Editora: Domínio Público
Tradução: Líbero Rangel de Tarso
Opinião: ★★★★☆
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Páginas: 459
Sinopse: Há mais de duzentos anos, Voltaire
inventava o “livro de bolso”, mas que designou de “livro portátil”. De fato, em 1764 publicava o Dicionário Filosófico Portátil. Era a época dos grandes dicionários sobre os mais variados assuntos. Com
ele, Voltaire pretendia induzir, levar, forçar até o povo a pensar. Num dos
diálogos constantes deste dicionário, um dos interlocutores se dirige a outro e
o incita com esta frase: “Ouse pensar, meu
amigo.” Embora participasse da elaboração da grande Enciclopédia, Voltaire
notava que o povo não pensava. Eram outros que pensavam por ele. Era proibido,
era criminoso pensar diversamente do Estado ou da Igreja. Voltaire elabora
então seu Dicionário
Filosófico para
desmitificar, para lutar contra tabus seculares e milenares, a fim de abrir as
mentes para o mundo e o mundo para o espírito crítico. Ou, pelo menos, para a
reflexão, para o uso real e sem medos da própria razão.
“Conhece-te a ti
mesmo* é excelente preceito, mas só a Deus é dado pô-lo em prática. Quem mais
pode conhecer a própria essência?”
*: Esta inscrição
acha-se gravada na fachada do templo de Delfos.
“Relanceemos os
interessantes sistemas arquitetados pela tua filosofia em torno dessas almas.
Um diz que a alma
humana é parte da substância do próprio Deus. Outro que é parte do todo
infinito. Terceiro que foi criada ab eterno. Quarto que foi feita e não
criada. Outros afirmam que Deus as fabrica à proporção necessária, e que chegam
no instante da cópula. Alojam-se nos animálculos seminais, exclama este. Não,
diz aquele, vão habitar as trompas de Fallopio. Todos vós estais errados,
intervêm aqueloutro: a alma espera seis semanas até que esteja formado o feto;
então se acomoda na glândula pineal; se, porém, encontra um germe maligno,
volta, a espera de melhor ocasião. A última opinião é que sua morada é no corpo
caloso. É o local que lhe atribui La Peyronie. Era preciso ser primeiro
cirurgião do rei de França para dispor assim do alojamento da alma. Pena é que
o corpo caloso do ar. La Peyronie não tenha tido a mesma fortuna que o dono.
Diz Santo Tomás
(questão septuagésima quinta e subsequentes) que a alma é uma forma subsistante
per se. Que está em todas as coisas. Que sua essência difere de sua
potência. Que há três almas vegetativas: nutritiva, aumentativa, generativa.
Que a memória das coisas espirituais é espiritual. Que a memória das coisas
corporais é corporal. Que a alma racional é uma forma imaterial quanto às
operações e material quanto ao ser. Sto. Tomás escreveu duas mil páginas dessa
força e dessa clareza. É o pai da escola.”
“Inútil discutir
quanto aos sentimentos secretos de Moisés. O fato é que nas leis públicas ele
nunca falou de vida futura. Todos os castigos, todos os prêmios, restringe-os
ao presente. Se conhecia a vida vindoura, por que não expôs expressamente tão
importante dogma? E se não a conheceu, qual o objeto de sua missão? É o que perguntam
muitas personagens ilustres. E respondem que o Mestre de Moisés e de todos os
homens se reservava o direito de explicar a bom tempo aos judeus uma doutrina
que eles não estavam em condições de compreender quando no deserto.”
AMOR PRÓPRIO
Um mendigo dos
arredores de Madri esmolava nobremente. Disse-lhe um transeunte:
— O sr. não tem
vergonha de se dedicar a mister tão infame, quando podia trabalhar?
— Senhor, –
respondeu o pedinte – estou lhe pedindo dinheiro e não conselhos. – E com toda
a dignidade castelhana virou-lhe as costas.
Era um mendigo
soberbo. Um nada lhe feria a vaidade. Pedia esmola por amor de si mesmo, e por
amor de si mesmo não suportava reprimendas.
Viajando pela
Índia, topou um missionário com um faquir carregado de cadeias, nu como um
macaco, deitado sobre o ventre e deixando-se chicotear em resgate dos pecados
de seus patrícios hindus, que lhe davam algumas moedas do país.
— Que renúncia de
si próprio! – dizia um dos espectadores.
— Renúncia de mim
próprio? – retorquiu o faquir. – Ficai sabendo que não me deixo açoitar neste
mundo senão para vos retribuir no outro. Quando fordes cavalo e eu cavaleiro.
Tiveram pois plena
razão os que disseram ser o amor de nós mesmos a base de todos as nossas ações
– na Índia, na Espanha como em toda a terra habitável.
Supérfluo é provar
aos homens que têm rosto. Supérfluo também seria demonstrar-lhes possuírem amor
próprio. O amor próprio é o instrumento da nossa conservação. Assemelha-se ao
instrumento da perpetuação da espécie. Necessitamo-lo. É-nos caro. Deleita-nos.
E cumpre ocultá-lo.”
ANTROPÓFAGOS
Falamos do amor. É
duro passar de pessoas que se beijam a pessoas que se comem. Não resta dúvida
terem existido antropófagos. Encontramo-los na América, onde é possível que
ainda os haja. Na antiguidade não foram os ciclopes os únicos a se alimentarem
às vezes de carne humana. Conta Juvenal que entre os egípcios – esse povo tão
sábio, tão famigerado por suas leis, esse povo tão piedoso que adorava
crocodilos e cebolas – os tentiritas comeram certa vez um inimigo que lhes caiu
nas mãos. Não o diz de outiva: estava no Egito, porto de Têntiro, quando se
cometeu o crime quase aos seus olhos. E lembra, ao relatar o caso, os gascões e
saguntinos, que outrora se alimentaram de carne dos próprios compatriotas.
Em 1725
trouxeram-se quatro selvagens do Mississipi a Fontainebleau. Tive a honra de
falar-lhes. Havia entre eles uma dama do país, a quem perguntei se havia comido
gente. Respondeu-me muito singelamente que sim. Fiquei um tanto escandalizado,
e ela desculpou-se dizendo ser preferível comer o inimigo, depois de morto, a
deixá-lo servir de pasto às feras; que demais o vencedor merecia a preferência.
Nós outros, em batalha campal ou não, por fas ou por nefas matamos nossos
vizinhos e pela mais vil recompensa pomos em função o engenho da morte. Aqui é
que está o horror. Aqui é que está o crime. Que importa que depois de morto se
seja comido por um soldado, por um urubu ou por um cão?
Respeitamos mais
os mortos que os vivos. Cumpria respeitar uns e outros. Bem fazem as nações que
chamamos civilizadas em não meter no espeto os inimigos vencidos. Porque se
fosse permitido comer os vizinhos, começariam a comer-se entre si os próprios
compatriotas, o que seria grande desdouro para as virtudes sociais. Mas as
nações que hoje são civilizadas não o foram sempre. Todas elas foram muito
tempo selvagens. E com o sem número de revoluções de que tem sido palco o
mundo, o gênero humano foi ora mais ora menos numeroso. Sucedeu com os homens o
que hoje sucede com os elefantes, leões, tigres, cujas espécies minoraram
consideravelmente. Quando uma região estava ainda escassamente povoada de seres
humanos e as artes eram rudimentares, os homens se dedicavam à caça. O hábito
de se alimentarem do que matavam facilmente levou-os a tratar os inimigos como
tratavam os cervos e javalis. A superstição fez imolar vítimas humanas. A
necessidade as fez comer.
Qual o crime
maior: reunir-se religiosamente para cravar em honra da Divindade uma faca no
coração de uma menina enfitada, ou comer um bandido morto em legítima defesa?
No entanto há
muito mais exemplos de meninas e meninos sacrificados que de meninas e meninos
comidos. Quase todas as nações conhecidas sacrificaram crianças. Os judeus
imolavam-nas. É o que se chamava o anátema um verdadeiro sacrifício. Ordena-se
no capítulo 27 do Levítico não se pouparem as almas viventes prometidas, porém
em ponto algum se prescreve que sejam comidas. Isto era outro caso: tratava-se
exclusivamente de uma ameaça. Como vimos, disse Moisés aos judeus que caso não
observassem as cerimônias, não só teriam ronha, como as mães comeriam os
próprios filhos. Positivamente no tempo de Ezequiel os judeus deviam comer
carne humana, pois diz esse profeta no capítulo 39 que Deus os faria comer não
apenas os cavalos dos seus inimigos, mas ainda os cavaleiros e os outros
guerreiros. É positivo. De fato, por que não teriam os judeus sido
antropófagos? Seria a última coisa a faltar ao povo de Deus para ser a mais
abominável nação da terra.
Li nas anedotas da
história da Inglaterra do tempo de Cromwell que uma sebeira de Dublin vendia
excelentes candeias feitas com gordura de inglês. Certa vez queixou-se-lhe um
de seus fregueses de que as candeias já não eram tão boas como antes. – Ah, -
disse ela – é que este mês faltaram ingleses. – Pergunto eu: quem o mais
culpado: quem passava os ingleses à faca ou a mulher que fazia velas com sua
banha?”
APIS
Era o boi Apis
adorado em Menfis como deus, como símbolo ou como boi? É de crer que os
fanáticos nele vissem um deus, os cultos mero símbolo e que o vulgo ignorante
adorasse o boi. Terá Cambises feito bem, quando conquistou o Egito, em matar
esse boi com as próprias mãos? Por que não? Com isso fez ver aos imbecis que se
podia passar seu deus à faca sem que a natureza se armasse para vingar o
sacrilégio.
Incensaram-se
muito os egípcios. Não sei de povo mais desprezível. Encarrapatou-se-lhes
sempre no caráter e no governo um vício radical que os fez um povo de eternos e
vis escravos. Que tenham, em épocas imemoriais, conquistado a terra. Na
clareira dos tempos históricos, porém, avassalaram-nos quantos povos quiseram
dar-se ao trabalho — assírios, persas, gregos, romanos, árabes, mamelucos,
turcos, enfim, toda gente, salvo os cruzados, que não lhes conheciam a
fraqueza. Foi a milícia dos mamelucos que venceu os franceses. Não há talvez
mais que duas coisas sofríveis nessa nação: primeiro, que adorando um boi nunca
constrangeram quem adorasse um macaco a mudar de religião; segundo, terem
inventado a chocadeira artificial.
Gabam-se-lhes as
pirâmides. Mas as pirâmides são monumentos de um povo de escravos. Foi preciso
pôr de baixo de canga toda uma nação, sem o que essas vis massas não teriam
sido levantadas. Que finalidade tinham? Conservar em uma pequena câmara a múmia
de algum príncipe, de algum governador, de um intendente qualquer, porque ao
cabo de mil anos sua alma devia reanimá-la. Mas se esperavam a ressurreição dos
corpos, por que lhes extraiam os miolos antes de embalsamá-los? Será que os
egípcios deviam ressuscitar sem cérebro?
“Parece-me que
Bayle devia antes examinar qual o mais nocivo, se o fanatismo, se o ateísmo. O
fanatismo é certamente mil vezes mais funesto, porquanto o ateísmo não inspira,
como ele, paixão sanguinária. O ateísmo não se opõe ao crime: o fanatismo o
atiça.”
“Como disse um
autor conhecido, o catequista anuncia Deus às crianças e Newton o demonstra aos
sábios.”
“Eis aí ordem
nítida e constante entre os animais de todas as espécies. Em tudo existe ordem.
Quando se forma um cálculo em minha bexiga, verifica-se uma mecânica admirável.
Pouco a pouco aparecem no sangue sucos calculosos, que se filtram nos rins,
passam pelas uréteres, caem na bexiga e ali se depositam em virtude de
excelente atração newtoniana; forma-se a concreção, que cresce, e eu sofro
dores mil vezes piores que a morte, por mais maravilhosamente ordenado que
esteja o mundo. Um cirurgião que aperfeiçoou a arte inventada por Tubalcain
enterra-me um ferro agudo e trinchante no perineu, agarra o cálculo com suas
tenazes: por um mecanismo necessário, a pedra se desfaz sob seus esforços. E
pelo mesmo mecanismo necessário entrego a alma ao diabo em meio de tormentos
medonhos. Tudo isso está bem. Tudo isso é consequência evidente dos
inalteráveis princípios físicos. Reconheço-o. Mas, como vós, já o sabia.”
CADEIA DOS
ACONTECIMENTOS
Há muito que se
creem os acontecimentos encadeados uns aos outros por invencível fatalidade — o
Destino — que é em Homero superior ao próprio Júpiter. Sem refolhos confessava
o soberano dos deuses e dos homens não poder impedir que seu filho Sarpédon
morresse no prazo preestabelecido. No momento em que devia nascer Sarpédon nascera,
nem poderia deixar de ser assim. Não podia morrer em outro lugar senão diante
de Tróia. Não podia ser enterrado senão em Lícia. Seu corpo, no prazo
preestabelecido, produziria legumes que se transmudariam em substância de
alguns licienses. Seus herdeiros haveriam de estabelecer nova ordem em seus
estados. Essa nova ordem influiria nos reinos vizinhos. Do que resultariam
novas disposições de guerra e paz com os vizinhos dos vizinhos de Licia. E
assim sucessivamente o destino da terra dependeu da morte de Sarpédon, a qual
dependeu de outro acontecimento, que por seu turno se ata por intermédio de
outros à origem das coisas.
Tivesse um único
desses fatos acontecido diferentemente, outro fora o mundo. Ora, impossível que
o mundo atual existisse e não existisse ao mesmo tempo: portanto impossível
fora a Júpiter salvar a vida do filho, por muito Júpiter que fosse.
Diz-se que este
sistema da necessidade e fatalidade inventou-o Leibnitz em nossos dias,
chamando-lhe razão suficiente. Entretanto é antiquíssimo. Não é de hoje que não
há efeito sem causa e que muitas vezes a mais insignificante das causas produz
os maiores efeitos.
“A idade amolenta
o caráter. Transforma-o em uma árvore que não dá senão um ou outro fruto
abastardado, mas sempre da mesma natureza. Enodoa-se, cobre-se de musgo,
caruncha. Jamais deixará de ser carvalho ou pereira, porém. Se fosse possível
alterar o caráter, a gente mesmo o plasmaria a bel prazer, seria senhor da
natureza. Podemos lá criar alguma coisa? Não recebemos tudo? Experimentai animar
o indolente de contínua atividade, inspirar gosto à música a quem careça de
gosto e de ouvido. Não tereis melhor resultado do que se empreenderdes dar
vista a cego de nascença. Nós aperfeiçoamos, esborcelamos, embuçamos o que nos
estereogravou a natureza. Não há, porém, alterar-lhe a obra.
Direis a um
criador: – O Sr. tem peixe demais nesse viveiro; assim eles não vingam. Seus
campos estão sobrelotados de gado; o capim não dá, os animais emagrecerão.
Com isso deixa o
nosso homem que as solhas lhe comam metade das carpas, e os lobos metade dos
carneiros. Os restantes engordam. Gabar-se-á ele dessa economia? Este camponês
és tu mesmo. Uma de tuas paixões devorou as outras, e tu julgas haver triunfado
sobre ti próprio. Não parecemos quase todos nós com aquele velho general de
noventa anos que, encontrando alguns jovens oficiais mexendo com umas moças,
perguntou-lhes colérico: “Senhores, é esse o exemplo que lhes dou?”.”
“Não suporto
principalmente a demência das seitas. De um lado vejo Lao Tsé concebido pela
união do céu e da terra e cuja mãe o carregou no ventre durante oitenta anos.
Não tenho mais fé em sua doutrina do aniquilamento e da renúncia universal que
nos cabelos brancos com que nasceu ou na vaca preta que montou para ir pregar
sua doutrina. Não creio mais no deus Fo, ainda que tenha tido por pai um
elefante branco e prometa a vida eterna.”
“Um coração puro é
o mais sublime dos templos, como dizia o grande imperador Hiao.”
“Não há virtude
que não ofereça seus riscos. Por isso mesmo é belo abraçá-las.”
“Os quekars,
porém, merecem atenção particular. São os únicos convivas que nunca vi se
emborracharem nem praguejarem. Dificílimos de enganar, também nunca enganam
ninguém. Parece que a lei que manda amar o próximo como a si mesmo foi feita
especialmente para eles. Porque, verdade se diga, como pode um japonês dizer
amar o próximo como a si próprio se por uma bagatela mete-lhe uma bala de
chumbo na cabeça ou decapita-o com um cris de quatro dedos de largo? Quando ele
próprio vive em constante risco de ser degolado ou engolir balas de chumbo? Com
mais propriedade se dirá que ele odeia o próximo como a si mesmo.”
“O trabalho
moderado é propiciador de saúde do corpo e da alma.”
“Quando, porém,
fala do que viu, dos costumes dos povos que estudou, das antiguidades que
submeteu a exame, aí sim dirige-se a gente grande.
“Quero crer” – diz
no livro Euterpe – “que os habitantes da Cólchida sejam originários do Egito.
Julgo-o mais por mim mesmo que de outiva, porque verifiquei ser mais viva a
recordação dos antigos egípcios na Cólchida que no Egito a lembrança dos velhos
costumes de Colchos.
“Pretendia esse
povo praieiro do Ponto Euxino ser uma colônia fundada por Sesostris. Quanto a
mim, já o conjeturava, não somente por serem adustos e terem os cabelos
frisados, mas porque os povos da Cólchida, Egito e Etiópia são os únicos na
terra que sempre praticaram a circuncisão. Quanto aos fenícios e aos habitantes
da Palestina, confessam ter copiado tal prática aos egípcios. Da mesma forma os
sírios, que hoje estanciam às abas do Termódon e da Parténia, e seus vizinhos
mácrons reconhecem não haver muito tempo que se conformaram a esse costume
egípcio. É esse até um dos principais atestados de sua ascendência egípcia.
“Quanto à Etiópia
e ao Egito, como a circuncisão é antiquíssima tanto num como noutro, não sei
qual dos dois tenha importado essa cerimônia. O mais provável, contudo, é
terem-na recebido os etíopes dos egípcios. Assim como, contrariamente,
desterraram os fenícios o uso de circuncidar as crianças recém nascidas desde
que se intensificou seu comércio com os gregos.”
É evidente, de
acordo com esse passo de Heródoto, que muitos foram os povos que receberam a
circuncisão do Egito. Nenhum, porém, jamais pretendeu tê-la importado dos
judeus. A quem atribuir então a origem desta prática: a uma nação de que
confessam havê-la perfilhado cinco ou seis outras, ou a uma nação muito menos
poderosa, menos comerciante, menos guerreira, encafurnada num canto da Arábia
Pétrea, que nunca comunicou a povo nenhum o mais insignificante de seus
costumes?
Dizem os judeus
ter sido outrora caritativamente acolhidos pelos egípcios. Não é muito
verossímil haver o povo ínfimo imitado um uso do grande povo? Não é natural
terem os judeus adotado um ou outro costume de seus senhores?
Conta Clemente de
Alexandria que, viajando o Egito, Pitágoras foi obrigado a deixar
circuncidar-se para ser admitido em seus mistérios. Quer dizer que era
absolutamente imprescindível ser circunciso para ingressar no sacerdócio
egípcio. Tal sacerdócio já existia quando José foi dar com os costados no país
das pirâmides. Antiquíssimo era o governo, e as cerimônias se observavam com a
mais escrupulosa exatidão.
Confessam os
judeus ter permanecido duzentos e cinco anos no Egito. E dizem não haver
praticado a circuncisão nesse espaço de tempo. Claro é por conseguinte que os
egípcios não poderiam ter-lhes copiado essa prática enquanto os tiveram como
hóspedes. Tê-lo-iam feito posteriormente, depois de os judeus lhes haverem
roubado todos os vasos que lhes tinham sido emprestados e se rasparem a sete
pés para o deserto levando consigo o fruto do roubo, segundo seu próprio
testemunho? Adotará um senhor o selo da religião de um escravo que o roubou e
fincou pé no mundo? Não o admite a natureza humana.
Diz-se no livro de
Josué que os judeus foram circuncidados nos desertos: “Eu vos livrei do que
constituía o vosso opróbrio entre os egípcios”. Ora, qual podia ser esse
opróbrio para uma nação encravada entre a Fenícia, Arábia e Egito, senão o que
os tornava desprezíveis aos olhos destes três povos? Como livrá-los desse
opróbrio? Livrando-os de um pouco de prepúcio. Não é o sentido natural do
trecho acima citado?
Diz o Gênesis que
Abraão foi circunciso. Mas Abraão esteve no Egito, que era havia muito reino
florescente, governado por poderoso rei. Nada impede que nesse reino tão antigo
fosse a circuncisão praticada desde muito tempo antes que se formasse a nação
judaica. Demais a circuncisão de Abraão foi um caso insulado. Só depois de
Josué foi que se vulgou entre seus pósteros esse sacramento.
Ora, antes de
Josué os israelitas aprenderam, como eles mesmos confessam, muitos costumes dos
egípcios. Imitaram-nos em não poucos sacrifícios, cerimônias, como os jejuns às
vésperas das festas de Isis, as abluções, o costume de rapar a cabeça dos
padres, o incenso, o candelabro, o sacrifício da vaca ruça, a purificação com
hissopo, a abstinência da carne de porco, a aversão aos utensílios de cozinha
dos estrangeiros, tudo atestando que o diminuto povo hebreu, mau grado sua
antipatia à grande nação egípcia, retivera infinidade de usos de seus
ex-senhores. O bode Hazazel, que enviavam ao deserto carregado dos pecados do
povo, era visível imitação de uma prática egípcia. Os próprios rabinos convêm
em que a palavra Hazazel não é hebraica. Nada obsta, portanto, que os hebreus
hajam imitado os egípcios na circuncisão, como o fizeram seus vizinhos árabes.
Nada de
extraordinário há em que Deus, que santificou o batismo, tão antigo entre os
asiáticos, santificasse também a circuncisão, não menos antiga entre os
africanos. Já dissemos ser senhor de conferir suas graças aos sinais que se
dignar eleger.
Demais de tudo,
desde que, sob Josué, os judeus foram circuncisos, mantiveram essa prática até
nossos dias. O mesmo fizeram os árabes. Os egípcios, porém, que a princípio
circuncidavam os jovens de ambos os sexos, com o tempo deixaram de submeter as
moças a tal operação, terminando por restringi-la aos sacerdotes, astrólogos e
profetas. É o que nos ensinam Clemente de Alexandria e Orígenes. Efetivamente,
nunca se ouviu dizer que os Tolemeus tivessem sido circuncidados.
Os autores
latinos, que tratam os judeus com tão profundo desprezo que lhes chamam curtas
Apella, por derisão, credat Judaeus Appella, curti Judaei, não dão epítetos
tais aos egípcios. Hoje a circuncisão é de regra no Egito, mas por outra razão:
porque o mafomismo adotou a antiga circuncisão da Arábia.
Foi essa
circuncisão árabe que passou à Etiópia, onde ainda se circuncidam os jovens de
ambos os sexos.
Não há negar ser à
primeira vista bem estranha a cerimônia da circuncisão. Mas note-se que em
todos os tempos os sacerdotes do Oriente se consagraram a suas divindades por
marcas particulares. Entre os padres de Baco o sinal era uma folha de hera
gravada a buril. Diz Luciano que os devotos da deusa Tais imprimiam sinais no
pulso e pescoço. Os sacerdotes de Cibele faziam-se eunucos.
É muito provável
que os egípcios, que veneravam o instrumento da geração e carregavam-lhe a
imagem em suas procissões, tivessem a ideia de oferecer a Isis e Osiris, deuses
que presidiam a todos os fenômenos de reprodução, uma partícula do membro por
que quiseram essas divindades que o gênero humano se perpetuasse. São os
antigos costumes orientais tão diferentes dos nossos que nada parecerá
extraordinário a quem quer que tenha um pouco de leitura. Um parisiense fica
admirado ao saber que os hotentotes cortam aos filhos um dos testículos. Os
hotentotes ficariam admiradíssimos se soubessem que os parisienses conservam os
dois.”