Editora:
Gradiva
ISBN: 978-98-9616-508-6
Tradução: Ricardo Santos e Teresa Filipe
Opinião: ★☆☆☆☆
Páginas: 252
“Uma das teses intuitivas que irei
sustentar nestas palestras é a de que os nomes
são designadores rígidos. Parece ser seguro que eles satisfazem o teste
intuitivo que mencionei acima: embora seja verdade que o presidente dos EUA em
1970 poderia ter sido outra pessoa que não o presidente dos EUA em 1970 (por
exemplo, poderia ter sido Humphrey), no entanto, nenhuma outra pessoa além de
Nixon poderia ter sido Nixon. Da mesma maneira, um designador designa
rigidamente um certo objeto se designar esse objeto onde quer que ele exista;
se, além disso, o objeto é um existente necessário, o designador pode ser
chamado fortemente rígido. Por
exemplo, «o presidente dos EUA em 1970» designa um certo homem, Nixon; mas
alguma outra pessoa (por exemplo, Humphrey) poderia ter sido o presidente em
1970, e Nixon poderia não o ter sido; por isso, este designador não é rígido.
Nestas palestras defenderei, de maneira
intuitiva, que os nomes próprios são designadores rígidos, porque apesar de o
homem (Nixon) poder não ter sido presidente, não se dá o caso de que ele
pudesse não ter sido Nixon (embora pudesse não ter sido chamado «Nixon»). Aqueles que defenderam que, para darmos um
sentido à noção de designador rígido, teríamos de, primeiramente, dar sentido à
noção de «critérios de identidade transmundial» inverteram as posições da
carroça e dos bois; é porque podemos
referir Nixon (rigidamente) e estipular que estamos a falar daquilo que lhe
poderia ter acontecido a ele (em
certas circunstâncias) que as «identificações transmundiais» não levantam
qualquer problema em tais casos.”
“Se uma qualidade é um objeto
abstracto, um agregado de qualidades é um objeto de um grau ainda mais elevado
de abstracção, e não um particular. Os filósofos chegaram à perspectiva
contrária por via de um falso dilema, pois perguntaram: estes objetos estão por detrás do agregado de qualidades, ou
será que o objeto não é mais do que o
agregado? Nem uma coisa nem outra. Esta mesa é de madeira, é castanha, está na sala,
etc. Tem todas estas propriedades, e não é uma coisa sem propriedades, que esteja
por detrás delas; mas não deve por essa razão ser identificada com o conjunto,
ou «agregado», das suas propriedades, nem com o subconjunto das suas
propriedades essenciais. Não perguntem: como é que posso identificar esta mesa noutro
mundo possível, se não for através das suas propriedades? Tenho a mesa nas
minhas mãos, posso apontar para ela e, quando pergunto se ela poderia estar noutra sala, estou, por definição, a falar dela. Não tenho de a identificar depois
de a ver através de um telescópio. Se estou a falar dela, é dela que estou a falar, da mesma maneira
que quando digo que as nossas mãos poderiam estar pintadas de verde, estipulei que
estou a falar da cor verde. Algumas propriedades podem ser essenciais a um objeto,
na medida em que este não poderia não as ter. Mas estas propriedades não são
usadas para identificar o objeto noutro mundo possível, pois não é necessária
essa identificação. E as propriedades essenciais de um objeto não têm de ser
usadas para o identificar no mundo atual, se é que o identificamos no mundo atual
por meio de propriedades (tenho até agora deixado a questão em aberto).
Portanto: a questão da identificação
transmundial tem algum sentido,
quando é colocada como pergunta pela identidade de um objeto via questões acerca das partes que o
compõem. Mas estas partes não são qualidades e o que está em questão não é um objeto
semelhante àquele que nos é dado. Os teóricos têm dito muitas vezes que
identificamos os objetos ao longo dos mundos possíveis como objetos que se
assemelham, nos aspectos mais importantes, àquele que nos é dado. Pelo
contrário, Nixon, se tivesse decidido agir de outro modo, poderia ter fugido da
política, porém, alimentando em privado opiniões radicais. E muito importante
observar que, mesmo quando podemos
substituir questões acerca de um objeto por questões acerca das suas partes,
não temos de o fazer. Podemos
referir-nos ao objeto e perguntar o que lhe poderia ter acontecido a ele. Portanto, não começamos por ter
mundos (a respeito dos quais se supõe que são de alguma maneira reais e que
podemos percepcionar as suas qualidades, mas não os seus objetos), para
perguntarmos depois pelos critérios de identificação transmundial; pelo
contrário, começamos pelos objetos, que temos,
e que podemos identificar no mundo atual. Depois podemos perguntar se certas
coisas poderiam ser verdadeiras dos objetos.”
“Em primeiro lugar, defendi que uma
maneira muito comum de conceber como é que os nomes adquirem a sua referência,
em geral, não se aplica. A referência de um nome não é geralmente determinada
por certas marcas que identificam o objeto de modo único, por certas
propriedades que são satisfeitas unicamente pelo referente e que o falante sabe
ou acredita que são verdadeiras desse referente. Primeiro, as propriedades em
que o falante acredita não têm de ser especificadoras de um objeto único.
Segundo, mesmo quando o são, pode acontecer que não sejam unicamente
verdadeiras do referente que o falante tem efetivamente em vista, mas sim de
alguma outra coisa ou de nenhuma. E o que acontece quando o falante tem crenças
erradas acerca de uma pessoa. Ele não tem crenças corretas acerca de outra
pessoa, mas sim crenças erradas acerca de uma certa pessoa. Nesses casos, a
referência parece ser efetivamente determinada pelo facto de o falante ser um
membro de uma comunidade de falantes que usam o nome. O nome foi-lhe
transmitido por tradição, passando de elo em elo.
Em segundo lugar, defendi que, mesmo
que nalguns casos especiais, nomeadamente em casos de baptismo inicial, um
referente seja determinado por uma descrição, por alguma propriedade unicamente
identificadora, o que essa propriedade faz, em muitos casos de designação, não
é fornecer um sinónimo, fornecer algo que o nome abreviaria; o que a
propriedade efetivamente faz é fixar uma referência. Ela fixa a referência por
meio de certas marcas contingentes do objeto. O nome que denota o objeto é
então usado para nos referirmos a esse objeto, mesmo quando nos referimos a
situações contrafactuais em que o objeto não tem as propriedades em questão.
Demos o exemplo do metro.
Por último, no final da palestra
anterior abordámos as afirmações de identidade. As afirmações de identidade
deviam parecer muito simples, mas os filósofos acham-nas bastante enigmáticas.
No meu próprio caso, não tenho a certeza de ter conseguido dissipar todas as
confusões possíveis que esta relação pode gerar. Alguns filósofos acharam que a
relação gera tantas confusões que a modificaram. Há, por exemplo, quem pense
que, se temos dois nomes como «Cícero» e «Túlio» e dizemos que Cícero é Túlio,
não podemos estar realmente a dizer, do objeto que é Cícero e também Túlio, que
ele é idêntico a si mesmo. Pelo contrário, «Cícero é Túlio» pode expressar uma
descoberta empírica, como já dissemos. E por isso alguns filósofos, incluindo
até Frege numa fase inicial da sua obra, consideraram que a identidade seria
uma relação entre nomes. A identidade, dizem eles, não é a relação de um objeto
consigo próprio, mas sim a relação que há entre dois nomes quando estes
designam o mesmo objeto.”
“É interessante comparar as minhas
ideias com as de Mill. Para Mill, predicados como «vaca», descrições definidas
e nomes próprios são tudo nomes. Mill diz que os nomes «singulares» são
conotativos se forem descrições definidas, mas não-conotativos se forem nomes
próprios. Por outro lado, Mill diz que todos
os nomes «gerais» são conotativos; um predicado como «ser humano» define-se
pela conjunção de certas propriedades que fornecem condições necessárias e
suficientes para a humanidade — a racionalidade, a animalidade e certos
aspectos físicos65. A tradição lógica moderna, representada por Frege e por
Russell, parece sustentar que Mill estava errado a respeito dos nomes
singulares, mas certo a respeito dos nomes gerais. A filosofia mais recente tem
seguido essa via, com a excepção de que, tanto no caso dos nomes próprios como
no dos termos para espécies naturais, substitui muitas vezes a noção de
propriedades definitórias pela de um feixe de propriedades, em que apenas
algumas têm de ser satisfeitas em cada caso particular. A minha perspectiva,
por outro lado, considera que Mill está mais ou menos certo a respeito dos
nomes «singulares», mas errado a respeito dos nomes «gerais». Talvez alguns nomes «gerais» («tolo», «gordo»,
«amarelo») expressem propriedades66. Num sentido importante, nomes gerais como
«vaca» e «tigre» não o fazem, a não ser que ser
uma vaca conte trivialmente como uma propriedade. É evidente que «vaca» e
«tigre» não são abreviaturas da
conjunção de propriedades que um dicionário utilizaria para os definir, como
pensava Mill. Saber se a ciência pode descobrir empiricamente que certas
propriedades são propriedades necessárias
das vacas, ou dos tigres, é uma outra questão, a que respondo afirmativamente.
Vejamos como é que isto se aplica ao
género de afirmações de identidade, que discuti antes, que expressam descobertas
científicas — como, por exemplo, a afirmação de que a água é H2O. A
água ser H2O representa seguramente uma descoberta. Originalmente identificámos
a água pela impressão característica que provoca ao tacto, pelo seu aspecto
característico e talvez pelo sabor (embora o sabor possa habitualmente ser um
resultado das impurezas). Se existisse efectivamente uma substância com uma
estrutura atómica completamente diferente da água, mas que se assemelhasse à
água nestes aspectos, diríamos que alguma água não é H2O? Julgo que
não. Diríamos antes que, tal como há um ouro dos tolos, poderia haver uma água
dos tolos, ou seja, uma substância que, apesar de ter as propriedades por meio
das quais originalmente identificámos a água, não seria de facto água. E julgo que
isto se aplica, não apenas ao mundo actual, mas até quando falamos de situações
contrafactuais. Se existisse uma substância que fosse uma água dos tolos, ela
seria água dos tolos, e não água. Por outro lado, se esta substância puder
adoptar outra forma — como a água polimerizada alegadamente descoberta na União
Soviética, com marcas identificadoras muito diferentes daquilo a que agora
chamamos água —, isso será uma forma de água, uma vez que se trata da mesma substância,
mesmo que não tenha as aparências por meio das quais originalmente
identificámos a água.”
66 Não irei apresentar nenhum critério
para aquilo que entendo por «propriedade pura» ou intensão fregiana. Exemplos
inquestionáveis do que se pretende dizer são difíceis de encontrar. A cor amarela
expressa seguramente uma propriedade física manifesta de um objecto e, em
relação à discussão anterior sobre o ouro, pode ser encarada como uma
propriedade no sentido requerido. Na realidade, porém, não deixa de ter um
certo elemento referencial que lhe é próprio, pois, na minha perspectiva, a cor
amarela é seleccionada e rigidamente designada como aquela propriedade física
exterior do objecto que sentimos por meio da impressão visual de amarelo. Neste aspecto assemelha-se aos termos
para espécies naturais. A qualidade fenomenológica da própria sensação, por seu
lado, pode ser encarada como um quale
em sentido puro. É possível que esteja a ser muito vago relativamente a estas
questões, mas não parece que seja aqui necessária maior precisão.
“A tradição lógica
moderna, representada por Frege e por Russell, criticou a posição de Mill
acerca dos nomes singulares, mas seguiu-o no que diz respeito aos nomes gerais.
Assim, todos os termos, tanto
singulares como gerais, têm uma «conotação» ou um sentido fregiano. Teóricos
mais recentes têm seguido Frege e Russell, modificando as suas concepções
somente neste aspecto: a noção de um sentido dado por uma certa conjunção de
propriedades vê-se substituída pela de um sentido dado por um «feixe» de
propriedades, no qual só um número suficiente
delas é que tem de se aplicar. A perspectiva que defendo, fazendo o contrário de
Frege e Russell, segue Mill (mais ou
menos) no que diz respeito aos termos singulares,
mas critica a sua posição acerca dos
termos gerais.
Em segundo lugar, a perspectiva que
defendo afirma que, tanto no caso de termos para espécies como no dos nomes
próprios, devemos ter presente o contraste entre as propriedades a priori mas talvez contingentes que um
termo transporta consigo, dadas pela maneira como a sua referência foi fixada,
e as propriedades analíticas (e portanto necessárias) que um termo pode
transportar, dadas pelo seu significado. Para as espécies, tal como para os
nomes próprios, a maneira como se fixa a referência de um termo não deve ser vista
como um sinónimo desse termo. No caso dos nomes próprios, há várias maneiras de
fixar a sua referência. Num baptismo inicial, ela é tipicamente fixada por uma
ostensão ou por uma descrição. Caso não seja assim, a referência é geralmente
determinada por uma cadeia, que transmite o nome de elo em elo. O mesmo se pode
dizer de um termo geral como «ouro». Se imaginarmos um hipotético (embora algo
artificial) baptismo da substância, temos de imaginar que ela é seleccionada
por alguma definição do género: «O ouro é a substância exemplificada pelos
itens que estão ali ou, pelo menos, por quase todos eles.» Diversos aspectos deste
baptismo são dignos de nota. Em primeiro lugar, a identidade presente na
«definição» não expressa uma verdade (completamente) necessária: embora cada um
destes itens seja, de facto, essencialmente (necessariamente) ouro, o ouro
poderia existir mesmo que estes itens não existissem. No entanto, a definição
expressa uma verdade a priori, no
mesmo sentido (e aplicando-se as mesmas reservas) em que «1 metro = o
comprimento de S»: ela fixa uma referência. Creio que, em
geral, é desta maneira que se fixa a referência dos termos para espécies
naturais (e.g., espécies animais,
vegetais e químicas); define-se a substância como a espécie exemplificada por
(a quase totalidade de) uma dada amostra. Dizendo «a quase totalidade» criamos
espaço para que possa haver algum ouro dos tolos na amostra. Se a amostra
original contiver um número pequeno de itens desviantes, eles serão rejeitados
por não serem realmente ouro. Se, por outro lado, a suposição de que há uma
substância ou espécie uniforme na amostra inicial se revela estar radicalmente
errada, as reacções podem variar: umas vezes podemos declarar que há duas
espécies de ouro, outras vezes podemos abandonar o termo «ouro». (Não julgo que
estas possibilidades sejam exaustivas.) E a alegada nova espécie pode
revelar-se ilusória por outras razões. (...)
No caso de um fenómeno natural
perceptível pelos sentidos, a maneira como a referência é seleccionada é simples:
«O calor = aquilo que é sentido pela sensação S.» Uma vez mais, a identidade fixa uma referência: portanto, é a priori, mas não necessária, dado que o
calor poderia existir, e nós não. «Calor», tal como «ouro», é um designador
rígido, cuja referência é fixada pela sua «definição». Outros fenómenos
naturais, como a electricidade, são originalmente identificados como sendo as
causas de certos efeitos experimentais concretos.”
Um comentário:
Jerry Seinfeld escreveu um livro de humor, já citado aqui no blog, chamado “O melhor livro sobre nada”.
O livro de Saul Kripke poderia ser chamado de “O pior livro sobre nada”. Digo “poderia” (e não “deveria”) porque há uma concorrência dura dentro da filosofia analítica para ver quem ocupa tal posto.
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