domingo, 30 de abril de 2017

Ética (Os Pensadores) – Benedictus de Spinoza

Editora: Nova Cultura
Tradução: Joaquim Ferreira Gomes e Antônio Simões
Tradução e notas: Joaquim de Carvalho
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 214
Sinopse: Obra fundamental de Espinosa, propõe uma nova concepção de verdade: não mais como adequação entre intelecto humano e objeto de conhecimento, mas verdade enquanto índice de si mesma e do que é falso, verdade imanente ao objeto. “Demonstrada à maneira dos geômetras”, a Ética expõe e aplica o racionalismo espinosano, que combate a ideia tradicional de criação das coisas por Deus e afirma que a autoprodução de Deus é o modo de produção do real.



“Diz-se livre* o que existe exclusivamente pela necessidade da sua natureza e por si só é determinado a agir; e dir-se-á necessário, ou mais propriamente, coagido, o que é determinado por outra coisa a existir e a operar de certa e determinada maneira (ratione).”
*: Estas definições são fundamentais. Pode receber-se como paráfrase a seguinte passagem da carta (LVIII) de Espinosa a Shuller: “... Digo ser livre o que existe e age exclusivamente pela necessidade da sua natureza; e coagido o que por algo (ab alio) é determinado a existir e a operar de certa e determinada maneira (ratio). Deus, por exemplo, existe livremente embora exista necessariamente, porque existe pela única necessidade da sua natureza... Note bem: eu não faço consistir a liberdade numa decisão livre, mas na livre necessidade... Desçamos, porém, às coisas criadas, que todas são determinadas por causas externas a existir e a agir de maneira certa e determinada. Para tornar isso claro e inteligível, conceba-se uma coisa muito simples. Por exemplo: uma pedra recebe uma causa externa que a impele certa quantidade de movimento; se vier a cessar a causa externa do impulso ela continuará a mover-se necessariamente. Consequentemente, a permanência da pedra em movimento é coagida, e tem de ser definida não como necessária mas pelo impulso da causa externa...” Como se vê, chama liberdade à necessidade intrínseca, isto é, a determinação que tem por causa a própria essência. Daqui resulta que a noção espinosana de liberdade nada tem que ver com a noção de livre arbítrio e com a de contingência, e que o conceito que lhe é antitético é o da coação, isto é, de determinação extrínseca. Assim entendida, a liberdade não é uma propriedade do sujeito, mas um estado do ser. (N.T.)


“Deus, ou, por outras palavras, a substância que consta de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita, existe necessariamente.
(Pois) Existe necessariamente aquilo de que não é dada qualquer razão ou causa que lhe impeça a existência.”


“Não ter poder para existir é impotência, e, pelo contrário, ser capaz de existir é potência. Por conseguinte, se o que agora existe necessariamente é constituído apenas por entes finitos, segue-se que os entes finitos têm mais poder que o ente absolutamente infinito — o que é absurdo. Portanto, ou não existe coisa alguma, ou um ente absolutamente infinito tem necessariamente de existir. Ora, nós existimos ou em nós próprios ou noutra coisa que exista necessariamente; por conseguinte, existe necessariamente um ente absolutamente infinito, isto é, Deus.*”
*: Terceira prova, a posteriori, como Espinosa diz no escólio seguinte, pela qual deduz do finito o infinito: existem serem finitos; se o ser infinito não existisse, os seres finitos ser-lhe-iam superiores em potencialidade; portanto... (N. do T.)


“A ideia de uma coisa singular, existente em ato, tem por causa Deus, não enquanto ele é infinito, mas enquanto é considerado como sendo afetado pela ideia de uma outra coisa singular existente em ato, ideia de que igualmente Deus é causa, enquanto é afetado por uma terceira, e assim até ao infinito.”


“É da natureza da Razão perceber as coisas sob um certo aspecto de eternidade.”


“Certamente que a sorte da humanidade seria muito mais feliz se estivesse igualmente na potência do homem tanto falar como calar-se. Mas a experiência ensina suficiente e superabundantemente que nada está menos em poder dos homens que a sua língua e não há nada que eles possam menos fazer que governar os seus apetites. Daí resulta que a maioria julga que a nossa liberdade de ação existe apenas em relação às coisas que desejamos debilmente, pois o apetite que nos inclina para essas coisas pode ser facilmente contrariado pela recordação de qualquer outra coisa de que nos recordamos muitas vezes; enquanto que julgam que de modo algum somos livres quando se trata de coisas para que somos inclinados com uma afecção violenta que não pode ser acalmada pela recordação de outra coisa. Todavia, se eles não soubessem, por experiência, que muitas vezes lamentamos as nossas ações e que frequentemente, quando somos dominados por afecções contrárias, vemos o melhor e fazemos o pior, nada os impediria de crer que todas as nossas ações são livres. É assim que uma criancinha julga apetecer livremente o leite, um menino irritado a vingança, e o medroso a fuga. Um homem embriagado julga também que é por uma livre decisão da alma que conta aquilo que, mais tarde, em estado de sobriedade, preferiria ter calado. Do mesmo modo, o homem delirante, a mulher tagarela, a criança e numerosos outros do mesmo gênero julgam falar em virtude da livre decisão da alma, enquanto que, todavia, são impotentes para reter o impulso de falar. A experiência faz ver, portanto, tão claramente como a Razão, que os homens se julgam livres apenas porque são conscientes das suas ações e ignorantes das causas pelas quais são determinados.”


“Se imaginamos que alguém ama, ou deseja, ou odeia o que nós próprios amamos, desejamos, ou odiamos, só por esse fato, é com maior força que amaremos, desejemos, odiemos.
Segue-se daí que cada um faz esforço, tanto quanto está em seu poder, para que os outros amem o que ele ama e odeiem o que odeia. (...)
Este esforço para fazer com que cada um aprove o que amamos ou odiamos é, na verdade, ambição; vemos, assim, que cada um, por natureza, deseja que os outros vivam segundo as suas ideias.”


“Na verdade, se alguém começa a odiar a coisa que ama, é reduzido um número maior dos seus apetites do que se ele jamais a tivesse amado. O amor, com efeito, é uma alegria que o homem, tanto quanto pode, se esforça por conservar; e isso considerando a coisa amada como presente, e afetando-a de alegria, tanto quanto pode; e esse esforço é tanto maior quanto o amor é maior, assim como o esforço para fazer com que a coisa amada o ame por sua vez. Mas esses esforços são entravados pelo ódio para com a coisa amada; portanto, aquele que ama será, por essa razão ainda, afetado de tristeza, e de uma tristeza tanto maior quanto o amor tinha sido maior; isto é, além da tristeza que foi causa do ódio, nasce outra do fato de ele ter amado a coisa; e, por consequência, considerará a coisa amada com uma afecção de tristeza maior, isto é, experimentará para com ela um ódio maior do que se nunca a tivesse amado, e tanto maior quanto o seu amor anterior era maior.”


“Odiar alguém é imaginar alguém como causa de tristeza; por consequência, aquele que odeia alguém esforçar-se-á por repeli-lo ou destruí-lo. Mas, se receia que daí resulte para si algo de mais triste, ou (o que vem dar no mesmo) um mal maior, e se julga poder evitá-lo não fazendo àquele que odeia o mal que pensava em fazer-lhe, desejará abster-se de lhe fazer mal; e isso com um esforço maior que aquele que o levava a fazer mal e que, consequentemente, prevalecerá.”


“Por bem entendo aqui todo o gênero de alegria e tudo o que, além disso, a ela conduz, e principalmente tudo o que satisfaz ao desejo, qualquer que ele seja. Por mal, ao contrário, entendo todo o gênero de tristeza, e principalmente o que frustra o desejo. Com efeito, demonstramos que não desejamos uma coisa porque a julgamos boa, mas, ao contrário, chamamos boa à coisa que desejamos; consequentemente, chamamos má à coisa por que temos aversão. Cada um julga, assim, ou estima, segundo a sua afecção, o que é bom, o que é mau, o que é melhor, o que é pior, o que é ótimo, o que é péssimo. Assim, o avaro julga que a abundância de dinheiro é o que há de melhor e a pobreza o que há de pior. O ambicioso nada deseja tanto como a glória e nada teme tanto como a vergonha. Ao invejoso, enfim, nada é mais agradável que a infelicidade de outrem, e nada mais desagradável que a felicidade de outrem. E, assim, cada um julga, segundo a sua afecção, que uma coisa é boa ou má, útil ou inútil.”


PROPOSIÇÃO LV
Quando a alma imagina a sua impotência, só por esse fato fica triste.
DEMONSTRAÇÃO
A essência da alma afirma somente o que a alma é e pode; por outras palavras, é da natureza da alma imaginar somente o que põe a sua capacidade de agir. Portanto, quando dizemos que a alma, enquanto se contempla a si mesma, imagina a sua impotência, não dizemos senão que, enquanto a alma se esforça por imaginar qualquer coisa que põe a sua capacidade de agir, este seu esforço é reduzido; por outras palavras, ela fica triste. Q. e. d.
COROLÁRIO
Essa tristeza é tanto mais favorecida quanto o homem imagina que é censurado pelos outros.
ESCÓLIO
Essa tristeza, acompanhada da ideia da nossa fraqueza, chama-se humildade; ao contrário, a alegria que nasce da contemplação de nós mesmos chama-se amor-próprio ou repouso íntimo. E, como ela se renova sempre que o homem contempla as suas próprias virtudes ou a sua capacidade de agir, daí resulta também que cada um se embriaga a contar os seus altos feitos, e a fazer alarde tanto das suas forças físicas como espirituais, e que, por essa razão, os homens sejam insuportáveis uns para com os outros. E de onde se segue, ainda, que os homens sejam invejosos por natureza, isto é, que se alegrem com a fraqueza dos seus semelhantes e, ao contrário, se entristeçam com as suas virtudes. Na verdade, sempre que cada um imagina as suas próprias ações, é afetado de alegria, e de uma alegria tanto maior quanto essas ações exprimem uma perfeição maior e quanto são imaginadas mais distintamente; isto é, tanto maior quanto ele pode distingui-las das outras e considerá-las como coisas singulares. É por isso que cada um se alegra mais com a contemplação de si mesmo, quando contempla em si mesmo qualquer coisa que pode negar aos outros. Mas se o que ele afirma de si mesmo o refere à ideia geral de homem ou de animal, já se não alegrará tanto, e, ao contrário, ficará triste se imagina que as suas ações, comparadas às dos outros, são de menor importância; esforçar-se-á, todavia, por afastar essa tristeza, e isso interpretando mal as ações dos seus semelhantes ou ornando as suas o mais que puder. Vê-se, portanto, que os homens são inclinados ao ódio e à inveja por natureza, a que se ajunta ainda a educação. Na verdade, os pais têm o hábito de excitar os seus filhos na virtude apenas por meio do aguilhão da honra e da inveja. Resta, porém, talvez ainda um motivo de dúvida, pois não é raro que admiremos as virtudes dos homens e até os veneremos. Para afastar este motivo de dúvida, acrescentarei o corolário seguinte.
COROLÁRIO
Ninguém inveja a virtude de outro, se ele não é seu igual.
DEMONSTRAÇÃO
A inveja é o próprio ódio, isto é, uma tristeza, por outras palavras, uma afecção pela qual a capacidade de agir do homem, ou o seu esforço, é reduzido. Ora, o homem não se esforça por uma ação nem deseja fazê-la, a não ser que ela possa seguir-se da sua natureza tal como é dada. Portanto, o homem não desejará que qualquer capacidade de agir, ou (o que equivale ao mesmo) qualquer virtude, seja afirmada de si, se ela pertence a natureza de um outro e é estranha à sua; por consequência, o seu desejo não pode ser reduzido, isto é, ele não pode ficar triste pelo fato de contemplar qualquer virtude em alguém que lhe é dessemelhante e, consequentemente, não poderá invejá-lo. Mas invejará o seu igual que, por hipótese, é da mesma natureza que ele. Q. e. d.
ESCÓLIO
Portanto, quando dissemos que veneramos um homem porque admiramos a sua prudência, a sua coragem, etc.., isso acontece porque imaginamos que essas virtudes lhe pertencem de uma maneira singular, e não como sendo comuns à nossa natureza; por consequência, não lhas invejamos como também não invejamos às árvores a altura e aos leões a coragem, etc.”


“Todas as ações que se seguem das afecções que se referem à alma, enquanto conhece, refiro-as à fortaleza da alma que distingo em firmeza e generosidade. Por firmeza entendo o desejo pelo qual um indivíduo se esforça por conservar o seu ser, apenas em virtude do ditame da Razão. Por generosidade entendo o desejo pelo qual um indivíduo se esforça por ajudar os outros homens e por se unir a eles pelo laço da amizade, em virtude apenas do ditame da Razão.”


“O orgulho difere, portanto, da estima pelo fato de que esta se refere a um objeto externo e o orgulho ao próprio homem, que tem, acerca de si mesmo, uma opinião mais vantajosa do que seria justo. Além disso, do mesmo modo que a estima é um efeito ou propriedade do amor, o orgulho é um efeito ou propriedade do amor-próprio.”


“O homem livre em nada pensa menos que na morte; e sua sabedoria não é uma meditação da morte, mas da vida.”


“Quem aumenta a ciência, aumenta a dor.” (Eclesiastes I, 18)


“O desejo é a própria essência do homem, isto é, um esforço pelo qual o homem se esforça por perseverar no seu ser.”


“Não sabemos ao certo que nada seja bom, a não ser aquilo que nos leva verdadeiramente a compreender; e, inversamente, que nada seja mau, senão o que pode impedir que compreendamos.”


“Os homens, só na medida em que vivem sob a direção da Razão, fazem necessariamente o que é necessariamente bom para a natureza humana e, consequentemente, para cada homem.”


“Cada um existe em virtude do direito supremo da Natureza e, consequentemente, é em virtude do supremo direito da Natureza que cada um faz o que se segue da necessidade da sua natureza; e, por conseguinte, é em virtude do supremo direito da Natureza que cada um julga o que lhe é bom e o que lhe é mau e atende à sua utilidade, como lhe convém, e se vinga, e se esforça por conservar o que ama e destruir aquilo a que tem ódio. Se os homens vivessem sob a direção da Razão, cada um usufruiria deste direito sem dano algum para outrem. Mas, como eles estão sujeitos às afecções, que ultrapassam de longe a potência, ou seja, a virtude humana, e por isso são muitas vezes arrastados em sentidos contrários e são contrários uns aos outros, quando têm necessidade de mútuo auxílio. Portanto, para que os homens possam viver de acordo e ajudar-se uns aos outros, é necessário que renunciem ao seu direito natural e assegurem uns aos outros que nada farão que possa redundar em dano de outrem. De que maneira possa isto suceder, quer dizer, que os homens, que estão necessariamente sujeitos às afecções e são inconstantes e mutáveis, possam dar uns aos outros esta segurança mútua e ter confiança mútua isto se dá pelo fato de nenhuma afecção poder ser entravada, a não ser por uma afecção mais forte e contrária à afecção a entravar, e pelo fato de cada um se abster de causar dano pelo temor de um dano maior. Portanto, é sobre esta lei que a sociedade poderá fundar-se, com a condição de ela reivindicar para si o direito que cada um tem de se vingar e de julgar do bem e do mal. Consequentemente, ela deverá ter o poder de prescrever uma regra comum de vida, de fazer leis e de as apoiar não na Razão, que não pode entravar as afecções, mas em ameaças. Tal sociedade, firmada em leis e no poder de se conservar a si mesma, chama-se cidade, e os que são defendidos pelo direito dela, cidadãos. Pelo que precede, facilmente compreendemos que não existe nada no estado natural que seja bom ou mau por consenso de todos; é que qualquer um que se encontre no estado natural atende só à sua utilidade e distingue como lhe convém, e só enquanto tem em conta sua utilidade, o que é bem e o que é mal e não está obrigado por nenhuma lei a obedecer a ninguém, senão a si. Por conseguinte, no estado natural não se pode conceber o pecado; mas sim, no estado civil, em que se distingue pelo consenso comum o que é bom e o que é mau e cada um é obrigado a obedecer à cidade. Assim, o pecado não é outra coisa que a desobediência que, por esta razão, é punida só em virtude do direito da cidade; e, ao contrário, a obediência é contada ao cidadão como mérito, porque, por esta mesma razão, é julgado digno de gozar das vantagens da cidade. Além disso, no estado natural ninguém é senhor de uma coisa por consentimento comum, nem existe nada na Natureza que possa dizer-se que é deste homem e não daquele, mas tudo é de todos; e, por conseguinte, no estado natural não pode conceber-se nenhuma vontade de dar a cada um aquilo que é seu, ou de tirar do outro o que é seu, isto é, no estado natural nada sucede que possa dizer-se justo ou injusto, mas, sim, no estado civil, em que se discerne, por consenso comum, ou que é deste ou que é daquele. Por aqui se vê que justo e injusto, pecado e mérito são noções extrínsecas, não atributos que expliquem a natureza da alma.”


“Por certo, só uma feroz e triste superstição proíbe que nos alegremos. Com efeito, em que é que se encontrará maior conveniência, em apaziguar a fome ou a sede que em expelir a melancolia? Tal é a minha regra, tal é a minha convicção. Nenhuma divindade, nem ninguém, a não ser um invejoso, se compraz com a minha impotência e com o meu mal, nem pode ter na conta de virtude as nossas lágrimas, os nossos soluços, o nosso medo, e outras coisas deste gênero, que são sinais de um espírito impotente; mas, pelo contrário, quanto maior for a alegria de que somos afetados, tanto maior é a perfeição a que passamos, isto é, tanto mais necessário é que nós participemos da natureza divina. Portanto, usar das coisas é deleitar-se nelas (não até a náusea, pois isto não é deleitar-se), quanto possível, é próprio do homem sábio. É próprio do homem sábio – digo – alimentar-se e recrear-se com comida e bebida moderadas e agradáveis, assim como com os perfumes, a amenidade das plantas verdejantes, o ornamento, a música, os jogos desportivos, os espetáculos e outras coisas deste gênero, de que cada um pode usar sem dano algum para outrem.”


“O vulgo é terrível, se não teme. Por isso, não é de admirar que os Profetas, que não cuidaram da utilidade de uns poucos mas da utilidade comum, tenham recomendado tanto a humildade, a penitência e o respeito. E, na verdade, os que estão sujeitos a estas afecções podem ser muito mais facilmente que os outros levados a viver, enfim, sob a direção da Razão, isto é, a serem livres e a gozar da vida dos felizes.”


“Os supersticiosos, que sabem mais censurar os vícios que ensinar as virtudes e que não procuram conduzir os homens pela Razão mas contê-los pelo medo de tal maneira que evitem mais o mal que amem as virtudes, não pretendem outra coisa que tornar os outros tão infelizes como eles; e, por conseguinte, não é de admirar que eles sejam, a maior parte das vezes, insuportáveis e odiosos aos homens.”


“Mas, para conseguir isto (suprir as necessidades do corpo), com dificuldade bastariam as forças de cada um, se os homens não prestassem os seus serviços uns aos outros. Na realidade, o dinheiro tornou-se um instrumento de aquisição de todas as coisas. Daí veio que seja sobretudo a sua imagem que costuma ocupar a alma do vulgo. É que os homens dificilmente podem imaginar uma espécie de alegria, a não ser acompanhada da ideia de dinheiro como causa.
Mas este vício é próprio só daqueles que não procuram o dinheiro por causa da indigência ou das necessidades, mas porque aprenderam a arte de enriquecer e se orgulham de a possuir. Mas os que conhecem o verdadeiro uso do dinheiro e regulam a medida das riquezas só pelas suas necessidades vivem contentes com pouco.”


“Com efeito, a maior parte dos homens parece acreditar que é livre na medida em que lhe é permitido obedecer às suas paixões; e que renunciam ao seu direito na medida em que são obrigados a viver segundo as prescrições da lei divina. Julgam, pois, que a piedade e a religião, e de uma maneira geral tudo o que se refere à força da alma, são fardos, que esperam depor depois da morte, para receber o preço da sua escravidão, a saber: da piedade e da religião. E não é só por esta esperança, mas ainda e sobretudo pelo medo de serem punidos depois da morte por cruéis suplícios, que eles são levados a viver segundo as prescrições da lei divina, tanto quanto o permitem a ligeireza e inconstância do seu espírito. Se os homens não tivessem esta esperança e este medo, mas se, pelo contrário, acreditassem que as almas morrem com o corpo e que não resta aos infelizes, que foram acabrunhados pelo fardo da piedade, uma nova vida, eles voltariam ao seu natural e quereriam regular tudo segundo as suas paixões, e obedecer ao acaso, de preferência a obedecerem a si mesmos. O que não me parece menos absurdo do que, se alguém, por não acreditar que pode alimentar eternamente o seu corpo com bons alimentos, preferisse saciar-se de venenos e substâncias mortíferas; ou que, por ver que a sua alma não é eterna, ou seja, imortal, preferisse ser demente e viver sem Razão; coisas tão absurdas que quase não vale a pena mencioná-las.”

3 comentários:

Gilberto Cruvinel disse...

Doney, bom dia

Embora não esteja indicado no post a data da edição deste volume de Espinosa, a consulta à edição de 1983 em PDF comprova que há outros tradutores além dos dois indicados. O primeiro e mais famoso dos tradutores é Marilena Chauí, conhecida como a maior especialista em Espinoza no Brasil.


Seleção de textos de Marilena de Souza Chauí
Traduções de Marilena de Souza Chauí, Carlos Lopes de Mattos,
Joaquim de Carvalho, Joaquim Ferreira Gomes,
Antônio Simões, Manuel de Castro

Abraço

Doney disse...

Opa, Gilberto.
Este livro contém cinco obras. Quando fui postá-lo tive que dividi-lo, senão ficaria um post muito extenso.

As obras, portanto, estão com seus respectivos tradutores. Por conta disso neste post só estão estes dois - porque só eles traduziram a obra "Ética".

Agradeço a atenciosa observação de qualquer modo.

Gilberto Cruvinel disse...

Oi Doney

O que me ocorreu quando vi que a Marilena não aparecia foi lembrar da edição que a Nova Cultural relançou agora nos anos 2000 e que foi uma edição completamente falseada com relação aos tradutores. Inclusive foram denunciados pela Denise Bottmann no seu site "Não gosto de plágio".

Abraço