quinta-feira, 26 de junho de 2025

Estado e política em Marx (Parte III), de Emir Sader

Editora: Boitempo

Opinião: ★★★☆☆

ISBN: 978-85-7559-375-2

Páginas: 120

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Sinopse: Ver Parte I



Fica então caracterizado que a lógica mais importante que comanda a compreensão do papel do político no mundo moderno é a que distingue claramente entre os momentos históricos em que a burguesia luta pela sua hegemonia sobre as relações feudais e o momento a partir do qual o capitalismo se instaurou como estrutura social predominante. As formas de existência solicitadas ao político nesse segundo momento serão determinadas pelas condições em que aquela primeira etapa foi vencida. Em outras palavras: as condições de acumulação primitiva obtidas pela burguesia na luta contra os privilégios feudais solicitarão uma intervenção maior ou menor dos mecanismos políticos no novo esquema das relações de produção. As estruturas e o campo de ação possível no interior do qual se darão as condições de reprodução do capital serão, a partir dessas condições primitivas, o motor de compreensão dos fenômenos políticos, em geral, e do papel do Estado, em particular.

O político era assim, inicialmente, um instrumento através do qual a centralização do poder permitia a quebra dos privilégios locais do feudalismo, auxiliando a introdução das condições que possibilitaram o desenvolvimento capitalista. Porém, Marx distingue a ruptura com esse papel no momento em que a instauração das relações de produção capitalistas como predominantes introduz consigo a possibilidade de uma cisão vertical na luta entre as classes; a oposição específica que a burguesia enfrenta da parte da classe operária e dos camponeses solicita uma roupagem nova do Estado. Na luta contra os privilégios feudais, o simples caráter de órgão centralizador já o tornava instrumento apto, tendo em vista o caráter das relações sociais a enfrentar. Quando se trata de enfrentar as classes sociais já tipicamente capitalistas, o papel do Estado tem obrigatoriamente de mudar. A recomposição das classes, alterando o objeto da luta, implica a modificação do próprio instrumento. A imparcialidade buscada pelo Estado bonapartista visa a atender a esse novo caráter das relações de classe, demonstrando que as formas políticas clássicas do liberalismo não correspondiam à fase de cristalização do capitalismo, mas ao momento de sua ascensão e instauração. O Estado bonapartista corresponde à fase da hegemonia em que, ao reproduzir de forma multiplicada suas relações de produção, o capitalismo superou o Estado liberal. As bases materiais dessa superação – que a fizeram “ir da realidade aos livros, e não vice-versa” – foram a passagem da pequena à grande propriedade, e as contradições de classe mais agudas que isso envolve.

Ao buscarmos captar as transformações políticas que refletem alterações mais profundas da estrutura social – e que, portanto, não são apenas recomposições secundárias na vida social – pode-se dizer, genericamente, que Marx nos fornece as seguintes indicações mais importantes:

a. Há uma forma tradicional de apropriação do Estado pela burguesia, que é a república parlamentar; ela corresponde à fase de luta da burguesia pela instauração das relações capitalistas de produção, quando o inimigo enfrentado é o feudalismo ou o absolutismo. A estes se contrapõem os esquemas do liberalismo e da filosofia do século XVIII em geral.

b. Porém, uma vez vencida essa etapa, a república parlamentar cria um abismo entre as classes possuidoras – que conseguem representar-se de maneira multiforme junto ao Estado – e o restante da sociedade. “Se a república parlamentar, como dizia o senhor Thiers, era “a que menos as dividia” (as diversas frações da classe dominante), ela abria, por outro lado, um abismo entre essa classe e o corpo inteiro da sociedade situada fora de suas parcas fileiras”[62]. Isso significa que, se a república parlamentar preenche as necessidades de representar os diversos setores das classes dominantes, essa tarefa é atendida à custa do distanciamento do Estado em relação às outras camadas da sociedade. Ela torna o governo “uma assembleia das classes dominantes”, preocupando-se mais com as possíveis cisões verticais na sociedade, através de uma coordenação eficiente das classes no poder. Entretanto, na medida em que ela representa uma relação mais significativa entre as classes e o Estado, dá a este uma transparência imediata em termos de privilégios de classe. A representação política simultânea das classes dominantes e das outras classes sociais faz com que o Estado, sob essa forma, pague o preço do distanciamento em relação às outras classes sociais. Enquanto aparece essencialmente como representante das classes dominantes, o Estado não preenche todo o seu papel, já que a unidade política da sociedade não engloba todas as classes sociais. Pela aproximação muito estreita entre a estrutura econômica e social e o Estado, aquela própria estrutura se vê ameaçada pelo abismo social que se estabelece. Vemos assim como ao Estado não compete apenas o papel de coordenador das classes no poder, já que essa tarefa se cumpre plenamente na república parlamentar, e esta demonstra insuficiências em relação às funções do Estado. Existe, portanto, uma distância entre os interesses das classes dirigentes – enquanto classes – e as funções que a estrutura social capitalista solicita ao Estado.

c. Marx aponta o bonapartismo como uma forma historicamente superior de apropriação do Estado pelas classes dominantes. O bonapartismo é uma forma de governo que ressalta a relativa autonomia que o Estado preserva, dando-lhe possibilidade de surgir como verdadeiro unificador da sociedade como um todo; sua meta é realizar “a unidade de todas as classes, fazendo reviver para todos a ilusão da glória nacional”. O bonapartismo representa outra forma de apropriação do Estado. Já não se trata de uma integração das classes dominantes onde os interesses destas se compõem com os do Estado, sob a forma do corpo legislativo. O bonapartismo, ao contrário, enfatiza a tarefa de “unificação de todas as classes”. Para que esse papel propriamente político se realize, é necessária uma nova forma de apropriação do Estado pelas classes dominantes: uma dominação mediada por uma forma de governo com predominância do Executivo sobre o Legislativo, aparentemente acima do corpo social, fora da sociedade. Ele representa, assim, uma aparente abdicação do poder político pela burguesia, quando se trata apenas de abandonar a posse direta do Estado, o que não só não lhe retira o poder político na sociedade como se torna requisito de sua manutenção. O bonapartismo, de um lado, é uma necessidade a que a burguesia tem que se submeter. “A burguesia, pelo visto, não tinha outra alternativa senão eleger Bonaparte.”[63] “Na realidade, ele era a única forma de governo possível em um momento em que a burguesia já havia perdido e a classe operária ainda não havia adquirido a capacidade de governar a nação.”[64] Mas, de outro lado, essa necessidade é solicitada pela sua própria preservação no poder.

 

Como forma de governo, ele é fruto, em geral: 1) da incapacidade das classes no poder de assumir as funções políticas como representantes do conjunto da classe dominante e em nome da sociedade; 2) da divisão e equilíbrio relativo entre os grupos dominantes. Criam-se, assim, as condições tanto da personalização do poder quanto da aparição da imagem da soberania do Estado. Nessa situação, as “massas”, no seu sentido genérico, são a única “força social” possível de sustentação para um poder pessoal autônomo, e a única fonte possível de legitimidade para o próprio Estado. Eis por que a compreensão do caráter do governo bonapartista nos desloca obrigatoriamente para as relações de força entre as classes, conforme elas se dão nas relações gerais na sociedade.

O bonapartismo deve necessariamente ser uma forma dúbia de governo, pois sua pretensão é, ao mesmo tempo: 1) “salvar a classe operária destruindo o parlamentarismo e, com ele, a indisfarçada subserviência do governo às classes proprietárias”[65], bem como 2) “salvar as classes proprietárias sustentando sua supremacia econômica sobre a classe operária”[66]. Trata-se de um “governo de salvação nacional”, em que o termo salvação opera em dois sentidos diversos: salva-se a classe operária no plano político, subtraindo o Estado à submissão econômica direta da burguesia; salva-se a burguesia economicamente, à custa de uma integração política das outras classes na vida do Estado. As relações políticas são reafirmadas como as que fundamentam toda a relação social, com o político tomado sob a forma da abstração das modificações nas relações de homem a homem. Uma vez operada a “emancipação política” de todos os indivíduos, dissolvem-se sua divisão em classes, e todos se reencontram na qualidade de cidadãos, libertos e em condições de igualdade para se enfrentarem em situação idêntica no mercado.

Não só o político é tomado como o estruturador das relações entre os homens, como isso se dá pelo esvaziamento e a postergação das relações de produção, tomadas como outro nível. Justapõem-se as relações econômicas e políticas, estas determinando automaticamente a existência social dos indivíduos, e preparando suas condições de seres sociais. A dubiedade do bonapartismo vem do exercício de má-fé que pratica com as estruturas que o sustentam: ele joga com a passagem de um nível a outro – do econômico ao político, e vice-versa – afirmando, ao mesmo tempo, a sociedade como uma unidade bem estruturada. Pela afirmação da “autonomia” do político, como forma de solapá-la, criam-se as condições para a existência dissimulada do Estado.

A essência da possibilidade de “se dissimular” implica sempre a unidade de uma estrutura e de uma dupla atividade no seio da unidade, tendentes à manutenção e a não revelação. O Estado aparece como a unidade da estrutura, as relações políticas e econômicas como as atividades duplas no seio da unidade. Mantém relações complementares na sua essência, mas exclusivamente na sua atividade imediata. Ao Estado compete afirmar sua identidade conservando suas diferenças; é preciso afirmá-las reciprocamente para que, quando nos deparemos com uma, encontremo-nos bruscamente em face da outra. No funcionamento cotidiano do sistema, ele não poderia ter relações de aparência/essência, o que liquidaria seu caráter duplo, seu papel e, sobretudo, o papel do Estado.

Para que essa má-fé seja possível, é preciso que o princípio de identidade não seja um princípio constitutivo da estrutura. E a própria ideia de “representação política” implica sempre uma denúncia da dualidade: se eu me represento politicamente, não existo aí como presença real, direta; de outro lado, a “representação econômica” é impossível: aqui eu existo concreta e imediatamente como produto ou propriedade.

O bonapartismo reveste o Estado, assim, de um apropriamento político, realizando da maneira mais completa possível a dissociação entre o homem enquanto produtor privado e enquanto cidadão político abstrato, para a qual o Estado moderno foi criado. Se o capitalismo revela a verdadeira essência do Estado, ao dilacerar essas contradições ao máximo, é o bonapartismo que a realiza em seu mais alto grau, consagrando as tarefas específicas do político. O bonapartismo revela-se, assim, como a verdade histórica de todas as formas anteriores de Estado. E a burguesia pode ser a portadora dessa forma acabada de alienação política, porque o seu tipo próprio de exploração lhe é propício: “a burguesia não tem rei; a verdadeira forma do seu domínio é a república”. Vale dizer: seu domínio não precisa se dar pela posse direta do Estado; a própria forma de constituição das relações sociais de produção – da qual o Estado é a expressão – reserva-lhe o papel hegemônico. Por isso, a burguesia não apenas é obrigada – em determinados momentos –, mas pode se valer de um governo como o bonapartismo, forma política anônima em termos de classe.

 

d. O Estado revela, então, que só existe sob a forma de dissimulação, porque representa a unidade fictícia de uma multiplicidade. Representa a sociedade, a nação, os interesses gerais dos indivíduos, abstrações intelectuais sem determinações reais. É o Estado de uma sociedade dividida em classes; isto é, ainda que não seja apropriado diretamente pela classe hegemônica na sociedade, sua própria existência introduz uma forma de unidade, de harmonia, de ordem, que dissimula as relações entre as classes no processo de produção. As definições em torno do Estado tornam-se, pois, o reflexo seguro da posição das classes em relação à sociedade burguesa. Porque o Estado não se mantém, ou ele existe, e este é um fator suficiente para seu reforçamento, ou ele tem sua existência solapada por alguma forma de negação de todas as relações capitalistas. Como sua existência está comprometida com essas relações de produção, a apropriação do Estado – tal como ele existe sob o capitalismo – pela classe operária não faz sentido: “a classe operária não pode simplesmente se apossar da máquina do Estado tal como ela se apresenta e dela servir-se para seus próprios fins”[67]. Como representante dos interesses gerais reais da sociedade, a classe operária transforma a tomada do Estado, pois no mesmo ato mina a própria necessidade que até aqui sustentara e dera vida ao Estado: isto é, “o primeiro ato no qual o Estado aparecerá como o representante real de toda a sociedade – a conversão dos meios de produção em propriedade social – será seu último ato independente enquanto Estado”68. Apropriação do Estado pela classe operária significa, assim, obrigatoriamente, apropriação dos meios de produção pela sociedade como um todo. Como o Estado é, ele mesmo, o autor desse ato, durante o período de ditadura do proletariado, ele não é abolido, mas prepara sua autodissolução.

 

O Estado pode passar de instrumento na luta contra os privilégios feudais a instrumento a serviço do capital contra o trabalho, porque sua determinação essencial foi mantida: o caráter de organismo de uma unidade fictícia, formal, da sociedade. Mas, como instrumento particular de dominação, ele é incompatível com uma classe cujos interesses particulares coincidem com os interesses gerais da sociedade. A primeira forma de governo da classe operária preocupou-se, antes de mais nada, por isso, com a apropriação e destruição dessa máquina. (...)

 

e. O bonapartismo, como forma superior de apropriação do Estado pela burguesia, em que o caráter do Estado de unificador acima do corpo social é desenvolvido ao extremo, revela-se como a verdade do Estado burguês. O papel a que o Estado como instituição foi outorgado dentro da estrutura capitalista é desempenhado o mais rigorosamente possível pelo Estado bonapartista. É ele quem melhor concilia o favorecimento econômico direto das classes possuidoras com a manutenção da ordem, requisito indispensável do funcionamento das relações burguesas de produção.

 

Por sua vez, para Marx, o Estado capitalista é o que realiza da maneira mais profunda as tarefas que o Estado esboçou como suas através dos diferentes tipos de sociedade. É a anatomia do Estado moderno que serve de chave para as formas anteriores de Estado. Porque é aqui que se delineia mais claramente um objeto definido para o político como nível autônomo de relações sociais. Na medida em que eleva às suas culminâncias à dissociação entre o papel privado do indivíduo e seu comportamento como cidadãos políticos, distingue mais nitidamente do que qualquer sociedade anterior, a comunidade política se constituindo autonomamente. Vimos como isso se dá com o esvaziamento do peso das relações políticas dentro da estrutura capitalista e, assim, como a realização da política – através de sua autonomização – é o mesmo movimento de denúncia de sua efetividade. O Estado capitalista e as relações políticas dentro do funcionamento da estrutura capitalista são as formas políticas desenvolvidas que servem de chave para a explicação do nível político em todos os planos. O momento em que eles amadurecem suficientemente, a ponto de colocarem – através da Comuna de Paris – sua dissolução na ordem do dia, é aquele em que se revela o segredo do Estado e da política. Aqui, o Estado e a política são a verdade do Estado e da política em todas as formas sociais anteriores; o momento de sua destruição é o momento mais profundo de sua verdade.

É nessa direção que devemos tentar esboçar a revisão que o marxismo propõe da filosofia política anterior. Da mesma forma que a análise do capital é, ao mesmo tempo, a crítica da economia política, a análise do nível político nos dá as coordenadas para a compreensão, em Marx, do papel da filosofia política: seus limites, seus fundamentos e sua ideologia.”

[62] Karl Marx, A guerra civil na França, cit., p. 55.

[63] Idem, O 18 de brumário de Luís Bonaparte, cit., p. 150.

[64] Idem, A guerra civil na Franca, cit. p. 56.

[65] Ibidem, p. 56.

[66] Idem.

[67] Ibidem, p. 54.

[68] Friedrich Engels, Anti-Duhring (Paris, Editions Sociales, 1966), p. 196.

 

 

ESTADO E CLASSES

O interesse que Marx dispensa ao bonapartismo justifica-se, assim, pelo fato de ele conter em si, como fenômeno político, os segredos mais importantes à compreensão do político como nível de relações sociais. O Estado bonapartista desempenha esse papel ao mesmo tempo em que é a forma do Estado que melhor cumpre as tarefas que favorecem a burguesia. E, no entanto, aparece como entidade acima das classes sociais. Ele consegue, simultaneamente, cristalizar sua dependência das relações de produção, afirmando sua autonomia. Neste jogo entre as relações de produção e o político, a dependência e a autonomia, reside o caráter dissimulador que define o papel do Estado bonapartista. O segredo da autonomia da política revela-se residir na sua dependência, na sua autonomia, possibilitada pelo esvaziamento do político no capitalismo. Para que se entenda como o Estado pode assumir, ao mesmo tempo, esses papéis contraditórios, é preciso esclarecer tanto o caráter de dependência como o de autonomia que ele assume, ou seja, tanto a forma do Estado de se relacionar com as classes dominantes como a ideia e a força de poder político.

A interpretação corrente do caráter de classe que Marx atribui ao Estado toma as formas simplificadas, de uso programático, de Marx, Engels e Lenin, pelos conceitos teóricos que sustentam o caráter classista do Estado. Parte-se da formulação de que “o Estado é o instrumento da vontade da classe dominante”, omitindo-se todas as mediações que esclarecem o lugar social preciso dessa definição. Os múltiplos aspectos do poder do Estado encontrariam seu unificador na vontade da classe dominante. Assim, essa interpretação pressupõe:

a. a existência de uma vontade unificada que exerça o poder do Estado como seu instrumento;

b. a ausência de frações distintas nessa unidade, que possibilitem diversidade e conflitos dentro da classe dominante;

c. a manipulação da superestrutura política como instrumento sem consistência própria e imediatamente amoldável aos interesses da classe dominante.

 

Nessa forma voluntarista de conceber a ação do Estado, toma-se a dominação em última instância do econômico sem quaisquer mediações: a classe dominante subjuga à sua vontade os mecanismos da estrutura capitalista. É a partir desse polo de referência que se iluminariam todas as relações sociais. A própria ideologia torna-se assim impostura, uma simples mentira, de que se vale essa classe para cristalizar seu domínio social.

Essa visão unilateral reforça a relação entre o Estado e a classe dominante, em detrimento das relações que o Estado mantém com o conjunto da sociedade. Quando esse papel é relegado, o caráter específico do Estado e da política se esconde; o papel que possuem de referência a toda a sociedade e que justifica sua existência social. Enquanto as relações de produção privatizam os indivíduos, desligando a força de trabalho do seu produto e, dessa forma, atribuindo-lhes funções que não se ligam ao destino geral da sociedade, o político visa traduzir essas relações privadas sob a forma de “interesses gerais” da sociedade. A relação que o Estado mantém com a sociedade não se entrosa com a que ele mantém com as classes nessa visão; elas se hierarquizam de maneira rígida, em que a única relação real é a segunda, da qual a primeira é apenas uma aparência enganosa. Então, o plano político fica reduzido, simplesmente, a uma visão falsa, e a ideologia, a uma mentira.

Não se compreende, a partir daí, a diferença específica com que o bonapartismo reveste o Estado, distinguindo-se das outras formas de governo; não se explica como o nível político possa ter uma mecânica própria que constitua um governo diante do qual todas as classes parecem igualmente se curvar. Quando nos aprofundamos nessa mecânica própria ao político é que percebemos como são incompatíveis entre si a compreensão do bonapartismo e a concepção do Estado meramente como vontade da classe dominante. Se o Estado bonapartista não conseguisse se revestir aos olhos dos proprietários rurais, da classe operária e da pequena burguesia urbana como seu salvador, por retirar o Estado do domínio direto das classes possuidoras, ele não poderia se apresentar como o “governo de união nacional”, “representante dos interesses gerais da sociedade”. O Estado bonapartista realça exatamente as relações do Estado com a nação, a sociedade, a generalidade, procurando encarná-las. Se ele pode, ao mesmo tempo, ser o melhor governo possível para a burguesia, embora apareça como governo de todas as classes e de nenhuma, é porque essa “nação” e essa “generalidade” são constituídas de maneira viciada. O Estado se vale do apoio de uma camada social que não se constitui como classe – os camponeses, a maioria da nação –, porém que ocupa um lugar determinado na produção para que possa fazer valer seus interesses; isto é, a nação, como soma de indivíduos, não reduz os mecanismos das relações de produção, mas se constitui pela posição dos homens desligados de seu papel nessas relações. É esse caráter viciado que liga indissoluvelmente o conceito de nação à ideologia burguesa, e possibilita a essa classe um governo do tipo bonapartista. Omitir essa mediação é não entender as distinções que o bonapartismo possui em relação aos outros tipos de Estado, e, mais ainda, negar o papel próprio do Estado e do político. É não atribuir concreção real alguma às formas ideológicas.

A tarefa a que Marx se propõe nas suas análises do bonapartismo é a de desmascarar o caráter de classe de um governo que se pretende estar acima dos interesses privados. Porém, a demonstração de Marx é tanto mais evidente quanto ele justifica ao longo dela como a aparência de Estado de todas as classes é uma ilusão, mas uma ilusão bem fundada, que surge efetivamente como a verdade do sistema para quem não assume o ponto de vista da produção. A partir daqui é que a intenção de desmascarar as ideologias se prolonga na compreensão de suas raízes materiais. É preciso ressaltar, pois, que o Estado bonapartista não rompe seus laços com os interesses das classes dominantes, antes é solicitado por eles; e que, de resto, seu próprio caráter de imposição da “ordem” já o revela. No entanto, sua diferença em relação à república parlamentar, por exemplo, advém do fato de ele dissimular essas relações através da sua tradução em nome dos “interesses gerais da sociedade”, apoiando-se no caráter dúbio dos camponeses, defensores e vítimas da propriedade privada. Se o governo bonapartista é dúbio e dissimulador, é porque ele encontra as raízes que tornam possível esse jogo nas próprias relações entre as classes sociais, bem como na oscilação entre as relações de produção e o dever-ser social, expresso no nível da superestrutura.

O Estado bonapartista é um Estado de classe, para Marx, bem como todos os tipos possíveis de Estado. Porém, Estado de classe quer dizer Estado de uma sociedade dividida em classes; nesta se encontram as raízes do seu caráter classista, como também do fato da cultura, do direito etc. marcarem-se pela ideologia. A expressão “instrumento das classes dominantes” só tem sentido quando explicita dessa forma. Porque não se identificam sumariamente “interesses das classes dominantes” e comportamento do Estado; este representa o produto de uma relação com a totalidade das relações sociais, isto é, o Estado representa a relação dos interesses das classes dominantes com os das outras classes sociais. Dessa relação, extrai-se sua forma de existência. Ele existe por causa da divisão da sociedade, e as formas de existência pelas quais passa ganham daí também sua justificação, relacionando-se com o grau de desenvolvimento das contradições de classes na sociedade. Assim, quando Marx diz que o Estado é instrumento das classes dominantes, não está afirmando que é a posse do Estado que lhe dá esse caráter, mas sim que, porque são classes dominantes, o Estado, enquanto preserva as relações sociais que lhes favorecem, funciona como instrumento seu.”

 

 

PODER POLÍTICO E POSSE DO ESTADO

A constatação do caráter classista do bonapartismo só ganha consistência, para Marx, quando se explicitam as formas econômicas e sociais que o tornam possível, e que também se responsabilizam por sua dissimulação. Essas é que justificam a possibilidade de dissociação básica de que Marx se vale para explicar o bonapartismo, entre poder político e posse do Estado. O surgimento do bonapartismo representou o esmagamento da representação política da burguesia; porém, esse governo lhe interessava na medida em que esse esmagamento era o requisito para o reforçamento do seu poder social.

Veremos como a responsabilidade disso repousa no fato de que a estrutura capitalista atribui ao plano político o papel de organizar os indivíduos, abstraindo-se da relação que mantenham com os meios de produção na sociedade. Essa tarefa procura trazer implícita a ideia de que esta é a relação determinante socialmente quanto à existência coletiva dos homens. Entretanto, como vimos, a redução a este contato – ao mecanismo de trocas – não elimina a participação dos indivíduos nas relações de produção, e nem a sintetiza. Essas relações continuam a existir, e, no caso do capitalismo, também a dar fundamento à divisão da sociedade em classes. A tradução das relações econômicas em luta de classes responde pela continuação da luta política na sociedade como fenômeno que a afeta globalmente, encontrando no plano mesmo da produção suas diretrizes iniciais. O fato de a divisão em classes ter seu fundamento na produção faz com que as lutas políticas tenham destino paralelo à importância que esse plano possui dentro da estrutura social capitalista. Enquanto a luta social em que se empenhava a burguesia se voltava contra os senhores feudais, o seu centro mesmo era dado no Estado, cuja posse e reforçamento pela burguesia determinavam já imediatamente um golpe de morte no poderio econômico e social do feudalismo.

A passagem ao capitalismo como sistema de relações sociais hegemônico traz consigo a separação que deseja imprimir entre a economia e a política. Este nível pretende as relações sociais que os homens mantêm entre si, relegando as relações econômicas para o círculo do comportamento particular dos indivíduos. Na França, por exemplo, como o ano 1848 representa historicamente a implantação definitiva do capitalismo, com suas relações de produção e estruturação política adquirindo hegemonia indiscutida, o governo bonapartista procura representar esse desligamento entre a estrutura econômica e a ação política das classes sociais. Assim, o liberalismo, modelo clássico da democracia burguesa, vive o tempo da luta contra o feudalismo e começa a agonizar quando as cisões horizontais da sociedade passam a predominar. A inadaptação da república parlamentar aos interesses da burguesia francesa vale como atestado dessa falência prematura do liberalismo.

A verdade da separação entre o econômico e o político no capitalismo é a mesma do divórcio entre a produção e a circulação; isto é, tem na ideologia sua origem e sustentação. Enquanto atribui esse papel ao político, o capitalismo o esvazia de sentido, relegando-o ao nível da superestrutura. Porém, como as relações de produção continuam a reproduzir o antagonismo entre as classes, o político propaga-se por toda a estrutura, em um rumo exatamente oposto ao da tentativa de sua circunscrição. A separação radical entre a força de trabalho e os meios de produção serve de fundamento à tentativa da ideologia burguesa de desconhecer a relação que os homens mantêm com esses meios organizando-os apenas enquanto indivíduos. Contudo, ao mesmo tempo, essa separação radicaliza as contradições de classe e, assim, as lutas políticas entre as classes invadem todos os níveis da estrutura social. Em suma, centrar a vida política em torno da posse do Estado é considerar o político ainda dentro do plano que a estrutura capitalista pretende lhe reservar. Porém, quando Marx se propõe a uma ação política contra o capitalismo, ele está tomando o político na mesma extensão que possua a divisão em classes na sociedade: isto é, como estigma que perpassa todas as relações capitalistas. O poder político vive, então, para além da posse do Estado, encontrando suas raízes na própria forma de se organizar a sociedade, o que inclui a posse do Estado como momento importante, mas sem se limitar a ela, pois não a tem como fundamento.”

 

 

A generalização das trocas, possibilitando a organização da produção em função do mercado, não teve desenvolvimento suficiente para que, aos olhos de Maquiavel, Hobbes, Locke e Rousseau, fosse possível constatar a novidade radical do capitalismo: a hegemonia do valor de troca sobre o valor de uso, cuja diferenciação e constatação será um dos marcos na distinção entre ideologia e ciência no mundo moderno. Essa indistinção, que faz a economia política definir seu objeto como sendo as interações entre homem e natureza, encontra seu correspondente na filosofia política quando ela apreende apenas um dos aspectos da contradição capitalista: a liberação dos homens em relação aos meios de produção, sem fazê-la acompanhar da divisão em classes implícita, e de suas consequências. Somente na sequência desse raciocínio é que seria possível colocar em xeque a realidade do esquema Estado/sociedade civil. A separação entre o trabalhador direto e os meios de produção vale – quando tomada isoladamente – como fundamento da consideração da economia como ciência das relações entre homem/natureza, com a consequente autonomia das relações homem/homem, como são tomadas pela política.”

 

 

“Não estamos nos movendo fora dos limites a que Rousseau se propõe, quando tocamos em um argumento de funcionamento prático do sistema, porque esse argumento conta para o seu pensamento. Ele chega a ser considerado como o responsável pelo fim moral dos Estados: “No instante em que o governo usurpa a soberania, o pacto social se rompe; e todos os simples cidadãos, recolocados de direito em sua liberdade natural, são forçados, mas não obrigados, a obedecer”[90]. Assim, o domínio do Executivo sobre o Legislativo – do fato sobre a vontade geral – é retomado em uma sociedade política legitimamente constituída; só que, agora, ele ressurge sob a forma institucionalizada, materializada em organismos propriamente políticos: o Executivo e o Legislativo. Se, em Hobbes, o conflito entre a vaidade e o medo da morte violenta traduz-se na sociedade política sob a forma dos instintos particulares e do Leviatã, isso não se dá com as mesmas dificuldades, já que não se põe, para ele, o problema de um corpo político legítimo, mas apenas o de uma coletividade possível. Por outro lado, em Rousseau, a sociedade política legitimada pelo Contrato Social, reproduzindo os conflitos que a antecederam, denuncia como insuficiente a resolução desses conflitos através do plano político, que deixa de se constituir no lugar por excelência da emancipação humana.

As soluções de Rousseau buscam uma conciliação frustrada desde a colocação inicial da questão. Tratar-se-ia de duas ordens de medidas:

a. assembleias fixas e periódicas do Legislativo;

b. submissão à votação, em cada abertura das sessões dessas assembleias, de duas proposições, submetidas separadamente ao povo: revogação, ou não, da forma de governo, e continuação, ou não, da delegação de poderes a seus ocupantes.

 

A própria limitação das medidas restritivas propostas aponta para as fronteiras demasiado estreitas em que se move quem não coloca em xeque a própria validade da existência de um nível de relações humanas propriamente políticas. Pelo fato de ser o momento mais marcante da filosofia política clássica e, com isso, de ter elevado ao máximo o lugar das relações políticas na emancipação humana, Rousseau é quem se dilacera mais profundamente com esses limites. Aprofundando o seu projeto, aproxima-se mais do que qualquer pensador anterior da verdade do político. Depois dele, o grande passo da filosofia política, que encaminharia as soluções dessas questões, já não estaria nas mãos dos intelectuais, mas seria dado exatamente no plano da prática política, em que se agudizavam as dificuldades de Rousseau. O fim dessa fase da filosofia política é marcado pela Comuna de Paris. E, como veremos, não será gratuitamente que uma de suas medidas definidoras será a concentração, em suas mãos, tanto do Poder Legislativo quanto do Executivo; tanto da vontade quanto da força. Destruindo-se essa dualidade, que Rousseau toma como um “dado natural” de toda ação humana, os fundamentos da vida política estarão colocados em jogo.

O máximo de consciência possível da filosofia política, dentro do esquema Estado/sociedade civil, não lhe dava o suficiente para se desvencilhar das antinomias em que se debatia. Sua retomada pelo jovem Marx representou, com seu aprofundamento, a denúncia de suas insuficiências.”

[90] Jean-Jacques Rousseau, Obras (Porto Alegre, Globo, 1958, v. II), p. 152.

Estado e política em Marx (Parte II), de Emir Sader

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Opinião: ★★★☆☆

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Sinopse: Ver Parte I



A mercadoria, como ponto de partida da análise de Marx, desempenhará papel estratégico indispensável: sendo ao mesmo tempo forma elementar da riqueza e denúncia do conceito desta em seus limites empíricos, em sua falsa concreção, a posição da mercadoria como ponto de partida indica-nos para os dois planos em que caminhará O capital: o da estrutura lógica do capital, das leis centrais que o comandam, e o das formas históricas de que se revestem as categorias que sustentam essa estrutura. O papel primeiro da ciência consiste na distinção e tradução das formas de aparição dessas categorias, na estrutura fundamental que as gerou, já que seu lugar é possibilitado pela não coincidência entre essas formas e a essência do processo. A tradução da riqueza em mercadorias nos leva, assim, de um plano a outro, esvaziando e preenchendo o conceito de riqueza: sua vacuidade vem de sua diluição no “imenso arsenal de mercadorias”, que ao mesmo tempo lhe determina um conteúdo. Sua vida, portanto, como forma de aparição dos produtos no capitalismo, é determinada por todas as coordenadas do sistema de produção que tem na mercadoria seu definidor; a riqueza pode nos aparecer enquanto tal, autônoma, porque sintetiza, por detrás de si, na sua heteronomia em relação às categorias do capital, as leis básicas que determinam este sistema social. Aqui reside o centro motor de determinações que atrai as análises de Marx.

Obedecendo às normas traçadas nos Grundrisse, o primeiro passo procura desmistificar o “real imediato”, o “falsamente concreto”, a “totalidade viva”, para abrir campo ao objeto real e possibilitar o surgimento da ciência. Descortina-se paralelamente o plano da ideologia e o do conhecimento científico. Noções como população, nação, Estado – sintomaticamente extraídas do vocabulário das análises políticas – tornam-se inócuas como ponto de partida, porque não designam nada como mecanismo real da sociedade moderna, mas apenas dão nome a regiões desse real, compostas de maneira arbitrária. As análises de O capital são particularmente claras a esse respeito, porque distinguem as leis que comandam o processo social, dos graus de desenvolvimento histórico em que as diversas formas de sociedade se encontram.

Quando se dirige às noções elementares com o capitalismo como ponto de partida, Marx situa-se diretamente no plano das relações sociais de produção, distanciando-se da problemática política que partia das relações de homem a homem como centro e fundamento da vida social. Esse deslocamento de perspectiva obrigará a consideração da política em dois níveis dentro do marxismo: seu lugar dentro das condições estipuladas em O capital para as relações de produção capitalistas, e o papel que desempenham as formações sociais concretas, que nunca correspondem precisamente àqueles requisitos.

Contudo, em ambos os planos, a ruptura das concepções anteriores sobre o objeto da política é total. O nome – política – sobreviverá para designar a mesma preocupação com o poder na sociedade; porém, esta ganhará feições diversas, a ponto de deslocar o significado da noção de poder social. Não haverá um objeto propriamente político: são as próprias relações sociais permeadas pela estrutura de classe que determinam imediatamente a presença do político, refletindo os mecanismos do poder na sociedade, à medida que são extensões do roteiro do capital. Neste plano, o político apresenta-se sob formas similares tanto no nível da análise do modo de produção capitalista como nas suas ocorrências concretas. A extensão dos limites políticos neste último plano ocorre a partir das questões que se põem a respeito das passagens de um modo de produção a outro: insuficiência de criação das condições de acumulação primitiva, como exemplo de uma ordem de questões, e problemas de esgotamento de mercado, de outro.

Esse caráter estruturado do capitalismo como objetivo único – ainda que com ritmos distintos de desenvolvimento em seu interior – torna-se menos visível nas análises mais especificamente políticas de Marx, em que a distinção salientada entre a gênese histórica e a história contemporânea do sistema parece não vigorar. A passagem das análises econômicas para O 18 de brumário pode ser tomada como ida daquela estrutura às suas formas de existência mais imediatas, empíricas, cuja análise já não tomasse como objetivo o capitalismo enquanto sistema, mas seus modos de se representar históricos – um nível meramente aparente, seu lugar definido no plano das relações de produção.

Essa desvalorização da política parece ganhar sustentação no fato de que, se o objeto de O capital não é a Inglaterra, mas as leis centrais do capitalismo, O 18 de brumário visa à vida política francesa diretamente como preocupação. Se a determinação do objeto da política obedecesse a critérios similares aos da análise do capitalismo, ela deveria recair não sobre uma ocorrência particular da vida política burguesa, mas sobre o liberalismo – esquema proposto politicamente pela ascensão burguesa.

Entretanto, partir do liberalismo, para Marx, é um procedimento ideológico que esconde as contradições em que ele mesmo se debate: para o liberalismo, o século XVIII marca, com a sociedade burguesa, a independência dos homens em relação às formações sociais em que vivem; elas passam a se apresentar aos indivíduos “como simples meio para seus fins privados, como necessidade exterior”[26]. Porém, a produção, do ponto de vista do indivíduo isolado, pressupõe o mais alto grau de desenvolvimento – e integração – social já conseguido, e, portanto, a sociedade burguesa produz a um só tempo o animal político da maneira mais radical no plano do desenvolvimento social, e o indivíduo isolado, liberado dos mecanismos sociais, na sua forma de autoconsciência. O liberalismo é, assim, produto de uma estrutura social que socializa, mais do que qualquer outra anterior, o indivíduo no nível da produção, a que mais lhe possibilita uma consciência autônoma, enquanto sujeito consumidor. Na forma particular de a ideologia refletir a dissociação entre a produção coletiva e a apropriação privada dentro do capitalismo, o liberalismo não reproduz os dois membros, mas apenas o caráter privado e aparentemente arbitrário do consumo.

O liberalismo não pode, em consequência, servir de ponto de partida, porque ele não testemunha as duas faces do mesmo fenômeno; sua capacidade explicativa depende da exteriorização dos mecanismos sociais, para que os indivíduos surjam independentes. Ele se torna impotente para dar conta dos dois momentos simultâneos do processo, porque de sua separação ele haure sua vida, seu significado. Partir do liberalismo é, portanto, já se instalar no campo cindido dessas duas figuras, deixando pra trás os fundamentos do mecanismo que as gerou enquanto fisionomias de um mesmo corpo. Como todo conceito ideológico, ele diz algo sobre o processo real, sem conseguir dizer nada sobre si mesmo; descreve situações reais, sem acompanhar sua constituição e seu desenvolvimento.

As características que definem o capitalismo – modo de produção fundado na troca – não nos autorizam a estipular uma forma política definida que o acompanhe. A instauração das relações de produção capitalistas solicita determinadas condições exteriores a essas relações, arroladas por Marx como os fatores da “acumulação primitiva do capital”; mas essas formas de apropriação não econômicas são solicitadas apenas como condições de instalação do sistema, não se incorporando ao seu mecanismo normal de reprodução. O mesmo ocorre com a unificação da sociedade política em torno do Estado. Uma vez dadas as condições estipuladas por Marx em O capital para o funcionamento do capitalismo, essas condições políticas não necessitariam mais intervir, uma vez que foi aberto o espaço para a produção e reprodução das relações capitalistas.

As análises políticas concretas enfrentam, entretanto, um objeto distinto: as conjunturas particulares nunca reproduzem as condições estritas de um único modo de produção, compondo sempre uma conjunção de alguns deles. Isso faz com que as observações feitas acima sirvam apenas como fio condutor para as análises concretas. Por exemplo: a centralização do Estado cria as condições de unificação da estrutura social que as relações capitalistas requerem. Sua intervenção posterior dependerá das condições de reprodução daquelas relações, o que é função do grau de desenvolvimento da estrutura econômica de cada país e, antes disso, da realização das condições de acumulação primitiva. As situações políticas terão, portanto, a mesma diversidade que os graus diferentes de desenvolvimento que a estrutura capitalista produz. Por isso, as análises políticas de Marx visam sempre ao Estado sob as formas de existência anômalas em relação ao liberalismo.”

[26] Karl Marx, Grundrisse, cit., p. 40.

 

 

Na monarquia de julho, o Estado francês era apropriado exclusivamente por um dos setores da burguesia francesa – a aristocracia financeira. Era a forma de espoliação que acionava o capital financeiro sem obrigatoriamente se ligar à revolução das forças produtivas que definia a relação entre essa classe e o Estado. “A monarquia de julho nada mais foi que uma companhia de ações destinada à exploração do tesouro nacional da França, cujos dividendos eram distribuídos entre os ministros, as câmaras, 240 mil eleitores e seus acólitos. Luís Filipe era o diretor dessa companhia – era Robert Macaire sentado no trono”[28]. A essa apropriação do Estado só poderia corresponder uma forma de governo monárquico, já que não se produzem as condições materiais que possibilitem ao Estado a pretensão de se colocar à cabeça da burguesia como um todo. Representa o setor financeiro tomado isoladamente: sua forma de existência assegura-se apenas através da reprodução dos juros do capital, que, neste caso, sequer implica um desenvolvimento deste, mas um entesouramento nas mãos do Estado, através da elevação dos impostos. O Estado funcionava como catalisador da poupança social, que revestia em função do capital financeiro; se a função de acionador do mecanismo de acumulação de capital era desempenhada pelo Estado, o resultado dessa acumulação era enviesado para bolsos que não arrastavam na sua expansão outros setores da sociedade. Os privilégios políticos abertos da monarquia representavam esse caráter do Estado. A burguesia industrial – e, consequentemente, os setores do comércio – constituíam-se na oposição oficial, que se tornava muito mais aguda quanto maior era o domínio que detinha sobre a classe operária. Esta, a pequena burguesia e os camponeses estavam fora do poder político.

Esse era o quadro imediatamente anterior à Revolução de 1848. Embora as relações de produção capitalistas estivessem já em grau avançado de desenvolvimento, a ponto de os interesses da burguesia industrial francesa já carregarem atrás de si, por extensão, os interesses dos demais setores da sociedade, a apropriação do Estado não correspondia ainda a essa situação. A dependência crescente do Estado em relação à aristocracia financeira, pelos empréstimos que esta lhe fazia, a juros altos, criava um mecanismo socialmente caro – agravado pelo seu papel improdutivo – que era arcado por todas as demais classes sociais, cada uma à sua forma, material e ideologicamente. “Comércio, indústria, agricultura, navegação e os interesses dos burgueses industriais estavam forçosamente ameaçados e prejudicados sob esse sistema.”[29] O setor industrial, responsável mais direto pela necessidade que leva a burguesia a passar por representante geral da sociedade, pelo incremento da produção, tornava-se apêndice do capital financeiro, inversamente às solicitações do capital. A crise política não tinha suas raízes na questão formal de que havia uma distância entre o grau do desenvolvimento das relações de produção e a apropriação do Estado, ou de que apenas uma classe social exercia essa apropriação. A questão de fundo, que a cada momento determina a existência de uma crise política, advém do caráter da classe social que se apropria do Estado, em oposição ou, ao menos, em dissonância com as relações de produção vigentes. Assim, se nessa situação uma crise política interna à sociedade capitalista se esboçava, a apropriação mais tarde do Estado em nome dos camponeses tornou-se compatível com a dominação burguesa, devido à impossibilidade de um programa específico que atendesse aos interesses dessa camada social. Por sua vez, se a apropriação do Estado se faz pela classe operária, não só esse programa se torna possível como exclusivo em relação aos interesses burgueses em geral, colocando em xeque a sobrevivência das relações de produção capitalistas.

Nessa conjuntura concreta, as dificuldades que o domínio da aristocracia financeira colocava à expansão da revolução burguesa arrastavam para a oposição ao governo a maioria da população. Estavam dadas as condições para uma aliança geral contra o governo. Entretanto, o caráter dessas condições era heterogêneo em relação aos setores que compunham tal aliança. O segredo dessa unidade era exclusivamente negativo: sua polarização era dada por um eixo exterior – a monarquia de julho – visado de forma diferente por cada setor social, cujo móvel era distinto. Da parte dos burgueses industriais, tratava-se dos seus “interesses ameaçados”, pois “comércio, indústria, agricultura, navegação” estavam em constante perigo; através da ameaça a essas atividades, o governo tinha igualmente contra si os operários, na luta em defesa de seus empregos. A participação da pequena burguesia fazia-se menos em torno de interesses materiais comuns do que pela “indignação” com o saque que se praticava ao Estado; finalmente, a massa do povo francês, o campesinato, rebelava-se contra os altos impostos, particularmente contra aquele que era a espinha dorsal da arrecadação estatal: o imposto sobre o vinho.

Pôde-se constituir assim uma frente que possuía em comum um objetivo político imediato: a derrubada do governo, mas essa frente não se sustentava em condições econômicas comuns, para que se produzisse um programa positivo comum. Dos setores componentes dessa frente, apenas dois são classes sociais cujos interesses materiais possibilitam um programa político que torne exequível esta frente: a burguesia industrial e o operariado. A classe operária estava ainda insuficientemente organizada, e os outros setores sociais se definem pela heteronomia em relação a essas classes, de tal forma que o campo ficou livre para o acesso da burguesia industrial ao Estado. O apoio generalizado da população, somado às condições materiais propícias – praga das batatas e más colheitas de 1845 e 1846, que propiciaram elevação maior ainda do custo de vida em 1847, e a crise geral do comércio e da indústria na Inglaterra, tendo como reflexo no continente uma avalanche de falências da burguesia e dos pequenos comerciantes – logrou a derrubada da monarquia de julho e a instalação do novo governo.

Essa distinção entre objetivos políticos comuns – responsáveis pela sua união – e interesses econômicos diversos é o ponto de partida das formas dissimuladas na aliança das classes contra a monarquia. O político aparece aqui com o papel formal de unificação, com a função ideológica dissimuladora, a respeito dos interesses de classe distintos; estes, que podem dar os limites dessa unificação, não afloram em nenhum instante, até aqui. A liderança da burguesia já se configura nesse caráter impresso ao político: o modo próprio da burguesia fazer valer seus interesses a impele à consideração abstrata do político. Porque quando combate o despotismo dos juros, combate-o em nome do capital produtivo, e não como uma forma necessária que o capital reveste.

Todas as classes sociais que se opunham à aristocracia financeira encontraram seu lugar no governo de fevereiro. Este se propunha como finalidade uma reforma eleitoral, que propiciasse uma comunidade política sólida, ampliando o número de cidadãos que se incorporam à vida política da sociedade. A república, “cuja definição cada partido reservava para si mesmo”[30], era a forma de governo unânime solicitada, em oposição à monarquia. A política, que abriu os caminhos da cristalização do poder burguês através da apropriação do Estado pela burguesia industrial, começa, a partir de agora, a ver seu conteúdo reinterpretado à luz desse poder consolidado. A república tinha um papel definido enquanto bandeira de ascensão burguesa: livrar o capital dos entraves estatais à sua circulação mais produtiva, criando-se as condições políticas para uma economia de mercado. A república adaptava-se a esse projeto, porque conseguia galvanizar as outras classes sociais aos “interesses gerais da sociedade”. O político, assim, os unia, mas sob uma forma enganosa, já que introduzia uma comunidade econômica definida, o domínio do grande capital. “Em nenhum período, portanto, encontramos uma mistura mais confusa de frases altissonantes e efetiva incerteza e imperícia, aspirações mais entusiastas de inovação e um domínio mais arraigado da velha rotina, maior harmonia em toda a sociedade e mais profunda discordância entre seus elementos.”[31] Os conflitos ganham o caráter de oposição entre a “harmonia”, política, e a “discordância”, econômica, porque, como já vimos, aquele plano conseguiu ser revestido, pela liderança burguesa, do papel ideológico de “representar a Nação”.

A desaparição da monarquia constitucional marcava também a desaparição do Estado como um poder arbitrariamente oposto à sociedade. Ele ressurge dentro do papel que a revolução burguesa lhe atribuiu: unificador de todas as classes sociais. Sua identificação com a Nação, entendida como a soma dos cidadãos, unificados formalmente em torno do Estado, é o critério indispensável para o desempenho daquele papel. O sufrágio universal é o instrumento que legitima essa função.

A base sob a qual se torna possível essa unificação começou com a oposição unânime à aristocracia financeira. Mas o caráter formal dessa unificação advém do fato de ela ter de se abstrair das relações de produção. À burguesia industrial não interessava, e não interessa nunca, a marginalização da aristocracia financeira; para ela trata-se apenas de lhe atribuir um papel acessório em relação aos investimentos industriais. À classe operária, por viver apenas à custa do seu trabalho, a aristocracia financeira se lhe afigura como uma outra forma de lumpemproletariado, como um setor totalmente improdutivo socialmente, o que a leva a se opor à sua simples existência. O interesse da pequena burguesia e do campesinato estava ligado sempre à “ordem” e à estabilidade, tanto política quanto econômica, devido à sua importância em um plano e outro. Havia, assim, justaposição de interesses comuns, voltados para a queda da monarquia. Porém, o caráter que a burguesia imprime, por sua natureza de agente do capital, levou-a a colocar, em condições de transformar esse interesse comum (gemeinsame) em interesse geral (allgemeine)[32] esses objetivos que, episodicamente, uniam politicamente as classes sociais, em objetivos permanentes e interesses da Nação. O governo instalado pela República de Fevereiro, fruto real de uma “transação entre as diversas classes”, aparecia aos olhos dessas mesmas classes como representante real dos interesses gerais do país.

Essa tradução política que generalizava interesses distintos era fundamental para cobrir a lacuna entre a composição heterogênea do governo e as tarefas econômicas solicitadas pelo grau de desenvolvimento das relações de produção na França da época. Neste nível, tratava-se de “completar a dominação da burguesia”, o que pedia uma entente entre todos os seus setores, inclusive a aristocracia financeira. O instrumento formalizador da Revolução de Fevereiro que, a um só tempo, possibilitava o cumprimento dessa tarefa, mas o fazia em nome dos interesses gerais da sociedade, era o sufrágio universal. Ao homogeneizar os indivíduos sob a forma de cidadãos, desconhecendo os papéis distintos que ocupam nas relações de produção, o sufrágio universal coloca a apropriação do Estado à mercê de critérios quantitativos. A “maioria da Nação” passa a definir os critérios dessa posse, independentemente do critério qualitativo que atribua condições maiores ou menores de desenvolvimento das forças produtivas a uma ou outra classe social. As próprias classes parecem esvair-se nesse processo.

O mesmo sufrágio universal com que Lamartine acenava para se opor aos operários que, através de barricadas, reivindicavam o direito de proclamar a república, agora coloca os proprietários nominais, que formam a maioria da França, os camponeses, como “juízes sobre o destino da França”[33]. A Revolução de Fevereiro tornou-se necessária porque o capital industrial ainda não se havia imposto totalmente nas relações de produção, mas a burguesia industrial vale-se também positivamente dessa carência, fazendo-a instrumento seu: apoia-se nos camponeses, resquício ainda não superado da estrutura feudal, para promover essa superação, através da sua ascensão ao poder político. Daí o caráter puramente transitório da soma de interesses dos dois setores, cuja tendência inevitável é o conflito; enquanto um se prende ao passado, à defesa da pequena propriedade, outro representa os desígnios do grande capital, para o qual a pequena propriedade é um momento ultrapassado.

Contudo, a ideologia da “fraternidade”, da “unidade entre as classes”, torna-se vazia apenas a partir do instante em que uma classe como proletariado revela efetivamente os conflitos políticos entre as classes, a partir de sua consciência de classe; porque inicialmente aquelas expressões não deixam de ter raízes que lhe dão fundamento: para o proletariado francês, tratava-se de lutar contra as “sobrevivências feudais”, e assim conseguir “o terreno para lutar pela sua emancipação revolucionária”, o que o levava a aliar-se às reivindicações políticas da burguesia. Essa unidade política era perdida de perspectiva à medida que o sufrágio universal dissolvia-os sob a forma de cidadãos, homogeneizados com o restante da sociedade. E, finalmente, pela passagem de um governo do domínio exclusivo da aristocracia financeira, para outro, de representação da quase totalidade das classes sociais. Tudo isso tornou possível a ideologia da fraternité: “A frase que correspondia a essa imaginária abolição das relações de classe era a fraternité, a confraternização e a fraternidade universal. Essa idílica abstração dos antagonismos de classe, essa conciliação sentimental dos interesses de classe contraditórios, esse imaginário elevar-se acima da luta de classes, essa fraternité foi, de fato, a palavra de ordem da Revolução de Fevereiro. As classes estavam separadas por um simples equívoco, e Lamartine batizou o governo provisório, a 24 de fevereiro, de “‘un gouvernement qui suspende ce malentendu terrible qui existe entre les différentes classes’ [um governo que suspende esse terrível mal-entendido que existe entre as diferentes classes]”[34].

À sua forma de existência como classe hegemônica, a burguesia faz corresponder formas políticas determinadas, conforme o estágio de desenvolvimento em que se encontre. Nesse momento em que essa hegemonia se define, a necessidade de revolucionar incessantemente as forças produtivas faz com que, politicamente, seja possível um Estado que se identifique com a nação. A forma de república parlamentar torna-se produto dessa identificação, que tem sua legitimação no sufrágio universal: sob essas condições assenta-se a fraternité.”

[28] Karl Marx, Lutas de classes na França (São Paulo, Boitempo, 2012), p. 40.

[29] Idem.

[30] Ibidem, p. 89.

[31] Idem.

[32] Cf. idem.

[33] Ibidem, p. 45.

[34] Ibidem, p. 49.

 

 

Na medida em que aumenta o Poder Executivo para garantir o afastamento do povo em relação ao governo, diminui obrigatoriamente a representação das diversas classes que se coligam no governo; aumenta sua afirmação como um todo, às expensas dos interesses de cada setor.

Bonaparte sente-se com força suficiente para substituir o ministério Barrot-Falloux, representante direto dos orleanistas e legitimistas. Essa força vem da máquina do Estado que, com seus recursos materiais, cria uma camada própria: os funcionários. Mas Bonaparte vale-se também de que a própria burguesia autolimita seu poder político, para melhor equipar o Executivo na luta de classes. “A burguesia francesa foi obrigada por seu enquadramento de classe a, por um lado, destruir as condições de vida de todo e qualquer poder parlamentar, portanto, também do seu próprio, e, por outro, tornar irresistível o Poder Executivo hostil a ela”[44]. A unificação política da sociedade em torno do Estado, de requisito da luta contra os privilégios feudais e introdutor da burguesia como classe hegemônica em oposição aos senhores feudais, torna-se forma burguesa de luta contra as classes assalariadas.

O móvel fundamental da burguesia revela-se ser a sua manutenção como classe, e esta se sustenta no seu poder social, no seu lugar hegemônico nas relações de produção e na sociedade como um todo. Para tanto, de um lado ela nega suas próprias reivindicações liberais, que a impulsionariam para o fortalecimento legislativo e para reformas eleitorais cada vez mais amplas. De outro, percebe que, para preservar o seu poder social intacto, o seu poder político devia ser desmantelado; que os burgueses privados só poderiam continuar a explorar as demais classes e desfrutar sem percalços a propriedade, a família, a religião e a ordem se sua classe fosse condenada a mesma nulidade política que todas as demais classes.[45]

Ela percebe a hierarquia que se estabelece entre o poder social e o poder político; não só o seu poder social, a sua presença como classe, impõe-se à sua existência política na luta pela apropriação do Estado como a anulação do poder político se torna requisito indispensável de sobrevivência de seu poder social. Se foi seu poder social que a capacitou a almejar a posse do Estado, esta não precisa se dar sob forma direta. Se “seu poder político devia ser desmantelado”, “para preservar o seu poder social intacto”, é porque a expressão “poder político” encerra em si mesma uma contradição, já que o nível político não é mais suficientemente autônomo a ponto de determinar a existência de um poder próprio. Seu esvaziamento pela estrutura social burguesa é o próprio requisito do fortalecimento do verdadeiro poder de classe: o poder social. Foi precisamente a ascensão da burguesia ao Estado que polarizou a luta política, e solicitou esse fortalecimento do Executivo em detrimento de sua representação política. Mas como o seu poder não existe sob a forma singularizada da posse do Estado, mas é, em última instância, o poder do capital, que se difunde através da ideologia, da existência do próprio Estado, da existência da política como forma institucionalizada de relações entre os indivíduos como cidadãos e não como membros de classes etc., seu poder social aumenta quando sua representação política diminui. Porque esta também é simplesmente um momento daquele, que não define a burguesia como classe, mas vive em função de seu poder social.

Porém, para tanto, ela depende da coincidência dos interesses de outro setor social que, a cada momento, adapte o Estado às necessidades de sobrevivência do seu poder social. Enquanto o liberalismo, como ideologia adaptada às condições de uma economia de mercado, produz os setores políticos que põem em prática uma política estatal do laissez-faire – e à burguesia isso é bastante –, essa separação entre posse do Estado e poder social e político pode ser preservada. Mas, à medida que as necessidades das relações de produção burguesas solicitam maior intervenção do Estado, sua forma cada vez mais centralizada já não é assumida voluntariamente por nenhum setor social que pudesse ser representante da burguesia. A essa necessidade corresponde apenas o poder pessoal, o bonapartismo, que nega a democracia liberal e o parlamentarismo, na mesma medida em que a burguesia nega a pequena propriedade. Os dois mecanismos são paralelos porque o bonapartismo capta sua legitimidade a partir de um jogo em torno da afirmação de princípio da propriedade privada, e o seu combate de fato pela concentração do capital.”

[44] Idem, O 18 de brumário de Luís Bonaparte, cit., p. 77.

[45] Ibidem, p. 81.

 

 

“Os momentos mais importantes dessa evolução do Estado – se considerarmos a análise de Marx sobre seu desenvolvimento na França – são:

a. A monarquia de julho representou uma apropriação privilegiada do Estado pela aristocracia financeira, possibilitando uma oposição conjugada de todas as outras classes sociais. Porém, essa oposição não é unificada, mas se faz também enquanto classes com interesses distintos, cuja unidade é dada apenas na oposição a esse governo.

b. A monarquia de julho demonstra a incapacidade da aristocracia financeira passar por representante geral da sociedade: sua forma particular de existência – os juros – sob sua forma isolada, é socialmente improdutiva, o que a impede de patrocinar os interesses de outras classes sociais.

c. A existência de uma distância entre as relações de produção capitalista, já predominantes na França, e a apropriação do Estado por um setor secundário dentro da burguesia: o capital financeiro. Dentro do capitalismo, a este é reservado um papel complementar em relação ao capital industrial, motor central de propulsão do sistema, através do mais-valor. Aquela apropriação tinha consequências no plano das relações de produção, na medida da influência direta do Estado no processo de redistribuição da renda – e do poder – na sociedade. O Estado, vítima de uma espoliação profunda, transfere-se às outras classes sociais através dos impostos crescentes.

d. Nesse tipo de governo, o Estado aparece claramente como instrumento particular de uma classe, que o coloca em oposição aos interesses da sociedade. A forma de apropriação econômica da aristocracia financeira tomada isoladamente, sob a forma da espoliação do Estado, não condiz com relações jurídicas de igualdade, pois estas pressupõem a troca de equivalentes no mercado, e aquela se dá sob forma ociosa, lateralmente ao processo produtivo. Daí terminar encontrando oposição generalizada da sociedade.

e. Essa oposição soma interesses economicamente distintos, que se conciliam em uma “harmonia aparente” no nível do político, cujo caminho é o do esvaziamento, à medida que essa coligação se instala no governo.

f. A Revolução de 1848 representa a cristalização do capitalismo na França, pela hegemonia do capital industrial que vai passar a coordenar as outras classes sociais em torno de si. Para tanto, ele vai encontrar no bonapartismo um modo de conciliar sua predominância nas relações de produção com uma forma de convivência com as outras classes sociais. Trata-se de anular o seu poder político para sobreviver como poder social, o que se torna possível porque o mecanismo de sobrevivência do capital – o mais-valor – é uma forma de exploração interna às relações de produção, o que libera o plano político da necessidade de uma dominação burguesa direta.”