quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

Peter Pan, de J. M. Barrie

Editora: Zahar

ISBN: 978-85-378-0890-0

Notas: Thiago Lins

Tradução: Júlia Romeu

Ilustrações: F. D. Bedford

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 224

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Sinopse: “Todas as crianças crescem, menos uma.” Como pó de fada, há cem anos estas palavras transportam os leitores para um mundo mágico, povoado pela família Darling e pelos habitantes da Terra do Nunca - Peter Pan, os meninos perdidos, Sininho, crocodilos, sereias, o Capitão Gancho e seus piratas...

Um dos mais populares clássicos infantis, Peter Pan é uma história que, como Alice no País das Maravilhas, une gerações, contagiando também adultos com sua energia, imaginação e um enredo que permite diversos níveis de interpretação.

Essa edição comentada e ilustrada traz o texto integral de J.M. Barrie, notas explicativas de Thiago Lins, apresentação da escritora Flávia Lins e Silva e ilustrações originais de F.D Bedford para a primeira edição de Peter Pan, em 1911. A versão impressa apresenta ainda capa dura e acabamento de luxo.


 

“A sra. Darling ouviu falar de Peter pela primeira vez quando estava organizando as mentes de seus filhos. À noite, todas as boas mães esperam seus filhos irem dormir para remexer suas mentes e arrumar tudo para a manhã seguinte, recolocando nos locais certos os diversos itens que saíram do lugar ao longo do dia. Se você conseguisse ficar acordado (mas é claro que não consegue), ia ver sua mãe fazendo isso, e ia achar muito interessante observá-la. É igualzinho a arrumar gavetas. Você a veria de joelhos, imagino eu, olhando divertida para parte do conteúdo, perguntando-se onde você arrumara aquilo, fazendo descobertas doces e outras nem tão doces, apertando as primeiras contra o rosto como se fossem tão lindas quanto um gatinho e escondendo as outras bem depressa num canto onde ninguém vai ver. Quando você acorda de manhã, as traquinagens e má-criações com as quais foi dormir foram dobradas até ficarem bem pequenas e guardadas no fim da pilha da sua mente; na parte de cima, bem arejados, estão espalhados seus pensamentos mais bonitos, prontinhos para você usar.

Não sei se você já viu o mapa da mente de alguém. Os médicos às vezes fazem mapas de outras partes de você, e o seu mapa pode se tornar bastante interessante. Mas olhe o que acontece quando eles tentam fazer um mapa da mente de uma criança, que, além de ser confusa, dá voltas sem parar. O mapa tem linhas em zigue-zague iguais às dos gráficos de temperatura, e elas provavelmente são as estradas da ilha, pois a Terra do Nunca11 é sempre mais ou menos uma ilha, com pinceladas maravilhosas de cor aqui e ali, e recifes de coral e barcos velozes prontos para zarpar, e esconderijos selvagens e secretos, e gnomos que quase sempre são alfaiates, e cavernas atravessadas por rios, e príncipes com seis irmãos mais velhos, e uma cabana caindo aos pedaços, e uma velhinha bem baixinha com um nariz de gavião. Seria um mapa fácil se só tivesse isso; mas também tem o primeiro dia de aula, as rezas, os pais, o laguinho, as lições de costura, os assassinatos, os enforcamentos, os verbos transitivos diretos, o dia que tem sobremesa de chocolate, os primeiros suspensórios, o diga trinta e três, uma moeda se você arrancar seu dente sozinho, e por aí vai; e isso ou faz parte da ilha ou de outro mapa que aparece por baixo. E é tudo muito confuso, principalmente porque nada para quieto.

É claro que as Terras do Nunca variam muito. A de João, por exemplo, tinha uma lagoa com flamingos voando em cima, nos quais ele atirava. Já a de Miguel, que era muito pequeno, tinha um flamingo com lagoas voando em cima. João morava num barco emborcado sobre a areia, Miguel numa oca de índio e Wendy numa casa de folhas muito bem costuradas. João não tinha amigos, Miguel tinha amigos à noite, Wendy tinha um lobo de estimação que havia sido abandonado pelos pais. Mas, em geral, as Terras do Nunca têm semelhanças entre si como os membros de uma família e, se elas ficassem paradas uma do lado da outra, você ia poder dizer que têm o mesmo nariz e coisas assim. Nessas praias mágicas as crianças sempre irão ancorar seus barquinhos. Nós também já estivemos lá; ainda podemos ouvir o barulho das ondas, mas nunca mais vamos desembarcar.”

11. “Never-Never” (Nunca-Nunca) era o modo como se descreviam algumas das regiões inabitadas da Austrália no século XIX. Nos primeiros esboços da peça, a ilha de Peter Pan era chamada “Never Never Never Land”, em vez de apenas Neverland (Terra do Nunca)”

 

 

Peter não entendeu nada, mas Wendy, sim. E ela ficou só um pouquinho desapontada quando ele admitiu que havia se aproximado da janela do quarto das crianças não para vê-la, mas para ouvir as histórias.

– Sabe, não conheço história nenhuma. Nenhum Menino Perdido conhece história nenhuma.

– Que coisa mais horrível! – disse Wendy.

– Você sabe por que as andorinhas fazem ninho nos beirais dos telhados das casas? É para ouvir as histórias. Ah, Wendy, sua mãe estava lhe contando uma história tão linda!”

 

 

Wendy, João e Miguel ficaram nas pontas dos pés no ar para poderem ver a ilha pela primeira vez. É estranho, mas eles todos a reconheceram no mesmo segundo. E, até começarem a ter medo dela, não sentiram o que a gente sente quando vê ao vivo algo com que já sonhamos muitas vezes, mas o que sentimos quando reencontramos um amigo querido que não vemos há muito tempo.”

 

 

– O que eu mais quero na vida – disse Gancho, veemente – é o capitão deles, Peter Pan. Foi ele que cortou minha mão – continuou ele, brandindo ameaçadoramente o gancho de ferro. – Faz tempo que espero para apertar a mão dele com isso aqui. Ah, mas eu vou acabar com ele.

– Mas eu já ouvi o senhor dizer muitas vezes que esse gancho vale mais do que mil mãos – disse Barrica –, para pentear o cabelo e outros afazeres domésticos.

– Sim – respondeu o capitão. – Se eu fosse uma mãe, ia rezar para que meus filhos nascessem com isto em vez disso.

E ele olhou orgulhosamente para sua mão de ferro e com desprezo para a outra. Depois, voltou a franzir o cenho.

– Peter jogou a minha mão para um crocodilo que por acaso estava passando – disse Gancho, contraindo-se de raiva.

– Eu já notei o estranho medo que o senhor tem de crocodilo – disse Barrica.

– De crocodilo, não – corrigiu Gancho. – Daquele crocodilo.

Ele continuou, falando mais baixo:

– Ele gostou tanto da minha mão, Barrica, que me segue desde aquele dia, de mar em mar e de terra em terra, lambendo os beiços e querendo o resto de mim.

– Não deixa de ser um elogio – disse Barrica.

– Não quero um elogio desses! – rosnou Gancho com petulância. – Quero Peter Pan, que deu o primeiro gostinho de mim para a fera.

Ele se sentou num enorme cogumelo, e sua voz ficou trêmula.

– Barrica – disse Gancho roucamente –, esse crocodilo já teria conseguido me comer, se não fosse a sorte de ele ter engolido um relógio que faz tic-tac dentro da barriga dele. Com isso, antes de ele conseguir chegar perto de mim, ouço o tic-tac e saio correndo – ele riu, mas sem alegria.

– Um dia a corda do relógio vai acabar, e aí ele vai pegar o senhor – disse Barrica.

Gancho molhou os lábios ressecados.

– É – disse ele. – Esse é o medo que me persegue.”

 

 

– João, vamos acordar a Wendy e pedir para ela fazer um jantar para nós – propôs Miguel.

Mas, quando ele disse isso, alguns dos outros meninos apareceram correndo, trazendo galhos para construir a casa.

– Olhe só para eles! – exclamou Miguel.

– Caracol – disse Peter em seu tom mais capitanesco –, mande esses meninos ajudarem na construção da casa.

– Sim, senhor.

– Construção da casa? – disse João.

– Para a Wendy – disse Caracol.

– Para a Wendy? – disse João, escandalizado. – Ora, mas ela é só uma menina!

– É por isso que nós somos os empregados dela – explicou Caracol.

– Vocês? Empregados da Wendy?!

– Isso – disse Peter. – E vocês também. Andem logo!

Os aturdidos irmãos foram arrastados e obrigados a cortar, serrar e carregar madeira.

– Primeiro, a gente faz as cadeiras e o guarda-fogo da lareira – mandou Peter. – Depois, construímos a casa em volta deles.

– Isso – disse Magrelo. – É assim que uma casa é construída. Acabei de me lembrar.

Peter pensava em tudo.

– Magrelo, vá buscar um médico – mandou ele.

– Sim, senhor – disse Magrelo imediatamente.

Ele saiu dali, coçando a cabeça. Mas Magrelo sabia que Peter tinha que ser obedecido e logo voltou, usando a cartola de João e fazendo uma cara muito séria.

– Com licença, senhor – disse Peter, se aproximando dele. – O senhor é médico?

A diferença de Peter para os outros meninos em momentos como aquele é que eles sabiam que aquilo era faz de conta, enquanto para Peter faz de conta e realidade eram exatamente a mesma coisa. Isso às vezes perturbava os meninos, como quando eles tinham que fazer de conta que já tinham jantado. Se parassem a brincadeira no meio, Peter dava palmadas nas mãos deles.

– Sim, rapazinho – respondeu ansiosamente Magrelo, que já tinha a mão esfolada de tanto levar palmada.”

 

 

O que a perturbava, às vezes, era que João só lembrava vagamente dos pais, como pessoas que havia conhecido um dia, enquanto Miguel sempre se confundia e achava que Wendy era sua mãe de verdade. Isso deixava Wendy um pouco assustada e, com o nobre propósito de fazer a coisa certa, ela tentava ajudá-los a lembrar melhor da vida antiga obrigando-os a fazer provas sobre o assunto, muito parecidas com aquelas que costumava fazer na escola. Os outros meninos achavam isso tudo muito interessante, e insistiam em participar. Eles arrumavam um lugar onde pudessem anotar as respostas e sentavam à mesa, escrevendo e quebrando a cabeça com as perguntas que Wendy escrevia num caderno improvisado e passava de mão em mão. Eram as perguntas mais fáceis do mundo: “Qual era a cor dos olhos da mamãe? Quem era mais alto, o papai ou a mamãe? A mamãe era loura ou morena? Responda todas as três, se possível.” Ou: “(A) Escreva uma redação de não menos de 40 palavras sobre o tema ‘Como eu passei meu último Natal’ ou o tema ‘Uma comparação das personalidades do papai e da mamãe’. É preciso escolher um dos temas.” Ou: “(1) Descreva a risada da mamãe; (2) Descreva a risada do papai; (3) Descreva o vestido de festa da mamãe; (4) Descreva a casinha de cachorro e quem dorme nela.” (...)

Peter não participava da brincadeira. Em primeiro lugar, ele desprezava todas as mães, com exceção de Wendy; e, em segundo lugar, era o único menino da ilha que não sabia ler nem escrever; nem a menor palavrinha. Ele estava acima dessas coisas.

Aliás, as perguntas sempre eram escritas no passado. Qual era a cor dos olhos da mamãe e por aí vai. Pois Wendy também estava esquecendo.

As aventuras, como nós vamos ver a seguir, aconteciam todos os dias na ilha; mas nessa época Peter, com a ajuda de Wendy, inventou uma brincadeira nova que o deixou inteiramente fascinado até que, de repente, ele perdeu o interesse por ela, que, como você já sabe, era o que sempre acontecia com as brincadeiras dele. A brincadeira era fingir que não existiam aventuras e fazer o tipo de coisa que João e Miguel tinham feito a vida toda: sentar em bancos, jogar uma bola para cima, empurrar uns aos outros, sair para dar uma caminhada e voltar sem ter matado nem mesmo um urso. Ver Peter sentadinho num banco sem fazer nada era muito engraçado; ele às vezes não conseguia se controlar e fazia uma cara muito séria, pois achava que não fazer nada era uma coisa hilária. E se gabava que tinha ido dar uma caminhada pelo bem de sua saúde como quem estivesse contando uma vantagem. Durante muitos sóis, essa foi a aventura mais diferente do mundo para ele; e João e Miguel tinham que fingir estar adorando aquilo também, ou levavam a maior bronca.

Peter muitas vezes saía sozinho e, quando voltava, os outros nunca tinham certeza absoluta se havia ou não tido uma aventura. Ele às vezes esquecia tão completamente dela que não falava nada; e aí alguém saía de casa e encontrava o corpo. Por outro lado, às vezes falava muito da aventura, mas ninguém encontrava corpo nenhum. Em outras ocasiões, Peter chegava em casa com um curativo na cabeça, e Wendy o mimava e lavava o ferimento com água morna enquanto ele falava sobre seu impressionante feito. Porém ela nunca tinha certeza se aquilo acontecera de verdade.

Mas muitas aventuras Wendy sabia que haviam acontecido mesmo, pois ela própria participara delas. E outras que eram verdade pelo menos em parte, pois os outros meninos haviam participado e diziam que eram completamente verdade. Para descrever todas, seria necessário um livro tão grande quanto um dicionário de latim, e o máximo que eu posso fazer é dar uma como exemplo de uma hora como qualquer outra na Terra do Nunca. A dificuldade é qual escolher. A briga com os peles-vermelhas na Ravina Magrelo? Foi uma batalha sangrenta e especialmente interessante, pois mostra uma das peculiaridades de Peter, que era que, no meio de uma briga, ele às vezes trocava de lado de repente. Na Ravina, quando ainda não era possível saber qual dos dois lados ia ganhar, sendo que ora um, ora outro parecia estar levando vantagem, ele gritou:

– Eu sou pele-vermelha hoje! E você, Firula?

E Firula respondeu:

– Pele-vermelha! E você, Bico?

E Bico disse:

– Pele-vermelha! E você, Gêmeo?

E por aí foi. Todos eles viraram peles-vermelhas, e é claro que isso teria acabado com a briga se os verdadeiros peles-vermelhas, fascinados com os métodos de Peter, não houvessem concordado em ser meninos perdidos só daquela vez. Assim, tudo recomeçou, mais violento do que nunca.

O extraordinário resultado dessa aventura foi que… mas eu ainda não decidi se essa vai ser a aventura que vou narrar. Talvez seja melhor contar aquela sobre o ataque noturno dos peles-vermelhas à casa debaixo da terra, quando diversos deles ficaram entalados nas árvores ocas e tiveram que ser arrancados de lá como rolhas. Ou eu posso contar como Peter salvou a vida de Princesa Tigrinha na Lagoa das Sereias, transformando-a numa aliada.

Ou eu posso falar do bolo que os piratas fizeram para que os meninos comessem e morressem; e sobre como o colocaram em diversos lugares diferentes, cada um mais estratégico do que outro; mas Wendy sempre arrancava o bolo das mãos de seus filhos e, após algum tempo, ele perdeu sua suculência e ficou duro como uma pedra. O bolo acabou sendo usado numa catapulta, e Gancho tropeçou nele no escuro e caiu.

Quem sabe eu falo dos pássaros que eram amigos de Peter, particularmente da fêmea de Pássaro do Nunca, que fez seu ninho numa árvore que se debruçava sobre a lagoa. O ninho caiu na água, mas mesmo assim ela continuou chocando seus ovos, e Peter ordenou que os meninos perdidos não a incomodassem. Essa é uma história bonita, e o final mostra quanta gratidão um pássaro é capaz de sentir; mas, se eu for contar, tenho que contar logo toda a aventura da lagoa, o que, é claro, faria com que estivesse contando duas aventuras em vez de uma. Uma aventura menor, mas tão arrepiante quanto essa, foi a vez em que Sininho, com a ajuda de algumas fadas bandidas, se aproveitou do fato de Wendy estar dormindo para colocá-la em cima de uma folha enorme e tentar fazer com que esta fosse boiando para longe da ilha. Felizmente a folha afundou e Wendy acordou, achando que estava na hora do banho, e nadou de volta. Ou eu posso falar também do dia em que Peter desafiou os leões, usando uma flecha para desenhar um círculo em torno de si no chão e perguntando quem tinha coragem de pisar ali dentro. Ele passou horas esperando, com os outros meninos e Wendy observando apavorados de cima das árvores, mas ninguém ousou aceitar o desafio.

Qual dessas aventuras a gente vai escolher? O melhor jeito é tirar cara ou coroa.

Já tirei, e a aventura da lagoa ganhou. Isso quase me faz desejar que a aventura da ravina, do bolo ou de Sininho houvesse ganhado. É claro que eu poderia jogar a moeda de novo e fazer melhor de três; mas acho que é mais justo ficar com a da lagoa mesmo.”

 

 

Estranhamente, não foi na água que eles se encontraram. Gancho subiu na pedra para dar uma respirada e, ao mesmo tempo, Peter escalou o outro lado. A pedra estava escorregadia como uma bola, e eles tinham que subir nela engatinhando. Nenhum dos dois sabia que o outro estava logo ali. Ao tatearem, procurando um lugar para se agarrar, encontraram o braço um do outro. Surpresos, ergueram as cabeças; seus rostos estavam quase encostando. Foi assim que eles ficaram frente a frente.

Alguns dos maiores heróis da História já confessaram que, logo antes de entrar numa briga, sentiram medo. Se isso houvesse acontecido com Peter naquele momento, eu admitiria. Afinal, aquele era o único homem que botava medo no Long John Silver. Mas Peter não sentiu medo, só sentiu uma coisa: júbilo. E rangeu seus lindos dentinhos com alegria. Rápido como um raio, ele arrancou uma faca do cinto de Gancho e estava prestes a enfiá-la no pirata quando viu que estava mais para cima da pedra que seu inimigo. E isso não teria sido justo. Assim, Peter ofereceu a mão a Gancho para ajudá-lo a subir.

Foi aí que Gancho o feriu.

Peter ficou atordoado não por causa da dor, mas por causa da injustiça. Aquilo o deixou completamente indefeso. Ele só conseguiu olhar para Gancho, horrorizado. Toda criança se sente assim da primeira vez que é tratada com injustiça. Quando a criança se aproxima de você, querendo se entregar a você, a única coisa que ela pensa que merece é um tratamento justo. Depois que você for injusto com ela, ela vai voltar a amá-lo, mas nunca mais vai voltar a ser a mesma criança. Ninguém nunca se recupera da primeira injustiça; ninguém, exceto Peter. Ele sempre sofria injustiças, mas sempre as esquecia. Acho que essa era a verdadeira diferença entre ele e todos os outros.”

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Crise infinita, de Geoff Johns

Desenhistas: Phil Gimenez, George Pérez, Jerry Ordway, Ivan Reis

Editora: Eaglemoss

Opinião: ★★★☆☆

ISBN: 978-85-8057-902-4

Tradução: Jotapê Martins e Fábio Denardin; Eduardo Tanaka e Fernando Bertacchini

Páginas: 368

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Sinopse: É o dia mais sombrio do Universo DC. Os robôs OMAC estão causando destruição, a magia está morrendo, vilões estão se unindo e uma guerra é travada no espaço. Em meio a tudo isso, os três maiores heróis da Terra – Superman, Batman e Mulher-Maravilha – permanecem divididos. No entanto, heróis do passado há muito perdidos voltaram para endireitar as coisas no universo. A qualquer preço. Heróis viverão, heróis morrerão, e o Universo DC nunca mais será o mesmo.

 

* Crise infinita é um romance gráfico, e como às vezes acontece em livros assim, não foi selecionada nenhuma passagem particularmente notável.

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

O privilégio da servidão (Parte III), de Ricardo Antunes

Subtítulo: o novo proletariado de serviços na era digital

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-629-6

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 328

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“O sindicalismo brasileiro recente (ou “novo sindicalismo”, como se consagrou na bibliografia especializada) vem se transformando de modo acentuado; inaugurado pelas greves de 1978, bem como pelas primeiras articulações sindicais que se desenvolveram desde meados daquela década, o novo sindicalismo promoveu mudanças significativas na cultura sindical e política brasileira ao instituir novas práticas, mecanismos e instituições. Gradativamente, entretanto, ao longo de mais de três décadas, suas práticas cotidianas de acentuada (ainda que não exclusivamente) tendência confrontacionista foram sendo substituídas por uma nova pragmática sindical predominantemente negocial, em que o confronto cedeu espaço para parcerias, negociações e incentivo aos pactos sindicais etc.[2]

O desdobramento dessa mutação vem consolidando uma prática sindical que, além de fetichizar a negociação, transforma os dirigentes em novos gestores que encontram na estrutura sindical mecanismos e espaços de realização, tais como operar com fundos de pensão, planos de pensão e de saúde, além das inúmeras vantagens intrínsecas ao aparato burocrático típico do sindicalismo de Estado vigente no Brasil desde a década de 1930. Isso mudou o perfil das lideranças e das práticas sindicais adotadas até então. Tais mudanças alteraram também o destinatário do discurso sindical, cujo ideário vai paulatinamente se deslocando de um sindicalismo de classe para um sindicalismo cidadão[3].”

[2] Ricardo Antunes, Os sentidos do trabalho, cit.; Ricardo Antunes e Marco Aurélio Santana, “Para onde foi o novo sindicalismo? Caminhos e descaminhos de uma prática sindical”, em Daniel Aarão Reis, Marcelo Ridenti e Rodrigo Patto Sá Motta (orgs.), A ditadura que mudou o Brasil (Rio de Janeiro, Zahar, 2014), e “The Dilemmas of the New Unionism in Brazil: Breaks and Continuities”, Latin American Perspectives, Califórnia, v. 41, n. 5, 2014; disponível em: <http://journals.sagepub.com/doi/full/10.1177/0094582X14541228>; acesso em 25 dez. 2017; Jair Batista da Silva, Racismo e sindicalismo: reconhecimento, redistribuição e ação política das centrais sindicais acerca do racismo no Brasil (1983-2002) (tese de doutorado em Ciências Sociais, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 2008), e “Ação sindical, racismo e cidadania no Brasil”, em Ricardo Antunes (org.), Riqueza e miséria do trabalho no Brasil, v. 2, cit.

[3] Jair Batista da Silva, Racismo e sindicalismo, cit.; Ricardo Antunes, O novo sindicalismo no Brasil, (Campinas, Pontes, 1995); Iram Jácome Rodrigues, Sindicalismo e política: a trajetória da CUT (São Paulo, Scritta, 1997); Leôncio Martins Rodrigues e Adalberto Moreira Cardoso, Força Sindical: uma análise sociopolítica (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1993).

 

 

No que concerne à liderança política, Lula a exercitou de forma exemplar ao manter relação “direta” com as massas, de fortes traços arbitrais e, frequentemente, messiânicos. Em uma quadra histórica em que as frações dominantes não puderam garantir a sucessão presidencial nem em 2002 nem em 2006, Lula se tornou expressão de um governo excepcionalmente favorável a elas, uma vez que conseguiu articular interlocução com os pobres, vivência das benesses do poder e garantia de boa vida dos grandes capitais. Encarnou, dessa forma, uma espécie de semi-Bonaparte, recatado, cordial, célere diante da hegemonia financeira e hábil no manuseio de sua base social. Sua nova forma de ser provocou uma consciência invertida de seu passado e o deslumbramento em relação ao presente.

Como consequência desse transformismo, seu governo demonstrou enorme competência em dividir os trabalhadores privados dos trabalhadores públicos. O mais importante partido de classe das últimas décadas, que tantas esperanças criou no Brasil e no mundo, exauriu-se como partido de esquerda transformador da ordem para se qualificar como potente gestor dos grandes interesses dominantes no país. Converteu-se em um partido que sonha, enfim, “humanizar o capitalismo”, combinando, quando no poder central, uma política de parcerias com o grande capital – evidenciando um traço privatizante que procurou esconder de todo modo – e de incentivo amplo à transnacionalização dúplice do Brasil (de fora para dentro e vice-versa), fazendo uso também da força do Estado para incentivar seu desenvolvimento e expansão e buscando minorar, por meio de políticas sociais, o pauperismo existente.

O governo Lula, que poderia ter iniciado o desmonte efetivo do neoliberalismo no Brasil, acabou se tornando, a princípio, seu prisioneiro e, depois, seu lépido agente, ainda que sob a forma do social-liberalismo, incapaz de principiar a desestruturação dos pilares da dominação burguesa. O desmoronamento do projeto de governo do PT era questão de tempo. Esse tempo chegou quando a crise atingiu o Brasil em profundidade.”

 

 

Os movimentos sociais, por exemplo, encontram sua vitalidade nas fortes conexões que os enlaçam à vida cotidiana, mas por vezes podem ter dificuldades para se tornar longevos, duradouros. Nem sempre é fácil para eles vislumbrar um outro desenho societal que lhes permita uma fina calibragem entre vida cotidiana e um novo modo de vida em sentido amplo e radical.

Os sindicatos, mais próximos dos interesses imediatos da classe trabalhadora, embora imprescindíveis, por vezes se perdem em seu imediatismo, em suas batalhas cotidianas, quando não em seu burocratismo, sem compreender bem a totalidade e o sentido de pertencimento de classe ampliado (e não corporativo) que deve plasmar as suas ações. Isso quando não sofrem disputas políticas que encontram o desinteresse e o distanciamento real de suas bases.

Os partidos de esquerda, por sua vez, desenham seus projetos de futuro, praticam suas ações anticapitalistas, mas com frequência se desconectam efetivamente da vida cotidiana, do dia a dia dos homens e mulheres que vivem de seu trabalho e os quais pretendem representar. Não raro, se tornam prisioneiros dos espaços institucionais conquistados, o que os distancia ainda mais do ser social que querem efetivamente representar. Devem procurar compreender melhor as novas dimensões das lutas sociais, as questões vitais presentes na vida cotidiana que muitas vezes são desconsideradas pelas ações partidárias tradicionais.

Não é difícil perceber que, menos do que nas hierarquizações prévias, os desafios estão em soldar laços de maior organicidade entre essas três ferramentas que o mundo do trabalho ainda dispõe hoje, de modo que suas ações não sejam ainda mais pulverizadas ou exauridas nessa fase de profunda ação destrutiva do capital em relação ao trabalho e à humanidade, em escala global.

Se nossas indicações procuram apontar os riscos das hierarquizações prévias, e não daquelas efetivamente conquistadas nas ações concretas, elas pretendem também sugerir que nossas ações, lutas e batalhas passam igualmente por esses espaços, ainda que na direção de uma nova organicidade das forças sociais do trabalho, para a qual as nossas esquerdas, sociais, sindicais e políticas, poderão autenticamente contribuir, sempre que estiverem de fato enraizadas em experiências concretas e façam parte efetiva das lutas sociais de nosso tempo.”

 

 

Creio que estamos vivendo um período excepcional da nossa história. O início do século XX também foi um período de grande relevância, tendo começado com uma grande guerra mundial, quase simultaneamente à Revolução Russa, seguidas pela iminência de revoluções socialistas na Hungria e na Alemanha, que não se consubstanciaram em vitórias. Em seguida, tivemos o advento do fascismo na Itália e, depois, do nazismo na Alemanha, assim como dos governos de extrema direita na Espanha e em Portugal. Em suma, os anos 1910, 1920 e 1930 consistiram em um período historicamente muito relevante.

O século XXI começou também bastante tenso. Fazendo um paralelo com os movimentos da natureza, as placas tectônicas da história e da sociedade estão se movendo, friccionando-se. Diante desse quadro, o que podemos e devemos fazer como intelectuais que não abandonaram a luta pela superação do capitalismo e que, por isso, estão comprometidos com “um outro mundo”?

Em primeiro lugar, é necessário desvelar a realidade concreta de que o capitalismo não é e nunca foi, em ponto algum, uma alternativa para a humanidade.

A questão ambiental não pode mais ser encarada como um tema para os próximos anos ou décadas, mas deve ser analisada e assumida como uma questão vital hoje.

A questão da propriedade intelectual também precisa ser discutida e reavaliada, pois é inadmissível que esse ativo esteja tão concentrado, como está, nas mãos de grandes grupos transnacionais – a exemplo dos medicamentos, que são controlados pelos interesses privados e especulativos.

Se olharmos a destruição do trabalho em escala global, veremos como a Europa vivenciou altos níveis de desemprego nas últimas quatro décadas. Até os trabalhos mais precários – outrora destinados apenas aos imigrantes – são disputados agora pelos próprios trabalhadores europeus de forma ferrenha.

Os Estados Unidos também vêm, ainda mais intensamente desde 2008, no mesmo caminho. A cidade de Detroit, apenas para dar um exemplo, que havia cinquenta anos era o símbolo norte-americano, pediu recentemente falência, segundo informaram os jornais. Trata-se de toda uma cidade (e não só uma ou algumas empresas) que não tem mais condições de pagar sequer o salário de bombeiros e policiais.

Os intelectuais críticos, comprometidos com outro modo de vida, devem fazer uma análise profunda do mundo atual, compreender esses movimentos, as suas tendências, diferenças, dificuldades, mutações. É necessário, especialmente para os intelectuais socialistas, entender como é possível reinventar um socialismo para o século XXI que não seja a tragédia daquele do século XX, que feneceu, com honrosas exceções.

Contudo, a transformação do mundo não é obra de intelectuais, apesar do seu papel crítico: a ação decisiva e central está na classe trabalhadora (ou mesmo nas classes trabalhadoras), nas lutas e nos movimentos sociais, que mantêm uma dimensão inter-relacional muito profunda entre trabalho, geração, gênero, etnia, a questão também vital da natureza etc.

Esse é o desafio que temos pela frente.

O século XXI tem sido um laboratório social especial, uma vez que estamos vivendo um momento em que é preciso utilizar todas as energias de análise, de reflexão, de pensamento crítico e de ação, para que possamos visualizar, em oposição ao que vivemos nos dias atuais, um novo século dotado de humanidade.”

 

 

O ano de 1968 foi o que balançou o mundo: os levantes em Paris e em vários países da Europa; a invasão russa à Tchecoslováquia; as greves e manifestações de rua no Brasil; o massacre dos estudantes no México; as greves do autunno caldo (outono quente) na Itália no ano seguinte, em 1969, mesmo ano do cordobazo na Argentina, para citar alguns exemplos emblemáticos. Nos anos 1960, adentramos em uma era de rebeliões que se expandiram por quase todos os cantos do mundo. Na década seguinte, em um quadro de profunda crise estrutural, o sistema de dominação do capital, constatada sua crise profunda em todos os níveis, econômico, social, político, ideológico, valorativo, foi obrigado a desenhar uma nova engenharia da dominação.

Vieram, numa sucessão concatenada, a reestruturação produtiva dos capitais, a financeirização ampliada do mundo e a barbárie neoliberal, e essa trípode da destruição foi responsável pelo advento da contrarrevolução burguesa de amplitude global, para recordar a expressão frequentemente usada pelo sociólogo brasileiro Octavio Ianni.

Uma contrarrevolução burguesa poderosa, cujo objetivo primeiro foi destruir toda a organização da classe trabalhadora, do movimento socialista e anticapitalista. Essa reação foi, então, a resposta às lutas empreendidas pelos polos mais avançados do movimento operário europeu e dos movimentos sociais que combateram pela emancipação em 1968-1969, que almejavam nada menos que o controle social da produção, desvencilhado tanto do enquadramento social-democrático quanto do chamado “modelo soviético”.

Essa contrarrevolução burguesa descarregou sua profunda verve antissocial em escala planetária: impulsionou a barbárie neoliberal ainda dominante e deflagrou uma grandiosa reestruturação produtiva do capital, que alterou, em muitos elementos, a engenharia produtiva do capital. Essa ação bifronte esteve sempre sob a hegemonia do capital financeiro. Dela resultou uma gigantesca ampliação tanto da (super)exploração do trabalho quanto do mundo especulativo e de seu capital fictício.

Mas é bom recordar que o capital financeiro não é só o capital fictício que circula e generaliza as especulações e os saques: o capital fictício é uma parte prolongada do capital financeiro e este é, como sabemos há muito tempo, uma fusão complexa entre o capital bancário e o capital industrial (como nos ensinaram Lênin, Hilferding, Rosa Luxemburgo, entre outros).

Ao contrário do que prega certa leitura frágil defendida por muitos economistas pouco críticos, o capital financeiro não é uma alternativa separada e oposta ao mundo produtivo, mas o controla em grande parte, e só uma fração dele – o capital fictício – se descola da produção. Em seus núcleos centrais, o capital financeiro atua na própria esfera produtiva (e a controla). Basta lembrar que, quando compramos um produto financiado, estamos na verdade oferecendo um duplo ganho para os capitais: tanto na compra quanto no financiamento das mercadorias.

Esse é o lastro material existente, sem o qual o capital financeiro não pode dominar “eternamente”. Capital fictício sem algum lastro produtivo é uma impossibilidade quando se pensa em dominação de longo período. Não é por outro motivo que, na lógica do capital financeiro, o saque, a exploração e a intensificação do uso da força de trabalho têm de ser levados cada vez mais ao limite no capitalismo de nosso tempo. É também por isso que os padecimentos, constrangimentos e níveis de (super)exploração da força de trabalho atingem níveis de intensidade jamais vistos em fases anteriores, no Sul e no Norte do mundo global. (...)

Como sabemos, a pragmática neoliberal significou maior concentração de riqueza e da propriedade da terra, avanço dos lucros e ganhos do capital, intenso processo de privatização das empresas públicas, desregulamentação dos direitos sociais e do trabalho, liberdade plena para os capitais, dos quais resultaram o aumento da pauperização dos assalariados, a expansão dos bolsões de precarizados e dos desempregados, entre tantas outras consequências socialmente nefastas.

No mundo financeiro latino-americano, basta recordar que muitos bancos estrangeiros compensaram sua situação quase falimentar nos países de origem com a ampliação de seus lucros no Brasil, no Chile e em diversos outros países latino-americanos. O caso do Santander é exemplar. O Brasil, que até poucas décadas atrás tinha um sistema financeiro majoritariamente nacional e estatal, hoje tem esse setor fortemente transnacionalizado.”

 

 

“Depois de um período aparentemente estável do pós-guerra, o ano de 1968 chacoalhou a “calmaria” que parecia vigorar no mundo do welfare State: os levantes em Paris, que se espalharam por tantas partes do globo, estampavam o novo fracasso do capitalismo. Os operários, os estudantes, as mulheres, a juventude, os negros, os ambientalistas, as periferias, as comunidades indígenas chamavam a atenção para um novo e duplo fracasso.

De um lado, cansaram de se exaurir no trabalho, sonhando com um paraíso que nunca encontravam. O capitalismo do Norte ocidental procurava fazê-los “esquecer” a luta por um mundo novo, alardeando um aqui e agora que lhes escapava dia após dia.

Por outro, o chamado “bloco socialista”, originado em uma revolução socialista que abriu novos horizontes em 1917, havia se convertido, desde a contrarrevolução do camarada Stálin, em uma ditadura do terror, especialmente contra a classe operária, que, em vez de se emancipar, se exauria em um emprego infernal em que o sonho cotidiano principal era praticar o absenteísmo no trabalho.

O ano que abalou o mundo foi duramente derrotado pelas poderosas forças repressivas que sempre se aglutinam quando a ditadura do capital é questionada. Das revoltas na França ao massacre dos estudantes no México e à repressão às greves do Brasil. Do autunno caldo da Itália ao cordobazo na Argentina, os aparatos repressivos da ordem conseguiram estancar a era das rebeliões, impedindo-a de se converter em uma época de revoluções. Adentrávamos, então, na década de 1970, em uma profunda crise estrutural: o sistema de dominação do capital chafurdava em todos os níveis: econômico, social, político, ideológico, valorativo, o que o obrigou a desenhar uma nova engenharia da dominação.

Foi nessa contextualidade que começou a se gestar uma trípode profundamente destrutiva. Esparramaram-se, como praga da pior espécie, a pragmática neoliberal e a reestruturação produtiva global, ambas sob o comando hegemônico do mundo das finanças. É bom recordar que essa hegemonia significou não somente a expansão do capital fictício, mas uma complexa simbiose entre o capital diretamente produtivo e o bancário, com o qual se funde de início, criando um monstrengo de novo tipo, uma espécie de Frankenstein horripilante e desprovido de qualquer sentimento minimamente anímico.

As principais resultantes desse processo foram desde logo evidenciadas: deu-se uma ampliação descomunal de novas (e velhas) modalidades de (super)exploração do trabalho, desigualmente impostas e globalmente combinadas pela nova divisão internacional do trabalho na era dos impérios. Para tanto, foi preciso que a contrarrevolução burguesa de amplitude global exercitasse sua outra finalidade precípua, qual seja, a de tentar destruir a medula da classe trabalhadora, seus laços de solidariedade e consciência de classe, procurando recompor sua nova dominação em todas as esferas da vida societal. (...)

Na contraface desse ideário apologético e mistificador, afloraram as consequências reais no mundo do trabalho: terceirização nos mais diversos setores; informalidade crescente; flexibilidade ampla (que arrebenta as jornadas de trabalho, as férias, os salários); precarização, subemprego, desemprego estrutural, assédios, acidentes, mortes e suicídios. Exemplos se sucedem em todos os espaços, como nos serviços commoditizados ou mercadorizados. Um novo precariado desponta nos trabalhos de call-center, telemarketing, hipermercados, hotéis, restaurantes, fast-food etc., onde vicejam alta rotatividade, menor qualificação e pior remuneração.

Turbinada pela lógica das finanças, em que técnica, tempo e espaço se convulsionaram, a corrosão dos direitos do trabalho se tornou a exigência inegociável das grandes corporações, apesar de seus ideários apregoarem mistificadoramente “responsabilidade social”, “sustentabilidade ambiental” (a Samarco e a Vale que o digam), “colaboração”, “parceria” etc.

Na esfera basal da produção, prolifera o vilipêndio social e, no topo, domina o mundo financeiro. Capital fictício na ponta do sistema e uma miríade interminável de formas precárias de trabalho que se esparramam nas cadeias globais produtivas de valor. Dos Estados Unidos à Índia, da Europa “unida” ao México, da China à África do Sul, em todos os cantos do mundo se expande essa pragmática letal ao trabalho e seus direitos. Esse vilipêndio só é estancado quando há resistência sindical, luta social e rebelião popular, como na França de hoje e no Chile de ontem.”

 

 

Sabemos que a Consolidação das Leis do Trabalho se originou em uma conjuntura especial, intimamente vinculada à chamada “Revolução de 1930”, que foi mais do que um golpe e menos do que uma revolução. Rearranjo necessário entre nossas classes dominantes – cuja fração cafeeira começava a perder seu acentuado espaço no poder. E o movimento político-militar que levou Vargas à Presidência da República recompôs o equilíbrio entre as distintas frações da oligarquia, cujo resultado mais expressivo, entretanto, foi o desenvolvimento de um projeto industrializante, nacionalista e com forte presença estatal. Vargas sabia que a montagem desse novo projeto não poderia se efetivar sem o envolvimento da classe trabalhadora, que não encontrava espaço no liberalismo excludente da chamada República do Café.

O enigma da incorporação da classe trabalhadora por Vargas pode ser desvendado pelos múltiplos significados presentes quando da decretação da CLT. Desde logo ela consolidava a totalidade da legislação social (e sindical) do trabalho iniciada em 1930. Mas faz-se premente enfatizar que houve um movimento dúplice nessa história: o operariado brasileiro lutava, desde meados do século XIX, por direitos trabalhistas básicos, mediante greves. Esse movimento se expandiu ao longo das primeiras décadas do século XX – de que foi exemplo, entre tantos, a grande Greve Geral de 1917 –, quando os trabalhadores e as trabalhadoras reivindicaram, entre outras bandeiras, melhores condições de salário e de trabalho, regulamentação da jornada, direito de férias e descanso semanal etc.

Aqui o mito encontrou sua origem e densidade: Vargas “converteu” autênticas demandas operárias em “doações do Estado”, realizadas quase sempre em atos de Primeiro de Maio oficialistas, nos quais se assumia como responsável pelo Estado benefactor, para recordar Werneck Vianna[1].

Àquilo que a classe operária defendia em suas lutas concretas – na primeira metade dos anos 1930 houve a eclosão de inúmeras greves no Brasil – Vargas respondia como sendo seu antecipador e criador[2]. Foi assim, oscilando entre luta e outorga, que chegamos à decretação da CLT, em 1943, e à criação do mito do “Pai dos Pobres”.

Do lado varguista, construía-se a clara percepção de que o projeto industrial carecia de regulamentação e controle do trabalho. Do lado dos assalariados, um exame das pautas das greves permitia constatar que os direitos trabalhistas estavam entre suas principais reivindicações. A título de exemplo: se para a classe trabalhadora a criação do salário mínimo nacional era imprescindível para garantir sua reprodução e sobrevivência, para o projeto industrializante de Vargas era imperioso regulamentar a mercadoria força de trabalho e, desse modo, consolidar o mercado interno com a implementação de um salário mínimo basal.”

[1] Luiz Werneck Vianna, Liberalismo e sindicato no Brasil (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976).

[2] Ricardo Antunes, Classe operária, sindicatos e partido no Brasil: da Revolução de 30 até a Aliança Nacional Libertadora (São Paulo, Cortez, 1988).

 

 

Por um novo modo de vida

O empreendimento socialista não poderá efetivar outro modo de vida se não conferir ao trabalho algo radicalmente distinto tanto da subordinação estrutural em relação ao capital quanto de seu sentido heterônomo, subordinado a um sistema de mando e hierarquia, como se deu durante a vigência do sistema soviético e nos países do chamado “bloco socialista” ou do “socialismo real”, eufemismo para esconder as mazelas que impediam a autonomia efetiva e verdadeira do trabalho.

Com isso, entramos em outro ponto crucial, quando se trata de entender o verdadeiro significado do trabalho no socialismo e sua profunda diferença em relação à forma social do trabalho sob o sistema de capital. Conforme desenvolvemos no livro Os sentidos do trabalho, uma vida cheia de sentido fora do trabalho supõe uma vida dotada de sentido dentro do trabalho. Não é possível compatibilizar trabalho assalariado, fetichizado e estranhado com tempo verdadeiramente livre. Uma vida desprovida de sentido no trabalho é incompatível com uma vida cheia de sentido fora do trabalho. Em alguma medida, a esfera fora do trabalho estará maculada pela desefetivação que se dá no interior da vida laborativa.

Como o sistema global do capital, nos dias atuais, abrange intensamente também as esferas da vida fora do trabalho, a desfetichização da sociedade do consumo tem como corolário imprescindível a desfetichização no modo de produção das coisas. O que torna a desfetichização da vida muito mais difícil, se não se inter-relacionar decisivamente a ação pelo tempo livre confrontado abertamente à lógica do capital e à vigência do trabalho abstrato.

Se o fundamento da ação coletiva for voltado radicalmente contra as formas de dominação do capital, com suas alienações e seus estranhamentos, a luta imediata pela redução da jornada ou do tempo de trabalho se torna também importante e inteiramente compatível com o direito ao trabalho. Desse modo, a luta contemporânea pela redução da jornada (ou do tempo) de trabalho e a luta pelo direito ao trabalho, ao invés de serem excludentes, se tornam necessariamente complementares.

O empreendimento societal por um trabalho cheio de sentido e pela vida autêntica fora do trabalho, por um tempo disponível para o trabalho e por um tempo verdadeiramente livre e autônomo fora do trabalho – ambos, portanto, desassociados do controle e do comando opressivos do capital –, se converte em elemento essencial na construção de uma sociedade socialista não mais regulada pelo sistema de metabolismo social do capital e seus mecanismos de subordinação, não mais voltada para a destruição da natureza, mas sim para uma autêntica preservação ambiental, compatível tanto em relação às reais necessidades humanas quanto à imperiosa e imprescindível preservação da ecologia.

A invenção societal de uma nova vida, autêntica e dotada de sentido, recoloca, portanto, neste início do século XXI, a necessidade premente de construção de um novo sistema de metabolismo social, de um novo modo de produção fundado na atividade autodeterminada. Atividade baseada no tempo disponível para produzir valores de uso socialmente necessários, contra a produção heterodeterminada, que caracterizou o capitalismo, baseada no tempo excedente para a produção exclusiva de valores de troca para o mercado e para a reprodução do capital.

Durante a vigência do capitalismo (e, de modo mais abrangente, do próprio sistema do capital), o valor de uso dos bens socialmente necessários subordinou-se ao seu valor de troca, que passou a comandar a lógica do sistema de produção do capital. As funções produtivas básicas, bem como o controle do seu processo, foram radicalmente separadas entre aqueles que produzem (os trabalhadores) e aqueles que controlam (os capitalistas e seus gestores). Como diz Marx, o capital operou a separação entre trabalhadores e meio de produção, entre “o caracol e sua concha”[6], aprofundando a distância entre a produção voltada para o atendimento das necessidades humano-sociais e aquela direcionada às necessidades de autorreprodução do capital.

Tendo sido o primeiro modo de produção a criar uma lógica que não leva em conta prioritariamente as reais necessidades societais, e que também por isso se diferenciou de maneira radical de todos os sistemas anteriores de controle do metabolismo social existentes (que produziam visando suprir, ainda que de modo bastante desigual, as necessidades de autorreprodução humana, e não o lucro), o capital instaurou um sistema voltado para a sua autovalorização que independe das reais necessidades autorreprodutivas da humanidade[7].

O novo princípio societal imprescindível é, então, conceber o trabalho como atividade vital[8], como autoatividade. O que significa dizer que a nova forma societal socialista deve recusar o funcionamento com base na separação dicotômica entre tempo de trabalho necessário para a reprodução social e tempo de trabalho excedente para a reprodução do capital. Isso porque o tempo disponível[9] será aquele dispêndio de atividade laborativa autodeterminada, livre, voltado “para atividades autônomas, externas à relação dinheiro-mercadoria”[10], e por isso capaz de se contrapor à relação totalizante dada pela forma-mercadoria e pelo capital. Para além da divisão hierárquica que subordina o trabalho ao capital hoje vigente.

Se o mundo atual nos oferece como horizonte imediato o privilégio da servidão, seu combate e seu impedimento efetivos, então, só serão possíveis se a humanidade conseguir recuperar o desafio da emancipação.”

[6] Karl Marx, O capital: crítica da economia política, Livro I: O processo de produção do capital (São Paulo, Boitempo, 2013), p. 433.

[7] István Mészaros, Para além do capital: rumo a uma teoria da transição (São Paulo, Boitempo, 2002).

[8] Karl Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, cit.; O capital, Livro I, cit.

[9] Karl Marx, Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858 – esboços da crítica da economia política (São Paulo, Boitempo, 2011), p. 590.

[10] Robert Kurz, O colapso da modernização, cit.