Editora: Atena
Tradução: Maria Lacerda de Moura
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 202
Sinopse: Ver Parte
I
“O primeiro que, tendo cercado um terreno, se
lembrou de dizer: Isto é meu, e encontrou pessoas bastantes simples para o
acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes,
guerras, assassínios, misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano
aquele que, arrancando as estacas ou tapando os buracos, tivesse gritado aos
seus semelhantes: “Livrai-vos de escutar esse impostor; estareis perdidos se
esquecerdes que os frutos são de todos, e a terra de ninguém!”. Parece, porém,
que as coisas já tinham chegado ao ponto de não mais poder ficar como estavam:
porque essa ideia de propriedade, dependendo muito de ideias anteriores que só
puderam nascer sucessivamente, não se formou de repente no espírito humano: foi
preciso fazer muitos progressos, adquirir muita indústria e luzes,
transmiti-las e aumentá-las de idade em idade, antes de chegar a esse último
termo do estado de natureza.”
“Tudo começa a mudar de face. Os homens, até
então errantes nos bosques, tendo agora situação mais fixa, aproximando-se
lentamente, reúnem-se em diversos grupos e formam, enfim, em cada região, uma
nação particular, unida pelos costumes e pelos caracteres, não pelos
regulamentos e pelas leis, mas pelo mesmo gênero de vida e pelos alimentos, e
pela influência comum do clima. Uma vizinhança permanente não pode deixar de
engendrar, enfim, alguma ligação entre diversas famílias. Jovens de diferentes
sexos habitam cabanas vizinhas; o comércio passageiro que a natureza exige logo
conduz a outro não menos doce e mais permanente pela mútua frequentação.
Adquire-se o hábito de considerar diferentes objetos e compará-los;
adquirem-se, insensivelmente, ideias de mérito e de beleza, que produzem
sentimentos de preferência. À força de se ver, não se pode mais passar sem se ver
ainda. Um sentimento terno e doce se insinua na alma e, pela menor oposição, se
transforma em furor impetuoso: o ciúme desperta com o amor, a discórdia
triunfa, e a mais doce das paixões recebe sacrifícios de sangue humano.
À medida que as ideias e os sentimentos se
sucedem, que o espírito e o coração se exercitam, o gênero humano continua a se
domesticar, as ligações se estendem e os laços se apertam. Adquire-se o hábito
de se reunir diante das cabanas ou em torno de uma grande árvore: o canto e a
dança, verdadeiros filhos do amor e da ociosidade, tornam-se divertimento, ou
antes, ocupação dos homens e das mulheres ociosos e agrupados. Cada um começa a
olhar os outros e a querer ser olhado por sua vez, e a estima pública tem um
preço. Aquele que canta ou dança melhor, o mais belo, o mais forte, o mais
destro ou o mais eloquente, torna-se o mais considerado. E foi esse o primeiro
passo para a desigualdade e para o vício, ao mesmo tempo: dessas primeiras
preferências nasceram, de um lado, a vaidade e o desprezo e, de outro, a
vergonha e a inveja; e a fermentação causada por esses novos fermentos
produziu, enfim, compostos funestos à felicidade e à inocência.
Logo que os homens começaram a se apreciar
mutuamente, e que a ideia da consideração se formou em seu espírito, cada um
pretendeu ter direito a ela, e não foi mais possível faltar com ela impunemente
a ninguém. Daí surgiram os primeiros deveres de civilidade, mesmo entre os
selvagens; e daí, toda falta voluntária tornou-se um ultraje, porque, com o mal
que resultava da injúria, o ofendido via nela também o desprezo à sua pessoa,
muitas vezes mais insuportável do que o próprio mal. Foi assim que, punindo
cada qual o desprezo que se lhe testemunhara de maneira proporcionada ao juízo
que de si mesmo fazia, as vinganças se tornaram terríveis, e os homens
sanguinários e cruéis. Eis, precisamente, o grau a que tinham chegado a maior
parte dos selvagens que nos são conhecidos; e, foi por não terem distinguido
suficientemente as ideias e notado como esses povos já estavam longe do
primeiro estado de natureza, que muitos se apressaram em concluir que o homem é
naturalmente cruel e tem necessidade de polícia para abrandá-lo; ao passo que
não há nada tão doce como ele em seu estado primitivo, quando, colocado pela natureza
a distâncias iguais da estupidez dos brutos e das luzes funestas do homem
civilizado, e limitado, igualmente, pelo instinto e pela razão, a se preservar
do mal que o ameaça, é impedido pela piedade natural de fazer mal a quem quer
que seja, não sendo por nada levado a isso, mesmo depois de o ter recebido.
Porque, segundo o axioma do sábio Locke, não pode haver injúria onde não há
propriedade.”
“Enquanto os homens se contentaram com as
suas cabanas rústicas, enquanto se limitaram a coser suas roupas de peles com
espinhos ou arestas de pau, a se enfeitarem com plumas e conchas, a pintar o
corpo de diversas cores, a aperfeiçoar ou embelezar os seus arcos e flechas, a
talhar com pedras cortantes algumas canoas de pesca ou grosseiros instrumentos
de música; em uma palavra, enquanto se aplicaram exclusivamente a obras que um
só podia fazer, e a artes que não necessitavam o concurso de muitas mãos,
viveram livres, sãos, bons e felizes, tanto quanto podiam ser pela sua
natureza, e continuaram a gozar entre si das doçuras de uma convivência
independente. Mas, desde o instante que um homem teve necessidade do socorro de
outro; desde que perceberam que era útil a um só ter provisões para dois, a
igualdade desapareceu, a propriedade se introduziu, o trabalho tornou-se
necessário e as vastas florestas se transformaram em campos risonhos que foi
preciso regar com o suor dos homens, e nos quais, em breve, se viram germinar a
escravidão e a miséria, a crescer com as colheitas.
A metalurgia e a agricultura foram as duas artes
cuja invenção produziu essa grande revolução. Para o poeta, foram o ouro e a
prata; mas, para o filósofo, foram o ferro e o trigo que civilizaram os homens
e perderam o gênero humano. Tanto um como o outro eram desconhecidos dos
selvagens da América, os quais, por isso, sempre ficaram como tais; os outros
povos parece mesmo que continuaram bárbaros enquanto praticaram uma dessas
artes sem a outra.”
“Da cultura das terras resulta
necessariamente a sua partilha, e, da propriedade, uma vez reconhecida, as
primeiras regras de justiça: porque, para dar a cada um o seu, é preciso que
cada um possa ter alguma coisa; de resto, como os homens começassem a levar
suas vistas para o futuro, vendo todos que tinham alguns bens que perder, não
houve nenhum que não receasse para si a represália dos males que pudesse causar
a outrem. Essa origem é tanto mais natural quanto é impossível conceber a ideia
da propriedade surgindo fora da mão de obra; porque não se vê o que, para se
apropriar das coisas que não fez, possa o homem acrescentar-lhe além do seu
trabalho. Só o trabalho, dando direito ao cultivador sobre o produto da terra
que lavrou, lho dá por conseguinte sobre o fundo, pelo menos até à colheita, e
assim todos os anos; e isso, constituindo uma posse contínua, transforma-se
facilmente em propriedade.”
“Eis, pois, todas as nossas faculdades
desenvolvidas, a memória e a imaginação em jogo, o amor-próprio interessado, a
razão tornada ativa, e o espírito chegado quase ao termo da perfeição de que é
suscetível. Eis todas as qualidades naturais postas em ação, o lugar e a sorte
de cada homem estabelecidos, não somente sobre a quantidade dos bens e o poder
de servir ou de prejudicar, mas sobre o espírito, a beleza, a força ou a
habilidade, sobre o mérito ou os talentos; e, sendo essas qualidades as únicas
que podiam atrair a consideração, logo foi preciso tê-las ou afetá-las. Foi
preciso, para vantagem própria, mostrar-se diferente daquilo que se era de
fato. Ser e parecer tornaram-se duas coisas inteiramente diferentes; e dessa
distinção, surgiram o fausto imponente, a astúcia enganadora e todos os vícios
que constituem o seu cortejo. Por outro lado, de livre e independente que era o
homem outrora, ei-lo, por uma multidão de novas necessidades, submetido, por
assim dizer, a toda a natureza e, principalmente, a todos os seus semelhantes,
dos quais se torna escravo em certo sentido, mesmo tornando-se seu senhor:
rico, tem necessidade dos seus serviços, pobre, tem necessidade de seu auxílio;
e a mediocridade não o põe em estado de passar sem eles. É preciso, pois, que
procure sem cessar interessá-los por sua sorte, e fazer-lhes encontrar, de fato
ou em aparência, o próprio proveito em trabalhar para o dele: isso o torna
velhaco e artificioso com uns, imperioso e duro com outros, e o põe na
necessidade de abusar de todos aqueles de que precisa, quando não pode se fazer
temer, e quando não é do seu interesse servi-los utilmente. Enfim, a ambição
devoradora, o ardor de fazer fortuna relativa, menos por verdadeira necessidade
do que para se colocar acima dos outros, inspira a todos os homens uma negra
tendência a se prejudicarem mutuamente, uma inveja secreta tanto mais perigosa
quanto, para dar o golpe com mais segurança, toma muitas vezes a máscara de
benevolência; em uma palavra, concorrência e rivalidade de uma parte, e, de
outra, oposição de interesses, e sempre o desejo oculto de tirar proveito à
custa de outrem: todos esses males constituem o primeiro efeito da propriedade
e o cortejo inseparável da desigualdade nascente.
Antes de terem sido inventados os sinais
representativos da riqueza, estas só podiam consistir em terras e em animais,
os únicos bens reais que os homens poderiam possuir. Ora, quando as herdades
foram crescendo em número e em extensão, a ponto de cobrirem o solo inteiro e
se tocarem todas, umas não puderam mais crescer senão à custa de outras, e os
extranumerários, que a fraqueza ou a indolência tinham impedido de adquiri-las
por sua vez, tornados pobres sem ter perdido nada, porque, tudo mudando em
torno deles, só eles não tinham mudado, foram obrigados a receber ou a roubar a
subsistência das mãos dos ricos; e, daí, começaram a nascer, segundo os
diversos caracteres de uns e de outros, a dominação e a servidão, ou a
violência e as rapinas. Os ricos, por seu turno, mal conheceram o prazer de
dominar, desdenharam em breve todos os outros, e, servindo-se dos seus antigos
escravos para submeter novos, não pensaram senão em subjugar e escravizar os
vizinhos, como lobos esfaimados que, tendo experimentado a carne humana,
desdenham qualquer outra nutrição e não querem mais devorar senão homens. Foi
assim que os mais poderosos ou os mais miseráveis, fazendo de suas forças ou de
suas necessidades uma espécie de direito ao bem de outrem, equivalente, segundo
eles, ao da propriedade, a igualdade rompida foi seguida da mais horrível
desordem; e assim que as usurpações dos ricos, os assaltos dos pobres, as
paixões desenfreadas de todos, sufocando a piedade natural e a voz ainda mais
fraca da justiça, tornaram os homens avarentos, ambiciosos e maus.
Levantava-se, entre o direito do mais forte e o direito do primeiro ocupante,
um conflito perpétuo que só terminava por meio, de combates e morticínios. A
sociedade nascente foi praça do mais horrível estado de guerra: o gênero humano,
aviltado e desolado, não podendo mais voltar atrás, nem renunciar às infelizes
aquisições já obtidas, e não trabalhando senão para a sua vergonha pelo abuso
das faculdades que o honram, se colocou também na véspera de sua ruína.
Attonitus novitate mali, divesqve, miserque,
Effugere optat opes, et quoe modo voverat odit.
(Atônitos com a novidade do mal, ricos e
miseráveis
Optam escapar às riquezas, e odeiam o que
antes invocaram.)
Não é possível que os homens não tenham
feito, enfim, reflexões sobre uma situação tão miserável e sobre as calamidades
que os afligiam. Os ricos, principalmente, logo deviam sentir como lhes era
desvantajosa uma guerra perpétua cujas despesas só eles faziam, e na qual o
risco de vida era comum, assim como o dos bens particulares. Aliás, se alguma
podiam dar às suas usurpações, sentiam bastante que não eram estabelecidas
senão sobre um direito precário e abusivo, e que, só tendo sido adquiridas pela
força, a força as podia tirar sem que tivessem razão de se lastimar. Aqueles
mesmos que só a indústria havia enriquecido, não podiam fundar sua propriedade
sobre melhores títulos. Bem podiam dizer: “Fui, eu quem construiu este muro;
ganhei este terreno com o meu trabalho.” — “E quem vos deu o material? —
poder-se-ia responder-lhes — e em virtude de que pretendeis ser pagos à nossa
custa por um trabalho que não vos impusemos? Ignorais que uma multidão de
vossos irmãos perece ou sofre da necessidade daquilo que tendes demais, e que
precisaríeis de um consentimento expresso e unânime do gênero humano para vos
apropriardes de tudo que na subsistência comum vai além da vossa?” Destituído
de razões válidas para se justificar e de forças suficientes para se defender;
esmagando facilmente um particular, mas esmagado ele mesmo por tropas de
bandidos; só contra todos, e não podendo, por causa das rivalidades mútuas,
unir-se com seus iguais contra inimigos unidos pela esperança comum da
pilhagem, o rico, premido pela necessidade, concebeu enfim, o projeto mais
refletido que jamais entrara no espírito humano: o de empregar em seu favor as
próprias forças daqueles que o atacavam, de tornar seus defensores os seus
adversários, de lhes inspirar outras máximas e de lhes dar outras instituições
que lhe fossem tão favoráveis quanto contrário lhe era o direito natural.
Tendo isso em vista, depois de expor aos seus
vizinhos o horror de uma situação que os armava a todos uns contra os outros,
que lhes tornava as paixões tão onerosas quanto as suas necessidades, e na qual
ninguém se sentia em segurança nem na pobreza nem na riqueza, inventou
facilmente razões especiosas para os conduzir ao seu objetivo. “Unamo-nos, —
lhes disse, — para livrar da opressão os fracos, conter os ambiciosos e assegurar
a cada um a posse do que lhe pertence: instituamos regulamentos de justiça e de
paz, aos quais todos sejam obrigados a se conformar, que não façam acepção de
pessoas e que de certo modo reparem os caprichos da fortuna, submetendo
igualmente o poderoso e o fraco a deveres mútuos. Em uma palavra, em vez de
voltar nossas forças contra nós mesmos, reunamo-las em um poder supremo que nos
governe segundo leis sábias, que proteja e defenda todos os membros da
associação, repila os inimigos comuns e nos mantenha em uma eterna concórdia”.
Foi preciso muito menos que o equivalente
desse discurso para arrastar homens grosseiros, fáceis de seduzir, que aliás
tinham muitos negócios que resolver entre si para poder passar sem árbitros, e
muita avareza e ambição para poder passar muito tempo sem senhores. Todos
correram para as suas cadeias de ferro, acreditando assegurar a própria
liberdade; porque, com bastante razão para sentir as vantagens de um
estabelecimento público, não tinham bastante experiência para prever os perigos
que daí adviriam: os mais capazes de pressentir os abusos eram precisamente
aqueles que contavam tirar partido deles. E os próprios sábios viram que era
preciso se resolverem a sacrificar uma parte de sua liberdade para a
conservação da outra, como um ferido deixa que lhe cortem um braço para salvar
o resto do corpo.
Tal foi ou deve ter sido a origem da
sociedade e das leis, que deram novos entraves ao fraco e novas forças ao rico,
destruíram sem remédio a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da
propriedade e da desigualdade, de uma astuta usurpação fizeram um direito
irrevogável e, para proveito de alguns ambiciosos, sujeitaram para o futuro
todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e à miséria. Vê-se facilmente como
o estabelecimento de uma única sociedade tornou indispensável o de todas as
outras, e como, para fazer face a forças unidas, foi preciso se unir por sua
vez. As sociedades, multiplicando-se ou estendendo-se rapidamente, cobriram
logo toda a superfície da terra; e não mais foi possível encontrar um só canto
do universo onde a gente pudesse livrar-se do jugo e subtrair a cabeça ao
gládio muitas vezes malconduzido que cada homem vê perpetuamente suspenso sobre
a sua. Tendo o direito civil se tornado assim a regra comum dos cidadãos, a lei
de natureza não vigorou mais senão entre as diversas sociedades, nas quais sob
o nome de direito das gentes, foi moderada por algumas convenções tácitas para
tornar o comércio possível e suprir a comiseração natural, que, perdendo de
sociedade em sociedade quase toda a força que tinha de homem para homem, não
reside mais senão nas grandes almas cosmopolitas que transpõem as barreiras
imaginárias que separam os povos e que, a exemplo do Ser soberano que as criou,
abraçam todo o gênero humano na sua benevolência.
Os corpos políticos, ficando assim entre si
no estado de natureza, ressentiram-se em breve dos inconvenientes que haviam
forçado os particulares a deles saírem; e esse estado torna-se ainda mais
funesto entre esses grandes corpos do que o era antes entre os indivíduos de
que se compunham. Daí saíram as guerras nacionais, as batalhas, os assassínios,
as represálias, que fazem estremecer a natureza e chocam a razão, e todos esses
preconceitos horríveis que colocam na categoria das virtudes a honra de
derramar o sangue humano. A gente mais honesta aprendeu a contar entre os seus
deveres o de cortar o pescoço dos semelhantes: têm-se visto, enfim, os homens
se massacrarem aos milhões sem saberem porque; e cometem-se mais assassínios em
um só dia de combate e mais horrores na tomada de uma só cidade do que no
estado de natureza, durante séculos inteiros, sobre toda a superfície da terra.
Tais são os primeiros efeitos entrevistos na divisão do gênero humano em
diferentes sociedades.”
“Os pobres nada tendo que perder senão a sua
liberdade, seria grande loucura que eles deixassem tirar voluntariamente o
único bem que lhes restava, para nada ganhar em troca; ao contrário, os ricos,
por assim dizer, sensíveis em todas as partes dos seus bens, era muito mais
fácil lhes fazer mal; por conseguinte, tinham mais precauções que tomar para se
garantirem; e, enfim, é razoável acreditar que uma coisa devia ter sido
inventada por aqueles a quem é útil, mais do que por aqueles a quem devia
prejudicar.
O governo nascente não teve uma forma
constante e regular. A falta de filosofia e de experiência não deixava perceber
senão os inconvenientes presentes; e ninguém pensava em remediar os outros
senão à medida que se apresentavam. Apesar de todos os trabalhos dos mais
sábios legisladores, o estado político conservou-se sempre imperfeito, porque
era quase obra do acaso, e porque, mal começado, o tempo, descobrindo os
defeitos e sugerindo remédios, jamais pode reparar os vícios da constituição:
remendava-se sem cessar, quando teria sido preciso começar por limpar a área e
pôr de lado todos os velhos materiais, como fez Licurgo em Esparta, para depois
levantar um belo edifício. A sociedade, primeiro, consistia apenas em algumas
convenções gerais que todos os particulares se comprometiam a observar, sendo
comunidade responsável em relação a cada um deles. Foi preciso que a
experiência mostrasse quanto era fraca semelhante constituição e quanto era
fácil aos infratores evitar a convicção ou o castigo das faltas de que só o público
devia ser testemunha e juiz; foi preciso que a lei tivesse sido frustrada de
mil maneiras, que os inconvenientes e as desordens se multiplicassem
continuamente, para que se pensasse, enfim, em confiar a particulares o
perigoso depósito da autoridade pública, e que se cometesse a magistrados o
cuidado de fazer observar as deliberações do povo; porque dizer que os chefes
foram escolhidos antes que a confederação fosse feita, e que os ministros das
leis existiram antes das próprias leis, é uma suposição que não é permitido
combater seriamente. Não seria mais razoável acreditar que os povos, primeiro,
se atiraram nos braços de um senhor absoluto, sem condições e sem remédio, e
que o primeiro meio de prover à segurança comum, imaginado por homens altivos e
indomáveis, foi precipitar-se na escravidão. Efetivamente, porque deram a si
mesmos superiores, se não foi para os defender contra a opressão e proteger os
seus bens, as suas liberdades e as suas vidas, que são, por assim dizer, os
elementos constitutivos de seu ser? Ora, nas relações de homem para homem, o
pior que pode acontecer a um que se vê à discrição do outro não consiste em se
colocar contra o bom senso de começar por se despojar, pondo nas mãos de um
chefe as únicas coisas para cuja conservação tinham eles necessidade do seu
socorro? Que equivalente podia ele oferecer-lhes pela concessão de tão belo
direito? E, se ousou exigi-lo, sob o pretexto de o defender, não receberia logo
a resposta do apólogo: “Que mais nos fará ainda o inimigo?” É, pois, incontestável,
e é a máxima fundamental de todo o direito político, que os povos deram a si
mesmos chefes para defender sua liberdade e não para os sujeitar. Se temos um
príncipe, — dizia Plínio a Trajano, — é para nos preservar de ter um senhor.
Os políticos fazem sobre o amor à liberdade
os mesmos sofismas que os filósofos fizeram sobre o estado de natureza: pelas
coisas que veem, julgam coisas muito diferentes que não viram; e atribuem aos
homens uma tendência natural à servidão, pela paciência com a qual aqueles que
têm sob os seus olhos suportam a sua; sem pensar que com a liberdade acontece o
mesmo que com a inocência e a virtude, cujo preço só se sabe quando as gozamos
nós mesmos, e cujo gosto se perde logo que as perdemos.”
“Quanto à autoridade paternal, de que muitos
fizeram derivar o governo absoluto e toda a sociedade, sem recorrer às provas
contrárias de Locke e de Sidney, basta notar que nada no mundo está mais
afastado do espírito feroz do despotismo do que a doçura dessa autoridade, que
considera mais a vantagem daquele que obedece do que a utilidade do que
comanda; que, pela lei de natureza, o pai não é o senhor do filho senão
enquanto o seu auxilio lhe é necessário; que, passando esse termo, tornam-se
iguais, e, então, o filho, perfeitamente independente do pai, só lhe deve
respeito e não obediência. Porque o reconhecimento é bem um dever que é preciso
cumprir, mas não um direito que se possa exigir. Em vez de dizer que a
sociedade civil deriva do poder paternal, é preciso dizer, ao contrário, que é
dela que esse poder tira a sua principal força. Um indivíduo não foi
reconhecido pelo pai de muitos senão quando permaneceram reunidos em torno
dele. Os bens do pai, dos quais é verdadeiramente o senhor, são os laços que
retêm os filhos na sua dependência, e ele pode não lhes dar parte na sucessão
senão à proporção que dele merecerem por uma contínua deferência às suas
vontades. Ora, longe dos súditos esperarem qualquer favor semelhante do seu
déspota, como lhe pertencem, eles e tudo quanto possuem, ou pelo menos assim
ele o pretende, são reduzidos a receber como favor o que lhes deixa do seu
próprio bem: faz justiça quando os despoja, e mercê quando os deixa viver.”
“As distinções políticas conduzem
necessariamente às distinções civis. A desigualdade crescente entre o povo e
seus chefes fez-se logo sentir entre os particulares, entre eles se modificando
de mil maneiras, segundo as paixões, os talentos e as ocorrências. O magistrado
não poderia usurpar um poder ilegítimo sem o auxílio de criaturas às quais é
forçado a ceder alguma parte. Aliás, os cidadãos só se deixam oprimir na medida
em que são arrastados por uma cega ambição e, olhando mais abaixo do que acima
deles, a dominação torna-se-lhes mais cara do que a independência, e em que
consentem em carregar cadeias para poder distribuí-las por sua vez. É muito
difícil reduzir à obediência aquele que não procura mandar, e o político mais
hábil não conseguiria sujeitar homens que só quisessem ser livre. Mas, a
desigualdade se estende sem dificuldade entre as almas ambiciosas e covardes,
sempre prontas a correr os riscos da fortuna e a dominar ou servir quase
indiferentemente, conforme ela se lhes torne favorável ou contrária.”
“O que a reflexão nos ensina sobre isso, a
observação o confirma perfeitamente: o homem selvagem e o homem policiado
diferem de tal modo no fundo do coração e nas inclinações, que o que faz a
felicidade suprema de um reduziria o outro ao desespero. O primeiro só respira
o repouso e a liberdade; só quer viver e ficar ocioso, e a própria ataraxia do
estoico não se aproxima da sua indiferença profunda por qualquer outro objeto.
Ao contrário, o cidadão, sempre ativo, sua, agita-se, atormenta-se sem cessar
para buscar ocupações ainda mais laboriosas; trabalha até à morte, corre mesmo em
sua direção para se pôr em estado de viver, ou renuncia à vida para adquirir a
imortalidade; faz a corte aos grandes que odeia e aos ricos que despreza; nada
poupa para obter a honra de o servir; gaba-se orgulhosamente de sua baixeza e
de sua proteção; e, vaidoso de sua escravidão, fala com desdém daqueles que não
têm a honra de a partilhar. Que espetáculo para um caraíba os trabalhos penosos
e invejados de um ministro europeu! Quantas mortes cruéis não preferiria esse
selvagem indolente ao horror de vida semelhante, que muitas vezes nem mesmo é
compensada pelo prazer de fazer o bem! (...) Tal é, com efeito, a verdadeira
causa de todas essas diferenças: o selvagem vive em si mesmo; o homem sociável,
sempre fora de si, não sabe viver senão na opinião dos outros, e é, por assim
dizer, exclusivamente do seu julgamento que tira o sentimento de sua própria
existência. Escapa ao meu tema mostrar como de tal disposição nasce tanta
indiferença pelo bem e o mal, com tão belos discursos de moral; como,
reduzindo-se tudo às aparências, tudo se torna factício e representado, honra,
amizade, virtude, e muitas vezes até os próprios vícios, cujo segredo de se
glorificar finalmente se encontra; como, em uma palavra, perguntando sempre aos
outros o que somos, e não ousando jamais interrogar-nos sobre isso nós mesmos,
no meio de tanta filosofia, humanidade, polidez, máximas sublimes, não temos
senão um exterior enganador e frívolo, honra, sem virtude, razão sem sabedoria,
e prazer sem felicidade. Basta-me ter provado que esse não é o estado original
do homem, e que só o espírito da sociedade e a desigualdade que ela engendra
modificam e alteram, assim, todas as nossas inclinações naturais.”