quarta-feira, 8 de março de 2017

O sofrimento de Deus: inversões do Apocalipse (parte II) – Slavoj Žižek e Boris Gunjević

Editora: Autêntica
ISBN: 978-85-8217-463-0
Tradução: Rogério Bettoni
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 240

Apenas um Deus que sofre pode nos salvar – Slavoj Žižek

“Para Hegel, a codependência desses dois aspectos da kenosis – a autoalienação de Deus e a alienação do indivíduo em relação a Deus, indivíduo que experimenta a si mesmo como sozinho num mundo ímpio, abandonado por Deus, que habita em algum Além transcendente e inacessível – atinge sua máxima tensão no protestantismo. O protestantismo e a crítica do Esclarecimento às superstições religiosas são a frente e o verso da mesma moeda. O ponto de partida desse movimento inteiro é o pensamento católico medieval de pensadores como Tomás de Aquino, para quem a filosofia deveria ser subordinada da fé: fé e conhecimento, teologia e filosofia, suplementam-se como uma distinção harmoniosa e não conflituosa dentro (sob o predomínio) da teologia. Por mais que Deus em si continue sendo um mistério imperscrutável para nossas capacidades cognitivas limitadas, a razão também pode nos levar na direção dele ao nos permitir reconhecer seus traços na realidade criada – essa é a premissa das cinco versões de Aquino da prova de Deus (a observação racional da realidade material como uma rede de causas e efeitos nos leva à percepção necessária de como deve haver uma Causa primária para todas as coisas, etc.). Com o protestantismo, essa unidade se rompe: de um lado temos o universo sem Deus, o objeto peculiar de nossa razão, e o Além divino e imperscrutável está separado dele por um hiato. Confrontados com essa ruptura, podemos fazer duas coisas: ou negamos qualquer significado a um Além sobrenatural, descartando-o como uma ilusão supersticiosa, ou continuamos religiosos e libertamos nossa fé do domínio da razão, concebendo-a precisamente como um ato de pura fé (sentimento interno autêntico, etc.). O que aqui interessa a Hegel é como essa tensão entre filosofia (pensamento racional esclarecido) e religião acaba em um “mútuo aviltamento e abastardamento”¹. Em um primeiro momento, a Razão parece estar na ofensiva, e a religião, na defensiva, tentando desesperadamente forjar um espaço para si mesma fora do domínio da Razão: sob a pressão da crítica do Esclarecimento e dos avanços da ciência, a religião se retira humildemente para o espaço interno dos sentimentos autênticos. No entanto, o preço final é pago pela própria Razão esclarecida: essa derrota da religião acaba em sua autoderrota, em sua autolimitação, de modo que, na conclusão de todo esse movimento, a lacuna entre fé e conhecimento reaparece, mas transposta para o campo do próprio saber (Razão):
A razão – que desse modo já tinha descido em si e por apreender a religião apenas como algo positivo, mas não idealmente – não pôde fazer nada de melhor depois da luta do que daqui para adiante olhar para si mesma, chegar ao seu conhecimento de si, reconhecendo o seu não ser ao pôr, já que é apenas entendimento, o que é melhor do que ela em uma fé fora e acima de si, como um para-além, tal como aconteceu nas filosofias de Kant, Jacobi e Fichte, e reconhecendo que ela se fez novamente criada de uma fé.²
Os dois polos, portanto, são aviltados: a Razão se torna o mero “intelecto”, uma ferramenta para manipular objetos empíricos, um mero instrumento pragmático do animal humano, e a religião se torna um sentimento interior impotente que nunca pode ser realmente efetivado, pois no momento em que se tenta transpô-lo para a realidade exterior, regressa-se à idolatria católica que fetichiza os objetos naturais contingentes. O epítome desse desenvolvimento é a filosofia de Kant: Kant começou como o grande destruidor, com sua crítica implacável à teologia, e acabou – segundo ele mesmo disse – limitando o escopo da Razão para criar espaço para a fé. O que ele coloca de maneira exemplar é como a denigração implacável e a limitação, realizada pelo Esclarecimento, de seu inimigo exterior (a fé, à qual é negado qualquer status cognitivo – a religião é um sentimento sem valor cognitivo de verdade) invertem-se para a autodenigração e a autolimitação da Razão (a Razão só pode legitimamente com os objetos da experiência fenomenal; a verdadeira Realidade lhe é inacessível). A insistência protestante na fé apenas, em como os verdadeiros templos e altares a Deus deveriam ser construídos no coração do indivíduo, e não na realidade exterior, é um indício de como a atitude antirreligiosa do Esclarecimento não pode resolver “seu próprio problema, o problema da subjetividade dominada pela absoluta solidão”³. O resultado final do Esclarecimento, portanto, é a singularidade absoluta do sujeito destituído de todo conteúdo substancial, reduzido a um ponto vazio de negatividade autorrelativa, um sujeito totalmente alienado do conteúdo substancial, inclusive de seu próprio conteúdo. E, para Hegel, a passagem por esse ponto zero é necessária, pois a solução não é dada por nenhum tipo de síntese renovada da reconciliação entre Fé e Razão: com o advento da modernidade, a mágica do universo encantado se perde para sempre, a realidade permanecerá cinza para sempre. A única solução é, como já vimos, a própria duplicação da alienação, a constatação de como minha alienação em relação ao Absoluto coincide com a autoalienação do Absoluto: eu sou “em” Deus em minha própria distância dele.”
1: HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Lectures on the Philosophy of Religion.
2: HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fé e saber.
3: MALABOU. The Future of Hegel.


“De acordo com uma anedota do período de Maio de 1968, havia uma frase grafitada num muro em Paris: “Deus está morto – Nietzsche”. No dia seguinte, apareceu outra frase grafitada em baixo: “Nietzsche está morto – Deus”. O que há de errado com essa piada? Por que ela é reacionária de uma maneira tão clara? Não é apenas que a declaração invertida seja baseada numa platitude moralista sem verdade inerente; sua falha é mais profunda e diz respeito à forma da própria reversão. O que faz a piada ser ruim é a simetria pura da reversão – a alegação subjacente da primeira frase, “Deus está morto. Assinado, Nietzsche (obviamente, o ser vivo)”, é revertida numa declaração que implica: “Nietzsche está morto, enquanto eu ainda vivo. Assinado, Deus”. O que é fundamental para o efeito propriamente cômico não é a diferença naquilo que esperamos ver igualdade, mas sim a igualdade naquilo que esperamos a diferença – é por isso que, como apontou Alenka Zupančič, a versão propriamente cômica da piada seria mais ou menos assim: “Deus está morto. E, na verdade, também não me sinto muito bem...”.


“De acordo com a perspectiva-padrão da filosofia da finitude, a tragédia grega sinaliza a aceitação da lacuna, do fracasso, da derrota, do não fechamento, como horizonte definitivo da existência humana, ao passo que a comédia cristã fia-se na certeza de que um Deus transcendente garante um final feliz, a “suprassunção” da lacuna, a reversão do fracasso em triunfo final. O excesso da fúria divina como anverso do amor cristão nos permite perceber o que essa visão-padrão deixa passar: que a comédia cristã do amor só pode ocorrer no contexto da perda radical da dignidade humana, de uma degradação que destrói de maneira precisa a experiência trágica: só é possível experimentar uma situação como “trágica” quando a vítima retém um mínimo de dignidade. Por esse motivo, não é apenas errado, mas também eticamente obsceno definir um Muselmann¹ no campo de concentração, ou uma vítima de um julgamento-espetáculo stalinista, como trágico – a situação deles é terrível demais para merecer essa designação. “Cômico” também representa um domínio que surge quando o horror de uma situação excede os confins do trágico. E é nesse ponto que o amor propriamente cristão entra em ação: não o amor pelo homem como herói trágico, mas um amor pelo abjeto miserável a que homens e mulheres são reduzidos depois de serem expostos ao acesso arbitrário de fúria divina.”
1: “Muselmann”, que literalmente significa “muçulmano”, era o termo alemão usado amplamente nos campos de concentração para se referir às vítimas prisioneiras que sofriam um extermínio gradual provocado por exaustão, inanição ou falta total de esperança. (N.T.)


“Durante décadas, circulou uma piada clássica entre os lacanianos que exemplifica o papel-chave do saber do Outro: um homem que acredita ser uma semente é levado para uma instituição mental onde os médicos fazem o melhor que podem para convencê-lo de que ele não é uma semente, mas um homem. No entanto, depois que é curado e autorizado a deixar o hospital, ele volta imediatamente, tremendo, com medo – há uma galinha do lado de fora, e ele está com medo de ser comido por ela. “Meu caro”, diz o médico, “você sabe muito bem que não é uma semente, mas sim um homem.” “É claro que eu sei”, responde o paciente, “mas será que a galinha sabe disso?” Nisso consiste o verdadeiro teste do tratamento psicanalítico: não basta convencer o paciente da verdade inconsciente de seus sintomas, é preciso fazer o próprio Inconsciente assumir essa verdade. É nesse aspecto que Hannibal Lecter, aquele protolacaniano, estava errado: o verdadeiro núcleo traumático do sujeito não é o silêncio dos cordeiros, mas a ignorância das galinhas... Exatamente o mesmo não é válido para a noção marxiana de fetichismo da mercadoria? Vejamos o início da famosa seção 4 do capítulo 1 de O capital, sobre “O caráter fetichista da mercadoria e seu segredo”: “À primeira vista, a mercadoria parece uma coisa trivial, evidente. Analisando-a, vê-se que ela é uma coisa muito complicada, cheia de sutileza metafísica e manhas teológicas”.¹
Essas linhas deveriam nos surpreender, uma vez que invertem o procedimento-padrão de desmistificar um mito teológico, reduzindo-o a sua base terrestre: Marx não diz, como de costume na crítica do Esclarecimento, que a análise crítica deveria demonstrar como o que aparece como ente teológico misterioso na verdade surgiu de processos “ordinários” da vida real; ele diz, ao contrário, que a tarefa da análise crítica é revelar “sutilezas metafísicas e manhas teológicas” no que parece, à primeira vista, ser apenas um objeto ordinário. Em outras palavras, quando um crítico marxista encontra um sujeito burguês imerso no fetichismo da mercadoria, a reprimenda que o marxista faz a ele não é “A mercadoria pode lhe parecer um objeto mágico dotado de poderes especiais, mas na verdade não passa de uma expressão reificada das relações entre as pessoas”, mas sim “Você pode pensar que a mercadoria lhe parece ser uma simples incorporação das relações sociais (que, por exemplo, o dinheiro é apenas um tipo de voucher que lhe garante o direito a uma parte do produto social), mas não é assim que as coisas de fato lhe parecem – em sua realidade social, através de sua participação na troca social, você atesta o fato estranho de que uma mercadoria realmente aparece para você como um objeto mágico dotado de poderes especiais”. Em outras palavras, podemos imaginar um sujeito burguês fazendo um curso sobre marxismo no qual aprende sobre o fetichismo da mercadoria; no entanto, quando o curso acaba, ele se dirige ao professor e reclama que continua sendo vítima do fetichismo da mercadoria. O professor lhe diz: “Mas agora você sabe como são as coisas, você sabe que as mercadorias são apenas expressões das relações sociais, que não existe nada de mágico nelas!”, ao que o aluno responde: “É claro que sei disso tudo, mas as mercadorias com as quais eu lido parecem não saber disso!”. (...)
Alenka Zupančič leva esse ponto até o fim e imagina um exemplo brilhante referente a Deus:
Na sociedade esclarecida, digamos, do terror revolucionário, um homem é preso porque acredita em Deus. De diversas maneiras, mas sobretudo por meio de uma explicação esclarecida, é-lhe transmitido o conhecimento de que Deus não existe. Quando sai da prisão, o homem volta correndo e explica que tem muito medo de ser punido por Deus. É claro que ele sabe que Deus não existe, mas Deus também sabe disso?²
E, é claro, é exatamente isso que aconteceu (apenas) no cristianismo quando, ao morrer na cruz, Cristo diz: “Pai, pai, por que me abandonaste?” – aqui, por um breve momento, Deus não acredita em si mesmo – ou, como coloca G. K. Chesterton de maneira enfática:
O mundo foi abalado e o sol desapareceu do céu não no momento da crucificação, mas no momento do grito do alto da cruz: o grito que confessou que Deus foi abandonado por Deus. E agora deixemos que os revolucionários escolham um credo dentre todos os credos e um deus dentre todos os deuses do mundo, ponderando com cuidado todos os deuses de inevitável recorrência e poder inalterável. Eles não encontrarão um outro deus que tenha ele mesmo passado pela revolta. Não (a questão torna-se difícil demais para a fala humana), mas deixemos que os próprios ateus escolham um deus. Eles encontrarão apenas uma divindade que chegou a expressar a desolação deles; apenas uma religião em que Deus por um instante deixou a impressão de ser ateu.³
Nesse sentido preciso, a era atual talvez seja menos ateísta que a anterior: estamos todos prontos para nos entregar ao completo ceticismo e à distância cínica, à exploração dos outros “sem quaisquer ilusões”, à violação de todos os limites éticos, a práticas sexuais extremas, etc. – protegidos pela consciência silenciosa de que o grande Outro ignora tudo isso:
O sujeito está pronto para agir consideravelmente, para mudar radicalmente, somente se puder permanecer inalterado no Outro (no Simbólico como mundo exterior no qual, em termos hegelianos, está incorporada a consciência que o sujeito tem de si, materializada como algo que ainda não sabe de si como consciência). Nesse caso, a crença no Outro (na forma moderna de acreditar que o Outro não sabe) é justamente o que ajuda a manter o mesmo estado de coisas, independentemente de todas as mutações e permutações subjetivas. O universo do sujeito vai realmente mudar apenas no momento em que ele atingir o conhecimento de que o Outro sabe (que não existe).4
Niels Bohr, que deu a resposta correta à frase “Deus não joga dados”, de Einstein (“Não diga a Deus o que fazer!”), também deu o exemplo perfeito de como a renegação fetichista da crença funciona na ideologia: ao ver uma ferradura na porta da casa de Bohr, o visitante surpreso perguntou se ele acreditava na superstição de que a ferradura dava sorte, ao que Bohr respondeu: “É claro que não, mas me disseram que funciona mesmo se a gente não acreditar!”. Esse paradoxo esclarece a atitude reflexiva da crença: nunca se trata apenas de acreditar – é preciso acreditar na própria crença. Por isso Kierkegaard estava certo ao dizer que não acreditamos realmente (em Cristo), apenas acreditamos que acreditamos – Bohr nos coloca de frente com a negativa lógica dessa reflexividade (também é possível não acreditarmos em nossas crenças...).
Nesse aspecto, os Alcóolicos Anônimos encontram Pascal: “Finja até conseguir”. No entanto, essa causalidade pelo hábito é mais complexa do que parece: longe de oferecer uma explicação de como surge a crença, ela mesma pede uma explicação. A primeira coisa a esclarecer é que a máxima “Ajoelhe-se e acreditará!”, de Pascal, tem de ser entendida como algo que envolve um tipo de causalidade autorreferencial: “Ajoelhe-se e você acreditará que ajoelhou porque acreditava!”. A segunda coisa é que, no funcionamento cínico “normal” da ideologia, a crença é deslocada para o outro, para um “sujeito suposto acreditar”, de modo que a verdadeira lógica é: “Ajoelhe-se e assim você fará alguém acreditar!”. É preciso tomar isso literalmente e ainda arriscar um tipo de inversão da fórmula de Pascal: “Você acredita demais, diretamente demais? Acha que sua crença é opressora demais em sua imediaticidade? Então se ajoelhe, aja como se acreditasse e você se livrará de sua crença – não mais terá de acreditar, sua crença já existirá objetificada no seu ato de oração!”. Ou seja, e se o sujeito ajoelha e reza não para reobter sua própria crença, mas sim, ao contrário, para se livrar dela, para obter uma distância mínima de sua proximidade excessiva, um espaço para respirar? Acreditar “diretamente” – sem a mediação exteriorizadora de um ritual – é um fardo pesado, opressor e traumático que, através de um ritual, o sujeito tem a chance de transferir para um Outro. Se existe uma injunção ética freudiana, é a injunção de que deveríamos ter a coragem de nossas próprias convicções, não deveríamos ter medo de assumir totalmente nossas próprias identificações. E o mesmo se aplica ao casamento: o pressuposto implícito (ou melhor, a injunção) da ideologia-padrão do casamento é justamente que no casamento não deveria ter amor. A fórmula pascaliana do casamento, portanto, não é: “Você não ama seu parceiro? Então se case com ele, passe pelo ritual de uma vida compartilhada, e o amor surgirá por si mesmo!”, mas, ao contrário: “Você está muito apaixonado por alguém? Então se case, ritualize sua relação para se curar do apego apaixonado excessivo e substituí-lo por uma rotina enfadonha – e se não puder resistir à tentação da paixão, sempre haverá casos extraconjugais...”.
Isso nos leva ao chamado “fundamentalismo”, o oposto da atitude “tolerante” da crença deslocada: aqui, o funcionamento “normal” da ideologia na qual a crença ideológica é transposta para o Outro é perturbado pelo retorno violento da crença imediata – o fundamentalista “realmente acredita”. Ou seriam eles? E se a fé neo-obscurantista em todas as suas formas, desde teorias da conspiração a misticismos irracionais, na verdade surgir quando a própria fé, a confiança básica no grande Outro ou na ordem simbólica, fracassa? Não é esse o caso da atualidade?
Isso nos leva à fórmula do fundamentalismo: o que é forcluído do simbólico (crença) retorna no real (de um conhecimento direto). O fundamentalista não acredita, ele sabe diretamente. Dito de outra forma: o cinismo cético liberal e o fundamentalismo compartilham uma característica subjacente básica: a perda da capacidade de acreditar no sentido próprio do termo. Para ambos, as declarações religiosas são declarações quase-empíricas do conhecimento direto: os fundamentalistas as aceitam como tal, enquanto os cínicos céticos as ridicularizam. Impensável para eles é o ato “absurdo” de decisão que estabelece cada crença autêntica, uma decisão que não pode ser fundamentada na cadeia de “razões”, no conhecimento positivo: a “hipocrisia sincera” de Anne Frank, que, diante da depravação terrível dos nazistas, num verdadeiro ato de credo quia absurdum, afirmou sua crença na bondade fundamental de todos os seres humanos. (Nesse sentido, o estatuto dos “direitos humanos universais” também é o de uma crença pura: eles não podem ser fundamentados em nosso conhecimento de natureza humana, são um axioma posto por nossa decisão.) Desse modo, somos forçados a chegar à conclusão paradoxal: na oposição entre os humanistas seculares tradicionais e os fundamentalistas religiosos, os humanistas representam a crença, e os fundamentalistas representam o conhecimento – em suma, o verdadeiro perigo do fundamentalismo não está no fato de ele representar uma ameaça ao conhecimento científico secular, mas sim no fato de ele representar uma ameaça à própria crença autêntica.”
1: MARX, Karl. O capital.
2 e 4: 102 ZUPANČIČ. The “Concrete Universal”, and What Comedy Can Tell Us About I.
3: CHESTERTON, G. K. Ortodoxia


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A emocionante aventura da ortodoxia radical: exercícios espirituais – Boris Gunjević

“Seguindo Agostinho, a ortodoxia radical, em seus textos, quer mostrar que o desejo em si é escravizado e maculado pelo pecado porque não é direcionado por Deus, mas por nós mesmos, e por isso “nosso coração vive inquieto, enquanto não repousa em Vós”. Essa inquietude da alma, segundo a Ortodoxia Radical, é evidente na obsessão pós-moderna com várias formas perversas de sexualidade que destroem o eros, o amor e o corpo, moldando-os nos termos das leis do mercado, em que tudo se torna mercadoria. O desejo, nesse caso, é definido como falta e escassez perpetuamente voltadas para nós mesmos. Nunca satisfazemos plenamente esse desejo. Por esse motivo, de modo mimético, desejamos o que os outros desejam. Esse é o princípio fundamental da racionalidade capitalista, segundo a qual funcionam as leis do mercado, escravizando “ontologicamente” o desejo.
Interpretando Gilles Deleuze, Daniel M. Bell Jr. argumenta que o capitalismo é uma disciplina pecaminosa do desejo. O capitalismo é “uma forma de desejo, um modo de vida que capta e distorce o desejo humano de acordo com a regra de ouro da produção para o mercado”¹. Parece que a produção capitalista prevalece porque sua vitória é “ontológica”, uma vez que se funda na disciplina efetiva do desejo como poder humano constitutivo. Para nos libertarmos dessa “tecnologia do desejo”, precisamos de uma “terapia” do desejo muito específica. Precisamos de uma antiprática teológica que vai curar nosso desejo, como Pickstock notou tão apropriadamente. A ortodoxia radical está convencida de que apenas o cristianismo pode remodelar e redirecionar o desejo. Vivenciada pela física da liturgia, a beleza da narrativa cristã pode curar o eros ferido ao redirecionar o desejo para a plenitude infinita da beleza de Deus. O curso do desejo e a abertura do eros ferido podem ser arrancados da racionalidade capitalista do mercado de uma maneira romântica, através de uma terapia litúrgica que não interpretará a natureza como dada, mas como dádiva. Pickstock observa que Aquino já falava sobre modular o desejo pela liturgia, e que o próprio ato de preparação para a liturgia está intimamente ligado ao desejo humano. Pickstock resumiu essa questão da seguinte maneira:
Vemos, portanto, que a Eucaristia é desejo. Embora conheçamos pelo desejo, ou pela vontade de conhecer, e embora essa circunstância apenas resolva a aporia da aprendizagem, para além disso nós descobrimos que o que há para se conhecer é o desejo. Mas não o desejo como ausência, falta e adiamento perpétuo; antes, o desejo como fluxo livre de efetivação, perpetuamente renovado e jamais forcluído².”
1: BELL, Daniel M. Liberation Theology After the End of History: The Refusal to Cease Suffering. London: Routledge, 2001. p. 2.
2: PICKSTOCK, Catherine. Thomas Aquinas and the Quest for the Eucharist. Modern Theology, v. 15, n. 2, Apr. 1999, p. 178-179.


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Rezai e observai: a subversão messiânica – Boris Gunjević

“Vale destacar que no texto de Marcos os demônios obedecem vontade de Jesus, enquanto as pessoas têm a chance de escolher.”


“• Os momentos-chave para entender o texto de Marcos não são as perguntas feitas a Jesus, tampouco as respostas dadas por ele ou suas ações simbólicas (cura, exorcismos, milagres alimentando os famintos), muito menos suas palavras, mas sim as perguntas que faz aos discípulos, aos adversários e, na verdade, aos leitores, como estas: “É permitido, no sábado, fazer o bem ou fazer o mal?”, “Quem são minha mãe e meus irmãos?”, “Por que tendes medo? Ainda não tendes fé?”, “Então, nem vós tendes inteligência?”, “Quem dizem os homens que eu sou?”, “E vós, quem dizeis que eu sou?”, “Sobre o que discutíeis no caminho?”, “Podeis beber o cálice que eu vou beber e ser batizado com o batismo com que serei batizado?”, “De quem é esta imagem e a inscrição?”, “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?”. Essas perguntas são primeiro voltadas para nós, leitores, hoje, e não para os personagens da história. Jesus não responde explicitamente nenhuma pergunta, mas usa parábolas e histórias.
• Usando a ironia de forma abundante (o cego Bartimeu é o único que vê quem é Jesus, e, ao curá-lo, Jesus mostra que todos ao redor de Bartimeu são cegos), Marcos não retrata Jesus como um errante milagreiro e carismático, mas principalmente como um Messias pacífico e como Filho apocalíptico do Homem que radicalmente redefine e subverte a estrutura hierárquica social e cultural do poder, que, como sabemos, está sempre codificada simbolicamente. Essa taxonomia simbólica é fundada no discurso religioso da elite judaica e legitimada pela prática política e econômica da violência perpetrada pelo Império Romano.
• Desde o princípio do relato, o Jesus de Marcos questiona a “ortodoxia social” que legitima o construto da realidade patriarcal. Jesus, na Galileia, cura a mãe da esposa de Pedro, “e ela se pôs a servi-los” (Marcos 1, 31). Isso não significa que ela lhes preparou um delicioso jantar, mas sim que ela os serviu (diakonia) da maneira característica de quem responde ao chamado messiânico e vê sua efetivação em Jesus. O termo diakonia é mencionado apenas duas vezes no texto inteiro. A segunda menção desse mesmo verbo está na frase mais importante: “Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para...” (Marcos 10, 45). As mulheres, no texto de Marcos, são apresentadas como modelos paradigmáticos da prática messiânica. Ao círculo interno de discípulos privilegiados formado por Pedro, Tiago e João, o escritor justapõe três mulheres: Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, e Salomé (Marcos 15, 40-1). Uma desconhecida o unge e o reconhece como Messias, enquanto um discípulo o trai. As mulheres dão testemunho de sua agonia na cruz. Elas o seguem e o servem desde o início da missão na Galileia. Muitas outras mulheres de Jerusalém se juntam a elas. Elas são as primeiras a se dirigirem ao sepulcro, fazendo a pergunta: “Quem rolará a pedra da entrada do túmulo para nós?” (Marcos 16, 3), pois o sepulcro de Cristo estava fechado por uma rocha. As mulheres querem corroborar a verdade das palavras de Jesus. Em seus discursos, ele prometeu ressuscitar. As mulheres, encarnando o modelo dos discípulos, vão ao sepulcro do Messias e demonstram a necessidade de uma visão bilateral da realidade: “E erguendo os olhos, viram que a pedra já fora removida” (Marcos 16, 4).
Quase metade do relato de Marcos fala do sofrimento e da morte de Jesus, portanto não admira que ele fale do sofrimento de Jesus depois de uma longa introdução. Os leitores de Marcos precisam ser convencidos de que Jesus é o apocalíptico Filho de Deus, e não um curandeiro misericordioso, carismático e apolítico. Com sua taumaturgia, os curandeiros da Antiguidade legitimavam o status quo político e social e, ao fazê-lo, garantiam para si mesmos privilégios econômicos e sociais. Isso é totalmente o oposto da prática messiânica na qual insiste o carpinteiro de Nazaré. Se Jesus tiver sido um carismático apolítico, um curandeiro errante, como muitos outros no Oriente Médio da Antiguidade, não haverá motivo nenhum para a coalizão inescrupulosa entre herodianos e fariseus ter conspirado contra ele, como relatado nos primeiros capítulos do Evangelho (Marcos 3, 6). Nestes, Jesus exorciza um homem possuído por um espírito impuro em Cafarnaum, cura a doença de diversas pessoas e reúne alguns poucos discípulos, violando abertamente certos tabus e colocando em questão a estratificação social na purificação ritual. Logo depois da conspiração, Jesus consolida sua comunidade de iguais radicais, declarando uma guerra ideológica à elite política e religiosa que se opunha a sua missão (Marcos 3, 20-35). Rodeado por uma multidão de seguidores, o Jesus relatado por Marcos sabe do impacto de sua própria missão, que deve ir além das margens da sociedade (o deserto e os vilarejos da Galileia) até o centro (Jerusalém), onde o confronto final acontecerá com os representantes corruptos do Templo e a elite urbana, que, junto às forças que ocupam Roma, será responsável por sua morte. A guerra ideológica é declarada por uma simples parábola e por exemplos da vida de quem cultiva o solo (Marcos 4, 1-34), que o público de Jesus entendia prontamente. Os comentários sobre as parábolas de Jesus são inspiradores, porque são voltados para a comunidade de leitores, ou seja, nós atualmente.”


“No texto de Marcos, a multidão como objeto de práticas repressoras do Império diz respeito basicamente às pessoas socialmente excluídas e dependentes, aos marginalizados pela fé, aos deficientes físicos, aos doentes mentais e aos de espírito manso. Marcos argumenta que é justamente entre essas pessoas que a nova ordem social é semeada. Isso inclui leprosos, pessoas com necessidades especiais, prostitutas, viúvas, órfãos, coletores de impostos – em outras palavras, as pessoas que vivem às margens da sociedade. Jesus recorre à tática do discurso específico em suas parábolas. Com isso, descreve e recria a realidade do Reino de Deus, além de renovar o poder de imaginação e a percepção destruída da multidão oprimida, de modo que ela possa participar das práticas messiânicas inauguradas por Jesus. As parábolas de Jesus não são apenas histórias terrenas com um significado divino, elas também são descrições concretas de uma prática acessível à multidão privada de direitos. Parábolas desse tipo costumam conter reviravoltas imprevisíveis e surpreendentes, que questionam as suposições já arraigadas da multidão. A parábola sobre o semeador subversivo descreve com uma clareza cristalina a realidade da pobreza e do trabalho agrícola, cheia de dificuldades bem conhecidas de todos os residentes da Judeia. Essa é a realidade determinada pelo solo árido e não irrigado da Judeia ocupada.
O camponês espalha a semente e a esperança pelo melhor. Esse método de semeadura era típico em toda a Palestina. Primeiro a semente é plantada, depois o campo é arado para que as sementes se assentem o mais profundo possível no solo, cultivado durante muitas gerações. Não há lugar para o otimismo nesse processo. O melhor que se pode esperar é um bom ano, apesar das ervas daninhas e do solo pobre. Essa imagem do semeador é a imagem da pobreza agrária e sua crítica. O camponês não deve apenas alimentar sua família e pagar os impostos territoriais, ele também deve pagar impostos sobre os ganhos do que vende de sua colheita. Se tiver poucas ferramentas, ele precisa alugá-las com diversos locatários, o que só aumenta os custos. Para dificultar ainda mais as coisas, ele precisa guardar sementes para que tenha o suficiente para o replantio no ano seguinte. Esse tipo de política agrária de reprimir a multidão explica o fato de 75% do plantio de sementes ser perdido porque as sementes não brotam nunca. Se no final do ano a colheita não tiver sido satisfatória, o camponês precisa recorrer a empréstimos dos grandes proprietários de terras a juros exorbitantes, o que o força a hipotecar o pouco de terra que tem e incorrer na servidão do devedor. Por fim, ele chega a uma situação em que precisa vender suas terras por um preço muito inferior ao valor de mercado. Desse modo, ele se torna uma mão de obra barata ou, nos casos mais extremos, vende-se à escravidão durante algum tempo para conseguir liquidar o valor do empréstimo. Os grandes proprietários de terras tornam-se cada vez mais ricos, enquanto os pobres tornam-se cada vez mais pobres e desesperados.
Nesse momento, Jesus fala de uma boa semente que brota além da crença e traz uma colheita abundante, algo que confunde a multidão. Era algo realista esperar uma colheita de 30 vezes mais do que foi semeado, mas 100 vezes mais parecia um exagero. Na verdade, não seria nada excessivo para um camponês com família para alimentar, impostos a pagar, sementes a estocar para o plantio do ano seguinte e a necessidade de um excedente para dividir com as pessoas que não têm nada. Talvez pareça que Jesus investiu perigosamente na racionalidade dos pobres e devastados em termos materiais e psicológicos. Mas Jesus, ao falar das práticas messiânicas, tem algo mais em mente e o transmite apenas enigmaticamente. Quem quiser ouvir a parábola da semente, do semeador e do solo fértil deve ter ouvidos para ouvir. Nada pareceria mais fácil. Examinemos com mais detalhes a parábola do semeador, que, para Marcos, era a mais importante de todas e, como veremos depois, fornece a chave hermenêutica para a compreensão de todas as parábolas de Jesus¹.”
1: Além dessa, só há mais duas parábolas no texto de Marcos: sobre o crime na vinha (Marcos 12, 1-12) e sobre a teologia da observação revolucionária (Marcos 13, 1-36).

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