Editora: L&PM
ISBN: 978-85-2541-665-0
Tradução: Paulo
Neves
Opinião: ★★★★☆
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Páginas: 152
Sinopse: Ver Parte
I
“Toda ação livre tem duas causas, que concorrem
para produzi-la: uma, moral, a vontade que determina o ato, e a outra, física, o
poder que a executa. Quando caminho na direção de um objeto, primeiro é necessário
que eu lá queira ir; em segundo lugar, que meus pés me levem. Se um paralítico desejar
correr, se um homem ágil não o quiser, ambos não sairão do lugar. O corpo político
possui móbiles idênticos, nele também distinguem-se a força e a vontade, esta sob
o nome de poder legislativo, a outra sob o nome de poder executivo.
Sem a cooperação de ambas, nada se faz ou se deve fazer. Vimos que o poder legislativo
pertence ao povo e só a ele pode pertencer. É fácil perceber pelos princípios anteriormente
expostos, que o poder executivo não pode pertencer à generalidade enquanto legisladora
ou soberana, porque este poder consiste apenas em atos particulares que não são
de modo algum da jurisdição da lei, nem, por conseguinte, da do Soberano cujos atos
não podem ser senão leis. A força pública precisa, pois, de um agente próprio que
a reúna e a ponha em funcionamento segundo as diretivas da vontade geral, que sirva
à comunicação do Estado e do Soberano, e faça de alguma forma na pessoa pública
o que a união da alma e do corpo faz no homem. Eis em que consiste no Estado a razão
do governo, enganosamente confundida com o Soberano, do qual é somente o ministro.
O que é então o governo? Um corpo intermediário, estabelecido entre os súditos e
o Soberano, para sua mútua correspondência, encarregado da execução das leis e da
manutenção da liberdade, tanto civil como política.”
“Além disso, não seria possível alterar nenhum
dos três termos, sem imediatamente romper a proporção. Se o soberano quiser governar,
ou se o magistrado quiser legislar, ou se os súditos se recusarem a obedecer, a
desordem sucederá à regra, a força e a vontade não mais agirão de acordo, e o Estado,
uma vez desunido, tombará no despotismo ou na anarquia.”
“Ora, quanto menos as vontades particulares se
relacionam com a vontade geral, isto é, os costumes às leis, tanto mais deve aumentar
a força repressiva. Portanto, para ser bom, deve o governo ser relativamente mais
forte à medida que o povo seja mais numeroso.”
“No entanto, para que o corpo do governo tenha
uma existência, uma vida real que o distinga do corpo do Estado, a fim de que todos
os seus membros possam agir de comum acordo e responder à finalidade para a qual
foi instituído, é-lhe necessário um eu particular, uma sensibilidade comum a seus
membros, uma força, uma vontade própria, tendentes à sua conservação. Tal existência
particular supõe assembleias, conselhos, um poder de deliberar, de decidir, direitos,
títulos, privilégios exclusivos do Príncipe, que tornam a condição do magistrado
mais honorável à proporção que mais penosa. As dificuldades estão na maneira de
ordenar no todo, esse todo subalterno, de forma que não altere a constituição geral
ao fortalecer a sua, que distinga sempre sua força particular, destinada à própria
conservação, da força pública destinada à conservação do Estado, e que, em suma,
esteja sempre pronto a sacrificar o Governo ao povo, e não o povo ao Governo.”
“Quanto mais numerosos forem os magistrados, mais
fraco será o governo.”
“Posto isto, ponha-se o governo por inteiro nas
mãos de um só homem: eis completamente reunidas a vontade particular e a vontade
do corpo, no mais alto grau de intensidade que possa existir. Ora, como é do grau
da vontade que depende o uso da força, e como a força absoluta do Governo não varia,
infere-se que o mais ativo dos governos é o exercido por uma só pessoa.”
“Não é conveniente que quem redija as leis as
execute, nem que o corpo do povo desvie a atenção das ideias gerais para se concentrar
nos objetos particulares. Nada é mais perigoso que a influência dos interesses privados
nos negócios públicos; e o abuso das leis por parte do Governo constitui um mal
menor que a corrupção por parte do legislador, consequência infalível dos propósitos
particulares. Sendo o Estado então alterado em sua substância, toda reforma torna-se
impossível. Um povo que nunca abusasse do governo, também jamais abusaria da independência;
um povo que sempre governasse bem, não teria necessidade de ser governado.”
“Tomando o termo no rigor da acepção, nunca existiu
e nunca existirá verdadeira democracia. Contraria a ordem natural que a maioria
governe e que a minoria seja governada. É impossível admitir que esteja o povo incessantemente
reunido em assembleias para ocupar-se dos assuntos públicos; e percebe-se facilmente
que ele não poderia estabelecer para isso comissões, sem mudar a forma da administração.
(...) Aliás, quantas coisas difíceis de reunir esse Governo supõe! Primeiramente,
um Estado muito pequeno, em que seja fácil congregar o povo, e onde cada cidadão
possa facilmente conhecer todos os outros. Em segundo lugar, uma grande simplicidade
de costumes, que evite o acúmulo de questões e as discussões espinhosas; em seguida,
bastante igualdade nas condições e nas fortunas, sem o que a igualdade não poderia
subsistir muito tempo nos direitos e na autoridade. Enfim, pouco ou nenhum luxo,
pois o luxo ou é o efeito das riquezas, ou as torna necessárias, já que corrompe
ao mesmo tempo ricos e pobres, uns pela posse, outros pela cobiça, vende a pátria
à lassidão e à vaidade, e afasta do Estado todos os cidadãos para escravizá-los
uns aos outros, e todos à opinião.”
“Acrescentemos que não há governo tão sujeito
às guerras civis e às agitações intestinas quanto o democrático ou popular, pois
que não há nenhum outro que tenda tão frequente e continuamente a mudar de forma,
nem que demande mais vigilância e coragem para se manter na sua. É sobretudo nessa
constituição de governo que o cidadão se deve armar de força e de constância, e
dizer em cada dia de sua vida, no fundo do coração, o que dizia um virtuoso palatino*
na dieta da Polônia: Malo periculosam libertatem quam quietum servitium**.
Se houvesse um povo de deuses, ele se governaria democraticamente. Tão perfeito
governo não convém a homens.”
* O palatigo (governante) da Posmânia, pai do rei da Polônia,
duque de Lorena.
** É preferível uma liberdade agitada a uma servidão tranquila.
“Contudo, à medida que a desigualdade de instituição
sobrepujou a desigualdade natural, a riqueza ou o poder foram preferidos à idade,
e a aristocracia tornou-se eletiva. Finalmente, sendo o poder transmitido juntamente
com os bens dos pais aos filhos, enobrecendo as famílias, torna o governo hereditário,
e viram-se então senadores de apenas vinte anos. Portanto, há três espécies de aristocracia:
natural, eletiva e hereditária. A primeira só convém a povos simples; a terceira
é o pior de todos os governos; a segunda é a melhor: é a aristocracia propriamente
dita. Afora a vantagem da distinção dos dois poderes, ela possui a da escolha de
seus membros, pois no governo popular, todos os cidadãos nascem magistrados, enquanto
o aristocrático os limita a um pequeno número, o qual é escolhido através de eleição,
meio pelo qual a probidade, as luzes, a experiência, e todas as demais razões de
preferência e de estima públicas, constituem outras tantas novas garantias de que
seremos sabiamente governados. Além disso, as assembleias se fazem mais comodamente,
os negócios são mais bem discutidos, são expeditas com maior ordem e diligência;
o crédito do Estado é mais bem sustentado no estrangeiro por veneráveis senadores
que por uma multidão desconhecida e menosprezada. Numa palavra, a ordem mais justa
e natural é a em que os mais sábios governem a multidão, quando estamos seguros
de que a governarão em benefício dela, e não em benefício próprio. Não convém multiplicar
em vão as instâncias, nem fazer com vinte mil homens o que cem homens escolhidos
podem fazer ainda melhor. Deve-se, porém, observar que o interesse do corpo começa
aqui a dirigir com menos eficiência a força do público no que tange à vontade geral,
e que outra tendência inevitável subtrai das leis uma parte do poder executivo.”
“Contudo, se a aristocracia exige algumas virtudes
a menos que o governo popular, ela requer também, em troca, outras que lhe são próprias,
tais como a moderação por parte dos ricos, e o contentamento por parte dos pobres;
pois uma igualdade rigorosa parece estar aí deslocada: nem mesmo Esparta a observou.
De resto, se esta forma de governo comporta certa desigualdade de riqueza, é em
geral para que a administração dos assuntos públicos seja confiada aos que podem
dedicar-lhes todo o seu tempo, mas não, como pretendia Aristóteles, por serem os
ricos sempre os preferidos. Ao contrário, convém que uma escolha oposta ensine por
vezes ao povo que no mérito dos homens há razões de preferência mais importantes
do que a riqueza.”
“Contudo, se não há governo mais vigoroso que
a monarquia, não há outro em que a vontade particular tenha mais preponderância
e mais facilmente domine as outras; tudo se dirige para o mesmo objetivo, é verdade,
mas esse objetivo não é o da felicidade pública; e a própria força da administração
não cessa de prejudicar o Estado. Os reis desejam ser absolutos, e há muito lhes
dizem que a melhor maneira de o serem consiste em se fazerem amar por seus povos.
Esta máxima é muito bela e inclusive verdadeira em certos aspectos. Infelizmente,
sempre zombarão dela nas cortes. O poder oriundo do amor dos povos é sem dúvida
o maior, mas é precário e condicional; os Príncipes jamais se contentarão com ele.
Os melhores reis desejam ser malvados quando lhes aprouver, sem cessarem de ser
os senhores. Por mais que se esforce um orador político em adverti-los de que a
força do povo é a sua própria e de que seu maior interesse deve consistir em que
o povo seja florescente, numeroso, temível, eles sabem perfeitamente que tal coisa
não é verdade. O interesse pessoal dos reis é, primeiramente, que o povo seja fraco,
miserável, e que jamais possa resistir-lhes. Admito que, imaginando os súditos perfeitamente
submissos, o interesse do Príncipe seria então de que o povo fosse poderoso, a fim
de que esse poder, sendo o dele, o tornasse temível a seus vizinhos; porém, como
tal interesse é secundário e subordinado, e como as duas suposições são incompatíveis,
é natural que os Príncipes sempre deem preferência à preferência máxima que lhes
é mais imediatamente útil; é o que Samuel mostrou com vigor aos hebreus; é o que
Maquiavel demonstrou com evidência. Fingindo dar lições aos reis, ele deu grandes
lições aos povos. O Príncipe de Maquiavel é o livro dos republicanos.”
“É mais fácil conquistar do que governar. Com
uma alavanca adequada, pode-se com um dedo abalar o mundo, mas sustentá-lo requer
ombros de Hércules.”
“Tudo concorre para privar de justiça e de razão
um homem educado para comandar os outros. Dá muito trabalho, segundo se diz, ensinar
aos jovens príncipes a arte de reinar; e não me parece que tal educação lhes seja
proveitosa. Fariam melhor em ensinar-lhes a arte de obedecer. Os maiores reis que
a história celebrou não foram de modo algum educados para reinar. É esta uma ciência
que sempre se possui menos depois de tê-la aprendido, e que melhor se adquire obedecendo
que dirigindo. Nam utilissimus idem ac brevissimus bonarum malarumque rerum delectus,
cogitare quid aut nolueris sub alio principe, aut volueris*.”
* O meio mais cômodo e mais rápido de discernir o bem do
mal é perguntar-te o que terias ou não terias desejado se um outro, que não tu,
tivesse sido rei.” (Tácito).
“Sabemos bem que é preciso suportar um mau governo
quando o temos; a questão seria encontrar um bom.”
“Por outro lado, nem todos os governos possuem
a mesma natureza; há os dotados de maior ou menor voracidade, e as diferenças estão
baseadas no princípio segundo o qual, quanto mais as contribuições públicas se distanciam
de sua fonte, tanto mais elas se tornam onerosas. Não é pela quantidade de tributos
que se deve medir essa carga, mas pelo caminho a ser feito por elas a fim de regressarem
às mãos das quais saíram. Quando essa circulação é realizada e bem estabelecida,
pague-se pouco ou muito, o povo é sempre rico e as finanças caminham sempre a contento.
Quando, ao contrário, mesmo que o povo pouco contribua, se esse pouco não lhe retorna,
ele logo se esgota continuando a dar: o Estado jamais será rico, e o povo será sempre
necessitado.”
“Enfim, ao invés de governar os súditos para fazê-los
felizes, o despotismo os faz miseráveis para governá-los.”
“Os lugares ingratos e estéreis, onde o produto
não vale o trabalho, devem permanecer incultos e desertos, ou povoados unicamente
por selvagens. Os lugares onde o trabalho dos homens rende exatamente o necessário
devem ser habitados pelos povos bárbaros, pois qualquer politia aí seria
impossível. As regiões em que o excesso do produto sobre o trabalho é medíocre convém
aos povos livres; e aquelas, cujo solo fértil e abundante fornece grande quantidade
de produtos em troca de pouco trabalho, devem ser governadas monarquicamente, para
que o luxo do príncipe consuma o excesso do supérfluo dos súditos; pois é melhor
que esse excesso seja absorvido pelo governo do que ser dissipado pelos particulares.
Há exceções, eu o sei; mas justamente essas exceções confirmam a regra, nisso em
que, cedo ou tarde, produzem revoluções, as quais reconduzem as coisas à ordem natural.”
“Os países menos povoados são assim os mais expostos
à tirania: os animais ferozes reinam apenas nos desertos.”
“O granizo por vezes desola alguns cantões, mas
raramente provoca a penúria. As rebeliões, as guerras civis, muito assustam os chefes,
mas não são responsáveis pelas verdadeiras desgraças dos povos, que podem inclusive
ter algum sossego enquanto disputam quem irá tiranizá-los. É de seu estado permanente
que nascem suas prosperidades ou suas reais calamidades; quando tudo é esmagado
pelo despotismo, tudo então perece; e os chefes, ao destruir os povos à vontade,
ubi solitudinem faciunt pacem appellant (fazem a solidão e chamam isso de
paz).”
“Um pouco de agitação dá energia às almas, e o
que faz realmente prosperar a espécie é menos a paz do que a liberdade.”
“A aristocracia hereditária é a pior das administrações.”
“(...) Pois as palavras não influem sobre as coisas,
e, quando o povo tem chefes que governam por ele, não importa o nome usado por esses
chefes, é sempre de aristocracia que se trata.”
“Quando o Estado se dissolve, seja qual for o
abuso do governo, recebe o nome de anarquia. Distinguindo: a Democracia degenera
em oclocracia (governo da plebe), a Aristocracia em oligarquia: Posso ainda
acrescentar que a Realeza degenera em tirania; mas este último termo é equívoco
e requer explicação. No sentido vulgar do termo, o tirano é um rei que governa com
violência e sem respeito à justiça e às leis. No sentido preciso, um tirano é um
indivíduo que se arroga a autoridade real sem a ela ter direito. É assim que os
gregos entendiam o termo tirano: davam-no indiferentemente aos bons ou maus príncipes
cuja autoridade não era legítima. Assim sendo, tirano e usurpador
são dois termos perfeitamente sinônimos. Para dar diferentes nomes a diferentes
coisas, chamo tirano o usurpador da autoridade real, e déspota o usurpador
do poder soberano. Tirano é quem se intromete, contra as leis, a governar segundo
as leis; déspota é quem se coloca acima das próprias leis. Assim, o tirano pode
não ser déspota, mas o déspota é sempre tirano.”
“O princípio da vida política está na autoridade
soberana. O poder legislativo é o coração do Estado; o poder executivo é o cérebro
que põe em movimento todas as partes. O cérebro pode ser atingido pela paralisia
e o indivíduo continuar a viver ainda. Um homem fica imbecil e sobrevive: mas, assim
que o coração cessa suas funções, o animal morre.”
“Os limites do possível nas coisas morais são
menos estreitos do que nós supomos. São nossas fraquezas, nossos vícios, nossos
preconceitos que os retraem. As almas mesquinhas não acreditam nos grandes homens:
os vis escravos sorriem com um ar de troça à palavra liberdade.”
“A cada palácio que vejo erguerem na capital,
acredito ver espoliado todo um país.”
“Esses intervalos de suspensão em que o príncipe
reconhece ou deve reconhecer um superior atual, sempre lhe foram temíveis, e as
assembleias do povo, que são a égide do corpo político e o freio do Governo, foram
em todas as épocas o horror dos chefes: portanto, eles nunca poupam cuidados, nem
objeções, nem dificuldades, nem promessas, a fim de desanimarem os cidadãos. Quando
estes são avaros, covardes, pusilânimes, mais amantes do repouso que da liberdade,
não resistem por muito tempo aos redobrados esforços do governo; assim, aumentando
sem cessar a força da resistência [do Governo], a autoridade soberana por fim se
dissipa, e a maior parte das cidades tomba e perece antes do tempo.”
“Assim que o serviço público cessa de ser a principal
preocupação dos cidadãos, e eles preferem servir com a sua bolsa e não com sua pessoa,
o Estado já se encontra próximo da ruína. É preciso marchar em combate? Eles pagam
as tropas e permanecem em casa. É preciso ir à assembleia? Eles nomeiam os deputados
e continuam em casa. À força de dinheiro e preguiça, dispõem finalmente de soldados
para escravizar a pátria e de representantes para a venderem. É a balbúrdia do comércio
e das artes, é o ávido interesse de lucro, é a lassidão e o amor às comodidades
que transformam os serviços pessoais em dinheiro. Cede-se uma parte do lucro para
aumentá-los a bel-prazer. Deem dinheiro: logo terão grilhões. A palavra finança
é um termo de escravo; ela é desconhecida na cidade. Num Estado verdadeiramente
livre, os cidadãos fazem tudo com seus próprios braços, e nada com o dinheiro; longe
de pagarem para se isentar de tais serviços, pagarão para executá-los pessoalmente.
Estou bem distante das ideias comuns, pois acho as corveias menos contrárias à liberdade
do que os impostos. Quanto melhor estiver o Estado constituído, tanto mais os negócios
públicos prevalecerão sobre os particulares no espírito dos cidadãos. Há inclusive
muito menos negócios privados, pois, a soma de felicidade comum fornece uma porção
mais considerável à de cada indivíduo, de modo que resta-lhe menos a procurar em
suas ocupações particulares. Numa Cidade bem dirigida, todos votam nas assembleias;
sob um mau Governo, ninguém aprecia dar um passo para isso fazer, porque ninguém
se toma de interesse pelo que lá se faz, prevendo que a vontade geral não prevalecerá,
e porque, enfim, os cuidados particulares tudo absorvem. As boas leis fazem surgir
outras melhores; as más conduzem às piores. Tão logo diga alguém, referindo-se aos
assuntos do Estado “que me importa?”, pode-se ter a certeza de que o Estado está
perdido.”
“Os deputados do povo, portanto, não são nem podem
ser seus representantes; são quando muito seus comissários e nada podem concluir
definitivamente. São nulas todas as leis que o povo não tenha ratificado; deixam
de ser leis. O povo inglês pensa ser livre, mas está completamente iludido; apenas
o é durante a eleição dos membros do Parlamento; tão logo estes são eleitos, é de
novo escravo, não é nada. Nos curtos momentos em que lhe é dado desfrutar sua liberdade,
o uso que faz dela mostra bem que merece perdê-la.”
“A ideia de Representantes é moderna: ela nos
vem do governo feudal, desse iníquo e absurdo governo, no qual a espécie humana
se degrada e o termo homem é desonrado. Nas antigas repúblicas, e mesmo nas monarquias,
jamais o Povo teve representantes: não se conhecia sequer essa palavra. É bastante
singular o fato de que, em Roma, onde os tribunos eram tão sagrados, ninguém tenha
imaginado que eles pudessem usurpar as funções do povo, e que, em meio de uma tão
grande multidão, nunca terem tentado passar um só decreto oriundo de sua própria
cabeça.”
“Onde o direito e a liberdade tudo representam,
os inconvenientes nada são. No seio desse povo sábio, tudo estava posto em sua justa
medida; ele permitia aos lictores* fazerem o que os tribunos não teriam ousado,
pois não receava dos lictores a veleidade de os representar.”
* Guardas que precediam nas ruas os magistrados romanos.
“Suponho, aqui, o que acredito haver já demonstrado:
que não existe no Estado nenhuma lei fundamental que não possa ser revogada, nem
mesmo o pacto social; porque, se todos os cidadãos se reunissem com o fim de romper
esse pacto, ninguém poderia duvidar de que tal rompimento não fosse legítimo. Grotius
chega mesmo a pensar que cada qual tem o direito de renunciar ao Estado de que é
membro e retomar sua liberdade natural e seus bens, retirando-se do país*. Ora,
seria absurdo não poderem decidir os cidadãos reunidos o que pode cada um deles
separadamente.”
* Obviamente, não se abandona o país para furtar-se ao
dever e deixar de servir a Pátria no momento em que ela tem necessidade de nós.
A fuga seria então criminosa e punível; isso não seria retirada; mas deserção.
“A paz, a união e a igualdade são inimigas das
sutilezas políticas. Os homens corretos e simples são difíceis de enganar, justamente
em virtude de sua simplicidade; os engodos, os pretextos refinados, não os iludem
de modo algum; não são sequer bastante finos para serem tolos. Quando vemos, entre
o povo mais feliz do mundo*, grupos de camponeses resolver as questões do Estado
à sombra de um carvalho, e se conduzirem sempre com sabedoria, podemos evitar o
menosprezo dos refinamentos das outras nações, que se tornam ilustres e miseráveis
com tantos artifícios e mistérios? Um Estado assim governado necessita de bem poucas
leis; à medida que se torne necessário promulgar outras novas, todos percebem tal
necessidade. O primeiro que as propõe não faz senão dizer o que todos já sentiram,
e não haverá problemas de disputas nem de eloquência para transformar em lei o que
cada qual, individualmente, já tinha resolvido fazer, certo de que os demais o farão
como ele.”
* Rousseau alude aos cantões rurais da Suíça.
“Porém, quando o vínculo social começa a afrouxar
e o Estado a enfraquecer, quando os interesses particulares principiam a fazer-se
sentir e as pequenas sociedades a prevalecer sobre a grande, o interesse comum perde-se
e encontra opositores; a unanimidade não reina mais nos votos; a vontade geral deixa
de ser a vontade de todos; erguem-se contradições, debates, e a melhor opinião não
é aceita sem disputas. Enfim, quando o Estado, próximo de sua ruína, apenas subsiste
através de uma forma vã e ilusória, quando o laço social se rompe em todos os corações,
e o mais vil interesse se adorna afrontosamente com o nome sagrado do bem público,
então a vontade geral emudece; todos, guiados por motivos secretos, deixam de opinar
como cidadãos, como se o Estado jamais houvesse existido, e são aprovados falsamente,
a título de leis, decretos iníquos cujo único fim é o interesse particular.”
“Quanto maior a harmonia reinante nas assembleias,
isto é, quanto mais as opiniões se aproximam da unanimidade, tanto mais a vontade
geral se revela dominante; já os longos debates, as dissensões, o tumulto, anunciam
o crescimento dos interesses particulares e o declínio do Estado.”
“Há uma única lei que, por sua natureza, exige
um consentimento unânime: é o pacto social; pois a associação civil é o mais voluntário
de todos os atos do mundo; uma vez que todo homem nasceu livre e senhor de si mesmo,
não há quem possa, sob qualquer pretexto, sujeitá-lo, sem seu consentimento. Decidir
que o filho de um escravo nasce escravo é decidir que ele não nasce homem.”
“Conhecemos o gosto dos primeiros romanos pela
vida campestre. Vinha-lhes esse gosto do sábio instituidor que uniu à liberdade
os trabalhos rústicos e militares, e, por assim dizer, relegando à cidade as artes,
os ofícios, a intriga, a fortuna e a escravidão à cidade.”
“Os deuses dos pagãos não eram deuses ciumentos;
eles partilhavam entre si o império do mundo.”
“De início, os homens não tiveram outros reis
senão os deuses, nem outro governo, senão o teocrático. Raciocinaram então como
Calígula*, e seu raciocínio era justo. Fez-se necessária uma longa alteração de
sentimentos e ideias a fim de que se pudesse aceitar o semelhante por senhor e iludir-se
admitindo que o fato constituía um bem. Do simples fato de colocar-se Deus à frente
de cada sociedade política, resultou a existência de tantos deuses quantos povos
havia. Dois povos estranhos um ao outro, e quase sempre inimigos, não puderam, durante
longo tempo, reconhecer um senhor comum; tal como dois exércitos empenhados em combate
não saberiam obedecer ao mesmo chefe. Assim, das divisões nacionais originou-se
o politeísmo, e do politeísmo a intolerância teológica e civil, que naturalmente
é a mesma, como o direi mais adiante.”
*Que se dizia de natureza superior a seus súditos.
“Portanto, estando cada religião circunscrita
unicamente às leis do Estado que as prescrevia, não havia outra maneira de converter
um povo senão submetendo-o, nem havia outros missionários além dos conquistadores;
e, consistindo a lei dos vencidos na obrigação de mudar de culto, fazia-se preciso
começar por vencer antes de pregar. Não quer isto dizer que os homens combatessem
pelos deuses; ao contrário, eram os deuses, como em Homero, que combatiam pelos
homens. Cada qual pedia a seu deus a vitória e a pagava erigindo-lhe novos altares.
Os romanos, antes de tomarem um lugar, intimavam os deuses locais a abandoná-la;
e quando deixavam aos tarentinos seus deuses irritados, faziam-no porque consideravam
então esses deuses como submetidos aos deles, romanos, forçados aqueles a prestar
homenagens a estes. Permitiam que os vencidos conservassem os seus deuses, assim
como lhes permitiam reger-se por suas próprias leis. Em geral, uma coroa ao Júpiter
do Capitólio era o único tributo imposto aos vencidos.”
“Tudo o que rompe a unidade social é sem valor.
Todas as instituições que põem o homem em contradição consigo mesmo nada valem.”
“Resta, pois, a religião do homem ou o cristianismo,
não o de nossos dias, mas o dos Evangelhos, que é completamente diferente. Por essa
religião sagrada, sublime, verdadeira, os homens, filhos do mesmo Deus, se reconhecem
todos como irmãos, e a sociedade que os une não se dissolve, nem mesmo na morte.”
“Contudo, engano-me quando me refiro a uma república
cristã: ambos os termos se excluem mutuamente. O cristianismo prega unicamente servidão
e dependência. Seu espírito é bastante favorável à tirania, para que esta se não
sirva com frequência dele. Os verdadeiros cristãos são feitos para escravos; e eles
o sabem e em hipótese nenhuma se amotinam; esta vida breve tem muito pouco valor
aos seus olhos.”
“Na República, diz o marquês D’Argenson, cada
um é perfeitamente livre naquilo que não prejudica os outros. Eis aí o limite do
invariável; não se pode estabelecê-lo com mais exatidão.”
“Em minha opinião, enganam-se os que distinguem
a intolerância civil da intolerância teológica. Essas duas intolerâncias são inseparáveis.
É impossível viver em paz com pessoas que acreditamos condenadas; amá-las seria
odiar a Deus, que as castiga; é absolutamente necessário convertê-las ou martirizá-las.
Onde quer que a intolerância teológica seja admitida, toma-se impossível que não
haja algum efeito civil; e tão logo este apareça, deixa o Soberano de ser Soberano,
mesmo em relação ao poder temporal: a partir de então, os sacerdotes passam a ser
os verdadeiros senhores, sendo os reis apenas seus funcionários. Agora que não há
mais nem pode haver religião nacional exclusiva, devemos tolerar todas as que se
mostram tolerantes com as outras, desde que seus dogmas nada tenham de contrário
aos deveres dos cidadãos. Contudo, quem quer que ouse dizer: “fora da Igreja não
há salvação”, deve ser banido do Estado, a menos que o Estado não seja a Igreja
e o Príncipe não seja o Pontífice. Tal dogma só pode ser bom sob um governo teocrático;
sob qualquer outro, é pernicioso. O motivo pelo qual Henrique IV* abraçou a religião
romana deveria fazer todo homem honesto abandoná-la, sobretudo a todo Príncipe que
soubesse raciocinar.”
* N.T: Henrique IV teve de abjurar o protestantismo para
tornar-se o rei da França (1589-1610).