sábado, 25 de janeiro de 2014

A Feiticeira de Florença, de Salman Rushdie

Editora: Companhia das Letras

ISBN: 978-85-359-1346-0

Tradução: José Rubens Siqueira

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 406

Sinopse: Amigo de infância do célebre Niccolò Machiavelli, Antonino Argalia viveu na Florença renascentista até perder os pais para a peste. Sozinho, decide tentar a sorte em terras distantes, oferecendo seus serviços como mercenário. Peripécias diversas acabam por alçá-lo à frente das forças otomanas em luta contra o xá da Pérsia, em 1514. Uma vez derrotado o xá, Argalia conhece Qara Köz, ex-amante do soberano e mulher de beleza e poderes mágicos, por quem se apaixona de imediato.

A história de Qara Köz, a feiticeira de Florença, é contada ao imperador Akbar, o Grande, por um atrevido forasteiro que atravessa o mundo para comunicar ao soberano mongol que é seu parente direto. Numa intrigante sucessão de aventuras, o misterioso contador de histórias vai revelando os caminhos que conduzem Argalia e sua bela mulher desde Istambul até a Florença dos Medici.

Mesclando habilmente realidade e ficção, A feiticeira de Florença aproxima a cidade de Machiavelli de um império oriental que atinge, também no século XVI, apogeu comparável nas artes e no pensamento filosófico. Teriam as idéias e os ideais renascentistas florescido também do outro lado do mundo, na corte de Akbar? É a resposta a essa pergunta que Salman Rushdie expõe com graça e agilidade nesta obra-prima encantadora.

“Um romance marcado pela engenhosidade e pela ambição - nada menos que uma defesa da imaginação humana.” - The New York Times


 

““Se você fosse um ateu, Birbal”, o imperador desafiou seu primeiro-ministro, “o que diria aos verdadeiros crentes de todas as grandes religiões do mundo?” Birbal era um brâmane devoto de Trivikrampur, mas respondeu sem hesitar: “Eu lhes diria que em minha opinião eles eram todos ateus também; eu apenas acredito em um deus a menos que cada um deles”. “Como assim?”, perguntou o imperador. “Todos os verdadeiros crentes têm boas razões para desacreditar de todos os deuses exceto o seu próprio”, disse Birbal, “então são eles que, juntos, me dão todas as razões para eu não acreditar em nenhum.”

 

 

“Como eram belos, seus filhos! Com que força jogavam! Veja o Príncipe Herdeiro Salim, com catorze anos apenas, arqueiro já tão hábil que as regras do esporte estavam sendo reformadas para encaixá-lo. Ah, Murad, Daniyal, meus galopadores, o imperador pensou. Como ele os amava, e no entanto que vagabundos eles eram! Olhe os olhos deles: já estavam bêbados. Tinham onze e dez anos e já estavam bêbados, bêbados no comando de cavalos, os tolos. Ele havia dado instruções severas à criadagem, mas aqueles eram príncipes do sangue, e nenhum criado ousava contradizê-los.

Ele os mantinha espionados, claro, de forma que sabia tudo sobre o vício do ópio de Salim e seus feitos de lasciva perversão noturna. Talvez fosse compreensível que um sujeito jovem no primeiro jorro de sua potência desenvolvesse um gosto por sodomizar mulheres bonitas, mas logo seria preciso soprar uma palavra no ouvido dele, porque as bailarinas andavam reclamando que os traseiros doloridos, seus botões de romã vandalizados, dificultavam seu desempenho.”

 

 

“No centro da sala principal da Casa da Audiência Privada, havia uma árvore de arenito vermelho da qual pendia o que aos olhos não treinados do visitante Mogor dell’ Amore pareceu um imenso cacho de bananas de pedra estilizadas. Grandes “galhos” de pedra vermelha corriam do alto do tronco da árvore para os quatro cantos da sala. Do intervalo entre esses ramos pendiam dosséis de seda, bordados com ouro e prata; e debaixo dos dosséis e das bananas, de costas para o grosso tronco de pedra, estava o homem mais assustador do mundo (com uma exceção): um homem pequeno e adocicado de enorme intelecto e cintura, amado pelo imperador, odiado por rivais invejosos, um lisonjeador, adulador, devorador de quinze quilos de comida por dia, um homem capaz de mandar seus cozinheiros prepararem mil pratos diferentes para a refeição da noite, um homem para quem a onisciência não era uma fantasia, mas um requisito mínimo da vida.

Tratava-se de Abul Fazl, o homem que sabia tudo (exceto línguas estrangeiras e as muitas línguas incultas da índia, que lhe escapavam, todas, de forma que ele transmitia uma imagem incomum e monoglota na Babel multilinguística daquela corte). Historiador, espião-mestre, a mais brilhante das Nove Estrelas e segundo confidente mais próximo do homem mais assustador do mundo (sem exceção), Abul Fazl sabia a verdadeira história da criação do mundo, que tinha ouvido, dizia, dos próprios anjos e sabia também quanta forragem os cavalos dos estábulos imperiais podiam comer por dia e a receita aprovada de biryani e por que escravos haviam sido rebatizados de discípulos e a história dos judeus e a ordem das esferas celestiais e os Sete Graus do Pecado, as Nove Escolas, as Dezesseis Dificuldades, as Dezoito Ciências e as Quarenta e Duas Coisas Impuras. Ele era também notificado, através de sua rede de informantes, de cada uma das coisas que acontecia em cada língua dentro das muralhas de Fatehpur Sikri, todos os segredos sussurrados, todas as traições, todos os deleites, todas as promiscuidades, de forma que cada pessoa por trás daquelas muralhas estava também à sua mercê, ou à mercê de sua pena, que o rei Abdullah de Bokhara dissera que se devia temer mais que até a espada de Akbar, exceto apenas o homem mais assustador do mundo (sem exceção), que não tinha medo de ninguém, e que era, claro, o imperador Akbar, seu senhor.”

 

 

“Se o homem havia criado deus, então o homem podia incriá-lo também. Ou era possível uma criação escapar ao poder do criador? Podia deus, uma vez criado, ter se tornado impossível de destruir? Esses atritos adquiriam uma autonomia da vontade que os tornava imortais? O imperador não tinha as respostas, mas as próprias perguntas pareciam uma espécie de resposta.”

 

 

“Quanto aos livros, porém, Akbar havia mudado o protocolo. Segundo os velhos hábitos, qualquer livro que chegasse à presença imperial precisava ser lido por três comentadores diferentes e declarado livre de rebeldia, obscenidade e mentiras. “Em outras palavras”, o jovem rei dissera ao subir ao trono, “só podemos ler os livros mais chatos já escritos. Bom, isso não serve absolutamente.”

Hoje em dia todo tipo de livro era permitido, mas as resenhas de três comentadores eram apresentadas ao imperador antes de ele abri-los, por causa do abrangente, supremo protocolo referente à impropriedade da surpresa real.”

 

 

“A princesa Qara Köz instintivamente sabia o que fazer para se proteger e também para conquistar o coração dos homens, o que tantas vezes acabava sendo a mesma coisa.”

 

 

“‘Essa pode ser a maldição da raça humana’, respondeu Mogor. ‘Não que sejamos tão diferentes uns dos outros, mas que sejamos tão parecidos’.”

 

 

““E você, com seus três deuses, um carpinteiro, um pai e um espírito, e a mãe do carpinteiro em quarto lugar", perguntou o imperador a Mogor, com alguma irritação, “você dessa terra santa que enforca seus bispos e queima seus padres na fogueira, enquanto seu grande padre comanda um exército e age com a mesma brutalidade de qualquer general ou príncipe comum – qual das loucas religiões desta terra para você achou mais atraente? Ou elas são para você todas a mesma coisa em baixeza? Aos olhos do padre Acquaviva e do padre Monserrate, temos certeza, nós somos tudo o que o seu Argalia pensava que éramos, o que quer dizer porcos sem deus”.

“Senhor”, disse Mogor dell'Amore, com calma, “sinto atração pelos grandes panteões politeístas porque as histórias são melhores, mais numerosas, mais dramáticas, mais engraçadas, mais maravilhosas; e porque os deuses não nos dão bom exemplo, eles interferem, são vaidosos, petulantes e se comportam mal, o que, confesso, é bem atraente”.

“Temos a mesma sensação”, disse o imperador, retomando a compostura, “e nosso afeto por esses deuses devassos, zangados, brincalhões, amorosos é muito grande. Fundamos uma força de cento e um homens para contar e dar nome a todos, a cada divindade venerada no Hindustão, não os celebrados, altos deuses, mas todos os menores também, os pequenos espíritos de um lugar, de bosques sussurrantes ou murmurejantes regatos de montanha. Mandamos que deixassem suas casas e famílias e embarcassem numa viagem sem fim, uma viagem que só termina quando eles morrerem, porque a tarefa que lhes demos é impossível, e quando um homem assume o impossível ele viaja todo dia com a morte, aceita a jornada como uma purificação, uma expansão da alma, de forma que se transforma numa jornada não para os nomes dos deuses, mas para o próprio Deus. Eles mal começaram seus trabalhos e já recolheram um milhão de nomes. Que proliferação de divindade! Nós achamos que esta terra tem mais entidades sobrenaturais do que pessoas de carne e osso, e ficamos felizes de viver num mundo tão mágico. E no entanto temos de ser o que somos. Um milhão de deuses não são nossos deuses; a austera religião de nosso pai sempre será a nossa, assim como o credo do carpinteiro é a sua”.”

 

 

“Quando a solidão era expulsa, a pessoa ficava mais ela mesma, ou menos? A multidão realçava a identidade ou apagava?”

 

 

“Alessandra aperfeiçoara havia muito a arte de ver só o que ela queria, o que constituía uma conquista essencial se você pretendia ser um dos senhores do mundo e não sua vítima.”

 

 

“Contra Vlad III, o voivode de Wallachia – Vlad “Dracula”, o “diabo-dragão”, o Príncipe Empalador, Kazikli Bey –, nenhum poder comum conseguia triunfar. Começaram a dizer que o príncipe Vlad bebia o sangue de suas vítimas empaladas enquanto elas se retorciam nos espasmos da morte nas estacas, e que beber sangue vivo de homens e mulheres lhe dava um estranho poder sobre a morte. Ele não podia morrer. Ele não podia ser morto. Era também o bruto dos brutos. Cortava o nariz dos homens que matava e mandava para o príncipe da Hungria para se gabar de seu poder. Essas histórias faziam o exército temê-lo, e a marcha para Wallachia não foi feliz. Para encorajar os janízaros, o sultão distribuiu trinta mil moedas de ouro e disse aos homens que se eles vencessem ganhariam títulos de propriedades e recobrariam o uso de seus nomes. Vlad, o Diabo, já havia queimado toda a Bulgária e empalado vinte e cinco mil pessoas em estacas de madeira, mas suas forças eram menores que o exército otomano. Ele recuou e deixou terra arrasada em seu caminho, envenenou poços e abateu gado. Quando o exército do sultão se viu desolado sem comida nem água, o Rei Diabo realizou ataques de surpresa. Muitos soldados foram mortos e seus corpos espetados em varas pontudas. Então, Dracula retirou-se para Tirgoviste e o sultão declarou: “Será a última parada do diabo”.

Mas em Tirgoviste viram uma coisa terrível. Vinte mil homens, mulheres e crianças tinham sido empalados pelo diabo numa paliçada de estacas em torno da cidade, só para mostrar ao exército que avançava o que o esperava. Havia bebês agarrados a suas mães empaladas em cujos seios podres viam-se ninhos de corvos. Diante da visão da floresta de empalados, o sultão ficou enojado e retirou suas tropas desanimadas. Parecia que a campanha ia terminarem catástrofe, mas o herói deu um passo à frente com seu grupo leal. “Faremos o que é preciso fazer”, disse. Um mês depois, o herói retornou a Istambul com a cabeça do diabo num pote de mel. Afinal de contas, Dracula podia morrer, apesar dos rumores em contrário. Seu corpo havia sido empalado como tantos outros e deixado para os monges de Snagov enterrarem como quisessem.”

 

 

“Quando um homem não é querido, algo nele começa a morrer. Todo homem precisa que outros homens se voltem para ele de dia e que uma mulher se envolva em seus braços à noite.”

 

 

““Se acha que vou fazer isso”, disse Hamida Bano, “então essas histórias do estrangeiro realmente deixaram você de miolo mole”. O imperador olhou a mãe nos olhos. “Quando o imperador dá uma ordem”, disse ele, “o castigo para desobediência é a morte”.”

 

 

“(para que pudesse subir ao trono sem concorrência familiar) Selim caçou e estrangulou seus irmãos Ahmed, Korkud e Shahinshah, e matou os filhos deles também. A ordem foi restaurada e o risco de um golpe eliminado. Muitos anos depois, quando Argalia contou a Niccolò il Machia sobre esses feitos, ele os justificou dizendo: “Quando um príncipe toma o poder, ele precisa dar o pior de si imediatamente, porque depois disso cada ato seu parecerá a seus súditos uma melhoria no modo como ele começou”.”

 

 

“Não há herói que não descubra o vazio do heroísmo antes de morrer.”

 

 

“Não o mereciam. Aqueles rústicos o mereciam, mas em geral o povo merecia os cruéis príncipes que amava. A dor que percorrera seu corpo não era dor, porém conhecimento. Era uma dor educativa que rompia os últimos fragmentos de sua confiança nas pessoas. Argalia servira o povo e tinham lhe pagado com dor, naquele lugar subterrâneo sem luz, aquele lugar sem nome em que gente sem nome fazia coisas sem nome com corpos que eram também sem nome, porque nomes não importavam ali, apenas a dor importava, a dor seguida pela confissão, seguida pela morte. O povo havia desejado a sua morte, ou pelo menos não se importara se ele viveria ou morreria. Na cidade de Florença, que dera ao mundo a ideia do valor e da liberdade da alma humana individual, não tinham dado valor a ele nem se importado um mínimo com a liberdade de sua alma, tampouco com a integridade de seu corpo. Ele havia dedicado ao povo catorze anos de serviços honestos e honrados e não tinham dado importância a sua soberana vida individual, a seu direito humano de permanecer vivo. Pessoas assim deveriam ser afastadas. Eram incapazes de amor ou justiça e, portanto, não significavam nada. Gente assim não importava mais. Não eram primárias, mas secundárias. Só os déspotas importavam. O amor do povo era instável e inconstante, e desejar esse amor era loucura. Não existia amor. Existia apenas poder.”

 

 

“Depois que um homem esteve numa câmara de tortura, seus sentidos nunca mais esquecem certas coisas, a úmida escuridão, o frio fedor de excremento humano, os ratos, os gritos. Depois que um homem foi torturado, há uma parte dele que nunca para de sentir dor. O castigo conhecido como strappado estava entre os momentos mais torturantes que podiam ser infligidos a uma pessoa humana sem matá-la de uma vez. Os pulsos eram amarrados às costas, e a corda que os prendia passada numa polia no teto. Quando o homem era levantado do chão por aquela corda, a dor em seus ombros se transformava no mundo inteiro. Não apenas a cidade de Florença com seu rio, não apenas a Itália, mas toda a plenitude de Deus era apagada por essa dor.”

 

 

“Muito se falou em “sabedoria oriental”, o que Qara Köz descartou quando chegou a seus ouvidos. “Não existe nenhuma sabedoria particular no Oriente”, ela disse a Argalia. “Todos os seres humanos são tolos no mesmo grau”.”

Um comentário:

Sugestão de Livros disse...

Realmente esse autor faz uns questionamentos muito interessantes.