Editora: Autêntica
ISBN: 978-85-8217-463-0
Tradução: Rogério Bettoni
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 240
A mistagogia da revolução – Boris Gunjević
“A divina comédia foi escrita no exílio,
um produto da vida nômade de Dante. Desse modo, não admira que a própria Comédia descreva a jornada pelo Inferno,
pelo Paraíso e pelo Purgatório na companhia de viajantes incomuns que têm um
significado especial para o autor. Depois de uma cisão no partido político dos
Brancos, do qual Dante era membro, e de um ataque por parte dos vassalos do
papa, chamados de Negros, Dante foi banido de Florença em 1302 e
subsequentemente condenado in absentia
à morte na fogueira. Essa sentença transformou Dante em um nômade poeta e
político que jamais voltaria para sua cidade natal. Depois de perambular pela
Europa, ele chegou a Ravena, onde finalmente morreu. Boccaccio diz que Dante
queria descrever em vulgata, e em rimas, todas as obras de todas as pessoas e
seus méritos na história. Tratava-se de um projeto notadamente ambicioso e
complexo, que requeria tempo e trabalho, principalmente porque Dante era um
homem cujos passos eram seguidos pelo destino a cada esquina, cercados pela
angústia da amargura.
A Comédia se
tornou a obra de toda a vida de Dante. Quando opositores políticos invadiram
sua casa (da qual ele fugiu de repente, deixando tudo para trás), eles
encontraram partes do manuscrito num baú de viagem. Esses manuscritos foram
guardados e entregues ao poeta florentino mais famoso da época, Dino
Frescobaldi, que reconheceu ter diante de si uma obra-prima e acabou mandando
os manuscritos para Dante por intermédio de um amigo deste, o marquês Morello
Malaspina – Dante estava hospedado na casa dele. O marquês incentivou Dante a
persistir, e assim ele o fez. Boccaccio nos diz que a morte de Dante o impediu
de terminar sua obra-prima: ficaram faltando os últimos 13 cantos. O medo dos
amigos de Dante era que Deus o tivesse proibido de viver mais tempo para
completar sua obra extraordinária. Toda a esperança de recuperar os cantos
finais se perdeu.
Os filhos de
Dante, Jacopo e Piero, também poetas, concordaram em completar a Comédia do pai. Uma noite, oito meses
depois da morte de Dante, Jacopo teve um sonho estranho. O filho perguntava
para o pai se ele havia terminado a grande obra e queria saber onde estavam
escondidos os últimos cantos. Dante respondeu que sim, a obra estava acabada, e
que ele havia guardado o manuscrito na parede do quarto. Jacopo saiu naquela
mesma noite para se encontrar com Piero Giardino, discípulo de Dante durante
muitos anos.
Depois de acordar
Giardino no meio da noite, Jacopo não teve mais como esperar. Os dois se
dirigiram imediatamente à casa de Dante para vasculhar nas paredes do quarto.
Havia um tapete pendurado numa das paredes, e atrás dele havia uma pequena
porta. Ao abri-la, os dois encontraram os manuscritos escondidos lá dentro,
cobertos de mofo e quase destruídos. Depois de encontrar os 13 cantos, eles os
entregaram a Cangrande dela Scala, amigo de Dante, para quem ele havia
entregado os manuscritos em partes, à medida que escrevia.”
“Mas eu não aposto
num Deus punitivo. Aposto no Deus de São Paulo, Orígenes ou Gregório de Nissa,
que no fim vai redimir a todos. Sem essa crença, não se pode ter a esperança de
que um dia o ser coincidirá com o bem. Isso, na verdade, resultaria em apenas
uma “moralidade” – apenas o gesto desesperador de tentar deter a morte durante
um tempo. Apenas uma disputa infindável sobre como repartir recursos escassos e
danificados. Em contrapartida, apenas o cristianismo permite ter a esperança de
trabalhar para a realização infinita de tudo em harmonia com tudo.”
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Por
uma suspensão teológico-política do ético – Slavoj Žižek
“A propaganda
contra a política emancipatória radical é cínica por definição – não no sentido
simples de não acreditar em suas próprias palavras, mas num nível muito mais
básico: ela é cínica precisamente na medida em que acredita em suas próprias palavras, pois sua mensagem é uma
convicção resignada de que o mundo em que vivemos, se não for o melhor de todos
os mundos possíveis, é o pior deles, de modo que toda mudança radical só tem a
piorá-lo.”
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O cristianismo contra o sagrado – Slavoj Žižek
“Dessa premissa,
Dupuy tira a seguinte conclusão (para ele, óbvia): é um grande erro pensar que
uma sociedade justa e que se percebe como justa estará por isso livre de todo
ressentimento – pelo contrário, é justamente nessa sociedade que as pessoas que
ocupam posições inferiores só encontrarão um escoadouro para seu orgulho ferido
em ataques violentos de ressentimento.”
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Virtudes
babilônicas: palavras da minoria – Boris Gunjević
“Como diz Santo
Agostinho, os grandes reinos são apenas projeções aumentadas de pequenos
ladrões. Agostinho de Hipona, entretanto, tão realista em sua ideia pessimista
do poder, perderia a fala diante dos pequenos chefes do poder monetário e
financeiro de hoje. De fato, quando o capitalismo perde sua relação com o valor
(como medida de exploração individual e como norma de progresso coletivo), ele
surge imediatamente em forma de corrupção.”
(In: Michael Hardt & Antonio Negri)
“Ao que parece, é
por esse motivo que Francisco é importante para Hardt e Negri. Com seu
ascetismo simples e romântico e sua imaginação infantil, Francisco se opõe ao
próprio núcleo do capitalismo, surgindo de uma maneira identificada com os mais
pobres e os mais oprimidos. Este, segundo os autores, é um ato inerentemente
revolucionário. Francisco desapodera a si mesmo em nome da multidão, adotando a
disciplina que consiste na alegria da existência para se opor à vontade de
poder e rejeitar toda forma de disciplina instrumental. Ele se afilia com toda
a natureza, os animais, pássaros, o irmão Sol e a irmã Lua, em sua batalha
contra a corrupção e a venalidade dos primórdios da sociedade capitalista. Em
Francisco de Assis temos o símbolo da impossibilidade de se controlar a
cooperação e a revolução. A cooperação e a revolução, conforme personificadas
por Francisco, permanecem juntas no amor, na simplicidade, na alegria e na
inocência. Tal cooperação e revolução na simplicidade são a graciosidade e a
alegria irrepreensíveis de ser comunista.”
“O homem sábio, de
acordo com Proclo, progride do conhecimento para a fé, enquanto Paulo argumenta
que, para os cristãos, a pessoa atinge um estado de conhecimento imediato de
Deus quando tem fé, por isso a misericórdia é inerente ao conhecimento.”
“Se aceitarmos a
afirmação de Walter Benjamin de que o capitalismo é uma religião, a crítica
mais radical – na verdade a única crítica possível e plausível – do capitalismo
não seria articulada pela religião?”
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Uma olhadela nos arquivos do Islã – Slavoj Žižek
“Tornamo-nos
membros completos de uma comunidade não só por nos identificarmos com sua
tradição simbólica explícita, mas também quando assumimos a dimensão espectral
que sustenta essa tradição, os fantasmas que assombram os vivos, a história
secreta das fantasias traumáticas transmitidas “nas entrelinhas”, por meio das
lacunas e distorções da tradição simbólica explícita.”
“Agar, como
segunda mulher excluída, fora da genealogia simbólica, representa não só a
fertilidade pagã (egípcia) da vida, mas também o acesso direto a Deus: ela vê o
próprio Deus vendo, o que não foi concedido nem mesmo a Moisés, para quem Deus
teve de aparecer na forma de sarça ardente. Como tal, Agar anuncia acesso
místico/feminino a Deus (desenvolvido depois no sufismo).”
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Todo livro é como uma fortaleza: a carne foi feita
verbo – Boris Gunjević
“Não existe
leitura inocente, e cada um de nós deve dizer de que leitura somos culpados.”
(Louis Althusser)
“O que acontece
quando um não muçulmano lê o Alcorão, uma vez que o próprio Alcorão proíbe não
muçulmanos de lerem o texto sagrado? Só poderemos entender o que não
desejávamos saber se persistirmos em não levar a sério essa proibição.
Justamente aquilo que aprendemos a negar servirá de Estrada Real para nosso
entendimento. Todo livro é como uma fortaleza que não pode ser conquistada por
fora. Do contrário, acharíamos ser suficiente a leitura que nos obrigam a fazer
na escola. Não se pode obter nada de uma leitura feita sob pressão. Se todo
livro é uma fortaleza, eles precisam ser conquistados por dentro: é preciso
haver o desejo de dominar o texto com uma intenção subjetiva. Somente esse tipo
de leitura se torna uma luta de classes, e dizemos isso com uma pitada de
anacronismo irônico. Daí a leitura ser primordialmente uma forma múltipla de
comunicação e um locus de lutas
ideológicas, como sempre foi dito por Roland Barthes.
Hoje a prática da
leitura concretiza uma reação ao terror da mídia. O papel do “terror da mídia”
dentro do Império é tripartite. Primeiro, ela nos terroriza constantemente com
imagens de violência feitas para destruir a leitura e o pensamento. Segundo, o
terror da imagem sistematicamente solapa e redefine nosso passado ao nos
saturar e nos inundar com uma quantidade enorme de informações, impossível de
processar. E, terceiro, ao nos aterrorizar com o uso de imagens violentas, a
intenção é injetar permanentemente amnésia de uma maneira dromológica para
criar uma matriz violenta de “novas formas de instrução” que impõem a falta de
instrução e a catatonia.”
“Um dia, quando
tivermos tempo para escrever uma genealogia de nossos fracassos, nossas
incapacidades e nossas decepções, os livros que não lemos por quaisquer motivos
terão espaço importante nesse estudo. Além das músicas que nunca escutamos, dos
filmes que nunca vimos ou dos antigos arquivos e mapas que nunca exploramos, os
livros que nunca lemos serão os indicadores de nossos anacronismos e de nossa
humanidade imperfeita. Somente quando nossos sistemas de defesa imaginados se
desintegrarem e formos traídos por nossos próprios mecanismos de negação é que
a leitura preservará a dignidade do perdedor. Na verdade, não é isso que
acontece hoje, quando parecemos travar uma luta que já foi perdida? Se
acreditarmos que deveríamos estar salvando o que pode ser salvo, temos de
aceitar a leitura dos textos que amamos odiar. O Alcorão certamente é um deles.
Alguém deve voluntariamente se responsabilizar pela leitura e interpretação de
livros desse tipo. Esse é certamente um texto muito valioso que deveria ser
tirado, literalmente à força, da mão dos fundamentalistas. Os cristãos
fundamentalistas leem o texto alcorânico como se fosse um manual de terrorismo.
Ao ler o Alcorão, os fundamentalistas islâmicos querem ter o controle
monocromático do texto, e com suas interpretações literais, superficiais e
ultramodernas, intendam mutilá-lo, destruindo o livro inteiro no processo. Toda
leitura fundamentalista e literal de um texto se rebela contra o modernismo,
mas essa rebelião permanece alojada no campo da referência do discurso contra
aquilo a que se rebela. Uma exegese histórica do Alcorão não é uma
relativização da mensagem ou uma investida perigosa em verdades eternas; é uma
ajuda que facilita a leitura até mesmo para quem não é muçulmano.”
“Deus não é feito
carne como no cristianismo, mas, antes, sua palavra é feita livro. Dito em
termos mais poéticos, a palavra de Deus é livrificada.”
“O texto
alcorânico está longe de qualquer noção idílica e que seria compreendida de
prontidão. Justamente por ser destituído de qualquer sistema imposto e de uma
coesão espacial artificial, o texto alcorânico nos deixa com múltiplas opções
de leitura e interpretação. Isso é tanto uma bênção quanto uma maldição,
dependendo de quem o lê e com qual propósito. Sem nenhum resquício de afetação
ocidental e eurocêntrica, dizemos que o Alcorão é literalmente um texto pós-moderno. Antes de saltar para quaisquer
conclusões, não devemos nos esquecer de que o próprio Maomé era um iliterato.
Por isso é importante termos ciência da versão final de Uthman do texto
alcorânico, que coloca um fim ao período formativo da comunidade islâmica.”
“A história será
encenada numa praça pública da qual nós, da pior maneira possível atualmente,
somos testemunhas.” (Jacques Lacan – Escritos)
“Ler não é uma
atividade sem perigos, tampouco uma atividade trivial. É o início de uma
batalha ideológica travada dentro do Império. (...) Na luta ideológica, devemos
fazer um esforço sério para ceder e nos submeter às tentações do complexo
messiânico, de um lado, ou nos tornar um homo
sacer, de outro. Ler o Alcorão pode pedagogicamente nos ajudar a não ser
capturados das duas maneiras, o que seria nocivo mesmo a curto prazo. Isso é
justamente o que o Império menos quer: que saibamos da existência daqueles que
o Império nomeou como nossos inimigos. O muçulmano
do qual fala Agamben em seu texto sobre O
que resta de Auschwitz tornou-se novamente a testemunha desabrigada do que
o Império está fazendo, e por isso deve-se fazer do Império não só uma testemunha,
mas principalmente um inimigo que deve ser coagido. Por isso é importante ler o
Alcorão, para que não nos deixemos seduzir pelas falsas alternativas do
Império, que vê no texto alcorânico apenas o messianismo e o “homosacerismo”,
duas imagens da violência que podem ter iterações e consequências descomunais
sobre as quais podemos facilmente perder o controle. Essas consequências podem
se voltar contra nós. As coisas podem escapar de nossas mãos, como mostra o
conto de Borges a seguir, no qual um conselho bem-intencionado se transforma no
oposto, com repercussões alarmantes:
Em 1517, o padre
Bartolomé de Las Casas compadeceu-se dos índios que se extenuavam nos
laboriosos infernos das minas de ouro antilhanas, e propôs ao imperador Carlos
V a importação de negros, que se extenuassem nos laboriosos infernos das minas
de ouro antilhanas. A essa curiosa variação de um filantropo devemos infinitos
fatos: os blues de Handy, o sucesso
alcançado em Paris pelo pintor-doutor uruguaio D. Pedro Figari, a boa prosa
agreste do também oriental D. Vicente Rossi, a dimensão mitológica de Abraham
Lincoln, os quinhentos mil mortos da Guerra da Secessão, os três mil e
trezentos milhões gastos em pensões militares, a estátua do imaginário Falucho,
a admissão do verbo linchar na décima
terceira edição do Dicionário da Academia Espanhola, o impetuoso filme Aleluya, a fornida carga de baionetas
levada por Soler à frente de seus Pardos
y Morenos em Cerrito, a graça da senhoria de Tal, o negro que assassinou
Martín Fierro, a deplorável rumba El
Manisero, o napoleonismo embargado e encarcerado de Toussaint Louvertoure,
a cruz e a serpente no Haiti, o sangue das cobras degoladas pelos machado dos papaloi, a habanera mãe do tango, o
candombe. Além disso: a culpável e magnífica existência do atroz redentor
Lazarus Morell¹.
1: BORGES, Jorge Luis. O
atroz redentor Lazarus Morell: a causa remota.
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Apenas
um Deus que sofre pode nos salvar – Slavoj Žižek
“Isso nos leva à
terceira posição, que vai além das duas primeiras (o Deus soberano e o Deus
finito): a de um Deus que sofre – não um Deus triunfalista que sempre vence no
final, embora “seus caminhos sejam misteriosos”, uma vez que ele controla tudo
em segredo nos bastidores; não um Deus que exerce a justiça fria, uma vez que,
por definição, ele está sempre certo; mas sim um Deus que – como o Cristo que
sofre na cruz – está atormentado, um Deus que assume o fardo do sofrimento em
solidariedade à miséria humana.¹ Schelling já havia escrito: “Deus é uma vida,
não apenas um ser. Mas toda vida tem um destino e está sujeita ao sofrimento e
ao devir. [...] Sem o conceito de um Deus que sofre humanamente [...] toda a
história permanece incompreensível”.² Por quê? Porque o sofrimento de Deus indica
que ele está envolvido na história, é afetado por ela, e não é apenas um Mestre
transcendente que controla tudo lá de cima: o sofrimento de Deus significa que
a história humana não é apenas um teatro de sombras, mas sim o lugar de uma
luta real, a luta em que o próprio Absoluto está envolvido e em que seu destino
é decidido. Esse é o pano de fundo filosófico da forte observação de Dietrich
Bonhoeffer de que, depois da Shoá, “apenas um Deus que sofre pode nos ajudar”³
– um complemento perfeito para “Apenas um Deus pode nos salvar!”, de Heidegger,
dita em sua última entrevista.4 Desse modo, deve-se interpretar de
maneira bastante literal a declaração de que “o sofrimento inominável de seis
milhões também é a voz do sofrimento de Deus” 5: o próprio excesso
desse sofrimento em relação a qualquer medida humana “normal” o torna divino.”
1: Michael L. (Ed.). A Holocaust
Reader. Oxford: Oxford University Press, 2001.
2: SCHELLING, Friedrich Wilhelm Joseph von.
Philosophical Investigations into
the Essence of Human Freedom. In:
BEHLER, Ernst (Ed.). Philosophy of German Idealism. New York: Continuum, 1987.
p. 274.
3: Citado por David Tracy em
MORGAN (Ed.). A Holocaust Reader, p. 237.
4: HEIDEGGER, Martin. Only a God
Can Save Us. In: WOLIN, Richard (Ed.). The Heidegger Controversy: A Critical
Reader. Cambridge, MA: MIT Press, 1993.
5: DAVID, Tracy. Religious Values
After the Holocaust. In: MORGAN (Ed.). A Holocaust Reader, p. 237.
“As três
principais versões do cristianismo não formam um tipo de tríade hegeliana? Na
sucessão de ortodoxia, catolicismo e protestantismo, cada novo termo é uma
subdivisão, uma separação a partir de uma unidade anterior. Essa tríade de
Universal –Particular – Singular pode ser designada por três representativas
figuras fundadoras (João, Pedro e Paulo), bem como por três raças (eslavos,
latinos e alemães). Na ortodoxia oriental, temos a unidade substancial entre o
texto e o corpo de fiéis, e por esse motivo os fiéis podem interpretar o Texto
sagrado, pois o Texto continua neles e vive neles, não está fora da história
viva como seu modelo ou um padrão exemplar – a substância da vida religiosa é a
própria comunidade cristã; o catolicismo representa a alienação radical: a
entidade que faz a mediação entre o Texto sagrado fundador e o corpo de fiéis,
a Igreja, a Instituição religiosa, reobtém sua plena autonomia. A mais alta
autoridade reside na Igreja, e por isso a Igreja tem o direito de interpretar o
Texto; o Texto é lido durante a missa em latim, uma língua que não é
compreendida pelos fiéis comuns, e chega a ser considerado pecado que um fiel
comum leia o Texto diretamente, ignorando a orientação do sacerdote. Para o
protestantismo, por fim, a única autoridade é o próprio Texto, e a aposta é no
contato direto de cada fiel com a Palavra de Deus da maneira como é transmitida
no Texto; desse modo, o mediador (o Particular) desaparece, recolhe-se na
insignificância, permitindo que o fiel adote a posição de um “Singular
universal”, o indivíduo em contato direto com a Universalidade divina,
ignorando o papel mediador da Instituição particular. Essas três atitudes
cristãs também envolvem diferentes modos da presença de Deus no mundo.
Começamos com o universo criado diretamente, o universo que reflete a glória de
seu Criador: toda a riqueza e toda a beleza de nosso mundo atestam o poder
criativo do divino, e as criaturas, quando não se corrompem, voltam
naturalmente os olhos para ele... O catolicismo muda para uma lógica mais
delicada do “desenho no tapete”: o Criador não está diretamente presente no
mundo; antes, seus traços têm de ser discernidos em detalhes que escapam ao
primeiro olhar superficial, isto é, Deus é como um pintor que se afasta de seu
produto finalizado, sinalizando sua autoria apenas com uma assinatura quase
imperceptível na beira do quadro. Por fim, o protestantismo afirma a ausência
radical de Deus no universo criado, a ausência de Deus nesse mundo cinza que
avança como um mecanismo cego e no qual a presença de Deus só se torna
discernível nas intervenções diretas da Graça que perturba o curso normal das
coisas.”
“É nesse sentido
que, com respeito a Cristo, Hegel na verdade alude a alguns temas
kierkegaardianos (a diferença entre gênio e apóstolo, caráter eventivo singular
de Cristo), especialmente quando destaca a diferença entre Sócrates e Cristo.
Cristo não é como o “indivíduo plástico” grego por cujas características
universais o conteúdo universal ou substancial transpira diretamente (como foi
o caso exemplar de Alexandre). Isso significa que embora Cristo seja o
Deus-homem, a identidade direta dos dois, essa identidade também implica uma
contradição absoluta: não há nada “divino” em Cristo, nem mesmo nada
excepcional – se observamos seus traços, vemos que ele é indistinguível de
qualquer outro ser humano:
Se consideramos
Cristo apenas com referência a seus talentos, seu caráter e sua moralidade,
como professor, etc., nós o colocamos no mesmo lugar que Sócrates e outros,
ainda que o coloquemos numa posição mais alta do ponto de vista moral. [...] Se
Cristo é tomado apenas como um indivíduo excepcionalmente refinado, mesmo como
um indivíduo sem pecados, então estamos ignorando a representação da ideia
especulativa, sua verdade absoluta.¹
Essas linhas
apoiam-se num pano de fundo conceitual bastante preciso. Não é que Cristo seja
“mais” que outras figuras-modelo de sabedoria religiosa, filosófica ou ética,
real ou mística (Buda, Sócrates, Moisés, Maomé), que ele seja “divino” no
sentido da ausência de quaisquer falhas humanas. Com Cristo, a própria relação
entre conteúdo substancial divino e sua representação muda: Cristo não
representa esse conteúdo divino substancial, Deus; ele é imediatamente Deus, e
é por isso que não precisa mais se parecer com Deus, lutar para ser perfeito e
“como Deus”. Recordemos a clássica piada dos irmãos Marx: “Você se parece com
Emmanuel Ravelli.” “Mas eu sou Emmanuel Ravelli.” “Então não surpreende que
você se pareça consigo mesmo!” A premissa subjacente dessa piada é que essa
sobreposição entre ser e parecer é impossível, há sempre uma lacuna entre os
dois. Buda, Sócrates, etc. se parecem com deuses, enquanto Cristo é Deus. (...)
Em outras
palavras: os deuses gregos aparecem para os humanos em forma humana, enquanto o
Deus cristão aparece como humano para si
mesmo. Esse é o ponto crucial: para Hegel, a Encarnação não é um movimento
pelo qual Deus se torna acessível ou visível para os humanos, mas sim um
movimento por meio do qual Deus olha para si mesmo a partir da perspectiva
humana (deformadora): “Como Deus se manifesta para seu próprio olhar, a
representação especular divide o si divino de si mesmo, oferecendo o divino
como visão perspectívica de sua própria autopresença”². Ou, colocando em termos
freudiano-lacanianos: Cristo é o “objeto parcial” de Deus, um órgão autonomizado
sem corpo, como se Deus arrancasse os olhos da própria cabeça e os virasse para
si mesmo de fora.”
1 e 2:
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Lectures
on the Philosophy of History.
“Cristo é a
anamorfose de Deus.”
“Outra indicação
dessa exterioridade de Deus com respeito a si mesmo é apontada por C. K.
Chesterton em “The Meaning of the Crusade”,
em que ele cita com louvor a descrição do Monte das Oliveiras que ouviu de uma
criança em Jerusalém: “Uma criança de uma das vilas me disse, num inglês
capenga, que ali era o lugar onde Deus fez suas orações. Eu, pelo menos, não
pediria uma declaração mais sofisticada ou desafiadora de tudo que separa o
cristão do muçulmano ou do judeu”. Se, em outras religiões, rezamos para Deus,
é somente no cristianismo que o próprio Deus reza, ou seja, dirige-se a uma
autoridade exterior imperscrutável.
O problema crucial
é: como devemos pensar a ligação entre essas duas “alienações” – a alienação do
homem moderno em relação a Deus (reduzido a um Em-si incognoscível, ausente do
mundo sujeitado às leis mecânicas) e a alienação de Deus em relação a si mesmo
(em Cristo, na encarnação)? Elas são a mesma coisa, embora não simetricamente,
e sim como sujeito e objeto. Para que a subjetividade (humana) surja da
personalidade substancial do animal humano, cortando os elos que tem com ele e
se pondo como o eu = eu destituído de todo conteúdo substancial, como a
negatividade autorrelativa de uma singularidade vazia, o próprio Deus, ou a Substância
universal, tem de se “humilhar”, incorrer em sua própria criação,
“objetificar-se”, aparecer como um indivíduo singular miserável em toda sua
infâmia, isto é, abandonado por Deus. A distância do homem em relação a Deus,
portanto, é a distância de Deus em relação a si mesmo:
“O sofrimento de
Deus e o sofrimento da subjetividade humana destituída de Deus devem ser
analisados como páginas opostas do mesmo acontecimento” (...)¹.
Essa dupla kenosis é o que a crítica marxista comum
não toma em consideração ao afirmar que a religião é a autoalienação da
humanidade: “a filosofia moderna não teria seu próprio sujeito se o sacrifício de Deus não tivesse ocorrido”². Para que
surja a subjetividade moderna – não como mero epifenômeno da ordem ontológica
substancial global, mas como essencial à própria Substância –, a cisão,
negatividade, particularização, autoalienação, deve ser posta como algo que
acontece no cerne mesmo da Substância divina, isto é, a passagem de Substância
para Sujeito deve ocorrer dentro do próprio Deus. Em suma, a alienação do homem
em relação a Deus (o fato de que Deus aparece para ele como um Em-si
inacessível, como puro Além transcendente) deve coincidir com a alienação de
Deus em relação a si mesmo (cuja expressão mais pungente é, sem dúvida, a
pergunta de Cristo na cruz: “Pai, por que me abandonaste?”): a consciência
humana finita “só representa Deus porque Deus representa a si mesmo; a
consciência só se distancia de Deus porque Deus se distancia de si mesmo”.³
É por isso que a
filosofia marxista padrão oscila entre a ontologia do “materialismo dialético”,
que reduz a subjetividade humana a uma esfera ontológica particular (não
surpreende que Georgi Plekhanov, criador do termo “materialismo dialético”,
também tenha designado o marxismo como “espinosismo dinamizado”), e a filosofia
da práxis; que, de György Lukács em diante, toma como ponto de partida e
horizonte a subjetividade coletiva que põe/medeia cada objetividade, e assim é
incapaz de pensar sua gênese a partir da ordem substancial, a explosão
ontológica, ou “Big Bang”, que dá origem a ela.”
1 e 2:
MALABOU, Catherine. The Future of Hegel
3: HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fé e saber.
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