sexta-feira, 28 de abril de 2017

Tratado Político & Correspondência (Os Pensadores) – Benedictus de Spinoza

Editora: Nova Cultura
Tradução: Manuel de Castro (Tratado Político)
Tradução e notas: Marilena Chauí (Correspondência)
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 92
Sinopse: 4. Tratado político [publ. 1677]: A morte impediu que Espinosa terminasse esta obra, que aborda temas já contidos no Tratado Teológico-Político (1670). Analisa várias formas de governo e exalta a verdadeira liberdade – puramente racional –, mostrando as vantagens da democracia.
5. Correspondência [1661/74]: Em cartas a Oldenburg, Simon de Vries, Meijer e outros, Espinosa esclarece e aprofunda aspectos importantes de sua filosofia.



Tratado Político
“Seguindo os ensinamentos da religião, cada um deve amar o próximo como a si mesmo, isto é, defender como seu próprio o direito de outrem; mas nós mostramos já como esta persuasão pouco poder tem sobre as emoções. Triunfa, na verdade, quando se está perante a morte, quer dizer, a doença venceu as paixões e o homem jaz inerte, ou ainda nos templos onde os homens não têm interesses a defender; mas não possui eficácia perante os tribunais ou na corte, onde seria mais necessário que a tivesse.”


“Não podemos duvidar que, se estivesse no nosso poder tanto viver segundo as prescrições da Razão quanto ser conduzidos pelo desejo cego, todos viveriam sob a conduta da Razão e segundo regras sabiamente instituídas; ora, nada disto se dá, pois cada um, pelo contrário, obedece à atração do prazer que procura. Não é verdade que esta dificuldade seja eliminada pelos teólogos, quando declaram que a causa desta incapacidade da natureza humana é o vício ou o pecado que têm a sua origem na queda do primeiro homem. Se o primeiro homem tivesse tido o poder de permanecer reto tanto quanto o de tombar, se estivesse na posse de si mesmo e de uma natureza ainda não viciada, como poderia ter acontecido que, possuindo saber e prudência, tenha caído? Dir-se-á que foi ludibriado pelo diabo? Mas, então, quem ludibriou o próprio diabo? Quem, pergunto eu, pôde fazer com que um ser preponderante sobre todas as outras criaturas tenha sido suficientemente louco para querer ser maior que Deus? Este ser, que tinha uma alma sã, não se esforçaria por conservar o seu ser tal como o possuía? Como pôde acontecer, além disso, que o primeiro homem, na posse de si mesmo e senhor da sua vontade, se tenha deixado seduzir e ludibriar? Se tinha o poder de usar retamente da Razão, não poderia ser ludibriado porque, tendo poder sobre si mesmo, se esforçaria necessariamente por conservar o seu ser e a sua alma sãos. Ora, supõe-se que tinha esse poder. Portanto, conservou forçosamente a alma sã e não pôde ser ludibriado. Porém, a sua história mostra que não é assim. É preciso reconhecer, por consequência, que não estava no poder do primeiro homem usar retamente da Razão, mas que ele estava, como nós o estamos, submetido às paixões.”


“Na medida em que os homens sejam tomados pela cólera, pela inveja, ou qualquer sentimento de ódio, eis que se opõem e contrariam mutuamente e se tornam tanto mais temíveis quanto é certo serem mais poderosos, e hábeis e astutos que os outros animais. Como atualmente os homens estão muito sujeitos por natureza a estes sentimentos, são também por natureza inimigos uns dos outros; com efeito, é meu maior inimigo aquele que para mim é mais temível e de quem mais devo defender-me.
Como no estado natural cada um é senhor de si próprio, enquanto pode defender-se de forma a não sofrer a opressão de outrem, e porque, individualmente, o esforço de autodefesa se torna ineficaz sempre que o direito natural humano for determinado pelo poder de cada um, tal direito será na realidade inexistente, ou pelo menos só terá uma existência puramente teórica, porquanto não há nenhum meio seguro de o conservar. É também certo que cada um tem tanto menos poder e, por conseguinte, menos direito quanto mais razões tem para temer. Acrescentamos que sem mútua cooperação os homens nunca poderão viver bem e cultivar a sua alma. Chegamos, portanto, a esta conclusão: que o direito natural, no que respeita propriamente ao gênero humano, dificilmente se pode conceber, a não ser quando os homens têm direitos comuns, terras que podem habitar e cultivar em comum, quando podem vigiar a manutenção do seu poder, proteger-se, combater qualquer violência e viver segundo uma vontade comum.”


“A justiça e a injustiça não se podem conceber senão num Estado, tal como o pecado e a obediência (no seu sentido estrito). Nada há, efetivamente, na Natureza que se possa dizer pertencer de direito a um e não a outro, mas tudo é de todos, isto é, cada um tem direito na medida em que possui poder. Num Estado, pelo contrário, em que a lei comum decide o que a cada um pertence, é chamado justo o que tem uma vontade constante de atribuir a cada um o que é seu, e, pelo contrário, injusto o que se esforça por tomar seu o que pertence a outros.”


“Conhece-se, facilmente, qual é a condição de qualquer Estado considerando o fim em vista do qual um estado civil se funda; este fim não é senão a paz e a segurança da vida. Por conseguinte, o melhor governo é aquele sob o qual os homens passam a sua vida em concórdia e aquele cujas leis são observadas sem violação. É certo, com efeito, que as sedições, as guerras e a violação ou o desprezo pelas leis são imputáveis, não tanto à malícia dos súditos, quanto a um vício do regime instituído. Os homens, com efeito, não nascem cidadãos, mas formam-se como tais. As paixões naturais que se debatem são, além disso, as mesmas em todos os países; se, portanto, reina uma maior malícia numa cidade e se aí se cometem pecados em maior número, isso provém de que ela não promoveu suficientemente a concórdia, que as suas instituições não são suficientemente prudentes e que, consequentemente, não estabeleceu absolutamente um direito civil. Com efeito, um estado civil que não suprimiu as causas de sedição e onde a guerra é constantemente de recear, onde as leis são frequentemente violadas, não difere muito do estado natural, em que cada um, com maior perigo para a sua vida, age segundo a própria compleição.”


“Nenhum Estado, com efeito, permaneceu tanto tempo sem nenhuma alteração notável como o dos turcos e, em contrapartida, nenhuma cidade foi menos estável do que as cidades populares ou democráticas, nem onde se tenham dado tantas sedições. Mas se a paz tem de possuir o nome de servidão, barbárie e solidão, nada há mais lamentável para o homem do que a paz. Entre pais e filhos há certamente mais disputas e discussões mais ásperas que entre senhores e escravos e, todavia, não é do interesse da família, nem do seu governo, que a autoridade paterna seja um domínio e que os filhos sejam como escravos. É, pois, a servidão, e não a paz, que requer que todo o poder esteja nas mãos de um só; tal como já dissemos, a paz não consiste na ausência de guerra, mas na união das almas, isto é, na concórdia.”


“O rei sozinho não pode efetivamente manter todos os cidadãos sob o medo; se o seu poder, como dissemos, assenta no número de soldados e, mais ainda, no seu valor e fidelidade, tal fidelidade é sempre constante quando estão ligados por uma necessidade comum, seja ou não honrosa. Daí o costume que têm os reis de usar mais de estimulantes que de constrangimento em relação aos soldados, de ser mais indulgentes relativamente aos seus vícios que às virtudes e, na maior parte do tempo, de procurar, para dominar os melhores, os homens preguiçosos e corrompidos, de os distinguir, de lhes conceder dinheiro e favores, de lhes apertar a mão, de os afagar e, por desejo de dominar, de multiplicar os sinais de servilismo. Portanto, para que os cidadãos sejam colocados em primeiro lugar pelo rei, e para que se mantenham tão senhores de si mesmos quanto lhes permite o estado civil, ou a equidade, é necessário que a força armada seja composta apenas por eles e que sejam só eles a entrar nos conselhos. Pelo contrário, ficarão inteiramente subjugados e serão estabelecidos princípios de guerra perpétua logo que se permita a introdução de soldados mercenários cujo ofício é a guerra e cuja força aumenta na discórdia e nas sedições.”


Correspondência
“Quanto ao que dizeis, que Deus nada tem em comum formalmente com as coisas criadas, foi o contrário que pus em minha definição. Com efeito, disse que Deus é o ente constituído por infinitos atributos, cada um dos quais é infinito, isto é, supremamente perfeito em seu gênero.
Quanto ao que objetais à minha primeira proposição, considerai, meu amigo, que os homens não são criados mas engendrados e que seus corpos existiam antes, embora numa outra forma*.”
*: Espinosa distingue entre criar e engendrar. Criar é produzir a essência e a existência; engendrar é promover a existência. Deus cria. Os homens e todas as criaturas engendram-se uns aos outros. (N. do T.)


“Para Espinosa, a coisa pensante ou o intelecto finito é constituído pelas ideias, mas estas incluem as volições, pois pensar e querer são identificados enquanto poder para afirmar e negar. O pensamento não é um conjunto de conteúdos, mas uma atividade produtora desses conteúdos.” (Marilena Chauí)


“A questão do infinito* sempre pareceu dificílima para todos, até mesmo inextricável, porque não distinguiram entre aquilo que é infinito por sua natureza, ou pela força de sua definição, e aquilo que não tem fim, não pela força de sua essência, mas pela sua causa. E também porque não distinguiram entre aquilo que é dito infinito porque não tem fim, e aquilo cujas partes, embora conheçamos o máximo e o mínimo, não podem ser explicadas ou representadas apenas por um número. Enfim, porque não distinguiram entre aquilo que só pode ser inteligido, mas não imaginado, e aquilo que também podemos imaginar. Se tivessem prestado atenção nisso, jamais teriam sido esmagados sob o peso de tantas dificuldades. Com efeito, teriam claramente compreendido qual infinito não se divide em partes (ou que não tem partes) e qual, ao contrário, pode ser dividido em partes sem contradição. Também teriam compreendido qual infinito pode ser concebido como maior do que outro sem qualquer contradição, e qual não pode ser concebido assim. É o que mostrarei claramente a seguir.
Antes, porém, devo dizer alguma coisa sobre quatro pontos: a substância, o modo, a eternidade e a duração. Eis o que se deve considerar acerca da substância: em primeiro lugar, que a existência pertence à sua essência, isto é, que sua existência decorre de sua essência apenas e de sua definição. Em segundo lugar (e como consequência do anterior), que não existem múltiplas substâncias de mesma natureza, mas que a substância é única quanto à sua natureza. Enfim, em terceiro lugar, que uma substância só pode ser compreendida como infinita. Chamo de modo as afecções da substância, e sua definição, na medida em que não é a definição da própria substância, não pode envolver qualquer existência. Por isso, embora os modos existam, podemos concebê-los como não existentes, donde se segue que, quando consideramos apenas a essência dos modos e não a ordem da Natureza toda, não podemos concluir, da existência presente deles, que deverão existir ou não existir posteriormente, ou que tivessem existido ou não existido anteriormente. Como se vê claramente, concebemos a existência dos modos como totalmente diversa da existência da substância. Origina-se aí a diferença entre a eternidade e a duração — por esta só podemos explicar a existência dos modos; mas a existência da substância só pode ser explicada pela eternidade, isto é, como fruição infinita do existir (existendi), ou, para usar um barbarismo, como fruição infinita do ser (infinitam essendifruitionem).
De tudo o que foi dito vê-se claramente que quando consideramos (o que sucede frequentemente) apenas a essência dos modos e da duração, mas não a ordem da Natureza, podemos (sem destruir os conceitos que deles temos) determinar à vontade sua existência e sua duração, concebê-las como maiores ou menores, dividi-las em partes. Mas no que concerne à eternidade e à substância, visto que só podem ser concebidas como infinitas, não podem ser submetidas a tais operações sem que destruamos seus conceitos. Só por brincadeira, para não dizer por insanidade, alguns consideram a substância extensa como composta de partes, isto é, em corpos realmente distintos. Seria como se alguém quisesse, pela junção e acumulação de círculos, compor um quadrado, um triângulo ou qualquer outra coisa de essência totalmente diversa. Por isso destrói-se por si mesma aquela miscelânea de argumentos que os filósofos habitualmente oferecem para mostrar que a substância extensa é finita, pois supõem uma substância corporal composta de partes. Da mesma maneira, muitos outros, depois de se persuadirem que a linha é composta de pontos, puderam encontrar vários argumentos para mostrar que a linha não é divisível ao infinito.**
Contudo, se perguntares por que estamos propensos por um impulso natural a dividir a substância extensa, responder-te-ei que a quantidade pode ser concebida por nós de duas maneiras: abstrata ou superficialmente, como nos é dada na imaginação com o auxílio dos sentidos; ou como uma substância e, portanto, concebida apenas pelo intelecto. Por isso, se consideramos a quantidade tal como é na imaginação (o que é mais frequente e mais fácil), acharemos que é divisível, finita, composta de partes e múltipla. Se, ao contrário, a consideramos tal como é no intelecto e se percebemos a coisa tal como é em si mesma (o que é dificílimo), então, como já te demonstrei anteriormente, descobrimos que é infinita, indivisível e única.
A origem do tempo e da medida decorre de que podemos determinar à vontade a duração e a quantidade, quando concebemos esta abstraída da substância e aquela separada da maneira como flui das coisas eternas. O tempo serve para delimitar a duração, e a medida para delimitar a quantidade, de tal sorte que podemos imaginá-las facilmente tanto quanto seja possível. O número surge depois porque separamos as afecções da substância da própria substância e as repartimos em classes para poder imaginá-las facilmente, e o número serve para que as determinemos. Vê-se claramente, portanto, que a medida, o tempo e o número são apenas modos de pensar, ou melhor, de imaginar. Por isso, não é de espantar que todos aqueles que se esforçaram para compreender a marcha (progressum) da Natureza com o auxílio de tais noções, elas também mal compreendidas, se embaraçaram em dificuldades inextricáveis, de onde só puderam sair destruindo tudo e admitindo absurdos ainda maiores. Com efeito, como há muitas coisas que só podemos alcançar pelo intelecto e não pela imaginação, como por exemplo a substância, a eternidade, aqueles que se esforçam para explicá-las por meio de noções que são auxílios da imaginação só podem desatinar (insaniat) com sua imaginação. Os modos da substância também não podem ser corretamente compreendidos com tais entes de Razão ou auxiliares da imaginação. Ao fazermos essa confusão, nós os separamos da substância e da maneira como escoam da eternidade, e sem elas não podem ser compreendidas corretamente.
Para que vejas com mais clareza, dou um exemplo. Se se conceber abstratamente a duração, confundindo-a com o tempo, começa-se a dividi-la em partes e torna-se impossível compreender, por exemplo, como uma hora pode passar. Para que passe, com efeito, é preciso que primeiro passe a metade, depois a metade do resto e em seguida a metade do novo resto; e se continuarmos retirando infinitamente a metade do resto, nunca poderemos chegar ao fim da hora. Por isso muitos que não costumam distinguir entre os entes de Razão e os entes reais ousaram asseverar que a duração é composta de momentos e caíram em Silas ao tentarem evitar Caribdes. Compor a duração com momentos é o mesmo que compor o número apenas pela adição de zeros.
Ademais, pelo que foi dito, está muito patente que o número, a medida e o tempo, por serem auxiliares da imaginação, não podem ser infinitos, pois senão o número não seria mais número, a medida, medida, e o tempo, tempo. Por isso se vê claramente por que muitos, que confundem esses três entes de imaginação com entes reais, porque ignoram a verdadeira natureza das coisas, negam o infinito em ato.
Assim, se se quisesse determinar todos os movimentos da matéria que existiram até hoje, reduzindo-os, bem como sua duração a um número e a um tempo certos, seria como se se esforçasse para privar a substância corporal de suas afecções, substância que só podemos conceber como existente, e, assim, fazer com que não tenha a natureza que tem. De tudo o que foi dito, vê-se claramente que certas coisas são infinitas por sua natureza e não podem ser concebidas de outra maneira; que algumas outras são infinitas pela força da causa que lhes é inerente, e, no entanto, quando são concebidas abstratamente, podem ser divididas em partes e ser consideradas finitas; que outras, enfim, podem ser ditas infinitas, ou, se preferires, indefinidas, porque não podem ser igualadas a nenhum número, embora possamos concebê-las como maiores ou menores, e por isso não é necessário que coisas que não podemos igualar a um número sejam iguais entre si.”
*: Esta é, talvez, a carta mais importante da correspondência espinosana. Nela o filósofo expõe a teoria do infinito atual, tema central do pensamento do século XVII. A tese espinosana consistirá em negar toda tentativa para pensar o infinito negativamente: não-limitado, sem começo, sem fim, etc. O infinito é positividade absoluta. Espinosa recusa, também, a consequência do negativismo: as tentativas para calcular o infinito, que supõem o infinito como descontínuo. O centro da demonstração gira sobre: 1.° a distinção entre o que é infinito por sua natureza e o que é infinito por sua causa; 2.° sobre a distinção entre o que pode ser compreendido pelo intelecto e pela imaginação, e aquilo que só pode ser compreendido pelo intelecto. O infinito está neste segundo caso e todos os enganos das tentativas para pensá-lo residem no fato de que os filósofos confundiram a ideia do infinito com a imagem (impossível) do infinito. (N. do T.)
**: Composição implica divisão ininterrupta. Por isso Espinosa não diz que a substância é composta de infinitos atributos infinitos em seu gênero, mas, sim que é constituída de infinitos atributos infinitos em seu gênero. Componere e constituere exprimem maneiras opostas de ser. (N. do T.)


“Não apresento Deus* como um juiz e estimo as obras por sua qualidade e não pela potência do obreiro e, para mim, a recompensa decorre da obra, e decorre dela tão necessariamente quanto decorre da natureza do triângulo que a soma de seus ângulos seja igual a dois retos. E isto é compreendido por qualquer um que tenha compreendido que nossa beatitude consiste no amor a Deus e que este amor nasce necessariamente do conhecimento de Deus, que é tão precioso para nós.”
*: Blyenbergh (com quem o autor troca esta correspondência) não poderá compreender Espinosa porque tem uma concepção supersticiosa de Deus, isto é, uma concepção antropomórfica. “Deus enquanto Deus” significa para Espinosa: a substância infinitamente infinita que se autoproduz e produz todas as coisas necessariamente. (N. do T.)


“Afirmo que, embora não atribua às Escrituras o tipo de verdade que pareceis querer encontrar nelas, contudo creio que reconheci sua autoridade tanto ou até mais do que os outros e fui muito mais cauteloso do que outros que se acautelam para não introduzir nelas opiniões pueris ou absurdas que ninguém pode fornecer, a menos que tenha compreendido extremamente bem a filosofia ou que tenha fido revelações divinas. Por isso não me perturbo muito com as explicações que certos teólogos vulgares dão das Escrituras, sobretudo se são daquela laia que se consagra àmera letra e ao sentido exterior. Nunca encontrei entre os teólogos, exceto os socinianos, algum tão crasso que não compreendesse que as Escrituras falam de Deus dum modo humano e que exprimem seu sentido por meio de parábolas. Quanto à contradição que vos esforçais para mostrar (e que em minha opinião não conseguis), creio que provém do fato de que entendeis por parábola algo totalmente diferente daquilo que vulgarmente se entende. Quem já ouviu dizer que exprimir seus conceitos por meio de parábolas é dar-lhes um sentido errôneo? Quando Miquélas disse ao rei Acab que vira Deus sentado num trono, com os exércitos celestes de pé à sua direita e à sua esquerda, e que ouvira Deus perguntar-lhes qual dentre eles enganaria Acab, isto certamente era uma parábola por cujo intermédio o profeta se exprimia de maneira suficientemente clara, estando encarregado sobretudo de manifestar-se em nome de Deus (e não de ensinar os dogmas mais sublimes da teologia). E, ao usar uma parábola, o profeta não deu um sentido errôneo ao que queria dizer. Assim também outros profetas, sob a ordem de Deus, tornaram manifesto seu verbo usando o meio que lhes parecia melhor para conduzir o povo ao projeto das Escrituras e que consiste, segundo o próprio Cristo, em amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. Creio, pois, que as altas especulações não concernem em nada às Santas Escrituras. Quanto a mim, nunca aprendi nem pude aprender nada sobre os atributos eternos de Deus a partir dos Livros Sagrados*.”
*: Principal tese sustentada no Tratado Teológico-Político para demonstrar que por sua natureza as Escrituras e a filosofia estão separadas. As primeiras falam imaginativamente de algumas propriedades de Deus; a segunda examina racionalmente a essência divina e o que dela decorre. O exemplo de Miquéias ilustra o que Espinosa considera o sentido e a finalidade bíblicos: a política, a moral e uma certa devoção. O conhecimento nada tem a ver com essas práticas. As Escrituras não são falsas por uma razão muito simples: não estão preocupadas com o problema da verdade (N. do T.).


“Para chegar à demonstração, é preciso supor:
1.° que a definição verdadeira de uma coisa qualquer inclui apenas a simples natureza da coisa definida e nada mais. Donde se segue:
2.° que nenhuma definição envolve ou exprime uma pluralidade ou um certo número de indivíduos, mas apenas a natureza da coisa tal como é em si mesma, e nada mais. Por exemplo, a definição do triângulo não inclui nada além da simples natureza do triângulo, e não um certo número de triângulos. Assim, também, a definição da mente como coisa pensante ou de Deus como Ente perfeito inclui apenas a natureza da mente e de Deus e não um certo número de mentes ou de deuses;
3.° que para toda coisa existente deve haver uma causa positiva graças à qual existe;
4.° que esta causa deve ser posta ou na natureza e na definição da própria coisa (porque a existência pertence à natureza da própria coisa ou porque a inclui necessariamente), ou fora da coisa.
Desses pressupostos segue-se que, se existir na natureza um certo número de indivíduos, deve haver uma ou várias causas que possam produzir esse número de indivíduos, nem mais, nem menos. Se, por exemplo, existem vinte homens na Natureza (para evitar confusão, suporei que existem simultânea e primitivamente), para dar conta de sua existência não é suficiente investigar a causa da natureza humana em geral, mas também é preciso investigar por que razão existem vinte homens, nem mais, nem menos. Pois é preciso dar a causa e a razão por que existe cada um destes homens. Mas esta causa não está contida na natureza do homem, pois a definição do homem não envolve o número vinte homens. Assim, a causa da existência desses vinte homens, e consequentemente de cada um em particular, deve estar fora deles. Deve-se, então, concluir absolutamente que todos os entes que concebemos existindo como uma multiplicidade numérica devem necessariamente ser produzidos por causas exteriores e não pela força de sua própria natureza. Mas, como a existência necessária pertence à natureza de Deus, é necessário que sua definição inclua a existência necessária e por isso sua existência necessária deve ser deduzida apenas de sua definição. Mas de sua definição verdadeira não se pode deduzir a existência necessária de muitos deuses. Dela decorre apenas, portanto, a existência de um único Deus*.”
*: Conhecer é conhecer pela causa — este é o lema espinosano. Conhecer pela causa é desvendar o processo de produção de uma certa realidade. Assim sendo, nunca se pode conhecer algo em geral, mas todo conhecimento é conhecimento de uma realidade singular. Para vinte homens deve haver vinte causas singulares de sua existência e de sua essência. Por isso, no Livro I da Ética, Espinosa dirá que da natureza de Deus devem decorrer infinitos efeitos que produzem infinitos efeitos, todos eles singulares. A filosofia de Espinosa é uma teoria da singularidade, isto é, do processo de sua produção. (N. do T.)


“Se um ente é pensamento, não pode ser concebido como determinado enquanto pensamento; se é extensão, não pode ser concebido como determinado enquanto extensão, mas só pode ser concebido como indeterminado*.”
*: Nesta carta n.° 36, Espinosa procura explicar por que a extensão e o pensamento são infinitos em seu gênero — isto é, um só pode ser limitado pelo outro, mas em si mesmos não possuem limites. Explica também por que, consequentemente, Deus, ou a substância, é absolutamente infinito e não infinito em seu gênero: nada pode limitá-lo. Esta carta elucida um ponto central da Ética pelo qual Espinosa se distância de Descartes: Deus não é o ser infinitamente perfeito — é o ser infinitamente infinito, isto é, absoluto. A perfeição é uma propriedade de Deus decorrente de sua infinidade, portanto, tem-se aqui o inverso da posição cartesiana. Infinito para Espinosa (vide carta n.° 12) é o necessário, isto é, o ente cuja essência é idêntica à sua existência e à sua potência. Absolutamente infinito significa: constituído por infinitos atributos infinitos em seu gênero. Em suma: absolutamente necessário. (N. do T.)


“Visto que a natureza de Deus não consiste num certo gênero de ente, mas num ente absolutamente indeterminado, sua natureza exige tudo aquilo que o ser exprime perfeitamente; de outra maneira, sua natureza seria determinada e deficiente. E se assim é, só pode haver um único ente, isto é, Deus, que existe por sua própria força. Se, por exemplo, admitimos que a extensão envolve a existência, é preciso que seja eterna e indeterminada, não exprima absolutamente qualquer imperfeição mas somente a perfeição, então a extensão pertencerá a Deus ou será algo que exprime de uma certa maneira a natureza de Deus, pois Deus é o Ente cuja essência é indeterminada e onipotente absolutamente e não somente sob um certo aspecto. O que acabo de dizer sobre a extensão (que tomei como um exemplo)* deve ser dito de tudo aquilo que quisermos colocar como tendo existência necessária. Concluo, portanto, como na carta anterior, que fora de Deus nada subsiste por si e que isto só é verdadeiro para Deus.”
*: Deve-se notar o peso desse “exemplo”, pois com ele Espinosa acaba de colocar a extensão como atributo da substância divina, o que é um escândalo para a metafísica cristã. (N. do T.)

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