Editora: Nova Cultural
Tradução: Luiz João Baraúna
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 434
“É até bastante evidente que uma parte da
matéria é incapaz de produzir qualquer coisa por si mesma e de dar a si mesma
movimento; por conseguinte, é necessário, ou que o seu movimento seja eterno,
ou que ele lhe seja dado por um ser mais poderoso. Se este movimento fosse
eterno, seria sempre incapaz de produzir conhecimento. Podeis dividi-la em
tantas pequenas partes quantas quiserdes, como para espiritualizá-la; dai-lhe
todas as formas e todos os movimentos que quiserdes, fazei dela um globo, um
cubo, um prisma, um cilindro etc., cujo diâmetro não ultrapasse a milionésima
parte de um gry, que corresponde a um décimo de uma linha, que é um décimo de
uma polegada, a qual é um décimo de um pé filosófico, o qual é um terço de um
pêndulo, do qual cada vibração na latitude de 45 graus é igual a um segundo de
tempo, esta partícula de matéria, por menor que seja, não agirá de outra forma
sobre outros corpos de uma espessura que lhe seja proporcional que os corpos
que têm uma polegada ou um pé de diâmetro agem entre si. E podemos esperar com
tanta razão produzir sentimento, pensamentos e conhecimento, juntando grandes
partes de matéria de certa forma e de certo movimento quanto mediante as
menores partes de matéria que existam no mundo. Estas últimas se chocam, se empurram,
e resistem umas às outras justamente como as grandes, sendo isto o que podem
fazer. Entretanto, se a matéria pudesse haurir de si mesma o sentimento, a
percepção e o conhecimento, imediatamente e sem máquina, ou sem o auxílio das
figuras e dos movimentos, neste caso deveria ser uma propriedade inseparável da
matéria e de todas as suas partes. A isso se poderia acrescentar que, ainda que
a ideia geral e específica que temos da matéria nos leve a falar dela como se
fosse uma coisa única em número, sem embargo toda a matéria não é propriamente
uma coisa individual, que existe como um ser material ou um corpo singular que
conhecemos, ou que podemos conceber. Desse modo, se a matéria fosse o primeiro
ser eterno pensante, não existiria um ser único eterno, infinito e pensante,
mas um número infinito de seres eternos, infinitos, pensantes, que seriam
independentes uns dos outros, e cujas forças seriam limitadas e os pensamentos
diferentes, e que por conseguinte jamais poderiam produzir esta ordem, esta harmonia
e esta beleza que apreciamos na natureza. Donde se infere necessariamente que
este primeiro ser eterno não pode ser a matéria.”
“Aquele que descobriu a imprensa, que
descobriu o emprego da bússola e descobriu a força da quinquina contribuiu mais
para a propagação do conhecimento e para o progresso das comodidades da vida e
salvou mais pessoas da morte que os fundadores dos colégios, dos hospitais e de
outros monumentos da mais insigne caridade.”
“FILALETO – Uma vez que, por conseguinte, os
homens não podem evitar expor-se ao erro no julgar, como não podem evitar ter
opiniões diversas quando não podem considerar as coisas sob os mesmos aspectos,
devem conservar a paz entre si e os deveres de humanidade, em meio a esta
diversidade de opiniões, sem pretender que um outro deva mudar prontamente e
diante das nossas objeções uma opinião arraigada, sobretudo se ele pode pensar
que o seu adversário age por interesse ou ambição, ou por algum outro motivo
particular. O mais das vezes os que querem impor aos outros a necessidade de
render-se às suas opiniões não examinaram as coisas a fundo. Pois aqueles que
entraram suficientemente na discussão para sair da dúvida são em número tão
reduzido e encontram tão pouco motivo para condenar os outros, que não se deve esperar
nada de violento da parte deles.
TEÓFILO – Efetivamente, o que mais se tem
direito de censurar nos homens não é a sua opinião, mas o seu juízo temerário
em censurar a opinião dos outros, como se para ter uma opinião contrária à
deles fosse necessário ser estúpido ou mau. Não que muitas vezes não haja
verdadeiramente motivo para censurar as opiniões dos outros, porém é necessário
fazê-lo, com espírito de equidade, e ter compreensão pela fraqueza humana. É
verdade que temos direito de tomar precauções contra doutrinas más, que exercem
influências sobre os costumes e na prática da piedade, porém não se deve
atribuí-las às pessoas, em seu prejuízo, sem ter sólidas razões para tanto. Se
a equidade exige que se poupem as pessoas, a piedade manda mostrar, onde for
necessário, o mau efeito dos seus dogmas, quando estes forem prejudiciais, como
são aqueles que vão contra a providência de um Deus perfeitamente sábio, bom e
justo, e contra esta imortalidade das almas que os torna suscetíveis dos
efeitos da sua justiça, sem falar de outras opiniões perigosas em relação à
moral. Sei que homens excelentes e bem-intencionados defendem que essas
opiniões teóricas exercem menos influência do que se pensa, na prática, e sei
também que existem pessoas de um caráter excelente, as quais nunca farão nada
de indigno por causa das opiniões dos outros; aliás, os que chegaram a esses
erros pela especulação costumam por natureza distanciar-se mais dos vícios aos
quais a maioria dos homens estão sujeitos, além de terem cuidado para manter a
dignidade da seita na qual são como chefes; pode-se, por exemplo, dizer que
Epicuro e Espinosa tiveram uma vida inteiramente exemplar. Acontece, porém, que
essas razões desaparecem, o mais das vezes, nos seus discípulos ou imitadores,
os quais, crendo-se livres do medo importuno de uma Providência vigilante e de
um futuro ameaçador, largam as rédeas às suas paixões brutais e voltam o seu
espírito a seduzir e a corromper os outros; e, se forem ambiciosos e de caráter
um pouco duro, serão capazes, para o seu prazer ou progresso, de pôr fogo nos
quatro pontos extremos da terra, como na realidade conheci pessoas deste jaez,
que já foram arrebatadas pela morte. Penso igualmente que opiniões parecidas,
insinuando-se pouco a pouco no espírito dos homens do grande mundo, os quais
governam os outros, e dos quais dependem os acontecimentos, e, entrando nos
livros que estão na moda, dispõem todas as coisas à revolução geral que no
momento ameaça a Europa, e acabam de destruir o que ainda resta no mundo dos sentimentos
generosos dos antigos gregos e romanos, que preferiam o amor à pátria e ao bem
público, bem como o cuidado da posteridade à fortuna e mesmo à vida. Estes publiks spirits, como os denominam os
ingleses, vão diminuindo ao extremo, não estando mais na moda; cessarão ainda
mais, quando não mais forem apoiados pela boa moral e pela verdadeira religião,
que a própria razão natural nos ensina. Os melhores da parte oposta, que começa
a dominar, não possuem outro princípio fora do que denominam de honra. Entretanto,
a característica do homem honesto e do homem honrado, para eles, é apenas não
praticar nenhuma baixeza como a consideram. E se por grandeza, ou por capricho,
alguém derramasse um dilúvio de sangue, se ele invertesse tudo, não se daria
nenhuma importância a isto, e um Heróstrato dos antigos, ou então um Don Juan
no Festim de Pedra passaria por um herói. Ridiculariza-se muito o amor à
pátria, ridicularizam-se os que têm cuidado do bem público, e, quando algum
homem bem-intencionado fala do que será a humanidade do futuro, responde-se:
que assim seja. Pode, porém, acontecer que essas pessoas mesmas sejam atingidas
pelos males que acreditam reservados aos outros. Se ainda nos corrigirmos desta
epidemia cujos maus efeitos começam a tornarem-se visíveis, talvez esses males
sejam prevenidos; ao contrário, se esta epidemia crescer, a providência
corrigirá os homens pela própria revolução que surgirá. Com efeito, aconteça o
que acontecer, tudo reverterá, ao final das contas, em bem, embora isso não
deva e não possa ocorrer sem a punição daqueles que contribuíram, mesmo que
fosse para o bem, com as suas ações más.”
“A utilidade da história consiste
principalmente no prazer que existe em conhecer as origens, na justiça que se
faz aos homens que se mostraram beneméritos dos outros, no estabelecimento da
crítica histórica, e sobretudo da história sagrada, que sustenta os fundamentos
da revelação, e – deixando de lado as genealogias e direitos dos príncipes e
das potências – nos ensinamentos úteis que os exemplos nos fornecem.”
“Não obstante, há um caso em que concedemos
menos à analogia das coisas naturais – que conhecemos através da experiência –
que ao testemunho contrário de um fato estranho. Pois, quando acontecimentos
sobrenaturais são conformes aos fins daquele que tem o poder de alterar o curso
da natureza, não temos motivo para recusar crer neles quando forem bem
atestados: é o caso dos milagres, que só possuem crédito por si mesmos, senão
que também o comunicam a outras verdades que necessitam de uma tal confirmação.
Finalmente, existe um testemunho que supera qualquer outro assentimento: é a
revelação, ou seja, o testemunho de Deus, que não pode enganar nem enganar-se.
O assentimento que lhe damos se denomina fé, a qual exclui qualquer dúvida,
tanto quanto o conhecimento mais certo. Entretanto, o problema é ter garantia
de que a revelação é divina, bem como ter certeza de que lhe compreendemos o
verdadeiro sentido; ao contrário, expomo-nos ao fanatismo e a erros de uma
falsa interpretação. Quando a existência e o sentido da revelação forem apenas
prováveis, o assentimento não pode ter uma probabilidade maior do que aquela
que se encontra nas provas.”
“Temos necessidade da razão, tanto para
aumentar o nosso conhecimento como para regular a nossa opinião, e ela
constitui, a rigor, duas faculdades, que são a sagacidade, para encontrar
ideias médias, e a faculdade de tirar conclusões ou de concluir. Podemos
considerar na razão estes quatro graus: 1) descobrir provas; 2) colocá-las numa
ordem que revele a sua conexão; 3) perceber a conexão em cada parte da dedução;
4) tirar daí a conclusão.
A maneira de falar que opõe a razão à fé,
embora seja muito autorizada, é imprópria, pois é pela razão que verificamos
aquilo que devemos crer. A fé é um assentimento firme, e o assentimento, se for
como deve ser, não pode ser dado a não ser baseado em boas razões. Assim,
aquele que crê sem ter nenhuma razão de crer pode ser um amador das suas
fantasias, mas não é verdade que ele procura a verdade, nem que presta uma
obediência legítima ao seu divino mestre, o qual quer que ele faça uso das
faculdades de que o dotou para preservá-lo do erro. De outra forma, se ele
estiver no bom caminho, é por acaso; e, se estiver no mau caminho, é por sua
falta, da qual é culpado perante Deus.”
“Só Deus tem o privilégio de ter apenas
conhecimentos intuitivos. As almas dos bem-aventurados, por mais livres que
estejam desses corpos grosseiros, e os próprios gênios, por mais elevados que
sejam embora desfrutem de um conhecimento incomparavelmente mais intuitivo do
que nós, e embora muitas vezes enxerguem num relance de olhos o que nós só
descobrimos à força de consequência, após muito esforço e trabalho, devem
também encontrar dificuldades no seu caminho, pois sem isso não teriam o prazer
de fazer descobertas, que é um dos maiores que existem. É necessário reconhecer
que haverá sempre uma infinidade de verdades que lhes estão ocultas,
completamente ou por certo tempo, verdades às quais é necessário que cheguem à
força de consequências e pela demonstração, ou até, muitas vezes, através de
conjeturas.”
“Após termos dito algo sobre a relação da
nossa razão com os outros homens, digamos algo acerca da sua relação com Deus,
o que faz com que distingamos entre o que é contrário à razão e o que está
acima da razão. À primeira categoria pertence tudo aquilo que é incompatível
com as ideias claras e distintas; à segunda pertence toda opinião, cuja verdade
ou probabilidade não vemos como possa ser deduzida da sensação ou da reflexão
através da razão. Assim, a existência de mais um Deus é contrária à razão, ao
passo que a ressurreição dos mortos está acima da razão.”
“Isto faz com que a revelação não possa ir
contra uma clara evidência da razão, pois, mesmo quando a revelação é imediata
e original, é necessário saber com evidência que não nos enganamos ao
atribuí-la a Deus e lhe compreendemos o sentido; esta evidência jamais pode ser
maior do que a do nosso conhecimento intuitivo; por conseguinte, nenhuma
proposição poderia ser acolhida como revelação divina quando se opõe
contraditoriamente a este conhecimento imediato. Do contrário, não restaria
diferença no mundo entre a verdade e a falsidade, nenhum critério haveria para
se saber o que pode e o que não pode ser crido. Não é concebível que uma coisa
venha de Deus, este Autor benéfico do nosso ser, a qual, sendo recebida como
verdadeira, deva fazer ruir por terra os fundamentos dos nossos conhecimentos e
tornar inúteis todas as nossas faculdades. (...)
Parece-me, porém, que resta uma questão que
os autores de que acabo de falar não examinaram, a saber: suponhamos que de um
lado esteja o sentido literal de um texto da Santa Escritura, e que de outro
lado exista uma grande probabilidade de uma impossibilidade lógica, ou pelo
menos de uma impossibilidade física reconhecida. Será neste caso mais razoável
renunciar ao sentido literal ou ao princípio filosófico? É certo que existem
casos em que não há dificuldade em abandonar a letra, como quando a Escritura
atribui mãos a Deus, ou lhe atribui a cólera, a penitência e outros sentimentos
humanos; do contrário seria necessário adotar o ponto de vista dos
antropomorfistas, ou de certos fanáticos da Inglaterra, que acreditaram que
Herodes foi efetivamente metamorfoseado numa raposa quando Jesus Cristo o
denominou com este termo. É aqui que têm o seu lugar as regras da
interpretação, e se elas nada fornecem que contrarie ao sentido literal para
favorecer a máxima filosófica, e se por outra parte o sentido literal nada
encerra que atribua a Deus qualquer imperfeição, ou acarrete algum perigo na
prática da piedade, é mais seguro e até mais razoável segui-lo.”
“Levantaram também a célebre questão: aqueles
que, sem ter conhecimento da revelação do Antigo ou do Novo Testamento,
morreram nos sentimentos de uma piedade natural, terão podido salvar-se através
deste meio e obter a remissão dos seus pecados? Sabe-se que Clemente de
Alexandria, Justino Mártir e São Crisóstomo pendiam de certa forma para esta
afirmação, sendo que eu mesmo mostrei outrora a Pelísson – que uma série de excelentes
autores da Igreja romana, bem longe de condenar os protestantes de boa vontade,
quiseram até salvar os pagãos e defender que as pessoas de que acabo de falar
podem ter sido salvas por um ato de contrição, isto é, de penitência fundada no
amor de benevolência, em virtude do qual amamos a Deus sobre todas as coisas
pelo fato de que as suas perfeições o tornam sumamente digno de amor. Isso faz
com que a pessoa seja conduzida de todo o coração a conformar-se com a vontade
de Deus e a imitar as suas perfeições para melhor unir-se a ele, visto parecer
justo que Deus não recuse a sua graça a quem está possuído de tais sentimentos.
E, sem falar de Erasmo e de Luís Vives, eu referi o pensamento de Tiago Payva
Andradius, doutor português muito renomado em seu tempo, que foi um dos
teólogos do Concílio de Trento e que afirmou que aqueles que não concordam com
esta tese atribuem a Deus a crueldade em grau supremo (neque enim, inquit, immanitas deterior ulla esse potest). Santo
Agostinho, por mais versado e penetrante que fosse, caiu num outro extremo,
chegando ao ponto de condenar as crianças mortas sem batismo, sendo que os
Escolásticos parecem ter tido razão em abandonar esta teoria, embora certos
autores competentes, alguns até de grande mérito, porém um pouco afetados de
misantropia neste ponto, tenham querido ressuscitar esta doutrina agostiniana,
exagerando-a mesmo. Este espírito pode ter exercido alguma influência na
discussão entre vários doutores excessivamente animados e os jesuítas
missionários da China, que haviam insinuado que os antigos chineses tiveram a
verdadeira religião no seu tempo, bem como verdadeiros santos, e que a doutrina
de Confúcio não encerrava nada de idolatria ou de ateu. Parece que se foi mais
razoável em Roma, não querendo condenar uma das maiores nações, sem ouvi-la.
Ainda bem que Deus é mais amigo dos homens que os próprios homens. Conheço
pessoas que, acreditando assinalar o seu zelo por sentimentos duros, imaginam
que não se pode crer no pecado original sem ser da sua opinião, mas nisto se
equivocam. Não segue que aqueles que salvam os pagãos ou outros a quem faltam
os auxílios ordinários devam atribuir isto exclusivamente às forças da natureza
– ainda que talvez alguns Santos Padres tenham defendido esta opinião –, pois
pode-se defender que Deus, dando-lhes a graça de excitar um ato de contrição,
lhes dê também, seja explicitamente seja virtualmente, mas sempre
sobrenaturalmente, antes da morte, mesmo que fosse nos últimos momentos, toda a
luz da fé e todo o ardor da caridade que lhes são necessários para a salvação.
É assim que certos reformados explicam em Vedelius a opinião de Zuínglio, que
foi tão explícito neste ponto da salvação dos homens virtuosos do paganismo,
quanto o puderam ser os autores da Igreja romana. Assim, esta doutrina nada tem
de comum com a doutrina particular dos pelagianos ou dos semipelagianos, da
qual Zuínglio estava muito distante, como se sabe. E já que se ensina contra os
pelagianos uma graça sobrenatural em todos aqueles que possuem a fé – ponto em
que concordam as três religiões admitidas, excetuados talvez os discípulos do
Sr. Pajon, – e uma vez que se concede ou a fé ou um sentimento semelhante às
crianças que recebem o batismo, não há nada de extraordinário em conceder o
mesmo, pelo menos em caso de morte, às pessoas de boa vontade que não tiveram a
felicidade de ser instruídas no cristianismo. Aliás, o mais sábio é não decidir
nada acerca de assuntos tão pouco conhecidos, e contentar-se com pensar, de
maneira geral, que Deus não pode fazer nada que não seja cheio de bondade e de
justiça: Melius est dubitare de occultis
quam litigare de incertis (Agostinho, livro 8, Gênese Comentado
Literalmente, capítulo 5).”
“Os homens acreditam que o espírito
dogmatizante constitui uma característica do seu zelo pela verdade, e o que
acontece é exatamente o contrário. Só se ama verdadeiramente a verdade na
medida em que se gosta de examinar as provas que dão a conhecer a verdade como
ela é. E, quando somos precipitados no julgamento, somos sempre levados por
motivos menos sinceros. O espírito de dominação é um dos mais comuns, e certa
complacência que temos pelos nossos próprios devaneios é outro, que dá origem
ao entusiasmo. É este o nome que se dá ao defeito dos que imaginam uma
revelação imediata quando ela não está fundada na razão. E como se pode dizer
que a razão constitui uma revelação natural da qual Deus é o autor, da mesma
forma como o é da natureza, pode-se também dizer que a revelação é uma razão
sobrenatural, isto é, uma razão estendida por um novo fundo de descobertas,
emanadas diretamente de Deus. Todavia, essas descobertas supõem que temos a
possibilidade de discerni-las, que é a própria razão: e querer proscrevê-la
para dar lugar à revelação equivaleria a arrancar os olhos para ver melhor os
satélites de Júpiter através de um telescópio. A fonte do entusiasmo é que uma
revelação imediata é mais cômoda e mais curta que um raciocínio longo e penoso,
e que nem sempre é seguido de um êxito feliz. Em todos os séculos se viram
homens cuja melancolia mesclada com a devoção, somada ao bom conceito que
tiveram de si mesmo, lhes fez crer que tinham com Deus uma familiaridade
completamente diversa da dos outros homens. Eles supõem que Deus a prometeu aos
seus, e acreditam ser o povo de Deus de preferência aos outros. A sua fantasia
se torna uma iluminação e uma autoridade divina, e os seus desígnios constituem
uma direção infalível do céu, que são obrigados a seguir. Esta opinião teve
grandes consequências e causou grandes males, pois um homem age mais
vigorosamente quando segue os seus próprios impulsos e a opinião de uma
autoridade divina é sustentada pela nossa inclinação. É difícil demover alguém
desta posição, pois esta pretensa certeza sem provas lisonjeia a vaidade e o
amor que temos por aquilo que é extraordinário. Os fanáticos comparam a sua
opinião com a vista e com o sentimento. Eles veem a luz divina como nós vemos a
luz do sol em pleno meio-dia, sem ter necessidade que o crepúsculo da razão lha
mostre. Estão seguros porque estão seguros, e a sua persuasão é reta porque é
forte, pois é a isso que se reduz a sua linguagem figurada. Todavia, já que
existem duas percepções, a da proposição e a da revelação, pode-se
perguntar-lhes onde está a clareza. Se está na vista da proposição, para que
serve a revelação? Por conseguinte, é necessário que seja no sentimento da
revelação. Mas como podem eles ver que é Deus que revela, e que não é um
fogo-fátuo que os faz girar em torno deste círculo: é uma revelação pelo fato
de que eu o creio firmemente, e eu o creio porque é uma revelação. Existe
alguma coisa mais apta a precipitar no erro do que tomar por guia a imaginação?
São Paulo tinha um grande zelo quando perseguia os cristãos, e no entanto não
deixava de enganar-se. Sabe-se que o diabo teve os seus mártires, e, se basta
estar bem persuadido, não poderemos distinguir as ilusões de Satanás das
inspirações do Espírito Santo. É, portanto, a razão que faz conhecer a verdade
da revelação. E, se a nossa crença a demonstrasse, seria o círculo vicioso do
qual acabo de falar. Os santos homens que recebiam revelações de Deus tinham
sinais externos, que os persuadiam da verdade da luz interna. Moisés viu uma
moita que queimava sem consumir-se e ouviu uma voz do meio da moita; Deus, para
dar-lhe mais certeza da missão, ao enviá-lo ao Egito para libertar os seus
irmãos, empregou o milagre da vara transformada em serpente. Gedeão foi enviado
por um anjo para livrar o povo de Israel do jugo dos madianitas. Todavia, pediu
um sinal para convencer-se de que esta comissão lhe era dada por Deus.
Entretanto, não nego que Deus por vezes ilumine o espírito dos homens para
fazê-los compreender certas verdades importantes ou para levá-los a boas ações
pela influência e a assistência imediata do Espírito Santo, sem quaisquer
sinais extraordinários que acompanhem esta influência. Entretanto, nesses
casos, temos a razão e a Escritura, duas normas infalíveis para julgar sobre
essas iluminações, pois, se elas concordam com essas normas, pelo menos não
incorremos em nenhum risco ao considerá-las inspiradas por Deus, ainda que
talvez não seja uma revelação imediata.”
“TEÓFILO – O entusiasmo era, no início, um
bom termo. E, assim como o sofisma assinala propriamente um exercício da
sabedoria, o entusiasmo significa que existe uma divindade em nós. Est Deus in-nobis. Sócrates pretendia
que um deus ou demônio lhe dava advertências interiores, de sorte que o
entusiasmo seria um instinto divino. Entretanto, já que os homens consagraram
as suas paixões, as suas fantasias, os seus sonhos, e até os seus furores como
algo de divino, o entusiasmo começou a significar um desregramento de espírito
atribuído à força de alguma divindade, que se supunha naqueles que eram
atingidos pelo entusiasmo, pois os adivinhadores e as adivinhadoras revelavam
uma alienação de espírito quando o seu deus se apoderava deles, como a Sibila
de Cumas em Virgílio. Desde então, atribui-se o entusiasmo àqueles que creem
sem fundamento que os seus movimentos provêm de Deus. Niso, segundo o mesmo
poeta – Virgílio –, sentindo-se movido por não sei que impulsão a uma empresa
perigosa, na qual pereceu juntamente com o seu amigo, lha propõe nos seguintes
termos, repletos de uma dúvida racional:
Dine hunc ardorem mentibus addunt
Euryale, an sua cuique Deus fit dira cupido?
Ele não deixou de seguir este instinto, do
qual não sabia se vinha de Deus ou de uma infeliz vontade de se projetar.
Todavia, se tivesse logrado êxito, não teria deixado de valer-se num outro
caso, e de acreditar-se movido por alguma potência divina. Os entusiastas de
hoje em dia acreditam ainda receber de Deus dogmas que os esclarecem. Os
tremedores mantêm esta persuasão, e Barclay, o seu primeiro autor sistemático,
pretende que eles encontram em si certa luz que se faz conhecer por si mesma.
Mas por que chamar luz àquilo que não faz nada ver? Sei que existem pessoas com
esta disposição de espírito, que veem centelhas e até algo de mais luminoso,
mas esta imagem de luz corporal excitada quando os seus espíritos estão
excitados não dá luz ao espírito. Algumas pessoas iletradas, por terem a
imaginação agitada, se formam concepções que não tinham antes; ficam em
condições de dizer belas coisas, ou pelo menos coisas muito animadas. Elas
mesmas admiram e fazem os outros admirar esta fertilidade que passa como sendo
inspiração. Esta vantagem lhes vem em boa parte de uma forte imaginação,
estimulada pela paixão, e de uma memória feliz que conservou bem as maneiras de
falar dos livros proféticos, que a leitura ou os discursos dos outros lhes
tornaram familiares; Antonieta de Bourígnon se servia da facilidade que tinha
de falar e escrever como sendo uma prova da sua missão divina. Conheço um
visionário que fundamenta a sua missão no talento que tem para falar e orar bem
alto durante quase um dia inteiro sem cansar-se e sem deixar de falar. Existem
pessoas que, após terem praticado austeridades ou após um estado de tristeza,
degustam uma paz e consolação na alma que as encanta, encontrando tanta doçura
que acreditam ser um efeito do Espírito Santo. É bem verdade que a alegria que
se encontra na consideração da grandeza e da bondade de Deus, no cumprimento da
sua vontade, na prática das virtudes, constitui uma graça de Deus, e das
maiores que existem; entretanto, não é sempre uma graça que tenha necessidade
de um auxílio sobrenatural novo, como muitas dessas boas pessoas pretendem.
Viu-se, não há muito tempo, uma senhorita muito sábia e dotada de todas as
outras qualidades, que acreditava desde a sua juventude falar com Jesus Cristo
e ser a sua esposa de maneira toda particular. Sua mãe, conforme se contava,
tinha pendido um pouco para o entusiasmo, porém a filha foi muito além. Sua
satisfação e alegria eram indizíveis, a sua sabedoria aparecia na sua conduta,
e seu espírito se manifestava em seus discursos. A coisa foi, porém, tão longe
que ela recebia cartas que as pessoas dirigiam a Nosso senhor, sendo que ela as
reenviava, seladas, como as havia recebido, com a resposta que por vezes
parecia dada com exatidão, e sempre razoável. Ao final deixou de receber tais
cartas, para não levantar demasiada celeuma. Se fora na Espanha, esta donzela
teria sido outra Santa Tereza. Todavia, nem todas as pessoas que têm
semelhantes visões têm a mesma conduta. Existem algumas que procuram formar
seita e até suscitar perturbações, sendo que a Inglaterra foi provada por este
fenômeno. Quando essas pessoas agem de boa fé, é difícil reconduzi-las: por
vezes é a derrubada de todos os seus projetos que as corrige, mas muitas vezes
é tarde demais. Existia um visionário, falecido há pouco tempo, que se
acreditava imortal, pelo fato de ser muito idoso e gozar de boa saúde; sem ter
lido o livro de um inglês publicado há pouco – que queria fazer crer que Jesus
Cristo voltou para isentar da morte corporal os verdadeiros crentes –, ele
mantinha mais ou menos os mesmos sentimentos e convicções desde há longos anos;
entretanto, ao sentir a morte aproximar-se, chegou ao ponto de duvidar de toda
a religião, pelo fato de ela não corresponder às suas quimeras. Quirino Kulman,
da Silésia, homem cheio de saber e de espírito, mas que ao depois caiu em duas
espécies de visões igualmente perigosas, a dos entusiastas e a dos alquimistas,
e que levantou celeuma na Inglaterra, na Holanda e até em Constantinopla,
ocorrendo-lhe finalmente à ideia de ir a Moscou e imiscuir-se em certas
intrigas contra o ministério, no tempo em que governava a princesa Sofia, foi
condenado ao fogo e não morreu persuadido daquilo que tinha pregado. As
dissensões dessas pessoas entre si também deveriam convencê-las de que o seu
pretenso testemunho interno não é divino, e que se requerem outras
características para justificá-lo. Os labadístas, por exemplo, não estão de
acordo com a Srta. Antonieta, e, embora William Pen pareça ter tido o plano, em
sua viagem da Alemanha, de estabelecer uma espécie de concordância entre
aqueles que se fundam sobre este testemunho, não parece haver conseguido a sua
meta. Seria de desejar que as pessoas de bem fossem concordes e agissem
concordemente; nada seria mais indicado para tornar o gênero humano melhor e mais
feliz, mas seria necessário que eles mesmos fossem do número das pessoas de
bem, isto é, benfeitores e, além disso, dóceis e razoáveis, ao passo que se
acusam muito, hoje em dia, os chamados devotos, de serem duros, imperiosos,
teimosos. As suas dissensões mostram no mínimo que o seu testemunho interno tem
necessidade de uma verificação externa para ser crido, e ser-lhes-iam
necessários milagres para terem o direito de passar por profetas e inspirados.
Haveria, entretanto, um caso em que essas inspirações trariam as suas provas
consigo. Isto aconteceria se elas esclarecessem verdadeiramente o espírito por
descobertas importantes de algum conhecimento extraordinário, que estariam
acima das forças da pessoa que as teria adquirido sem qualquer auxílio externo.
Se Jacob Boehme, famoso sapateiro da Lusace, cujos escritos foram traduzidos do
alemão para outras línguas sob o nome de Filósofo Teutônico e têm realmente
algo de grande e belo para um homem desta condição, tivesse sabido fazer ouro,
como alguns acreditam, ou como fez São João Evangelista, se dermos fé a um hino
feito em sua honra: Inexhaustum fert
thesaurum Qui de virgis fecit aurum, Gemmas de lapidibue, haveria algum
motivo para creditar mais fé a este sapateiro extraordinário. E se a Srta.
Bourignon tivesse fornecido a Bertrand Lacoste, engenheiro francês em Hamburgo,
a luz nas ciências que acreditou ter recebido dela, como ele mesmo afirma ao
dedicar-lhe o seu livro Sobre a
Quadratura do Círculo, não se teria tido o que dizer. Entretanto, não se
veem exemplos de um sucesso considerável desta natureza, como também não das
predições bem circunstanciadas que tais pessoas tenham conseguido. As profecias
de Poniatovia, de Drabitius e de outros que Comênio publicou no seu livro Lux in Tenebris, e que contribuíram para
causar celeuma nas terras do imperador, resultaram falsas, e os que lhes deram
crédito foram infelizes. Ragóski, príncipe da Transilvânia, foi levado por
Drabitius à empresa da Polônia, onde perdeu o seu exército, o que ao final lhe
fez perder os Estados com a vida: e o pobre Drabitius, muito tempo após, na
idade de oitenta anos, ao final teve a cabeça decepada por ordem do imperador.
Todavia, não duvido de que haja agora pessoas que façam reviver esse tipo de
predições, na conjuntura presente das desordens da Hungria, não considerando
que esses pretensos profetas falavam dos acontecimentos do seu tempo; ao
fazê-lo, agiriam mais ou menos como aquele que depois do bombardeio de Bruxelas
publicou uma folha volante, na qual havia uma passagem tirada de um livro da
Srta. Antonieta, que não quis vir a esta cidade porque – se bem me recordo –
tinha sonhado de vê-la no fogo, quando na realidade este bombardeio se
verificou muito tempo após a sua morte. Conheci um homem que foi à França,
durante a guerra que terminou com a paz de Nimega, importunar o Sr. de
Montausier e o Sr. de Pomponne com base nas profecias publicadas por Comênior
ele mesmo se acreditaria inspirado, se lhe tivesse acontecido de fazer tais
profecias em um tempo semelhante ao nosso. Isto mostra não somente o pouco
fundamento, mas também o perigo que encerram essas coisas. As histórias estão
repletas do mau efeito das profecias falsas ou mal compreendidas, como se pode
ver numa sábia e judiciosa dissertação, De
Ofticio Viri Boni circa Futura Contingentia, que o falecido Sr. Iacobus
Thomasíus, célebre professor de Leipzig, publicou outrora. Entretanto, é
verdade que essas persuasões por vezes produzem bom efeito e servem para
grandes coisas: pois Deus pode servir-se do erro para estabelecer ou manter a
verdade. Não creio, porém, que seja permitido a nós servir-nos de fraudes
piedosas para um fim legítimo. E, quanto aos dogmas da religião, não temos
necessidade de novas revelações: basta que se nos proponham regras salutares
para que sejamos obrigados a segui-las, embora aquele que as propõe não opere
milagre algum. Embora Jesus Cristo fosse credenciado por milagres, não deixou
por vezes de recusar tais sinais a uma raça perversa que os pedia, pregando
apenas a virtude e aquilo que já havia sido ensinado pela razão natural e pelos
profetas.”
“Existem pessoas como o Imperador Honório, o
qual, ao lhe levarem a notícia da perda de Roma, acreditou que fosse a sua
galinha, que tinha este nome, o que o irritou mais do que a verdade.”
“Não existe erro que não tenha tido os seus
defensores.”
“Sinto-me também obrigado a dizer, para fazer
justiça ao gênero humano, que não existem tantas pessoas engajadas no erro como
se pensa comumente; não que acredite que elas abraçam a verdade, mas porque na
realidade, a respeito das doutrinas em torno das quais se faz tanta celeuma,
não têm em absoluto opinião positiva, e além disso, sem nada examinarem e sem
terem no espírito as ideias mais superficiais sobre o problema em foco, estão
decididas a agarrar-se ao seu ponto de vista, como soldados que não examinam a causa
que defendem: e se a vida de uma pessoa revela que ela não tem nenhuma
consideração sincera pela religião, basta-lhe ter a mão e a língua prontas a
defender a opinião comum para tomar-se recomendável àqueles que lhe podem dar
apoio.”
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