Editora: Abril Cultural
Tradução e notas: Marilena de Souza Chauí e J. Guinsburg
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 78
Sinopse: Ver Parte
I
Suplemento à
viagem de Bougainville ou Diálogo entre A e B (★★★★☆)
“— Uma observação assaz constante é que as
instituições sobrenaturais e divinas se fortalecem e se eternizam,
transformando-se, com o tempo, em leis civis e nacionais; e que as instituições
civis e nacionais se consagram, e degeneram em preceitos sobrenaturais e
divinos.
— Um fio a mais que juntamos ao laço com que
nos apertam.”
“(O nativo) Era pai de numerosa família. A
chegada dos europeus, deixou cair olhares de desdém sobre eles, sem expressar
espanto, nem medo, nem curiosidade. Abordaram-no; ele volveu-lhes as costas,
retirou-se para sua cabana. Seu silêncio e seu cuidado revelavam muito bem seu
pensamento: gemia, no íntimo, sobre os belos dias de seu país, eclipsados. À
partida de Bougainville, quando os habitantes acorriam em multidão à margem, agarravam-se
ao vestuário dele, apertavam seus camaradas entre os braços, e choravam, o
velho avançou com ar severo e disse:
“Chorai, infelizes taitianos! chorai; mas que
seja pela chegada, e não pela partida desses homens ambiciosos e malvados: um
dia, vós os conhecereis melhor. Um dia, voltarão, com o pedaço de madeira que
vedes preso na cintura deste, em uma mão, e com o ferro que pende à ilharga
daquele, em outra, para vos encadear, vos degolar, ou vos sujeitar às suas
extravagâncias e a seus vícios; um dia servireis às ordens deles, tão
corrompidos, tão vis, tão infelizes como eles. Mas eu me consolo; toco ao fim
de minha carreira; e a calamidade que vos anuncio, eu não a verei. Ó taitianos!
meus amigos! haveria um meio de escapardes a um funesto porvir; mas preferiria
antes morrer a vô-lo aconselhar. Que eles se afastem, e que vivam”.
Depois, dirigindo-se a Bougainville,
acrescentou: “E tu, chefe dos bandidos que te obedecem, afasta prontamente teu
navio de nossa costa: nós somos inocentes, nós somos felizes; e tu só podes
prejudicar nossa felicidade. Nós seguimos o puro instinto da natureza; e tu
tentaste expungir de nossas almas seu caráter. Aqui tudo é de todos; e tu nos
pregaste não sei que distinção entre o teu e o meu. Nossas filhas e nossas mulheres
nos são comuns; tu partilhaste esse privilégio conosco; e tu vieste acender
nelas furores desconhecidos. Elas se tornaram loucas em teus braços; e tu te
tornaste feroz entre os delas. Elas começaram a odiar-se; vós vos degolastes
por elas; e elas voltaram a nós manchadas de vosso sangue. Nós somos livres; e
eis que tu fincaste em nosso solo o título de nossa futura escravidão. Tu não
és nem deus, nem demônio: quem és então, para fazer escravos? Oru! tu que
entendes a língua desses homens aí, dize a todos nós, como disseste a mim, o
que eles escreveram nesta lâmina de metal: ‘Este país é nosso.’ Este país é
teu! E por quê? Porque puseste o pé nele? Se um taitiano desembarcasse um dia
em vossas costas, e se gravasse numa de vossas pedras ou na casca de uma de
vossas árvores: ‘Este país é dos habitantes do Taiti’, o que acharias? Tu és o
mais forte! E o que tem isso? Quando te tiraram uma das desprezíveis bagatelas
de que tua embarcação está cheia, bradaste, te vingaste; e no mesmo instante
projetaste, no fundo de teu coração, o roubo de todo um país. Tu não és
escravo: preferirias a morte a sê-lo, e queres a nos sujeitar. Crês portanto
que o taitiano não sabe defender sua liberdade e morrer? Aquele de quem queres
te apoderar como de um bruto, o taitiano, é teu irmão. Vós sois dois filhos da
natureza; que direito tens tu sobre ele que ele não tenha sobre ti? Tu vieste;
nós nos atiramos sobre tua pessoa? Pilhamos o teu navio? Nós te prendemos e te
expusemos às flechas de nossos inimigos? Nós te associamos em nossos campos ao
trabalho de nossos animais? Nós respeitamos nossa imagem em ti. Deixa-nos os
nossos costumes; são mais sábios e mais honestos que os teus; nós não queremos
trocar o que chamas nossa ignorância por tuas inúteis luzes. Tudo o que nos é
necessário e bom, nós o possuímos. Somos nós dignos de desprezo, porque não
soubemos criar para nós necessidades supérfluas? Quando temos fome, temos o que
comer; quando temos frio, temos com que nos vestir. Tu entraste em nossas
cabanas, o que faltava nelas, em tua opinião? Persegue até onde quiseres isso
que denominas comodidades da vida; mas permite a seres sensatos que se
detenham, quando não teriam a obter, da continuação de seus penosos esforços,
senão bens imaginários. Se nos persuades a transpor o estreito limite da
necessidade, quando findaremos de trabalhar? Quando fruiremos? Nós tornamos a
soma de nossas fadigas anuais e diárias menor possível, porque nada nos parece
preferível ao repouso. Vai a teu país te agitar, te atormentar quanto quiseres;
deixa-nos descansar: não nos metas na cabeça nem tuas necessidades factícias,
nem tuas virtudes quiméricas. Observa esses homens; vê como são eretos, sadios
e robustos. Observa essas mulheres; vê como são eretas, sadias, frescas e
belas. Toma este arco, é o meu; chama em tua ajuda um, dois, três, quatro de
teus camaradas, e tenta distendê-lo. Eu o distendo sozinho. Eu lavro a terra;
escalo a montanha; atravesso a floresta; percorro uma légua da planície em
menos de uma hora. Teus jovens companheiros tiveram dificuldade em me
acompanhar; e eu tenho oitenta anos passados. Ai desta ilha! Ai dos taitianos
presentes, e de todos os taitianos vindouros, desde o dia em que tu nos
visitaste! Nós não conhecíamos senão uma doença: aquela à qual o homem, o
animal e a planta foram condenados, a velhice; e tu nos trouxeste outra:
infectaste nosso sangue. Teremos talvez de exterminar com nossas próprias mãos
nossas filhas, nossas mulheres, nossas crianças; os que se aproximaram de tuas
mulheres; as que se aproximaram de teus homens. Nossos campos serão molhados
com o sangue impuro que passou de tuas veias às nossas; ou nossos filhos,
condenados a nutrir e a perpetuar o mal que passaste aos pais e às mães, e que
transmitirão para sempre a seus descendentes. Infelizes! Tu serás culpado, ou
das devastações que se seguirão às funestas carícias dos teus, ou dos
assassínios que cometeremos para sustar-lhes o veneno. Tu falas de crime! Tens
ideia de outro crime maior do que o teu? Qual é entre os teus o castigo de quem
mata o vizinho? A morte pelo ferro. Qual é entre os teus o castigo do covarde
que o envenena? A morte pelo fogo: compara teu crime a este último; e dize-nos,
envenenador de nações, o suplício que mereces. Há apenas um momento, a jovem
taitiana se abandonava aos transportes, aos abraços do jovem taitiano; esperava
com impaciência que a mãe (autorizada pela idade núbil) lhe erguesse o véu e
lhe pusesse a nu o colo. Ela sentia-se orgulhosa por excitar os desejos, e por
atrair os olhares amorosos do desconhecido, de seus parentes, de seu irmão;
aceitava sem terror e sem vergonha, em nossa presença, em meio de um círculo de
inocentes taitianos, ao som das flautas, entre as danças, as carícias daquele
que seu jovem coração e a voz secreta de seus sentidos lhe designavam. A ideia
de crime e o perigo da moléstia entraram contigo entre nós. Nossos gozos,
outrora tão doces, são acompanhados de remorsos e de horror. Esse homem negro,
que está perto de ti, que me escuta, falou a nossos rapazes; não sei o que
disse a nossas filhas; mas nossos rapazes hesitam; mas nossas filhas
enrubescem. Embrenha-te, se quiseres, na floresta escura na companhia perversa
de teus prazeres; mas concede aos bons e simples taitianos que se reproduzam
sem pejo, à face do céu e à plena luz. Que sentimento mais honesto e mais
grandioso poderias colocar no lugar daquele que nós lhes inspiramos, e que os
anima? Eles pensam que o momento de enriquecer a nação e a família com um novo
cidadão é chegado, e se glorificam com isso. Eles comem para viver e crescer;
eles crescem para multiplicar-se, e não veem nisso nem vício, nem vergonha.
Escuta a série de tuas perversidades. Apenas te mostraste entre eles, e eles
tornaram-se ladrões. Apenas desceste em nossa terra e ela fumegou de sangue. O
taitiano que correu a teu encontro, que te acolheu, que te recebeu gritando: Taio! Amigo, amigo, tu o mataste. E por
que o mataste? Porque ele fora seduzido pelo brilho de teus pequenos ovos de
serpente. Ele te dava seus frutos; ele te oferecia sua mulher e sua filha; ele
te cedia sua cabana: e tu o mataste por um punhado desses grãos, que ele
apanhava sem te perguntar. E este povo? Ao fragor de tua arma mortífera, o
terror se apoderou dele; e ele se refugiou na montanha. Mas crê que não
tardaria descer; crê que num instante, sem mim, teríeis perecido todos. Ah! Por
que os aplaquei? Por que os contive? Por que os contenho ainda neste momento?
Eu o ignoro; pois não mereces nenhum sentimento de piedade; pois tens uma alma
feroz que não a experimenta nunca. Tu passeaste, tu e os teus, em nossa ilha;
tu foste respeitado; tu desfrutaste de tudo; tu não deparaste em teu caminho
nem barreira, nem recusa: convidavam-te; tu te assentavas; desdobravam à tua
frente a abundância do país. Quiseste as nossas jovens? Exceto as que não
dispõem ainda do privilégio de exibir o rosto e o colo, as mães te apresentaram
as outras totalmente nuas; eis-te possessor da tenra vítima do dever
hospitaleiro; juncou-se, para ela e para ti, a terra de folhas e de flores; os
músicos afinaram seus instrumentos; nada perturbou a doçura, nem estorvou a
liberdade de tuas carícias, nem das delas. Cantou-se o hino, o hino que te
exortava a ser homem, que exortava nossa filha a ser mulher, e mulher
complacente e voluptuosa. Dançou-se em redor de teu leito; e foi ao sair dos
braços dessa mulher, após ter provado sobre o seio dela a mais doce ebriedade,
que lhe mataste o irmão, o amigo, o pai, talvez. Agiste pior ainda; observa por
esse lado; vê esse contorno eriçado de flechas; essas armas que só haviam
ameaçados nossos inimigos, vê como estão voltadas contra nossos próprios
filhos: vê as desgraçadas companheiras de nossos prazeres; vê a tristeza delas;
vê a dor de seus pais; vê o desespero de suas mães: é aí que se acham
condenadas a perecer ou por nossas mãos, ou pelo mal que lhes deste. Afasta-te,
a menos que teus olhos cruéis se comprazam com espetáculos de morte: afasta-te;
vai, e possam os mares culpados, que te pouparam em tua viagem, absorver-te e
nos vingar, engolindo-te antes de teu retorno! E vós, taitianos, reentrai em
vossas cabanas, reentrai todos; e que estes indignos estrangeiros não ouçam à
sua partida senão a onda que muge, e não vejam senão a espuma com que seu furor
embranquece a margem deserta”!
“— Se as leis são boas, os costumes são bons;
se as leis são más, os costumes são maus; se as leis, boas ou más, não são
observadas, a pior condição de uma sociedade, não há quaisquer costumes. Ora,
como quereis que leis sejam observadas quando elas se contradizem? Percorrei a
história dos séculos e das nações, tanto antigas como modernas, e encontrareis
os homens sujeitos a três códigos, o código da natureza, o código civil e o
código religioso, e coagidos a infringir alternadamente os três códigos que
nunca estiveram de acordo; daí decorre que não houve em nenhum país, como Oru
adivinhou quanto ao nosso, nem homem, nem cidadão, nem religioso.
— De onde concluireis, sem dúvida, que,
baseando a moral nas relações eternas, que subsistem entre os homens, a lei
religiosa torna-se talvez supérflua; e que a lei civil deve ser apenas a
enunciação da lei da natureza.
— E isso, sob pena de multiplicar os maus, em
vez de produzir os bons.
— Ou que, se julgamos necessário conservar as
três, cumpre que as duas últimas não sejam mais do que cópias rigorosas da
primeira, que trazemos gravada no fundo de nossos corações, e que será sempre a
mais forte.
— Isso não é exato. Não trazemos ao nascer
senão uma similitude de organização com outros seres, as mesmas necessidades, a
atração para os mesmos prazeres e uma aversão comum às mesmas penas: eis o que
constitui o homem como ele é, e deve fundamentar a moral que lhe convém.”
“— E o ciúme?
— Paixão de um animal indigente e avaro que
teme falhar; sentimento injusto do homem; consequência de nossos falsos
costumes, e de um direito de propriedade estendido sobre um objeto sensível,
pensante, com vontade e livre.
— Assim, o ciúme, segundo vós, não está na
natureza?
— Não é o que digo. Vícios e virtudes, tudo
está igualmente na natureza.
— O ciúme é sombrio.
— Como o tirano, porque tem consciência
disso.”
“B. — A natureza, indecente se quereis,
impele indistintamente um sexo para o outro: e, em um estado do homem bruto e
selvagem, que se concebe, mas que não existe talvez em nenhuma parte...
A. — Nem mesmo no Taiti?
B. — Não... o intervalo que separaria um
homem de uma mulher seria transposto pelo mais apaixonado. Se eles se esperam,
se eles se esquivam, se eles se perseguem, se eles se evitam, se eles se
atacam, se eles se defendem, é que a paixão, desigual em seus progressos, não
se lhes aplica com a mesma força. Daí sobrevém que a volúpia se espalha, se
consome e se extingue de um lado, quando começa apenas a elevar-se do outro, e
que ambos permanecem tristes. Eis a imagem fiel do que se passaria entre dois
seres jovens, livres e perfeitamente inocentes. Mas quando a mulher conheceu,
pela experiência ou pela educação, as consequências mais ou menos cruéis de um
momento doce, seu coração estremece à aproximação do homem. O coração do homem
não estremece absolutamente; seus sentidos comandam, e ele obedece. Os sentidos
da mulher se explicam, e ela receia escutá-los. Incumbe ao homem distraí-la de
seu receio, inebriá-la e seduzi-la. O homem conserva todo seu impulso natural
para a mulher; o impulso natural da mulher para o homem, diria um geômetra,
está na razão composta da direta da paixão e da inversa do temor; razão que se
complica com uma multidão de elementos diversos em nossas sociedades; elementos
que concorrem quase todos a aumentar a pusilanimidade de um sexo e a duração da
perseguição do outro. É uma espécie de tática em que os recursos da defesa e os
meios do ataque marcharam na mesma linha. Consagrou-se a resistência da mulher;
atribuiu-se ignomínia à violência do homem; violência, que seria apenas ligeira
injúria no Taiti, e que se torna crime em nossas cidades.
A. — Mas como é que aconteceu que um ato cujo
alvo é tão solene, e ao qual a natureza nos convida pela atração mais poderosa;
que o maior, o mais doce e o mais inocente dos prazeres viesse a converter-se
na fonte mais fecunda de nossa depravação e de nossos males?
B. — Oru deu-o a entender dez vezes ao
capelão: ouvi-o pois outra vez, e procurai retê-lo.
É pela tirania do homem, que converteu a
posse da mulher em propriedade.
Pelos costumes e pelos usos, que
sobrecarregaram de condições a união conjugal.
Pelas leis civis, que sujeitaram o casamento
a uma infinidade de formalidades.
Pela natureza de nossa sociedade, onde a
diversidade das fortunas e das posições instituiu conveniências e
inconveniências.
Por uma contradição estranha e comum a todas
as sociedades subsistentes, onde o nascimento de uma criança, sempre encarada
como um acréscimo de riqueza pela nação é muitas vezes e mais seguramente ainda
um acréscimo de indigência na família.
Pelas velhas concepções políticas dos
soberanos, que referiram tudo aos próprios interesses e à própria segurança.
Pelas instituições religiosas, que ligaram os
nomes de vícios e virtudes a ações que não eram suscetíveis de qualquer
moralidade.
Como estamos longe da natureza e da
felicidade! O império da natureza não pode ser destruído: em vão procurar-se-á
contrariá-lo por meio de obstáculos, ele há de perdurar. Escrevei quanto vos
aprouver sobre tábuas de bronze, para me servir das expressões do sábio Marco
Aurélio, que a fricção voluptuosa de dois intestinos constitui crime, o coração
do homem ficará comprimido entre a ameaça de vossa inscrição e a violência de
seus pendores. Mas esse coração indócil não cessará de reclamar; e cem vezes,
no curso da vida, vossos caracteres aterradores desaparecerão a nossos olhos.
Gravai sobre o mármore: Tu não comerás nem do quebrantosso, nem do abutre; tu
não conhecerás senão tua mulher; tu não serás marido de tua irmã; mas não
esquecereis de aumentar os castigos à proporção da extravagância de vossas
proibições; tornar-vos-eis ferozes, e não conseguireis de modo algum me
desnaturar.
A. — Como o código das nações seria curto, se
o conformassem rigorosamente ao da natureza! Quantos erros e vícios poupados ao
homem!
B. — Quereis saber a história abreviada de
quase toda nossa miséria? Ei-la. Existia um homem natural: introduziu-se dentro
desse homem um homem artificial; e surgiu na caverna uma guerra civil que dura
toda a vida. Ora o homem natural é o mais forte; ora é derrubado pelo homem
moral e artificial; e, em um e outro caso, o triste monstro é dilacerado,
atanazado, atormentado, estendido sobre a roda; sem cessar gemente, sem cessar
infeliz, seja porque um falso entusiasmo de glória o arrebata e o embriaga,
seja porque uma falsa ignomínia o curva e o abate. Entretanto, há
circunstâncias extremas que reconduzem o homem à sua primitiva simplicidade.
A. — A miséria e a moléstia, dois grandes
exorcistas.
B. — Vós os nomeastes. Com efeito, no que se
convertem então todas essas virtudes convencionais? Na miséria, o homem não tem
remorsos; e, na doença, a mulher não tem pudor.
A. — Já notei isso.
B. — Mas outro fenômeno que tampouco vos terá
escapado é que o retorno do homem artificial e moral acompanha passo a passo os
progressos do estado de doença para o estado de convalescença e do estado de
convalescença para o estado de saúde. O momento em que a enfermidade cessa é
aquele em que a guerra intestina recomeça, e quase sempre com desvantagem para
o intruso.
A. — É verdade. Eu mesmo verifiquei que o
homem natural dispunha na convalescença de um vigor funesto ao homem artificial
e moral. Mas, enfim, dizei-me, deve-se civilizar o homem, ou abandoná-lo a seu
instinto?
B. — Preciso responder-vos claramente?
A. — Sem dúvida.
B. — Se vos propondes a ser seu tirano,
civilizai-o; envenenai-o o melhor possível com uma moral contrária à natureza;
suscitai-lhe entraves de toda espécie; atrapalhai seus movimentos com mil
obstáculos; atribuí-lhe fantasmas que o atemorizem; eternizai a guerra na
caverna, e que o homem natural permaneça aí sempre encadeado debaixo dos pés do
homem moral. Quereis vê-lo feliz e livre? Não vos imiscuais em seus assuntos:
bastantes incidentes imprevistos hão de conduzi-lo à luz e à depravação; e
ficai para sempre convencido que não é por vós, mas por eles, que esses sábios
legisladores vos petrificaram e amaneiraram como vós o sois. Invoco o
testemunho de todas as instituições políticas, civis e religiosas: examinai-as
profundamente; e, ou me engano muito, ou vereis nelas a espécie humana dobrada
de século em século ao jugo que um punhado de velhacos esperava impor-lhe.
Desconfiai daquele que quer estabelecer a ordem. Ordenar é sempre tornar-se
senhor dos outros, incomodando-os.”
“Falaremos contra as leis insensatas até que
sejam reformadas; e, entrementes, nos submeteremos a elas. Aquele que, por sua
autoridade privada, infringe uma lei má, autoriza a qualquer outro a infringir
as boas. Há menos inconvenientes em ser louco entre loucos, do que ser sábio
sozinho. Digamos a nós próprios, gritemos incessantemente que a vergonha, o
castigo e a ignomínia foram atribuídos a ações inocentes em si mesmas; mas não
as cometamos, porque a vergonha, o castigo e a ignomínia são os maiores de
todos os males.”
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Paradoxo sobre o
comediante (★★★★☆)
“— O comediante por natureza é amiúde
detestável e às vezes excelente. Em qualquer gênero que seja, desconfiai da
mediocridade constante. Qualquer que seja o rigor com que um estreante seja
tratado, é fácil pressentir seus triunfos vindouros. As vaias sufocam apenas os
ineptos. E como formaria a natureza sem a arte um grande comediante, já que
nada se passa exatamente no palco como na natureza, e que os poemas dramáticos
são todos compostos segundo um certo sistema de princípios? E como seria um
papel desempenhado da mesma maneira por dois atores diferentes, se no escritor
mais claro, mais preciso, mais enérgico, as palavras não são e não podem ser
senão signos aproximados de um pensamento, de um sentimento, de uma ideia;
signos cujo valor o movimento, o gesto, o tom, a fisionomia, os olhos, a
circunstância dada completam?”
“Continuai mais do que nunca apegado à vossa
máxima: Não vos expliqueis nunca se quereis vos entender.”
“Cabe ao sangue-frio temperar o delírio do
entusiasmo.”
“Já se disse que o amor, que tira o espírito
aos que o possuem, concede-o aos que não o possuem; isto significa, em outros
termos, que torna uns sensíveis e tolos, e outros frios e audaciosos.”
“PRIMEIRO — Já se disse que os comediantes
não têm nenhum caráter, porque, representando todos, perdem aquele que a
natureza lhes deu; que se tornam falsos, como o médico, o cirurgião e o
açougueiro se tornam duros. Creio que se tomou a causa pelo efeito, e que eles
não servem para interpretar todos porque não têm nenhum.
SEGUNDO — Ninguém se torna cruel porque é
carrasco; mas a gente se faz carrasco porque é cruel.”
“Quanto mais as ações são fortes e as
palavras simples, mais eu as admiro.”
“Os comediantes impressionam o público, não
quando estão furiosos, mas quando interpretam bem o furor. Nos tribunais, nas
assembleias, em todos os lugares onde se quer ficar senhor dos espíritos,
finge-se ora a cólera, ora o temor, ora a piedade, a fim de levar os outros a
esses sentimentos diversos. Aquilo que a própria paixão não conseguiu fazer, a
paixão bem imitada o executa.”
“Se alguém me assegura que um homem é avaro,
terei dificuldade em crer que ele produza algo de grande. Esse vício apouca o
espírito e estreita o coração. As desgraças públicas nada significam para o
avaro. Às vezes, rejubila-se com elas. É duro. Como há de elevar-se a algo de
sublime? Está incessantemente curvado sobre um cofre forte. Ignora a velocidade
do tempo e a brevidade da vida. Concentrado em si mesmo, é estranho à
beneficência. A felicidade de seu semelhante nada representa a seus olhos, em
comparação com um pedacinho de metal amarelo. Jamais conheceu o prazer de dar a
quem carece, de aliviar quem sofre, e de chorar com quem chora. É mau pai, mau
filho, mau amigo, mau cidadão. Na necessidade de escusar-se de seu vício,
formou para si um sistema que imola todos os deveres à sua paixão. Se se
propusesse pintar a comiseração, a liberdade, a hospitalidade, o amor à pátria,
o amor ao gênero humano, onde encontraria as cores necessárias? Ele pensou, no
fundo do coração, que tais qualidades não passam de extravagâncias e loucuras.
Após o avaro, cujos meios todos são vis e
mesquinhos, e que não ousaria sequer tentar um grande crime para conseguir
dinheiro, o homem de gênio mais estreito e mais capaz de praticar males, o
menos tocado pelo verídico, pelo bom e pelo belo, é o supersticioso. Após o
supersticioso, é o hipócrita. O supersticioso possui a vista perturbada; o
hipócrita, o coração falso.”
““Não há talvez na espécie humana inteira
dois indivíduos que disponham de alguma semelhança aproximada. A organização
geral, os sentidos, a figura externa, as vísceras, têm sua variedade. As
figuras, os músculos, os sólidos, os fluidos, têm sua variedade. O espírito, a
imaginação, a memória, as ideias, as verdades, os prejuízos, os alimentos, os
exercícios, os conhecimentos, as condições, a educação, os gostos, a fortuna,
os talentos, têm sua variedade. Os objetos, os climas, os costumes, as leis, os
usos, as práticas, os governos, as religiões, têm sua variedade. Como seria,
portanto, possível que dois homens possuíssem precisamente o mesmo gosto, ou as
mesmas noções do verdadeiro, do bom e do belo? A diferença da vida e a
variedade dos acontecimentos bastariam por si para estabelecê-la no julgamento.
“Não é tudo. No mesmo homem, tudo está em
vicissitude perpétua, quer o consideremos no físico, quer o consideremos no
moral; a pena sucede ao prazer, o prazer à pena; a saúde à moléstia, a moléstia
à saúde. É só pela memória que somos um e o mesmo indivíduo para os outros e
para nós próprios. Não me resta, quiçá, na idade em que estou, uma única
molécula do corpo que trouxe ao nascer. Ignoro o termo prescrito de minha
duração; mas, quando vier o momento de devolver este corpo à terra, não restará
talvez uma só das moléculas que ora ele tem. A alma em diferentes períodos da
vida não se assemelha muito mais. Eu balbuciava na infância; eu julgo
raciocinar presentemente; mas, enquanto raciocino, o tempo passa e volto ao
balbucio. Tal é minha condição e a de todos. Como seria, pois, possível que
houvesse um só entre nós que conservasse durante toda a existência o mesmo
gosto, e que proferisse os mesmos julgamentos sobre o verdadeiro, o bom e o
belo? As revoluções, causadas pela aflição e pela perversidade dos homens, bastariam
por si para alterar seus julgamentos.
“O homem estará, portanto, condenado a não
concordar nem com seus semelhantes, nem consigo próprio, sobre os únicos
objetos que lhe importam conhecer, a verdade, a bondade, a beleza? Serão essas
coisas locais, momentâneas e arbitrárias, palavras destituídas de senso? Não
haverá nada que seja tal? Uma coisa será verdadeira, boa e bela, quando me
parece sê-lo? E todas as nossas disputas acerca do gosto resolver-se-iam enfim
nesta proposição: nós somos, vós e eu, dois seres diferentes; e eu próprio
nunca sou em um instante o que eu era em outro?”
Aqui Aristo fez uma pausa, a seguir
recomeçou:
“É certo que não haverá termo para nossas
disputas, enquanto cada um tomar a si mesmo como modelo e como juiz. Existirão
tantas medidas quantos homens, e o mesmo homem contará tantos módulos
diferentes quantos períodos sensivelmente diferentes em sua existência.””
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Diálogo de um
filósofo com a marechal de... (★★★★☆)
“(...) MARECHALA — Isso é de morrer de riso.
CRUDELI — Para mim, Senhora Marechala; mas
para vós, vosso Deus não admite chalaças.
MARECHALA — Tendes razão.
CRUDELI — Senhora Marechala, é muito fácil
pecar gravemente contra vossa lei.
MARECHALA — Concordo.
CRUDELI — A justiça que decidirá de vossa
sorte é muito rigorosa.
MARECHALA — É certo.
CRUDELI — E se acreditais nos oráculos de
vossa religião acerca do número de eleitos, ele é bem pequeno.
MARECHALA — Oh! é que não sou jansenista;
vejo a medalha apenas por seu reverso consolador: o sangue de Jesus Cristo
cobre um grande espaço e meus olhos; e me pareceria muito singular que o diabo,
que não entregou seu filho à morte, tivesse no entanto a melhor parte.”
Um comentário:
O “Diálogo do Capelão e de Oru (III)” não veio para o blog por conta do tamanho, mas é particularmente arguto.
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