o nome abreviaria; o que a propriedade efetivamente faz é fixar uma referência. Ela fixa a referência por meio de certas marcas contingentes do objeto. O nome que denota o objeto é então usado para nos referirmos a esse objeto, mesmo quando nos referimos a situações contrafactuais em que o objeto não tem as propriedades em questão. Demos o exemplo do metro.
Por último, no final da palestra anterior abordámos as afirmações de identidade. As afirmações de identidade deviam parecer muito simples, mas os filósofos acham-nas bastante enigmáticas. No meu próprio caso, não tenho a certeza de ter conseguido dissipar todas as confusões possíveis que esta relação pode gerar. Alguns filósofos acharam que a relação gera tantas confusões que a modificaram. Há, por exemplo, quem pense que, se temos dois nomes como «Cícero» e «Túlio» e dizemos que Cícero é Túlio, não podemos estar realmente a dizer, do objeto que é Cícero e também Túlio, que ele é idêntico a si mesmo. Pelo contrário, «Cícero é Túlio» pode expressar uma descoberta empírica, como já dissemos. E por isso alguns filósofos, incluindo até Frege numa fase inicial da sua obra, consideraram que a identidade seria uma relação entre nomes. A identidade, dizem eles, não é a relação de um objeto consigo próprio, mas sim a relação que há entre dois nomes quando estes designam o mesmo objeto.”


“É interessante comparar as minhas ideias com as de Mill. Para Mill, predicados como «vaca», descrições definidas e nomes próprios são tudo nomes. Mill diz que os nomes «singulares» são conotativos se forem descrições definidas, mas não-conotativos se forem nomes próprios. Por outro lado, Mill diz que todos os nomes «gerais» são conotativos; um predicado como «ser humano» define-se pela conjunção de certas propriedades que fornecem condições necessárias e suficientes para a humanidade — a racionalidade, a animalidade e certos aspectos físicos65. A tradição lógica moderna, representada por Frege e por Russell, parece sustentar que Mill estava errado a respeito dos nomes singulares, mas certo a respeito dos nomes gerais. A filosofia mais recente tem seguido essa via, com a excepção de que, tanto no caso dos nomes próprios como no dos termos para espécies naturais, substitui muitas vezes a noção de propriedades definitórias pela de um feixe de propriedades, em que apenas algumas têm de ser satisfeitas em cada caso particular. A minha perspectiva, por outro lado, considera que Mill está mais ou menos certo a respeito dos nomes «singulares», mas errado a respeito dos nomes «gerais». Talvez alguns nomes «gerais» («tolo», «gordo», «amarelo») expressem propriedades66. Num sentido importante, nomes gerais como «vaca» e «tigre» não o fazem, a não ser que ser uma vaca conte trivialmente como uma propriedade. É evidente que «vaca» e «tigre» não são abreviaturas da conjunção de propriedades que um dicionário utilizaria para os definir, como pensava Mill. Saber se a ciência pode descobrir empiricamente que certas propriedades são propriedades necessárias das vacas, ou dos tigres, é uma outra questão, a que respondo afirmativamente.
Vejamos como é que isto se aplica ao género de afirmações de identidade, que discuti antes, que expressam descobertas científicas — como, por exemplo, a afirmação de que a água é H2O. A água ser H2O representa seguramente uma descoberta. Originalmente identificámos a água pela impressão característica que provoca ao tacto, pelo seu aspecto característico e talvez pelo sabor (embora o sabor possa habitualmente ser um resultado das impurezas). Se existisse efectivamente uma substância com uma estrutura atómica completamente diferente da água, mas que se assemelhasse à água nestes aspectos, diríamos que alguma água não é H2O? Julgo que não. Diríamos antes que, tal como há um ouro dos tolos, poderia haver uma água dos tolos, ou seja, uma substância que, apesar de ter as propriedades por meio das quais originalmente identificámos a água, não seria de facto água. E julgo que isto se aplica, não apenas ao mundo actual, mas até quando falamos de situações contrafactuais. Se existisse uma substância que fosse uma água dos tolos, ela seria água dos tolos, e não água. Por outro lado, se esta substância puder adoptar outra forma — como a água polimerizada alegadamente descoberta na União Soviética, com marcas identificadoras muito diferentes daquilo a que agora chamamos água —, isso será uma forma de água, uma vez que se trata da mesma substância, mesmo que não tenha as aparências por meio das quais originalmente identificámos a água.”
66 Não irei apresentar nenhum critério para aquilo que entendo por «propriedade pura» ou intensão fregiana. Exemplos inquestionáveis do que se pretende dizer são difíceis de encontrar. A cor amarela expressa seguramente uma propriedade física manifesta de um objecto e, em relação à discussão anterior sobre o ouro, pode ser encarada como uma propriedade no sentido requerido. Na realidade, porém, não deixa de ter um certo elemento referencial que lhe é próprio, pois, na minha perspectiva, a cor amarela é seleccionada e rigidamente designada como aquela propriedade física exterior do objecto que sentimos por meio da impressão visual de amarelo. Neste aspecto assemelha-se aos termos para espécies naturais. A qualidade fenomenológica da própria sensação, por seu lado, pode ser encarada como um quale em sentido puro. É possível que esteja a ser muito vago relativamente a estas questões, mas não parece que seja aqui necessária maior precisão.


         “A tradição lógica moderna, representada por Frege e por Russell, criticou a posição de Mill acerca dos nomes singulares, mas seguiu-o no que diz respeito aos nomes gerais. Assim, todos os termos, tanto singulares como gerais, têm uma «conotação» ou um sentido fregiano. Teóricos mais recentes têm seguido Frege e Russell, modificando as suas concepções somente neste aspecto: a noção de um sentido dado por uma certa conjunção de propriedades vê-se substituída pela de um sentido dado por um «feixe» de propriedades, no qual só um número suficiente delas é que tem de se aplicar. A perspectiva que defendo, fazendo o contrário de Frege e Russell, segue Mill (mais ou menos) no que diz respeito aos termos singulares, mas critica a sua posição acerca dos termos gerais.
Em segundo lugar, a perspectiva que defendo afirma que, tanto no caso de termos para espécies como no dos nomes próprios, devemos ter presente o contraste entre as propriedades a priori mas talvez contingentes que um termo transporta consigo, dadas pela maneira como a sua referência foi fixada, e as propriedades analíticas (e portanto necessárias) que um termo pode transportar, dadas pelo seu significado. Para as espécies, tal como para os nomes próprios, a maneira como se fixa a referência de um termo não deve ser vista como um sinónimo desse termo. No caso dos nomes próprios, há várias maneiras de fixar a sua referência. Num baptismo inicial, ela é tipicamente fixada por uma ostensão ou por uma descrição. Caso não seja assim, a referência é geralmente determinada por uma cadeia, que transmite o nome de elo em elo. O mesmo se pode dizer de um termo geral como «ouro». Se imaginarmos um hipotético (embora algo artificial) baptismo da substância, temos de imaginar que ela é seleccionada por alguma definição do género: «O ouro é a substância exemplificada pelos itens que estão ali ou, pelo menos, por quase todos eles.» Diversos aspectos deste baptismo são dignos de nota. Em primeiro lugar, a identidade presente na «definição» não expressa uma verdade (completamente) necessária: embora cada um destes itens seja, de facto, essencialmente (necessariamente) ouro, o ouro poderia existir mesmo que estes itens não existissem. No entanto, a definição expressa uma verdade a priori, no mesmo sentido (e aplicando-se as mesmas reservas) em que «1 metro = o comprimento de S»: ela fixa uma referência. Creio que, em geral, é desta maneira que se fixa a referência dos termos para espécies naturais (e.g., espécies animais, vegetais e químicas); define-se a substância como a espécie exemplificada por (a quase totalidade de) uma dada amostra. Dizendo «a quase totalidade» criamos espaço para que possa haver algum ouro dos tolos na amostra. Se a amostra original contiver um número pequeno de itens desviantes, eles serão rejeitados por não serem realmente ouro. Se, por outro lado, a suposição de que há uma substância ou espécie uniforme na amostra inicial se revela estar radicalmente errada, as reacções podem variar: umas vezes podemos declarar que há duas espécies de ouro, outras vezes podemos abandonar o termo «ouro». (Não julgo que estas possibilidades sejam exaustivas.) E a alegada nova espécie pode revelar-se ilusória por outras razões. (...)
No caso de um fenómeno natural perceptível pelos sentidos, a maneira como a referência é seleccionada é simples: «O calor = aquilo que é sentido pela sensação S.» Uma vez mais, a identidade fixa uma referência: portanto, é a priori, mas não necessária, dado que o calor poderia existir, e nós não. «Calor», tal como «ouro», é um designador rígido, cuja referência é fixada pela sua «definição». Outros fenómenos naturais, como a electricidade, são originalmente identificados como sendo as causas de certos efeitos experimentais concretos.”

Um comentário:

Doney disse...

Jerry Seinfeld escreveu um livro de humor, já citado aqui no blog, chamado “O melhor livro sobre nada”.
O livro de Saul Kripke poderia ser chamado de “O pior livro sobre nada”. Digo “poderia” (e não “deveria”) porque há uma concorrência dura dentro da filosofia analítica para ver quem ocupa tal posto.