Editora: Companhia das Letras
Opinião: ★★★★★★
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ISBN: 978-85-359-3198-3
Páginas: 560
Sinopse: Ver Parte
I
“Me
lembrei dum conselho que Zé Bebelo, na Nhanva, um dia me tinha dado. Que era:
que a gente carece de fingir às vezes que raiva tem, mas raiva mesma nunca se
deve de tolerar de ter. Porque, quando se curte raiva de alguém, é a mesma
coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando
a ideia e o sentir da gente; o que isso era falta de soberania, e farta bobice,
e fato é. Zé Bebelo falava sempre com a máquina de acerto — inteligência só.
Entendi. Cumpri.”
“Um dia, sem dizer o que a quem, montei a cavalo e saí, a vão, escapado.
Arte que eu caçava outra gente, diferente. E marchei duas léguas. O mundo
estava vazio. Boi e boi. Boi e boi e campo. Eu tocava seguindo por trilhos de
vacas. Atravessei um ribeirão verde, com os umbùzeiros e ingazeiros debruçados
— e ali era vau de gado. “Quanto mais ando, querendo pessoas, parece que entro
mais no sozinho do vago…” — foi o que pensei, na ocasião. De pensar assim me
desvalendo. Eu tinha culpa de tudo, na minha vida, e não sabia como não ter.
Apertou em mim aquela tristeza, da pior de todas, que é a sem razão de motivo;
que, quando notei que estava com dôr-de-cabeça, e achei que por certo a
tristeza vinha era daquilo, isso até me serviu de bom consolo. E eu nem sabia
mais o montante que queria, nem aonde eu extenso ia. O tanto assim, que até um
corguinho que defrontei — um riachim à tôa de branquinho — olhou para mim e me
disse: — Não… — e eu tive que obedecer a ele. Era para eu não ir mais para
diante. O riachinho me tomava a benção. Apeei. O bom da vida é para o cavalo,
que vê capim e come. Então, deitei, baixei o chapéu de tapa-cara. Eu vinha tão
afogado. Dormi, deitado num pelego. Quando a gente dorme, vira de tudo: vira
pedras, vira flôr. O que sinto, e esforço em dizer ao senhor, repondo minhas
lembranças, não consigo; por tanto é que refiro tudo nestas fantasias. Mas eu
estava dormindo era para reconfirmar minha sorte. Hoje, sei. E sei que em cada
virada de campo, e debaixo de sombra de cada árvore, está dia e noite um diabo,
que não dá movimento, tomando conta. Um que é o romãozinho, é um diabo menino,
que corre adiante da gente, alumiando com lanterninha, em o meio certo do sono.
Dormi, nos ventos. Quando acordei, não cri: tudo o que é bonito é absurdo —
Deus estável. Ouro e prata que Diadorim aparecia ali, a uns dois passos de mim,
me vigiava.
Sério,
quieto, feito ele mesmo, só igual a ele mesmo nesta vida. Tinha notado minha
ideia de fugir, tinha me rastreado, me encontrado. Não sorriu, não falou nada.
Eu também não falei. O calor do dia abrandava. Naqueles olhos e tanto de Diadorim,
o verde mudava sempre, como a água de todos os rios em seus lugares
ensombrados. Aquele verde, arenoso, mas tão moço, tinha muita velhice, muita
velhice, querendo me contar coisas que a ideia da gente não dá para se entender
— e acho que é por isso que a gente morre. De Diadorim ter vindo, e ficar
esbarrado ali, esperando meu acordar e me vendo meu dormir, era engraçado, era
para se dar feliz risada. Não dei. Nem pude nem quis. Apanhei foi o silêncio
dum sentimento, feito um decreto: — Que você em sua vida toda toda por diante,
tem de ficar para mim, Riobaldo, pegado em mim, sempre!… — que era como se
Diadorim estivesse dizendo. Montamos, viemos voltando. E, digo ao senhor como
foi que eu gostava de Diadorim: que foi que, em hora nenhuma, vez nenhuma, eu
nunca tive vontade de rir dele.”
“E
o gado em pé que se provia, para se abater e se comer, chegava a ser uma
boiada. Com sacas de farinha, surrão de sal, e açúcar preto e café — até em
carro-de-bois os mantimentos de fubá e arroz e feijão entregados. Só em
quantidades de munição era que a gente não produzia luxo, e Titão Passos se
entristeceu de não poder ter trazido a nossa, na Guararavacã tão em vão
esperada. Mas a lei de homem não é seus instrumentos. Saímos em guerra. Ãhã, do
norte, da Lagoa-do-Boi, com troca de avisos, sobrevinha também o bastante da
rapaziada dos baianos, debaixo do comando de Alípio Mota, cunhado de Sô
Candelário. A simples íamos cercar bonito os Judas, não tinham escape. Aindas
que se escapassem para o poente, atravessassem o rio, ah, encontravam ferro e
fogo: lá estava Medeiro Vaz — o rei dos Gerais!
Saímos,
sobre, fomos. Mas descemos no canudo das desgraças, ei, saiba o senhor. Desarma
do tempo, hora de paga e pêrdas, e o mais, que a gente tinha de purgar, segundo
se diz. Tudo o melhor fizemos, e tudo no fim desandava. Deus não devia de
ajudar a quem vai por santas vinganças?! Devia. Nós não estávamos forte em
frente, com a coragem esporeada? Estávamos. Mas, então? Ah, então: mas tem o
Outro — o figura, o morcegão, o tunes, o cramulhão, o dêbo, o carôcho, do pé de
pato, o mal-encarado, aquele — o-que-não-existe! Que não existe, que não, que
não, é o que minha alma soletra. E da existência desse me defendo, em pedras
pontudas ajoelhado, beijando a barra do manto de minha Nossa Senhora da Abadia!
Ah, só Ela me vale; mas vale por um mar sem fim… Sertão. Se a Santa puser em
mim os olhos, como é que ele pode me ver?! Digo isto ao senhor, e digo: paz.
Mas, naquele tempo, eu não sabia. Como é que podia saber? E foram esses
monstros, o sobredito. Ele vem no maior e no menor, se diz o grão-tinhoso e o
cão-miúdo. Não é, mas finge de ser. E esse trabalha sem escrúpulo nenhum, por
causa que só tem um curto prazo. Quando protege, vem, protege com sua pessoa.
Montado, mole, nas costas do Hermógenes, indicando todo rumo. Do tamanho dum
bago de aí-vim, dentro do ouvido do Hermógenes, por tudo ouvir. Redondinho no
lume dos olhos do Hermógenes, para espiar o primeiro das coisas. O Hermógenes,
que — por valente e valentão — para demais até ao fim deste mundo e do
juizo-final se danara, oco de alma. Contra ele a gente ia. Contra o demo se
podia? Quem a quem? Milagres tristes desses também se dão. Como eles
conseguiram fugir das unhas da gente, se escaparam — o Ricardão e o Hermógenes
— os Judas. Pois eles escapuliram: passaram perto, légua, quarto-de-légua, com
toda sua jagunçama, e não vimos, não ouvimos, não soubemos, tivemos jeito
nenhum para cercar e impedir. Avançaram, calados, escorregando pelos matos, ganhando
o mais poente, para o São Francisco. Atravessaram por nós, sem a gente
perceber, como a noite atravessa o dia, da manhã à tarde, seu pretume dela
escondido no brancor do dia, se presume. Quando pudemos saber, a distância
deles já era impossível. Nós estávamos pegando o ar. Duro de desanimável, hem?
E pois demore o senhor para o pior: o que veio em sobre!: os soldados do
Governo. Os soldados, soldadesca, tantas tropas. Surgiram de todos os lados, de
supetão, e agatanhavam, naquela sanha, é ver cachorrada caçante. Soldados do
Tenente Plínio — companhia de guerra. Tenente Reis Leme, outra. E veio depois,
com muitos mais outros, um capitão Carvalhais, maior da marca, esse bebia café
em cuité e cuspia pimenta com pólvora. Sofremos, rolamos por aí aqui, se rolou.
A vida é vez de injustiças assim, quando o demo leva o estandarte.”
“Serve
meus pensamentos. Serve, para o que digo: eu queria ter remorso; por isso, não
tenho. Mas o demônio não existe real. Deus é que deixa se afinar à vontade o
instrumento, até que chegue a hora de se dansar. Travessia, Deus no meio.
Quando foi que eu tive minha culpa? Aqui é Minas; lá já é a Bahia? Estive
nessas vilas, velhas, altas cidades… Sertão é o sozinho. Compadre meu Quelemém
diz: que eu sou muito do sertão? Sertão: é dentro da gente. O senhor me acusa?
Defini o alvará do Hermógenes, referi minha má cedência. Mas minha padroeira é
a Virgem, por orvalho. Minha vida teve meio-do-caminho? Os morcegos não
escolheram de ser tão feios tão frios — bastou só que tivessem escolhido de
esvoaçar na sombra da noite e chupar sangue. Deus nunca desmente. O diabo é sem
parar. Saí, vim, destes meus Gerais: voltei com Diadorim. Não voltei?
Travessias… Diadorim, os rios verdes. A lua, o luar: vejo esses vaqueiros que
viajam a boiada, mediante o madrugar, com lua no céu, dia depois de dia.
Pergunto coisas ao burití; e o que ele responde é: a coragem minha. Burití quer
todo azul, e não se aparta de sua água — carece de espelho. Mestre não é quem
sempre ensina, mas quem de repente aprende. Por que é que todos não se reúnem,
para sofrer e vencer juntos, de uma vez?”
“Todos estão loucos, neste mundo? Porque a cabeça da gente é uma só, e as
coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores
diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total.
Todos os sucedidos acontecendo, o sentir forte da gente — o que produz os
ventos. Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de
ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um
descanso na loucura. Deus é que me sabe. O Reinaldo era Diadorim — mas Diadorim
era um sentimento meu. Diadorim e Otacília. Otacília sendo forte como a paz,
feito aqueles largos remansos do Urucúia, mas que é rio de braveza. Ele está
sempre longe. Sozinho. Ouvindo uma violinha tocar, o senhor se lembra dele. Uma
musiquinha até que não podia ser mais dansada — só o debulhadinho de purezas,
de virar-virar… Deus está em tudo — conforme a crença? Mas tudo vai vivendo
demais, se remexendo. Deus estava mesmo vislumbrante era se tudo esbarrasse,
por uma vez. Como é que se pode pensar toda hora nos novíssimos, a gente
estando ocupado com estes negócios gerais? Tudo o que já foi, é o começo do que
vai vir, toda a hora a gente está num cômpito. Eu penso é assim, na paridade. O
demônio na rua… Viver é muito perigoso; e não é não. Nem sei explicar estas
coisas. Um sentir é o do sentente, mas outro é o do sentidor. O que eu quero, é
na palma da minha mão. Igual aquela pedra que eu trouxe do Jequitinhonha. Ah,
pacto não houve. Pacto? Imagine o senhor que eu fosse sacerdote, e um dia
tivesse de ouvir os horrores do Hermógenes em confissão. O pacto de um morrer
em vez do outro — e o de um viver em vez do outro, então?! Arrenego. E se eu
quiser fazer outro pacto, com Deus mesmo — posso? — então não desmancha na rás
tudo o que em antes se passou? Digo ao senhor: remorso? Como no homem que a
onça comeu, cuja perna. Que culpa tem a onça, e que culpa tem o homem? Às vezes
não aceito nem a explicação do Compadre meu Quelemém; que acho que alguma coisa
falta. Mas, medo, tenho; mediano. Medo tenho é porém por todos. É preciso de
Deus existir a gente, mais; e do diabo divertir a gente com sua dele nenhuma
existência. O que há é uma certa coisa — uma só, diversa para cada um — que
Deus está esperando que esse faça. Neste mundo tem maus e bons — todo grau de
pessoa. Mas, então, todos são maus. Mas, mais então, todos não serão bons? Ah,
para o prazer e para ser feliz, é que é preciso a gente saber tudo, formar
alma, na consciência; para penar, não se carece: bicho tem dor, e sofre sem
saber mais porque. Digo ao senhor: tudo é pacto. Todo caminho da gente é
resvaloso. Mas, também, cair não prejudica demais — a gente levanta, a gente
sobe, a gente volta! Deus resvala? Mire e veja. Tenho medo? Não. Estou dando
batalha. É preciso negar o que o “Que-Diga” existe. Que é que diz o farfal das
folhas? Estes gerais enormes, em ventos, danando em raios, e fúria, o armar do
trovão, as feias onças. O sertão tem medo de tudo. Mas eu hoje em dia acho que Deus é alegria e coragem — que Ele é
bondade adiante, quero dizer. O senhor escute o buritizal. E meu coração vem
comigo. Agora, no que eu tive culpa e errei, o senhor vai me ouvir.”
“O
correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí
afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que
Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio
da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente,
na horinha em que se quer, de propósito — por coragem. Será? Era o que eu às
vezes achava. Ao clarear do dia.”
“Daí,
depois, tudo recomeçou de novo, em mais bravo. E nisto, que conto ao senhor, se
vê o sertão do mundo. Que Deus existe, sim, devagarinho, depressa. Ele existe —
mas quase só por intermédio da ação das pessoas: de bons e maus. Coisas imensas
no mundo. O grande-sertão é a forte arma. Deus é um gatilho?”
“Mas
minha mão, por si, pegou a mão de Diadorim, eu nem virei a cara, aquela mão é
que merecia todo entendimento. Mão assim apartada de tudo, nela um suave de ser
era que me pertencia, um calor, a coisa macia somente. São as palavras? Mas aí
espiei para Diadorim, e ele despertou do que tinha se esquecido, deixado, de
sua mão, que ele retirou da minha outra vez, quase num repelão de repugno. E
ele estava sombrio, os olhos riscados, sombrio em sarro de velhas raivas,
descabelado de vento. Demediu minha ideia: o ódio — é a gente se lembrar do que
não deve-de; amor é a gente querendo achar o que é da gente. — “O palavreado,
destes!” — Diadorim chiou, por detrás dos dentes. Diadorim queria sangues fora
de veias. E eu não concordava com nenhuma tristeza. Só remontei um pasmo e um
consolo expedito; porque a guerra era o constante mexer do sertão, e como com o
vento da seca é que as árvores se entortam mais. Mas, pensar na pessoa que se
ama, é como querer ficar à beira d’água, esperando que o riacho, alguma hora,
pousoso esbarre de correr.”
“Da
maneira, ele me tentava. Com baboseira, a prosável diguice, queria abrandar
minha opinião. Então eu ia crer? Então eu não me conhecia? Um com o meu
retraimento, de nascença, deserdado de qualquer lábia ou possança nos outros —
eu era o contrário de um mandador. A pra, agora, achar de levantar em sanha todas
as armas contra o Hermógenes e o Ricardão, aos instigares? Rebulir com o
sertão, como dono? Mas o sertão era para, aos poucos e poucos, se ir obedecendo
a ele; não era para à força se compor. Todos que malmontam no sertão só alcançam
de reger em rédea por uns trechos; que sorrateiro o sertão vai virando tigre
debaixo da sela. Eu sabia, eu via. Eu disse: nãozão! Me desinduzi. Talento meu
era só o aviável de uma boa pontaria ótima, em arma qualquer. Ninguém nem mal
me ouvia, achavam que eu era zureta ou impostor, ou vago em aluado. Mesmo eu
não era capaz de falar a ponto. A conversa dos assuntos para mim mais
importantes amolava o juízo dos outros, caceteava. Eu nunca tinha certeza de
coisa nenhuma.”
“A
gente só sabe bem aquilo que não entende.”
“De
homem que não possui nenhum poder nenhum, dinheiro nenhum, o senhor tenha todo
medo! O que mais digo: convém nunca a gente entrar no meio de pessoas muito
diferentes da gente. Mesmo que maldade própria não tenham, eles estão com vida
cerrada no costume de si, o senhor é de externos, no sutil o senhor sofre
perigos. Tem muitos recantos de muita pele de gente. Aprendi dos antigos. O que
assenta justo é cada um fugir do que bem não se pertence. Parar o bom longe do
ruim, o são longe do doente, o vivo longe do morto, o frio longe do quente, o
rico longe do pobre. O senhor não descuide desse regulamento, e com as suas
duas mãos o senhor puxe a rédea. Numa o senhor põe ouro, na outra prata;
depois, para ninguém não ver, elas o senhor fecha bem. E foi o que eu pensei.”
“Serras que se vão saindo, para destapar outras serras. Tem de todas as
coisas. Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras
maiores perguntas.”
“Mas,
daí, me entendendo bem, ele fechou assim:
—
“Riobaldo, tu é um homem de estúrdia valia…”
A
dado sincero; eu senti. Ao perante diante de minhas presenças, todos tinham
mesmo de ser sinceros. Só nos olhos das pessoas é que eu procurava o macio
interno delas; só nos onde os olhos.”
“A
vida inventa! A gente principia as coisas, no não saber por que, e desde aí
perde o poder de continuação — porque a vida é mutirão de todos, por todos
remexida e temperada.”
“Acho
que eu não era capaz de ser uma coisa só o tempo todo.”
“Sempre
sei, realmente. Só o que eu quis, todo o tempo, o que eu pelejei para achar,
era uma só coisa — a inteira — cujo significado e vislumbrado dela eu vejo que
sempre tive. A que era: que existe uma receita, a norma dum caminho certo,
estreito, de cada uma pessoa viver — e essa pauta cada um tem — mas a gente
mesmo, no comum, não sabe encontrar; como é que, sozinho, por si, alguém ia
poder encontrar e saber? Mas, esse norteado, tem. Tem que ter. Se não, a vida
de todos ficava sendo sempre o confuso dessa doideira que é. E que: para cada
dia, e cada hora, só uma ação possível da gente é que consegue ser a certa.
Aquilo está no encoberto; mas, fora dessa consequência, tudo o que eu fizer, o
que o senhor fizer, o que o beltrano fizer, o que todo-o-mundo fizer, ou deixar
de fazer, fica sendo falso, e é o errado. Ah, porque aquela outra é a lei,
escondida e vivível mas não achável, do verdadeiro viver: que para cada pessoa,
sua continuação, já foi projetada, como o que se põe, em teatro, para cada
representador — sua parte, que antes já foi inventada, num papel…”
“Ao
meio do meio duma coisa eu tinha certeza: que Diadorim não ia me mentir. O amor
só mente para dizer maior verdade.”
“Agora,
o senhor saiba qual era esse o meu projeto: eu ia traspassar o Liso do
Sussuarão!
Senhor
crê, sem estar esperando? Tal que disse. Ainda hoje, eu mesmo, disso, para mim,
eu peço espantos. Qu’ é que me acuava? Agora, eu velho, vejo: quando cogito,
quando relembro, conheço que naquele tempo eu girava leve demais, e assoprado.
Deus deixou. Deus é urgente sem pressa. O sertão é dele.”
“Atalhei:
— que não isso; que da vida, vagada em si, no resumo? — A pois, isto… Homem,
sei? Como que já vivi tanto, grossamente, que degastei a capacidade de
querer me entender em coisa nenhuma… Ele disse, disse bem.
Mas eu entiquei: — Não podendo entender a razão da vida, é só assim
que se pode ser vero bom jagunço… Alaripe esbarrou, como ia quebrar em duas
uma palma seca de buritirana. Me olhou, me falou: — Se só de entender, cá
comigo, eu entendo. Entendo as coisas e as pessoas… Respondeu, disse
bem.”
“Eu
questionava, comigo, que eles deviam de lavorar maior raiva. Raiva tampa o
espaço do medo, assim como do medo a raiva vem. Reparei isto: como nenhum não
citava o nome do Hermógenes. Aí estava direito — que no imigo, em véspera, não
se prosêia. Mal que um disse: — “Ele não é laço: — é argola…” — Ou
outro, que: — “Ele adôida…” Mas os mais não glosavam. Com o que prazi.
Gastura que eu tinha era só de que, a ventos vai, um fosse acrescentar: — …Ele
é pactário…
Ah.
E que fosse? Menção não era de se afirmar, regalia nenhuma. Pois o demo não é
de todos?! Alt’arte abri o meu maior sentir: que eu havia de ter a vitória…
Dali, o Hermógenes não saía com vida, maneira nenhuma, testamental. Tive ódio
dele? Muitos ódios. Só não sabia por quê. Acho que tirava um ódio por causa de
outro, cosidamente, assim seguido de diante para trás o revento todo. A modo que
o resumo da minha vida, em desde menino, era para dar cabo definitivo do
Hermógenes — naquele dia, naquele lugar. Pelejei para recordar as feições dele,
e o que figurei como visão foi a de um homem sem cara. Preto, possuindo a cara
nenhuma, feito se eu mesmo antes tivesse esbagaçado aquele oco, a poder de
balas… E tudo me deu um enjoo. Tinha medo não. Tinha era cansaço de esperança.
(...)
Nessas
e noutras muito extremadas coisas eu tornava a pensar, o espírito em meia-mão,
por diante permeio os outros meus entretimentos de-verdade. Agora tudo estava
pronto, das obrigações — afora a de esperar, que é a que regasta e se recoze. A
noite foi se esquentando assaz. Ali também, por avisante, não se acendia
fogueira. Mas o campo esparramava muito vagalume. Os homens formando grupos,
acocorados assim, eles conversavam. O quase que o legal, agora, era de se
caçoarem uns dos outros, desafiando quem fosse ser medroso ou duvidado na
coragem. Razão disso meava uma confiança, a mais, eu escutando satisfeito
aquelas bobices com que eles porfiavam: — “Caranguejinho, sem cachaça tu
vai?” “— Eh, não: tu! Vai saudar o gado!” Pelos risos e debiques que
divertissem, de todos eu percebia a forte certeza. Cada cada-um, dali a pouco,
ia ser perigoso, de nele se encostar, feito um sapo que espirra. — “Que te
falo: amarra o burro, que a carga é sua…” “— Minha, a carga está salva… Mal a
bem, oxente, quero é ver o que vou ver…” Assim se zé-zombavam. Aos ditos
ditados, feito estivessem jogando um truque, sem baralhos nenhuns. Por que é
que aquilo me comprazia? E Diadorim parava calado, próximo de mim, e eu
concebia o verter da presença dele, quando os nossos dois pensamentos se
encontravam. Que nem um amor no ao-escuro, um carinho que se ameaçava. — “…Tiroteio
fêrvo, se será! Aí é que vou ver um mais menino que o J’bibe…” “— Se tu não
sabe, você vai saber: que eu já fiz minha fama…” “— Jiribibe? Pois, aquele, eh:
ele pede esmola ao rei…” E reproduziam muitas essas gaitagens. Agora
estavam acostumados com a hora do lugar, e para qualquer repente refrescados.
Igual a um gado — que vem num pasto novo, e anda e fareja, reconhecendo tudo,
mas depois tudo aceita e então começa a resfeição. Agora, agora, sim, meus
homens estavam em ponto de fogo. Melhor mesmo não irem dormir, antes de forte
sono, por se evitar espertina de criatura sozinha, em espera de possível má
morte. Tive pena deles? Disser isto, o senhor podia se rir de mim, declarável.
Ninguém nunca foi jagunço obrigado. Sertanejos, mire veja: o sertão é uma
espera enorme.”