quinta-feira, 30 de outubro de 2025

A ontologia em debate no pensamento contemporâneo (Parte III), de Manfredo Araújo de Oliveira

Editora: Paulus

ISBN: 978-85-349-4081-8

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 268

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Sinopse: Ver Parte I




Puntel parte de uma tese básica: o empreendimento teórico, que já no início de uma tradição de mais de dois mil anos se denominou filosofia, sempre se interpretou a partir de sua intenção, de sua autocompreensão e de suas produções como um saber abrangente e de caráter universal, o que não é mais o caso no pensamento contemporâneo que, antes, caracteriza-se por ser fragmentário. Seu objetivo fundamental é retomar esse caráter sistemático da filosofia, ou seja, articular a teoria filosófica como uma teoria da totalidade do ser, como uma concepção global da realidade, que possui, por isso, duas características básicas: a completude da temática e a demonstração das conexões entre todos os componentes temáticos.

Isso será feito, contudo, não através de um simples retorno a uma das formas em que o saber abrangente se articulou em nossa tradição de pensamento, mas a partir de uma posição estritamente sistemática, no sentido de que enfrenta as questões em si mesmas e não simplesmente através de referências à história do pensamento, e que, ao mesmo tempo, pretende pôr-se no nível teórico que atingimos em nossos dias, o que permite à filosofia recuperar sua tarefa originária própria e desenvolver plenamente suas potencialidades.

O enfrentamento dessa problemática é levado a cabo por Puntel a partir de uma afirmação fundamental: a filosofia é um tipo específico de teoria. Puntel distingue três atitudes originárias do ser humano perante seu mundo: a teoria, a prática e a estética. Uma teoria é uma espécie de entidade abstrata que de alguma forma mostra um relacionamento com o mundo (ou com uma parte ou um fenômeno do mundo). Na formulação de Wittgenstein podemos dizer que uma teoria explicita como o mundo se comporta. Normalmente se diz que uma teoria diz algo sobre o mundo, explica algo sobre o mundo, articula algo sobre o mundo ou algo no mundo. (...)

Ora, as teorias enquanto tais efetivam, para ele, uma redução da linguagem humana a um de seus objetivos fundamentais, ou seja, à apresentação do mundo, que constitui precisamente o específico da teoria em relação às outras duas dimensões fundamentais da vida humana. Se toda atividade humana tem uma conexão com o mundo, trata-se, no caso específico da teoria, de uma relação que antes de tudo se articula no seio da linguagem com uma meta determinada: a apresentação do mundo. Para a compreensão adequada desse objetivo, faz-se necessário atender à distinção entre linguagens naturais – normais, utilizadas pelos diversos grupos humanos, e que são caracterizadas em primeiro lugar como processos de comunicação – e linguagens artificiais – as construídas, que possuem como objetivo central a apresentação descritiva ou teórica do mundo.

As linguagens naturais contêm, certamente, também de modo muito parcial ou reduzido, a dimensão da apresentação do mundo e com isso possuem, pelo menos implicitamente, elementos teóricos. Todos esses elementos estão aqui, contudo, submetidos à finalidade específica dessas linguagens, que é a comunicação intersubjetiva. No nível das teorias, no sentido estrito, sucede a transformação: apesar de nelas estarem presentes elementos de comunicação, sua finalidade própria é a apresentação do mundo. O que justamente especifica a teoria é uma linguagem centralizada na apresentação do mundo, e a diferença se manifesta no fato de que uma linguagem em que há primazia da dimensão comunicativa se centraliza na relação com os outros parceiros. Na teoria, é a “coisa” que passa para o primeiro plano. (...)

A compreensão do papel que a linguagem ocupa na filosofia é o resultado, como vimos, de uma consideração por parte de Puntel da reviravolta pós-transcendental que a filosofia analítica realizou e que pôs no centro da filosofia a lógica, a linguagem etc. Assim, a linguagem não só tem um papel importante, mas central, o que constitui uma das teses básicas do pensamento contemporâneo. Daí por que uma das primeiras tarefas de uma filosofia sistemática consiste em desenvolver explicitamente o conceito de uma linguagem filosófica e de seus traços básicos.

Filosofia é entendida aqui estritamente enquanto teoria, mas antes de tudo é necessário esclarecer a dimensão teórica em geral e a concepção de uma teoria filosófica em particular. Nesse contexto, uma das questões básicas é a tese de que toda formulação de um problema, toda interrogação teórica, todo enunciado teórico, toda argumentação, toda teoria só é compreensível e avaliável no contexto de um “quadro teórico”, e do contrário tudo permanece vago e indeterminado.

Um quadro teórico implica sempre uma diferença específica entre dois lados ou aspectos: a diferença entre o quadro referencial em cujo centro está o conceito de “estrutura” (a dimensão estrutural), e aquilo que o quadro contém ou representa. A relação entre essas duas dimensões, que constitui a ideia básica da filosofia sistemático-estrutural, não é entendida aqui como no caso de um sistema formal não interpretado: um quadro teórico científico ou filosófico “é, antes, um instrumento que permite apreender, compreender e explicar algo (um nexo, um domínio objetual...). A formação de uma teoria filosófica consiste em trabalhar a interconexão entre a dimensão dos dados e a dimensão das estruturas de tal forma que as estruturas afinal emergem como estruturas dos dados, ou os dados são incluídos na dimensão das estruturas. Dentro de ou por intermédio de um quadro teórico se faz referência a algo”.90

Esse “algo” é aqui, num primeiro momento, denominado “dado” num sentido técnico, ou seja, o que no início de um empreendimento teórico é expresso por sentenças pré-teóricas ou incoativo-teóricas. Dessa forma temos, de um lado, a imensa dimensão das estruturas (com tudo o que a ela pertence: subjetividade, conhecimento, conceito, espírito, linguagem, entidades ideais, teorias etc.), e, do outro lado, o mundo dos dados, o mundo objetivo, o ser objetivo que constitui o enorme campo dos entes individuais, dos campos de entes de todos os tipos. Esses dados são, enquanto tais, ainda teoricamente indeterminados ou subdeterminados. Sua maior determinação ocorre precisamente através de sua integração numa conexão estrutural. Nesse nível da exposição, a dimensão estrutural e a dimensão dos dados emergem como os dois polos de uma relação. Daí por que um quadro referencial teórico científico ou filosófico contém elementos que não são de natureza puramente formal, mas também elementos “materiais”, isto é, com conteúdo.

A cada quadro teórico pertencem, enquanto momentos constitutivos, uma linguagem, com sua sintaxe e sua semântica; uma ontologia; uma teoria do ser; uma lógica e uma conceitualidade, com todos os componentes que constituem um aparato teórico. Ora, há, de fato, uma pluralidade de quadros teóricos, e cada quadro teórico possibilita sentenças verdadeiras, mas não no mesmo nível. São verdades relativas ao quadro teórico em questão, e, para Puntel, essa relatividade constitui uma forma específica de um relativismo moderado e isento de contradições.

Se a filosofia se caracteriza por um tipo específico de teoria, o que constitui sua forma própria de teoria? Enquanto ser espiritual, o ser humano se distancia de tudo e se situa na esfera da universalidade, enquanto nomeia, conceitua, objetiva, distingue seus objetos em partes e elementos e os sintetiza. H. G. Gadamer91 exprime isso dizendo que não existe um campo fechado do que se pode dizer, ao lado do campo do indizível, porque a linguagem é oniabrangente. Nada existe que se subtraia ao poder ser dito: os limites da linguagem ocorrem no seio da própria linguagem.

Por poder distanciar-se de tudo, o ser humano se revela, então, não como a simples coincidência com o ser enquanto tal, mas antes como o ente da pergunta pela totalidade do ser como a instância de expressão da inteligibilidade universal. Essa é uma tese básica da tradição da filosofia ocidental. Assim, Aristóteles92 afirma, a respeito do espírito ou do pensamento, que ele de certo modo é tudo. “O espírito é correlativo ao ser como totalidade inteligível”,93 sua estrutura própria se constitui pela abertura ilimitada ao ser: pensar, como já viram os gregos, significa sempre pensar tudo (πάντα νοειfiν). Tudo é em princípio pensável, inteligível, cognoscível, assim que se deve dizer que a totalidade do ser é simplesmente dada com o estatuto ontológico do espírito humano, isto é, do ser subjetivo enquanto ser espiritual e, enquanto tal, ela constitui a condição de possibilidade do conhecimento de qualquer entidade.

Aqui a própria formulação já manifesta a superação radical do dualismo articulado por Kant e ainda hegemonicamente presente em boa parte da filosofia contemporânea. No horizonte da superação da dicotomia, como Puntel articula, compete ao sujeito enquanto espírito uma co-extensionalidade intencional com o universo ou com o ser,94 com aquele “todo que abrange simplesmente tudo”,95 não só com o universo existente, pois a potencialidade do espírito vai além do existente, na medida em que inclui todas as possibilidades de infinitos outros universos não realizados precisamente enquanto são inteligíveis.

Ora, o ser humano é e, enquanto tal, pertence também ao universo. E, se pertence ao universo, ao mundo, ao ser, então, pertence também ao ser tudo o que ele faz, tudo o que ele realiza.96 Assim, o conhecimento e a ação humanos não são em primeiro lugar algo realizado por um sujeito, mas um estado de coisas no mundo; são, portanto, partes do mundo, da natureza, do universo. Evidentemente, de nenhuma forma se nega aqui que o conhecimento seja algo também produzido por um sujeito, mas que ele consista primária ou fundamentalmente nessa efetivação subjetiva. Em sua significação originária, o conhecimento é, na realidade, um modo de manifestação, de expressão do mundo, do ser.

Isso implica precisamente a superação da dicotomia total entre o sujeito (o cognoscente, o teórico) e a natureza, o mundo, o ser em sua totalidade. Essa tese tem implicações de grande importância, porque na realidade constitui uma mudança radical de perspectiva, uma reviravolta da “reviravolta copernicana” de Kant, da postura transcendental, que levou à centralidade do sujeito no pensamento filosófico. Nesse horizonte, toda a dimensão teórica (conceitos, teorias etc.) se revela então como sendo uma parte do universo, como parte do Ser em sua totalidade: a teoria também é, é ser, é parte do ser em seu todo, ela é uma forma de manifestação do ser.

A mudança em relação à concepção da subjetividade que daqui decorre é radical, já que na medida em que ela é coextensiva ao ser em seu todo, ela se revela como uma subjetividade universal, a instância em que o todo se expressa. Se o ser em sua universalidade é expressável, então a essa universalidade deve corresponder uma instância de sua expressão igualmente universal (linguagem, espírito, sujeito): só a partir daqui se tem uma concepção adequada da subjetividade e de seu lugar no universo.

Esta é a resposta de Puntel ao grande desafio articulado por McDowell como a questão central do pensamento contemporâneo: ultrapassar a separação entre pensar e ser, já que o grande empecilho para a exposição do mundo enquanto totalidade do ser, tarefa própria da filosofia, é, no pensamento contemporâneo, precisamente esse abismo insuperável entre a dimensão do sujeito e a dimensão da realidade. Isso leva a concentrar toda a esfera do conhecimento, do conceitual, no polo subjetivo dessa dualidade.

A filosofia crítica de Kant se radica nessa dicotomia rígida que tem suas raízes na escolástica tardo-medieval97 e que continua hegemônica no pensamento contemporâneo.”

90. Cf. PUNTEL, L. B. Estrutura e Ser. Op. cit., p. 29.

91. Cf. GADAMER, H. G. “Mensch und Sprache“. In: Gesamte Werke II. Tübingen: Mohr, 1986, p. 152. Tradução em português de: Maia-Flickinger, M. em: ALMEIDA, C. L. de; FLINCKINGER, H.-G.; ROHDEN, L. (orgs.). Hermenêutica Filosófica. Nas Trilhas de Hans-Georg Gadamer. Porto Alegre: Edipucrs, 2000, p. 125.

92. Cf. De anima III. 8. 431 b 21: “ή ψυχή τά όντα πωfiς έÃστι πάντα”. E que o sábio sabe tudo. Met. A 2 982 a 8. Cf. a respeito: MÜLLER, M. Philosophische Anthropologie. Op. cit., p. 43 e ss. Para Leibniz, o ser humano é uma mônada, cuja especificidade consiste em espelhar ou representar o todo. Cf. LEIBNIZ, G. W. Monadologie. Französisch/Deutsch. Stuttgart: Reclam, 1998, p. 62-63; 83.

93. Cf. LIMA VAZ, H. C. de. Antropologia Filosófica I. Op. cit., p. 211. Lima Vaz procura mostrar aí as origens platônicas dessa afirmação. Daí a tensão fundamental que marca o ser humano. Cf. HERRERO, F. J. “A recriação da tradição na antropologia filosófica de Pe. Vaz”. Síntese. Revista de Filosofia, v. 30, n. 96, 2003, p. 8: “Pois o ser do homem surge numa tensão entre a finitude e limitação da situação (eîdos), por um lado, e a infinitude ou ilimitação que aparece no ato de afirmação pela qual o sujeito se põe (thésis) a si mesmo no horizonte ilimitado do ser”.

94. Cf. PUNTEL, L. B. “A Totalidade do Ser, o Absoluto e o tema ‘Deus’”. Rev. port. de Filosofia, 60, 2004, p. 306-309.

95. Cf. ibidem, p. 307.

96. Cf. PUNTEL, L. B. Estrutura e Ser. Op. cit., p. 535.

97. Cf. LIMA VAZ, H. C. de. Raízes da modernidade. São Paulo: Loyola, 2002.

 

 

“A conclusão que se pode tirar de tudo o que foi dito até agora é que a linguagem tem um lugar simplesmente central numa teoria filosófica. Apel trata dessa problemática no contexto do desafio da transformação da filosofia transcendental, que para ele consiste basicamente numa mudança de seu esquema básico. Trata-se para Apel da passagem de uma filosofia da consciência, baseada na relação sujeito- objeto, para uma filosofia da linguagem, cujo centro é a relação sujeito-sujeito. Transforma-se a compreensão do conhecimento, que agora é entendido enquanto produto de um processo interativo do entendimento linguisticamente mediado, ou seja, trata-se no fundo de uma nova concepção de verdade, entendida, então, como a formação intersubjetiva de consenso na base de um entendimento linguístico (argumentativo).

No entanto, o elemento decisivo nesse processo de transformação é a mudança na própria compreensão da linguagem em relação a toda a tradição do pensamento ocidental, e é isso precisamente que vai exigir essa transformação da filosofia. Segundo Apel a tradição ocidental pensou a linguagem precisamente como um instrumento, um meio de designação e comunicação de um conhecimento realizado sem ela. O que constitui em última análise a reviravolta linguística é a compreensão de que a linguagem não se reduz a um instrumento de comunicação, mas constitui a mediação fundamental de nosso acesso ao mundo. Dessa forma a linguagem não é simplesmente um objeto empiricamente dado a ser analisado como qualquer outro objeto, mas a esfera em que todos os objetos nos são dados, ou seja, ela é condição de possibilidade e validade da compreensão e da autocompreensão e com isso do pensamento conceitual, do conhecimento de objetos e da ação sensata.112

Assim, todo conhecimento e toda ação no mundo são mediados linguisticamente, o que significa dizer que a linguagem articula todo o âmbito da experiência humana. Numa palavra, a linguagem é a condição, o pressuposto de todo conhecimento possível e válido, e a aceitação desta tese configura, para Apel, a articulação de um terceiro quadro fundamental para a filosofia, em substituição aos dois anteriores, ou seja, a filosofia do ser (metafísica) e a filosofia da consciência (filosofia transcendental anterior à reviravolta linguística).

Puntel defende também a tese da centralidade da linguagem na filosofia a partir, porém, de uma postura pós-transcendental. A filosofia enquanto teoria é uma exposição, uma articulação de saber, o que só pode ocorrer através de sinais palpáveis. Já foi dita a razão que justifica essa tese básica: o que possa ser aquela dimensão que se costuma denominar mundo/realidade/coisa mesma, ela possui de qualquer forma uma expressabilidade plena, sem a qual a teoria seria destituída de sentido. Ora, a expressabilidade só pode ser concebida como uma relação que implica uma relação inversa: a relação de expressar o que, por sua vez, implica uma instância que expressa – que é precisamente a linguagem que, assim, revela-se como um sistema semiótico da expressabilidade universal do mundo. Essa instância expressante contém tanto símbolos como conceitos, ou seja, o que é expresso por esses símbolos. Então, deve-se dizer que a expressabilidade universal do ser implica a dimensão do linguístico e do conceitual, que dessa forma se revelam como não sendo algo fora da dimensão do ser.

Dessa forma, tudo o que é conteúdo conceitual é articulado no seio da linguagem. Isso implica também como em Apel, embora em sentido fundamentalmente diferente, ocorre uma mudança radical na concepção de linguagem. Linguagem não é entendida como um meio para exposição ou expressão de conteúdos conceituais que de algum modo “existem” ou são “possuídos” independentemente da linguagem. Antes, linguagem constitui meio indispensável da expressão ou exposição, uma vez que, se compreendidos adequada e rigorosamente, os assim chamados “conteúdos conceituais” não existem sem sua articulação linguística. Isso significa dizer que os conteúdos conceituais, embora entidades não linguísticas, são dependentes da linguagem na medida em que são articuláveis; portanto, sua articulação linguística é um ingrediente essencial dos conteúdos conceituais.”

112. Cf. APEL, K.-O. Der transzendentalhermeneutische Begriff der Sprache. Op. cit., p. 333.

 

 

“5.1 “VISÃO DE CONJUNTO DA PROPOSTA DA FILOSOFIA SISTEMÁTICO-ESTRUTURAL

A filosofia se caracteriza por ser uma teoria das estruturas universais do “universo do discurso” ilimitado, o que implica integralidade da temática e a demonstração do nexo entre todos os componentes temáticos; ou seja, ela é fundamentalmente uma teoria geral da realidade como um todo. Dessa forma, sua primeira tarefa vai consistir no esclarecimento do conceito de teoria em geral e da teoria propriamente filosófica, ou seja, trata-se da sistemática da teoricidade como a dimensão da exposição filosófica. O conceito central nesse esclarecimento é justamente o conceito de “quadro referencial teórico” (ou modelo teórico, Theorierahmen), inspirado no conceito de quadro linguístico (linguistic framework) de Carnap, uma vez que todo enunciado teórico, toda formulação de um problema, toda argumentação, toda teoria, só são compreensíveis e avaliáveis no contexto de um quadro teórico. Trata-se aqui especificamente da proposta de trabalho de um quadro teórico para a filosofia enquanto saber sistemático, ou seja, enquanto teoria das estruturas universais do “universo do discurso” ilimitado – portanto, da totalidade do ser.

O objetivo de um projeto teórico é exprimir a compreensão de algo, ou seja, do conteúdo, da coisa em questão que, no caso da filosofia, recebeu diferentes denominações através da história do pensamento ocidental: ser, realidade, natureza, universo, mundo etc. Para Puntel, como vimos, justamente aqui se encontra um possível critério de classificação das diferentes posições filosóficas, uma vez que elas podem ser diferenciadas a partir da forma como pensam a relação entre a esfera do conceitual e a coisa a ser conceituada. A pergunta, então, é se o conceitual é determinado a partir da coisa a ser conceituada ou, ao contrário, a partir de duas posições extremas – que normalmente não encontramos nessa formulação radical de contraposição, mas em geral em formas mistas –, o que se pode mostrar até mesmo no pensamento de Kant, que em seu cerne se alicerça na dicotomia sujeito/objeto.

A proposta de uma filosofia estrutural parte da compreensão de que, no começo do empreendimento teórico, a dimensão da coisa a ser conceituada é vazia, enquanto que nos é disponibilizada em primeiro lugar a dimensão do conceitual, pois tudo o que fazemos em nível teórico já se situa nela, sem o que nada pode ser articulado. Por essa razão a investigação dessa dimensão, a tematização de seus momentos constitutivos, enquanto o quadro para a conceituação da coisa em si mesma, é a primeira tarefa da filosofia. Puntel denomina a dimensão do conceitual de “dimensão estrutural” e nesse contexto ele entende “estrutura185 como uma conexão diferenciada e ordenada, consequentemente enquanto relação e ação recíproca de elementos de uma entidade, de uma região ou de um processo. A estruturalidade implica a negação do simples ou da falta de conexão, e, nesse sentido intuitivo originário, estrutura constitui o conceito originário ou o fator primeiro de qualquer empreendimento teórico.

O quadro referencial teórico abrangente é constituído por dois tipos de estruturas: as estruturas formais e as estruturas de conteúdo. As estruturas constituem o cerne do quadro teórico e são o resultado da tematização dos três componentes essenciais que constituem um quadro teórico: a lógica, a linguagem (a semântica) e a relação à realidade (a ontologia). As estruturas formais são as estruturas lógicas e as matemáticas, e as estruturas de conteúdo são as semânticas e as ontológicas. Essa diferenciação foi compreendida na tradição moderna como manifestação da dicotomia entre linguagem e realidade.

No contexto de uma filosofia sistemático-estrutural, uma vez eliminada a dicotomia, ela é interpretada como distinção entre níveis estruturais, isto é, entre o nível mais universal – as estruturas lógicas e matemáticas que constituem a textura interna de cada discurso e de cada realidade – e o mais concreto – as estruturas semânticas e ontológicas. As estruturas formais, lógico-matemáticas, constituem o “expressum” de sentenças lógico-matemáticas; portanto, constituem o conteúdo dessas sentenças, nesse caso um conteúdo formal.

Pode-se exprimir toda essa problemática, segundo Puntel, numa fórmula curta, afirmando que “tudo é estrutura”, porém não no mesmo degrau, o que implica dizer que há estruturas intermediárias entre os extremos. A questão fundamental que se põe aqui é: qual é o quadro estrutural fundamental para a conceituação da totalidade do ser, do universo ilimitado do discurso, ou seja, que estruturas uma linguagem filosófica tem de ter? Que estruturas exprimem a inteligibilidade da totalidade do ser? Numa palavra, quais são as estruturas fundamentais lógico-matemáticas, semânticas e ontológicas que constituem o quadro de expressão da inteligibilidade da totalidade do ser?

Os dois tipos de estruturas, as formais (lógicas e matemáticas) e as de conteúdo (semânticas e ontológicas), constituem a dimensão estrutural fundamental e incluem tudo aquilo que na linguagem filosófica usual hoje é designado por conceitos como linguagem, aparato conceitual, aparato teórico, instrumental teórico etc. As estruturas constituem a dimensão da expressabilidade do universo. Dessa forma, o eixo de uma teoria filosófica é constituído pelas estruturas semânticas, porque sua especificidade é a configuração da relação linguagem-mundo: as expressões linguísticas significam e expressam algo. Linguagem é sempre linguagem de algo, e o mundo é sempre mundo que se expressa na linguagem, a instância de sua expressabilidade. Daí o papel fundamental que a linguagem tem numa teoria filosófica, e compete à filosofia esclarecer as implicações da linguagem para o tratamento dos problemas filosóficos. Entre as implicações mais importantes estão justamente as implicações ontológicas.”

185. Cf. PUNTEL, L. B. Estrutura e Ser. Op. cit., p. 34.

 

 

Como se deve entender, tematizar, conceitualizar, compreender, articular “ser” enquanto a dimensão originária, como a conexão abarcante de pensamento/espírito/linguagem e mundo/universo/ser,193 como a dimensão primordial? A primeira tarefa consiste em explicar o ser enquanto tal. A proposta de Puntel é que se leve em consideração como a dimensão do ser foi metodologicamente introduzida como dimensão primordial. Quais são os pressupostos e as implicações dessa introdução? É a resposta a essa questão que torna possível esclarecer os traços fundamentais do ser enquanto tal. O ponto de introdução se revela como relacionamento do espírito humano ao ser enquanto tal. Há três formas básicas de relacionamento do espírito humano com o ser enquanto tal: a relação teórica, a prática e a estética. No espírito humano correspondem a esses relacionamentos três faculdades: o intelecto, a vontade e a faculdade estética. A essas três formas de relacionamento e respectivamente a essas três faculdades correspondem, no ser enquanto tal, momentos estruturais ou características fundamentais.

À faculdade do intelecto correspondem três momentos estruturais. O primeiro é a expressabilidade universal do ser que resulta da centralidade da linguagem numa teoria filosófica. Na exposição da proposta da filosofia sistemático-estrutural, o universo do discurso emergiu em última instância como o ser enquanto tal. Ora, o universo do discurso pressupõe que ele seja expressável, articulável. O segundo momento é a inteligibilidade absolutamente universal, que é, assim, coextensiva com o ser enquanto tal. A palavra inteligibilidade, nesse contexto, exprime os diferentes modos do conceituar, do compreender, do explicar o ser e, assim, o momento conceituável, compreensível e explicável do ser. Todo empreendimento teórico só tem sentido se seu objeto for inteligível.

A dimensão do ser se manifesta como a conexão universal que inclui toda a dimensão do pensamento/espírito/linguagem. Seria, por isso, impensável que ela se situasse fora do pensamento/espírito/linguagem. Enquanto o ser enquanto tal se manifesta essencialmente enquanto essa constelação, ele é acessível a pensamento/espírito/linguagem. É precisamente esse “ser-acessível-a” o que constitui a inteligibilidade da dimensão do ser: o ser é, por isso, conceituável, explicável, compreensível. É esse o sentido da tese da tradição da identidade entre ser e pensar;194 e, assim, a dimensão originária é compreensível, conceituável, cognoscível – portanto, princípio universal da inteligibilidade de tudo.195 Essa é a razão por que todo ou qualquer ente é, em princípio e na medida mesma em que é, inteligível, portador de um logos, de uma estruturalidade imanente. Por fim, na medida mesma em que a dimensão originária é a inteligibilidade originária e a conexão originária entre tudo, então ela é a coerência universal, a estruturalidade universal, raiz de toda e qualquer estruturação, a estrutura originária e abrangente, pois conceber, compreender, articular, explicar algo significa essencialmente captar a conexão e com isso a coerência em que esse algo se encontra. Nesse sentido, coerência significa sistematicidade.

Uma quarta característica fundamental, imanente, estrutural, distingue-se das que foram apresentadas, já que elas se revelaram a partir da explicação do ser primordial com respeito ao intelecto. Agora emerge uma quarta característica à medida que se explica o ser primordial com respeito à outra faculdade humana equioriginária ao intelecto, ou seja, a vontade. Para designar esse momento estrutural, a grande tradição metafísica196 usou as palavras “bem” ou “bom”; esse momento foi considerado a partir da vontade como seu objeto formal, isto é, como o ponto de vista a partir do qual a vontade se relaciona com todos os seus objetos. Sob o ponto de vista do ser, a bondade foi considerada como aquele momento estrutural que corresponde à vontade. Numa palavra, o que quer que queira a vontade em cada caso, ela o faz sempre a partir da perspectiva do bem, pois é justamente esse relacionamento ao bem o que define a vontade enquanto vontade. Assim, o quarto momento estrutural do ser pode ser designado como “bondade universal“; a dimensão originária é, então, a fonte de toda e qualquer amabilidade dos entes, ou seja, o fundamento de todo e qualquer bem197 e o princípio imanentemente presente em qualquer bem e, igualmente, transcendente a tudo.

Na tradição metafísica, um quinto momento estrutural foi denominado beleza. Esse momento estrutural foi determinado a partir da ideia de consonância dos outros momentos estruturais do ser, o que é uma forma de pensar a unidade dos momentos estruturais.

A partir daqui surge a questão da compreensão da totalidade enquanto tal, ou seja, de uma explicação holístico-argumentativa-conceitual da totalidade do ser, do ser em seu todo, o que vai conduzir a uma compreensão da totalidade como constituída por uma dupla dimensão: uma dimensão absoluta (ou absolutamente necessária) e uma dimensão não absoluta, isto é, contingente. Num passo seguinte se revela que a dimensão absolutamente necessária tem de ser pensada como ser espiritual ou pessoal absolutamente necessário e, por isso, deve ser pensada mais precisamente como liberdade absoluta, de tal modo que a questão aqui é de como deve ser compreendida a relação entre o ser livre absolutamente necessário e a dimensão contingente dos entes. A dimensão contingente é, enquanto tal, totalmente dependente da dimensão absolutamente necessária.

Isso significa dizer que os entes contingentes não são necessariamente, eles não são a partir de si mesmos, o que significa dizer que o fato de que “eles são” não é explicável a partir deles mesmos. Se os entes contingentes não vieram a ser a partir de si mesmos ou através de si mesmos, eles vieram a ser a partir de outro fator que só pode ser de acordo com tudo o que já foi dito: o ser absolutamente necessário. Sendo o ser absolutamente necessário a “liberdade absoluta”, a dimensão contingente do ser veio a ser através da liberdade absoluta do ser absolutamente necessário.

O absoluto-pôr-no-ser-efetuado-pelo-ser-absolutamente-necessário-livre-visando-à-dimensão-contingente, no sentido esclarecido, é o que significa a ideia da criação adequadamente articulada.198 Determinações maiores dessa esfera primordial são possíveis, para Puntel, na medida em que a filosofia se volta para a história, para a história da humanidade e de modo muito especial para a história das religiões, que manifestam a pretensão de articular as ações livres da dimensão absolutamente necessária na história humana.”

193. Cf. PUNTEL, L. B. Estrutura e Ser. Op. cit., p. 550 e ss.

194. O que, no ser finito, é apenas identidade relativa, intencional; isso significa que aqui o conhecer é fazer emergir o outro na interioridade do sujeito, numa identificação formal e não real com ele. Cf. CORETH, E. Metaphysik. Eine methodisch-systematische Grundlegung. Innsbruck/Viena/Munique, 1964, 2ª ed., p. 358.

194. LIMA VAZ, H. C. de. Antropologia. Op. cit., p. 223: “No homem o espírito é formalmente idêntico ao ser universal, sendo capaz de pensá-lo. Mas é realmente distinto dos seres na sua perfeição existencial : a eles pode livremente inclinar-se, mas não realmente identificar-se com eles, o que configura o paradoxo profundo da contemplação e do amor”. OLIVEIRA, M. A. de. “Filosofia enquanto autorreflexão da razão”. In: A Filosofia na Crise da Modernidade. São Paulo, 1989, p. 135: “A realidade se manifesta aqui na interioridade do sujeito, pois o processo do conhecimento, a teoria, aparece essencialmente como um processo de interiorização da realidade [...]. Essa dimensão é antes de tudo uma dimensão de manifestação, pois é à medida que algo se interioriza que ele manifesta o próprio sentido [...]”.

195. ARISTÓTELES. De Anima, III, 431b 21. Cf. AQUINO, T. de. De Veritate, q.1 a 1c. MARC, A. La Dialectique de l’Affirmation: essai de Métaphysique réflexive. Paris, 1952. CORETH, E. Op. cit., p. 354. LIMA VAZ, H. C. Antropologia Filosófica II. São Paulo, 1992, p. 104: “Presença que se descobre [...] transcendental, porque nessa e por essa intuição da presença do ser, a inteligência vê aberto o horizonte de inteligibilidade ilimitada no qual o ser se manifesta, e vê igualmente que é situado nesse horizonte que todo e qualquer ente particular pode ser conhecido”. Para J. B. Lotz, o ser é verdade, ou a razão formal da verdade é o ser; daí por que todo ente, porque e enquanto a ele compete o ser, é verdadeiro. Cf. LOTZ, J. B. Ontologia. Op. cit., p. 118.

196. Cf. PLATÃO. República (sobretudo o livro VI). ARISTÓTELES, Met. I, 7; Et. Nic. I, 6; VIII, 2-5. Para Tomás de Aquino, o bem é o perfeito. Cf. Cont. Gent. I, 37: “Naturaliter enim uniuscujusque bonum est actio et perfectio”. S.th. I, 5 3: “Perfectum habet rationem appetibilis et finis”.

197. Em De Ver. 24, 7, Tomás chama esse fundamento absoluto de: “ipsum universale bonorum principium”.

198. Cf. PUNTEL, L. B. Ser e Deus. Op. cit., p. 229

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A esta altura surge uma questão decisiva: depois de tudo que foi dito, como pode ser um discurso sobre o ente? Duas dificuldades emergem aqui: 1) a questão da apresentação do ente como tal. É necessário haver tal apresentação? Tudo indica que o ente esteja compreendido em tudo o que uma apresentação apresenta, mas não é concebível que ele possa apresentar-se enquanto ente; 2) se a ontologia é uma situação, ela admite um modo de “conta-por-um”, ou seja, uma estrutura. Mas a “conta-por-um” do ente não nos reconduz às aporias em que ente e um são reciprocáveis? Mas se o um é apenas o resultado da “conta-por-um”, não se faz necessário dizer que o ente não é um?

A grande tentação das ontologias aqui, para Badiou, é afirmar que a ontologia não é uma situação, e que, portanto, o ente não pode significar no múltiplo estruturado. A única saída, então, consistiria em afirmar que somente uma experiência situada além de toda estrutura nos abre acesso ao velamento de sua presença, o que se manifesta conceitualmente, por exemplo, nas teologias negativas que instituem o um do ente arrancado ao múltiplo, e nomeável unicamente como o “outro absoluto”. Esse tipo de ontologia Badiou denomina “ontologia da presença” (ontologia não matemática, poética) que é radicalmente contraposta a seu projeto de ontologia, uma vez que a presença é exatamente o contrário da apresentação que é o ser múltiplo tal como efetivamente exposto. Do ponto de vista linguístico, a linguagem poética é a mais adequada para a ontologia da presença.

Conceitualmente, para Badiou uma ontologia existe no regime positivo da predicação e até da formalização, ou seja, na experiência da invenção dedutiva. Assim, a contraposição à ontologia da presença vai consistir no “rigor do subtrativo em que o ente não é dito senão por ser inconjecturável por toda presença e por toda experiência”.65 Daí sua tese central em contraposição às ontologias da presença: a ontologia só pode ser uma “teoria das multiplicidades inconsistentes enquanto tais”.

Ela é, assim, a ciência do múltiplo enquanto múltiplo, o que significa dizer que seu tema axial é a multiplicidade inconsistente. Uma questão permanece aqui em aberto: onde está o ponto de ser absolutamente inicial? Para Badiou, aqui se põe precisamente a questão explicitada por Leibniz: por que existe algo e não nada? De que múltiplo primeiro se afirma a existência? Esse constitui para Badiou o problema central da sutura subtrativa da teoria dos conjuntos, e para ele isso implica afirmar que a primeira multiplicidade apresentada tem de ser múltipla de nada, que é justamente o nome da inapresentação na apresentação, pois do contrário ela seria múltipla de alguma coisa que, enquanto tal, estaria na posição do um: “[...] o inapresentável não pode vir à linguagem senão como o que é ‘múltiplo’ de nada.66

O nada nomeia precisamente o indizível da apresentação,67 que é tanto da estrutura, da consistência, quanto o nada do múltiplo puro, isto é, da inconsistência. Enquanto tal ele é uma sutura ao ente, uma sutura ontológica, a existência de um inexistente. Portanto, qualquer composição só pode ser feita a partir desse “múltiplo- de-nada”, ou seja, do “vazio”, que assim se constitui como o nome próprio do ente e como sua segunda categoria fundamental. Numa palavra, “o único termo de que se tecem as composições sem conceito é forçosamente o vazio”.68

Esta é também uma lei de toda apresentação, ou seja, a errância do vazio, a inapresentabilidade como não encontro, o que significa afirmar que a ontologia é obrigada a propor uma teoria do vazio. Daí a afirmação: “[...] toda apresentação estruturada inapresenta ‘seu’ vazio, no modo desse ‘não um’ que nada mais é do que a face subtrativa da conta”.69 A ontologia é a teoria do múltiplo inconsistente de qualquer situação, numa palavra, do múltiplo subtraído a toda lei particular, a toda “conta-por-um”. Como diz Madarasz: “Para Badiou, torna-se necessária a identificação entre ontologia e matemática. A razão é que a multiplicidade sem unidade quebra a série unificadora entre infinito, um e absoluto”.70

Ora, o modo próprio como a inconsistência vagueia no todo de uma situação é o nada, e o modo como ela se inapresenta é a subtração à conta, o “não um”, o vazio. “[...] O vazio é esse ponto insituável que revela que ‘o-que-se-apresenta’ vagueia na apresentação sob a forma de uma subtração à conta”.71 Dessa forma, o tema absolutamente primeiro da ontologia é o vazio, ela não pode contar como existente senão o vazio que se caracteriza por sua onipresença: “O vazio, a que nada pertence, inclui-se por isso mesmo no todo”,72 o que se articula no teorema de que o conjunto vazio seja um subconjunto de não importa que conjunto supostamente existente. De tudo o que não é apresentável se pode inferir que ele é apresentado em toda parte em sua falta como inclusão, ou seja, o vazio está em situação de inclusão universal.

Isso implica dizer que há duas relações possíveis entre múltiplos, o que para Badiou constitui uma distinção conceitual crucial: a relação de “pertença” (Î) (um múltiplo é contado como elemento na apresentação de um outro, o que permite pensar o múltiplo puro sem recorrer ao Um) e a relação de “inclusão” (Ì) (um múltiplo é um subconjunto de um outro). Elas dizem respeito a dois operadores de conta distintos, e não a duas maneiras de pensar o ente do múltiplo. Um termo de uma situação é o que essa situação apresenta e conta por um. Pertencer a uma situação significa ser apresentado por essa situação, ser um dos elementos que ela estrutura. Estar incluído numa situação quer dizer ser contado pelo estado da situação.

Nesse contexto, Badiou demonstra o que ele denomina o “teorema do ponto de excesso” (a terceira categoria do ente): o múltiplo dos subconjuntos compreende forçosamente ao menos um múltiplo que não pertence ao conjunto inicial. Isso significa dizer que nenhum múltiplo está em condições de “fazer-um” de tudo o que inclui, ou seja, o recurso imanente de um múltiplo apresentado ultrapassa a capacidade de conta da qual ele é o “resultado-um”. Daí a necessidade para numerar esse recurso da introdução de uma potência de conta que não é ele mesmo. O excesso é a reduplicação representativa da estrutura da apresentação.

Em toda essa consideração está sempre pressuposta a “apresentação”, que é, para Badiou, a palavra primitiva da meta-ontologia, pois ela é o ser múltiplo como efetivamente exposto e, por isso, é reciprocável com a multiplicidade inconsistente. Por sua vez, Badiou denomina um termo como “normal” quando ele é ao mesmo tempo apresentado na situação e representado pelo estado da situação. Assim, um termo normal pertence à situação e também está incluído nela. Enquanto tal, a normalidade é um atributo essencial do ser natural. A “natureza” (quarta categoria do ente) é a normalidade recorrente, ela é a forma de estabilidade e de homogeneidade do manter-se múltiplo, um equilíbrio maximal entre apresentação e representação, entre a pertença e a inclusão, entre a situação e o estado de situação.

Ora, a tese dos modernos é que “a natureza é infinita”, o que significa dizer que, em contraposição ao pensamento grego que dava à infinitude a função de distribuição das regiões do ente em seu todo (Deus e a natureza criada),73 a infinitude na modernidade passa a ser uma característica do ente enquanto ente sob a forma da noção de conjunto infinito, que decide a expansão do múltiplo natural além de seu limite grego. Dessa forma, o ente é infinito, pois nenhum limite imanente determina a multiplicidade enquanto tal sob pena de se reintroduzir a unidade.74 Somente o ente é infinito, e o finito é útil para se pensar as diferenças empíricas, ou seja, os entes intrassituacionais. Essa é, para Badiou, a quinta categoria do ente. Essa ontologização matemática do infinito (ontologia do infinito) o separa absolutamente do um, o que significa dizer que há necessariamente múltiplos infinitos, e isso ao infinito. Numa palavra, a tese da infinidade é necessariamente uma decisão ontológica, isto é, um axioma.

Com a matematização da ontologia, Badiou toca numa questão básica da história da filosofia ocidental. O fundamental aqui é ter presente que essa história foi sempre marcada por uma determinada concepção da relação entre estruturas lógico- matemáticas e estruturas ontológicas. A característica básica dessa concepção é a tese da dicotomia entre as estruturas lógico-matemáticas – que nessa concepção se referem à esfera da linguagem, no sentido de que elas têm a ver com a formulação de modelos abstratos da realidade (do mundo), mas que não se referem diretamente à própria realidade – e as estruturas ontológicas que se referem ao mundo.

Badiou, matematizando a ontologia, rompe com essa dicotomia, uma vez que, para ele, as matemáticas constituem o discurso em que o ente, enquanto ente, é dito; portanto, as estruturas matemáticas são diretamente ontológicas, possuem em si mesmas um caráter ontológico, ou seja, as matemáticas são os fatores de configuração da própria realidade. No entanto, duas questões podem ser levantadas aqui em relação à sua proposta de matematização da ontologia. A primeira é decorrente de sua não tematização da problemática da teoricidade, ou seja, do caráter teórico da filosofia enquanto tal.75

A teoricidade é aquela dimensão em que teorias são desenvolvidas, ou seja, ela é a forma de discurso metódico e rigorosamente ordenado que é configurado através de sentenças puramente declarativas. Filosofia é entendida estritamente enquanto teoria, de forma que, antes de tudo, é necessário esclarecer a dimensão teórica em geral e a concepção de uma teoria filosófica em particular. Portanto, a primeira tarefa da filosofia consiste no esclarecimento de toda a dimensão da teoricidade, ou seja, de seus componentes irrenunciáveis.

Esse objetivo se cumpre, para Puntel,76 em primeiro lugar pela introdução do conceito de “quadro referencial teórico”, que é a totalidade dos fatores que preenchem esses requisitos necessários. Isso significa dizer que qualquer afirmação nossa, qualquer concepção e, de modo especial, qualquer teoria só tem sentido, ou seja, um status determinado e claro, na medida em que se encontra situada no seio de um quadro teórico. Isso tem consequências fortes para a filosofia: antes do tratamento de qualquer questão filosófica, temos de dispor de uma linguagem, de uma lógica, de uma semântica, de uma conceitualidade ontológica fundamental; numa palavra, temos de ter clareza de todos os componentes de um quadro teórico adequado.

Badiou não empreendeu uma análise adequada dos elementos constitutivos de um quadro teórico que ele na realidade faz coincidir pura e simplesmente com a estrutura formal matemática, e sua consideração se reduz a ela. Por essa razão, falta aqui a compreensão de que as estruturas matemáticas, embora ontológicas, constituem ainda um nível extremamente abstrato do dizer a realidade, pois são as estruturas mais gerais, as irrestritamente universais, “já que elas constituem, por assim dizer, a ‘textura’ interna de cada discurso e, desse modo, também de cada ‘item’ ontológico”.77 Na medida em que toda a esfera da teoricidade é considerada, vê-se que se deve falar de um processo de determinação que vai das estruturas mais abstratas, as estruturas formais, às mais concretas, as estruturas ontológicas, que desse modo constituem o ponto final do discurso teórico-filosófico. A simples identificação de matemática e ontologia tem o mérito de entender o caráter ontológico da matemática, mas não exprime a dimensão ontológica em sua abrangência.

Outra questão é a da teoria matemática que aqui é considerada adequada para dizer o ente enquanto ente: a teoria dos conjuntos. Uma análise das estruturas semânticas e das estruturas ontológicas, como componentes irrenunciáveis de uma teoria, e uma crítica radical da semântica e da ontologia composicionais, a que ainda está ligada a teoria dos conjuntos, teria mostrado a sua inadequação como instrumento formal para a expressão do real.78 R. Nierenberg e D. Nierenberg defendem a tese de que a base matemática sobre que Badiou constrói sua ontologia é apenas convencional, o que tem como consequência que também sua ontologia é convencional.79 Além disso, a ontologia implícita nos axiomas de Zermelo e Fraenkel, em que se baseia Badiou, é extremamente restrita e incapaz, por essa razão, de constituir a base de uma ontologia geral. Esses axiomas só admitem objetos e conjuntos de alguns tipos: números, estruturas e aqueles objetos que são sempre os mesmos e não afetáveis por qualquer tipo de acontecimento, como, por exemplo, as mônadas de Leibniz ou os fatos atômicos no espaço lógico do Tractatus de Wittgenstein.

Tal ontologia tem, então, de afirmar que os objetos matemáticos são os únicos reais, e a matemática é o único conhecimento real.80 No entanto, não se pode negar que mesmo nos níveis mais baixos as entidades são afetadas por interações e resistem a ser reduzidas a números imutáveis. Por essa razão, a rejeição do afetável é catastrófica para a ontologia geral, pois ela nos priva da maior parte de nossos pensamentos – o que significa dizer, de nossa humanidade.”

65. Cf. BADIOU, A. O Ser e o Evento. Op. cit., p. 32.

66. Cf. BADIOU, A. O Ser e o Evento. Op. cit., p. 61.

67. Para R. Nierenberg e D. Nierenberg, a solução que Badiou apresenta aqui é simplesmente uma assunção, uma escolha, e não algo matemática e logicamente necessário. Cf. NIERENBERG, R.; NIERENBERG, D. Badiou’ s Number: A Critique of Mathematics as Ontology”. Critical Inquiry, 37.4, 2011, p. 591: “The important point to note here is that the ‘solution’ Badiou presents to the question ‘is there something rather than nothing’, the ‘verification’ of the ‘unpresentable alone as existing’, is an assumption, a matter of a choice, not of mathematical or logical necessity”.

68. Cf. BADIOU, A. O Ser e o Evento. Op. cit., p. 53.

69. Cf. ibidem, p. 52.

70. Cf. MADARASZ, N. R. O múltiplo sem um. Op. cit., p. 38.

71. Cf. BADIOU, A. O Ser e o Evento. Op. cit., p. 402.

72. Cf. ibidem, p. 77.

73. Cf. BADIOU, A. O Ser e o Evento. Op. cit., p. 120: “Foi da óptica da hipótese, não de um ser infinito, mas de múltiplos números infinitos, que a revolução intelectual dos séculos XVI e XVII provocou no pensamento a ruptura arriscada da interrogação sobre o ser, e o abandono irreversível da montagem grega”.

74. Cf. DIAS, B. M. F. P. Acontecimento, Verdade e Sujeito. Op. cit., p. 56.

75. Cf. PUNTEL, L. B. Estrutura e ser. Op. cit., p. 228 e ss.

76. Cf. PUNTEL, L. B. Estrutura e ser. Op. cit., p. 11 e ss.

77. Cf. idem. Ser e Deus. Um enfoque sistemático em confronto com M. Heidegger, É. Lévinas e J.-L Marion. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2011, p. 157.

78. Cf. PUNTEL, L. B. Estrutura e ser. Op. cit., p. 353-356; 566-572.

79. Cf. NIERENBERG, R.; NIERENBERG, D. Badiou’ s Number. Op. cit., p. 599: “In short, the mathematical basis which Badiou builds is conventional, and therefore whatever ontology results will be similarly conventional, even if it be a purely mathematical ontology, let alone the more general ontology Badiou proposes”.

80. Cf. ibidem, p. 606-607: “An ontology that takes ZF set theory as its basis must deny reality to that which is affected; it must take math as the only real knowledge and the mathematical objects as the only real beings, as Badiou himself repeatedly asserts”.

 

 

“4.3.1.1 O paradigma do saber fundamental no pensamento ocidental

A filosofia do acaso articulada por K. Utz112 se apresenta como um projeto teórico que tem como pretensão básica articular, a partir de um único pensamento, os traços fundamentais de uma ontologia, de uma epistemologia e de uma teoria da práxis humana; numa palavra, articular a configuração própria da filosofia enquanto empreendimento teórico.113 Isso significa, do ponto de vista da ontologia, uma proposta de uma ontologia monocategorial114 e, do ponto de vista da filosofia como um todo, a articulação de uma filosofia sistemática no sentido de que a partir da categoria básica de acaso são tematizados os conteúdos que constituem o objeto da reflexão filosófica e suas conexões fundamentais, suas ordenações determinadas.115

A reflexão encontra seu ponto de partida naquilo que o autor denomina o “traço redutivo” da ciência e da filosofia: o procedimento do conhecimento consiste fundamentalmente na recondução da variedade de fenômenos e dados a algo mais simples, mais abrangente, mais universal – numa palavra, a um fundamento. Esse procedimento não é algo específico do saber científico, mas ocorre em nossa vida cotidiana em cada pergunta “por que”, e consiste basicamente na busca de algo que supere o imediatamente dado e ao qual este possa ser reconduzido, ou seja, possa exprimir-se em sua inteligibilidade.

Essa forma de o ser humano estar no mundo encontrou um alargamento numa dupla direção: a) na medida em que foi efetivado de maneira consciente e metódica no conhecimento científico; 2) na medida em que foi estendido até as questões últimas e fez-se busca de um fundamento último, de algo que tudo abrange, de algo absolutamente simples. O conhecimento que tematizou essas perguntas foi considerado a ciência suprema e última, e denominado, em nossa tradição, de “metafísica116 enquanto ciência do “último” e do “primeiro”. O que é o último, o primeiro, o fundamento último, é a pergunta central da metafísica.

Para Utz, nossa tradição encontrou dois conceitos básicos como resposta a essa questão: a metafísica pode, em primeiro lugar, significar a recondução de toda a multiplicidade das coisas e suas manifestações a algo que lhes é comum, de que todos participam. Aqui a metafísica se faz ciência do ser, “ontologia”, pois o ser é o que é comum a todos os entes. Mas a recondução pode também ser entendida como abstração de toda particularidade, de tudo o que distingue um do outro. Aqui a metafísica se faz “ciência do uno”, “henologia”.

De qualquer forma o que caracteriza essa forma de interpretar o conhecimento humano é que ele é fundamentalmente busca de fundamento, quer seja busca dos fundamentos dos fenômenos nas ciências, quer seja busca do fundamento último na metafísica.117 Tendo aceitado o axioma fundamental de que todo contingente tem uma causa, essa causa não pode ser outro contingente, pois isso só repõe a pergunta pela causa suficiente, uma vez que nenhum contingente é causa suficiente de sua existência, e que a série de causas não pode continuar indefinidamente; então, tem de haver algo absolutamente necessário como fundamento suficiente último de tudo.

Numa palavra, o fundamento é o que sustenta o ser do fundado; sem o fundamento o fundado é nada. Porque o contingente existe, então tem de haver o ser necessário como fundamento do contingente. Essa é a formulação de Tomás de Aquino daquilo que constitui o cerne da metafísica ocidental.118 Dessa forma, a pergunta pela causa119 de qualquer conteúdo com que nos deparamos é plena de sentido e promete ter sucesso inclusive na persecução da corrente de fundamentos até o fundamento último.

Para a metafísica, a relação de fundamento é em certo sentido paradoxal: por um lado, o que fundamenta é, de certa forma, encontrável no fundado, é-lhe imanente, mas por outro lado lhe é transcendente numa relação que é essencialmente assimétrica; na medida em que o fundamento supera o fundado, ele nunca é completamente encontrável no fundado. Daí por que a recondução só funciona numa direção: o fundado é reconduzido ao fundante, mas o contrário nunca pode ocorrer plenamente.”

112. Cf. UTZ, K. Philosophie des Zufalls. Ein Entwurf. Paderborn/Munique/Viena/Zurique: Ferdinand Schöningh, 2005.

113. Cf. a respeito do debate contemporâneo sobre o conceito de teoria e da especificidade de uma teoria filosófica: PUNTEL, L. B. Estrutura e ser: um quadro referencial teórico para uma filosofia sistemática. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2008, p. 159-186.

114. Toda a problemática é apresentada aqui no contexto do que nesse livro se chamou de ontologia no sentido estrito, ou seja, de uma “teoria dos entes” (e não do ser, no sentido de Heidegger, ou no de Utz, para quem ser é sinônimo de existência); mais especificamente, teoria dos entes e do Ente Supremo como seu fundamento de modo que a problemática do ser necessário entraria para Heidegger no que ele denominou de “onto-teo-logia” como característica fundamental do pensamento ocidental.

115. Cf. UTZ, K. Philosophie des Zufalls. Op. cit., p. 80.

116. M. Müller interpreta a metafísica desde Aristóteles como sendo fundamentalmente “arqueologia”, busca do primeiro, a verdade, e “escatologia”, busca do último, a salvação. Cf. MÜLLER, M. “Das Erste und Das Letzte (Wahrheit und Heil)”. In: Erfahrung und Geschichte. Grundzüge einer Philosophie der Freiheit als transzendentale Erfahrung. Friburgo/Munique: Karl Alber Verlag, 1971, p. 17-42.

117. Pensar o fundamento é para Heidegger a essência da metafísica. Cf. HEIDEGGER, M. “A constituição onto-teo-lógica da metafísica”. In: Escritos e Conferências. Trad. de E. Stein. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 193: “A metafísica pensa o ser do ente, tanto na unidade exploradora do mais geral, quer dizer, do que em toda parte é indiferente, como na unidade fundante da totalidade, quer dizer, do supremo acima de tudo. Assim é previamente pensado o ser do ente como fundamento fundante. Por isso toda a metafísica é, basicamente, desde o fundamento, o fundar que presta contas do fundamento, que responde a ele e, por fim, exige-lhe contas”.

118. A respeito de uma consideração crítica ao argumento de Tomás de Aquino, cf. PUNTEL, L. B. Ser e Deus. Um enfoque sistemático em confronto com M. Heidegger, É. Lévinas e J. L. Marion. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2011, p. 53-57.

119. Que a tradição pensou a relação entre o ser contingente e o ser absolutamente necessário a partir do conceito de causalidade é uma questão indiscutível. Isso não significa, contudo, dizer que esse enfoque é indispensável e muito menos que é o enfoque adequado para o tratamento dessa problemática. Cf. ibidem, p. 230-231.

 

 

4.3.1.3 A lógica como a metafísica depois da virada paradigmática

Hegel —125 na esteira da virada kantiana em que se eliminou a pergunta pelo fundamento último do ser e se passou para as ordenações de relação – articulou uma nova pergunta, a pergunta pela origem da ordenação, da mediação e da determinação. Sua ideia básica é que, se a necessidade não mais se apresenta num imediato, mas em formas de relação e mediação, então a mesma pergunta que fora dirigida ao imediato se dirige agora à mediação: a que são redutíveis as ordenações de relação? Como é a redução suprema das formas de relação? Qual é a condição suficiente para a mediação determinada e determinante? Qual é a origem da determinação? Essas são as perguntas da nova “filosofia primeira”, da nova metafísica.

Numa palavra, quando todo conteúdo e toda necessidade se põem nas ordenações de relação, então a pergunta fundamental é pela possibilidade do ser mediado, ou seja, a pergunta pelo que é precisamente a determinação. Essa é a nova pergunta da metafísica depois de Kant, e, enquanto tal, essa nova metafísica é lógica, porque a lógica contém as ordenações de relação últimas, intranscendíveis e que determinam tudo.

Nesse sentido, a lógica se constitui como a “esfera suprema de redução”, na compreensão moderna da ciência, e dessa forma ela se constitui como a “ciência primeira” num tempo pós-metafísico, capaz de eliminar de forma radical qualquer ordem do ser – como ainda ocorreu com Kant, que conservou a “ordem do ser” do sujeito, uma vez que a ordenação do aparato do conhecimento se situava no sujeito real. Na lógica desaparece a referência a qualquer ordem de sujeito,126 o que significa dizer que a ideia básica de redução se conservou no novo paradigma, e o que mudou é justamente a esfera da redução.

No entanto, faz-se necessário ter clareza de que a lógica enquanto ciência primeira se distingue radicalmente do que hoje denominamos lógica formal, que se entende a si mesma como a ordenação universal, não temporal e intranscendível. A lógica de Hegel é uma “lógica da determinação”, que é aquilo através de que algo pode entrar numa relação específica com outro. A pretensão de Hegel na lógica é apresentar a totalidade dos conceitos fundamentais de nosso pensamento, em sua determinação, e seu lugar no sistema dos conceitos. Sua lógica não teve, contudo, o sucesso que pretendia; em primeiro lugar, por sua pretensão de absolutidade; mas também porque nem sempre se compreendeu o que Hegel realmente pretendia, ou não se entendeu verdadeiramente que sua pergunta constituía um problema a ser levado a sério. O resultado é que o problema da determinação permaneceu amplamente desconsiderado.”

125. Cf. UTZ, K. Die Notwendigkeit des Zufalls. Hegels spekulative Dialektik in der “Wissenschaft der Logik”. Paderborn/Munique/Viena/Zurique: Ferdinand Schöningh, 2001.

126. Com isso se atinge o cerne do esquema transcendental de pensar. Cf. OLIVEIRA, M. A. “A crítica hegeliana à Filosofia da Subjetividade”. Antropologia Filosófica Contemporânea. Op. cit., p. 108-115.

 

 

As diferentes posições filosóficas40 podem ser classificadas a partir de como elas pensam a relação entre o compreender e a coisa a ser compreendida. A pergunta básica aqui é, então, se o compreender se determina a partir da coisa a ser compreendida ou ao contrário. Para a primeira posição,41 nós não criamos, produzimos ou constituímos o mundo efetivo, mas, antes, o encontramos: o mundo efetivo nos é pré-dado, ou seja, apreendemos a realidade sem conceito, sem linguagem,42 sem teorias, o que se mostra em muitas experiências. Uma coisa é a apreensão da realidade; outra, sua compreensão.

Nesse caso, a verdadeira tarefa de uma atividade teórica consiste em descobrir o mundo, aprendê-lo, descrevê-lo e explicá-lo como ele é para além de nossos esquemas conceituais, e independente deles. O mundo, portanto, situa-se fora do conceitual e possui suas leis próprias: isso constitui o cerne do realismo. Essa tese fundamental é retomada hoje pelo chamado “novo realismo”. Assim, M. Ferraris, em seu Manifesto del Nuovo Realismo, afirma que os pós-modernos se caracterizam por confundir a ontologia com a epistemologia, ou seja, confundem o que é com o que conhecemos acerca do que é. É claro que, para conhecer que água é H2O, precisamos de linguagem, esquemas e categorias. Mas o que a água é, ela o é independentemente se a conheço ou não, e para além de nossos esquemas categoriais.43

A posição contraposta – normalmente é denominada “idealista” pelos realistas, mas hoje se fala mais de antirrealismo – procura revelar a ingenuidade dessa primeira posição apontando para a mediação inevitável de um sistema conceitual em toda atividade teórica, de tal modo que uma realidade completamente isenta de esquemas conceituais constitui uma impossibilidade. Realidade, mundo, universo, só tem sentido no interior de um esquema conceitual por nós articulado. Nós distinguimos os objetos através da introdução deste ou daquele esquema conceitual. Nós já sempre estamos em relação com o mundo pela atividade conceitual, de modo que, fora desta relação a um esquema conceitual, o mundo é simplesmente ininteligível. Falar de independência do mundo não significa falar que ele se situe fora da esfera conceitual.

Nessa ótica, os antirrealistas articularam uma crítica radical à concepção clássica empirista do conhecimento, como também à sua reformulação no Círculo de Viena, que concebe o conhecimento como a combinação de lógica e dado empírico. Uma primeira questão acentuada aqui, já antes da reviravolta linguística, é a do caráter criativo do trabalho científico, ou seja, da formação de nossos conceitos e de nossos projetos teóricos. Como acentua Einstein,44 não se pode esquecer, como faz o empirismo, que nossos conceitos são criações livres do pensamento que não podem simplesmente vir indutivamente de nossas vivências sensíveis. O costume de vincular determinados conceitos a determinadas vivências nos pode levar a esquecer o enorme abismo entre conceitos e vivências, entre o mundo dos conceitos e sentenças e o mundo das vivências sensíveis.”

40. Cf. PUNTEL, L. B. Estrutura e ser. Op. cit., p. 206.

41. Cf. PUNTEL, L. B. Grundlagen einer Theorie der Wahrheit. Berlim/Nova York: de Gruyter, 1990, p. 266 e ss.

42. Há filósofos que distinguem entre significado linguístico e conteúdos mentais. Cf. MILLER, A. Filosofia da Linguagem. São Paulo: Paulus, 2010, p. 208: “Filósofos chamam estados mentais, tais como crenças, desejos, vontades, intenções, esperanças, e assim por diante, de atitudes proposicionais. Podemos dizer que, enquanto sentenças possuem significado linguístico, atitudes proposicionais possuem conteúdo mental”. Cf. a respeito: BRANQUINHO, J. “Atitude proposicional”. In: BRANQUINHO, J.; MURCHO, D.; GOMES, N. G. (orgs.). Enciclopédia de Termos Lógico-filosóficos. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 72- 78.

43. Cf. FERRARIS, M. Manifesto del Nuovo Realismo. Roma: Ed. Laterza, 2013, 6ª ed.

44. Cf. EINSTEIN, A. “Bemerkungen zu Bertrand Russells Erkenntnistheorie”. In: SCHILPP, P. A. (org.).