quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

A Festa do Bode, de Mario Vargas Llosa

Editora: Alfaguara

Opinião: ★★★★☆

Tradução: Paulina Wacht e Ari Roitman

Link para compra: Clique aqui

ISBN: 978-85-7962-063-8

Páginas: 456

Sinopse: A Festa do Bode é um dos romances mais importantes de Mario Vargas Llosa. Com uma pesquisa histórica rigorosa e uma preocupação flaubertiana pelos detalhes, ele recria uma República Dominicana de meados do século XX para recontar a história do general Rafael Leonidas Trujillo Molina — o “Bode” — e a implacável ditadura que implantou no país durante seus 31 anos de governo. Ao entrelaçar três histórias – a volta de Urania a Santo Domingo, após 35 anos, para visitar o pai doente; o círculo mais próximo a Trujillo, com suas intrigas e execuções; e um grupo de insurgentes que prepara um atentado ao ditador —, Vargas Llosa relata o fim de uma era e discute a natureza insaciável dos regimes totalitários.



“Chegou ao Hispaniola. Urania está suando, o coração acelerado. Pela avenida George Washington passa um duplo rio de carros, caminhonetes e caminhões, e ela tem a impressão de que todos estão com os rádios ligados e o barulho vai arrebentar seus tímpanos. Às vezes surge uma cabeça masculina em algum veículo e por um instante seus olhos cruzam com uns olhos varonis que espreitam seus peitos, suas pernas, seu traseiro. Esses olhares. Ela está esperando para atravessar e pensa outra vez, como ontem, como anteontem, que está em terra dominicana. Em Nova York ninguém mais olha as mulheres com esse descaramento. Medindo, avaliando, calculando quanta carne há em cada peito e em cada coxa, quantos pelos em seu púbis e a curva exata das suas nádegas. Fecha os olhos, sentindo uma ligeira vertigem. Em Nova York, nem os latinos, dominicanos, colombianos, guatemaltecos olham mais assim. Eles aprenderam a se reprimir, entenderam que não podem olhar as mulheres como os cachorros olham as cadelas, os cavalos as éguas, os porcos as porcas.”

 

 

“Toda a sociedade local estava na recepção oferecida ao Chefe pela diretoria do Partido Dominicano de Barahona, no clube. Havia dança e bebida. O Chefe, muito alegre, já tarde da noite, diante de um vasto auditório de homens sós — militares da Fortaleza local, ministros, senadores e deputados que o acompanhavam, governadores e personalidades de destaque — que ele estivera distraindo com histórias da sua primeira campanha política, três décadas antes, de repente, com o olhar sentimental, nostálgico que costumava ter no final das festas, exclamou, parecendo ceder a um rompante de franqueza:

— Eu sempre fui um homem muito amado. Um homem que teve nos braços as mulheres mais belas do país. Foram elas que me deram a energia para endireitá-lo. Sem elas, eu jamais teria feito tudo o que fiz. (Levantou o copo contra a luz, olhou o líquido, examinou sua transparência, a nitidez da sua cor.) Sabem qual foi a melhor, de todas as que comi? (“Perdoem, meus amigos, a rudeza do verbo”, desculpou-se o diplomata, “mas estou citando Trujillo textualmente”.) (Fez outra pausa, aspirou o aroma do copo de brandy. A cabeça prateada procurou e encontrou, no círculo de homens que estavam ali ouvindo, o rosto lívido e gorducho do ministro. E concluiu:) A mulher de Froilán!

Urania faz uma careta, tão enojada como aquela noite, ao ouvir o embaixador Chirinos acrescentar que don Froilán tinha sorrido heroicamente, rido e aplaudido junto com os outros a brincadeira do Chefe. “Branco como papel, ele não desmaiou, nem caiu fulminado por um ataque”, detalhou o diplomata.

— Como era possível, papai? Que um homem como Froilán Arala, culto, preparado, inteligente, pudesse aceitar isso. O que Trujillo fazia com vocês? O que ele lhes dava, para fazer don Froilán, Chirinos, Manuel Alfonso, você, todos os seus braços direitos e esquerdos se transformarem em panos de chão?

Você não entende isso, Urania. Conseguira entender muitas coisas da Era; algumas, a princípio, pareciam inexplicáveis, mas, de tanto ler, ouvir, cotejar e pensar, você entendeu como tantos milhões de pessoas, acossadas pela propaganda, pela falta de informação, embrutecidas pela doutrinação, o isolamento, despojadas de livre-arbítrio, de vontade e até de curiosidade devido ao medo e à prática do servilismo e da obsequiosidade, chegaram a divinizar Trujillo. Não apenas a temê-lo, mas também a amá-lo, como os filhos amam os pais autoritários, convencidos de que as pancadas e castigos são para o seu próprio bem. O que você nunca entendeu é como os dominicanos mais bem-preparados, as cabeças pensantes do país, advogados, médicos, engenheiros, às vezes diplomados em excelentes universidades dos Estados Unidos ou da Europa, sensíveis, cultos, com experiência, leituras, ideias, supostamente um senso de ridículo bem-desenvolvido, sentimentos, pruridos, aceitaram ser humilhados de forma brutal (e todos o foram alguma vez), como fez aquela noite, em Barahona, don Froilán Arala.”

 

 

“— Só os muito ricos podem se dar ao luxo de não trabalhar para Trujillo.”

 

 

“Desde jovem, Salvador percebera como era difícil, às vezes impossível, submeter a conduta diária aos mandamentos da sua religião. Seus princípios e crenças, apesar de serem tão firmes, não o tinham freado na hora da farra nem para correr atrás de saias. Nunca se arrependeria o suficiente de ter gerado dois filhos naturais antes de casar-se com sua mulher atual, Urania Mieses. Eram erros que lhe davam vergonha, que tentava redimir, mas não conseguia aplacar sua consciência. Sim, era muito difícil não ofender Cristo na vida do dia a dia. Ele, um pobre mortal, marcado pelo pecado original, era prova das fraquezas congênitas do homem. Mas como podia errar a Igreja inspirada por Deus, apoiando um desalmado?

Até que, há dezesseis meses — nunca esqueceria esse dia —, no domingo 25 de janeiro de 1960 aconteceu aquele milagre. Um arco-íris no céu dominicano. O dia 21 tinha sido a festa da padroeira, Nossa Senhora de Altagracia, e, também, o da pior investida contra militantes do 14 de Junho*. A igreja da Altagracia, naquela manhã ensolarada santiaguense, estava lotada. De repente, no púlpito, com voz firme, o padre Cipriano Fortín começou a leitura — os pastores de Cristo faziam o mesmo em todas as igrejas dominicanas — daquela Carta Pastoral do episcopado que estremeceu a República. Foi um ciclone, mais dramático ainda que aquele, famoso, de San Zenón, que em 1930, no começo da Era de Trujillo, destruiu a capital.

Na escuridão do carro, Salvador Estrella Sadhalá, imerso na lembrança daquele dia venturoso, sorriu. Ouvindo o padre Fortín ler no seu espanhol ligeiramente afrancesado, cada frase daquela Carta Pastoral que enlouqueceu de fúria a Besta lhe parecia uma resposta às suas dúvidas e angústias. Conhecia tão bem aquele texto — que, depois de ouvir, tinha lido, impresso às escondidas e distribuído em toda parte — que o sabia quase de cor. Uma “sombra de tristeza” marcava a festividade da Virgem dominicana. “Não podemos permanecer insensíveis diante da profunda dor que aflige um bom número de lares dominicanos”, diziam os bispos. Como são Pedro, eles queriam “chorar junto com os que choram”. Lembravam que “a raiz e o fundamento de todos os direitos está na dignidade inviolável da pessoa humana”. Uma entrevista de Pio XII evocava os “milhões de seres humanos que continuam vivendo sob a opressão e a tirania”, para os quais não há “nada certo: nem o lar, nem os bens, nem a liberdade, nem a honra”.

Cada frase acelerava o coração de Salvador. “A quem pertence o direito à vida senão unicamente a Deus, autor da vida?” Os bispos ressaltavam que desse “direito primitivo” brotam os outros: o de formar uma família, o direito ao trabalho, ao comércio, à imigração (não era uma condenação a esse sistema infame de pedir permissão policial para cada viagem ao estrangeiro?), à boa fama e a não ser caluniado “sob pretextos fúteis ou denúncias anônimas” “por motivos baixos e rasteiros”. A Carta Pastoral reafirmava que “todo homem tem direito à liberdade de consciência, de imprensa, de livre associação...”. Os bispos faziam preces “nestes momentos de angústia e de incerteza” para que houvesse “concórdia e paz” e se estabelecessem no país “os sagrados direitos de convivência humana”. (...)

— As represálias vão ser terríveis, padre Fortín — murmurou.

E foram. Mas, com a endiabrada habilidade para a intriga do regime, a vingança se concentrou nos dois bispos estrangeiros, ignorando os nascidos em solo dominicano. Monsenhor Tomás F. Reilly, de San Juan de la Maguana, americano, e monsenhor Francisco Panal, bispo de La Vega, espanhol, foram os alvos dessa campanha ignóbil.

Nas semanas seguintes ao júbilo do 25 de janeiro de 1960, Salvador cogitou pela primeira vez na necessidade de matar Trujillo. Até então, essa ideia o horrorizava, um católico tinha que respeitar o quinto mandamento. Apesar disso, voltava, irresistível, toda vez que lia em El Caribe, em La Nación, ou ouvia em La Voz Dominicana os ataques contra monsenhor Panal e monsenhor Reilly: agentes de potências estrangeiras, vendidos ao comunismo, colonialistas, traidores, víboras. Pobre monsenhor Panal! Acusar de estrangeiro um sacerdote que tinha passado trinta anos fazendo obra apostólica em La Vega, onde era querido por todo mundo. As infâmias tramadas por Johnny Abbes — quem mais podia elucubrar semelhantes tramoias? —, de que o Turco ficava sabendo pelo padre Fortín e pelos boatos, eliminaram seus escrúpulos. A gota que fez o copo transbordar foi a sacrílega farsa montada contra monsenhor Panal na igreja de La Vega, onde o bispo rezava a missa do meio-dia. Na nave repleta de fiéis, quando monsenhor Panal lia o evangelho do dia, irrompeu um bando de rameiras todas maquiadas e seminuas, e, diante do estupor dos fiéis, se aproximaram do púlpito insultando e recriminando o velho bispo, acusando-o de ter-lhes feito filhos e de ser um depravado. Uma delas, pegando o microfone, uivou: “Reconheça as crianças que você nos fez parir, não as mate de fome.” Quando alguns dos presentes, reagindo, tentaram botar as prostitutas para fora da igreja e proteger o bispo que olhava incrédulo tudo aquilo, irromperam os caliés, umas duas dezenas de meliantes armados de paus e correntes que investiram sem misericórdia contra os fiéis. Pobres bispos! Picharam suas casas com insultos. Em San Juan de la Maguana, dinamitaram a caminhonete em que monsenhor Reilly se deslocava pela diocese e bombardearam sua casa com animais mortos, águas sujas, ratos vivos, toda noite, até obrigá-lo a se refugiar no Colégio Santo Domingo, em Trujillo. O indestrutível monsenhor Panal continuava resistindo, em La Vega, às ameaças, infâmias, insultos. Um velho feito com o barro dos mártires.

Um desses dias o Turco se apresentou na casa do padre Fortín com o rosto inchado, transfigurado.

— O que houve, Salvador?

— Vou matar Trujillo, padre. Quero saber se terei perdão. — Sua voz se cortou: — Isso não pode continuar assim. O que estão fazendo com os bispos, com as igrejas, essa campanha asquerosa na televisão, nos rádios e jornais. É preciso acabar com isso, cortar a cabeça da hidra. Terei perdão?

O padre Fortín o acalmou. Ofereceu-lhe café recém-coado, levou-o para dar um longo passeio pelas ruas cheias de loureiros de Santiago. Uma semana depois lhe avisou que o núncio apostólico, monsenhor Lino Zanini, o receberia em Trujillo, em audiência privada. O Turco chegou intimidado ao elegante casarão da nunciatura, na avenida Máximo Gómez. Mas o príncipe da Igreja fez se sentir à vontade desde o primeiro instante aquele gigante tímido, apertado na sua camisa social e na gravata que pôs para a audiência com o representante do papa.

Como era elegante e falava bem o monsenhor Zanini! Um verdadeiro príncipe, sem dúvida. Salvador ouvira muitas histórias sobre o núncio e sentia simpatia por ele, porque diziam que Trujillo o odiava. Seria verdade que Perón tinha saído do país, onde estava exilado havia sete meses, ao saber da chegada do novo núncio da Sua Santidade? Todo mundo dizia isso. Que foi correndo ao Palácio Nacional, dizer: “Tome cuidado, Excelência. Não se pode enfrentar a Igreja. Não esqueça o que aconteceu comigo. Não foram os militares que me derrubaram, foram os padres. Este núncio que o Vaticano lhe manda agora é como aquele que me mandou, quando começaram os atritos com a Igreja. Cuidado com ele!” E o ex-ditador argentino fez as malas e fugiu para a Espanha.

Depois dessa reunião, o Turco estava disposto a acreditar em tudo que dissessem de bom sobre o monsenhor Zanini. O núncio o levou ao seu gabinete, ofereceu refrigerantes, estimulou-o a dizer o que sentia fazendo comentários afáveis num espanhol com música italiana que fazia o efeito em Salvador de uma melodia angelical. Ouviu-o dizer que não suportava mais tudo o que estava acontecendo, o que o regime estava fazendo com a Igreja, com os bispos, o deixava louco. Depois de uma longa pausa, segurou a mão anelada do núncio:

— Vou matar Trujillo, monsenhor. Haverá perdão para a minha alma?

Sua voz se cortou. Permanecia com os olhos baixos, respirando com ansiedade. Sentiu nas costas a mão paternal de monsenhor Zanini. Quando, finalmente, levantou os olhos, o núncio tinha nas mãos um livro de santo Tomás de Aquino. Seu rosto franco sorria com um ar travesso. Um dos seus dedos apontava para um parágrafo, na página aberta. Salvador se inclinou e leu: “A eliminação física da Besta é bem-vista por Deus se com ela se liberta um povo.”

Saiu da nunciatura em estado de transe. Andou um bom tempo pela avenida George Washington, à beira do mar, com uma tranquilidade de espírito que não sentia havia muito tempo. Mataria a Besta, e Deus e a sua Igreja o perdoariam, manchando-se de sangue ele lavaria o sangue que a Besta fazia correr na sua pátria.”

* Tentativa malograda de deposição do ditador Rafael Trujillo por meio de um levante militar.

 

 

“— Seu pai sempre suspeitou que o intrigante foi Chirinos, o Constitucionalista Bêbado — lembra a tia Adelina.

— Esse gordo negrusco e nojento foi um dos que melhor se acomodou — interrompe Lucindita. — De cama e mesa de Trujillo e terminou como ministro e embaixador de Balaguer. Está vendo como é este país, Uranita?

— Lembro-me muito dele, vi-o em Washington faz uns anos, como embaixador — diz Urania. — Ia muito em casa quando eu era pequena. Parecia íntimo de papai.

— E de Aníbal e meu — acrescenta tia Adelina. — Vinha aqui com seus salamaleques, recitava-nos seus versinhos. Andava o tempo todo citando livros, posando de culto. Convidou-nos ao Country Clube uma vez. Eu não queria acreditar que tivesse traído o seu companheiro da vida inteira. Bem, a política é isso, abrir-se caminho entre cadáveres.”

 

 

“— Na secretaria há um traidor ou um inepto. Espero que seja um traidor, os ineptos são mais daninhos.”

 

 

“O pequeno mandatário negou com a cabeça: nada disso era verdade. Não tinha feito nem faria voto algum; ao contrário de alguns companheiros da Escola Normal, que se torturavam perguntando-se se tinham sido escolhidos pelo Senhor para servi-lo como pastores da grei católica, ele sempre soube que sua vocação não era o sacerdócio, mas o trabalho intelectual e a ação política. A religião dava-lhe uma ordem espiritual, uma ética com que confrontar a vida. Duvidava às vezes da transcendência, de Deus, mas nunca da função insubstituível do catolicismo como instrumento de contenção social das paixões e apetites perturbadores da besta humana. E, na República Dominicana, como força constitutiva da nacionalidade, como a língua espanhola. Sem a fé católica, o país cairia na desintegração e na barbárie. Quanto a acreditar, ele praticava a receita de santo Ignácio de Loyola, nos seus Exercícios espirituais: agir como se acreditasse, imitando os rituais e preceitos: missas, preces, confissões, comunhões. Essa repetição sistemática da forma religiosa ia criando o conteúdo, preenchendo o vazio — em algum momento — com a presença de Deus.”

 

 

“Que pena não ter forças para dizer aos seus amigos que não se preocupassem, que estava contente, com o Bode morto. Tinham vingado as irmãs Mirabal e o pobre Rufino de la Cruz, o motorista que as levou para a Fortaleza de Puerto Plata para visitar os maridos presos, e a quem Trujillo mandou assassinar também para fazer mais verossímil a farsa do acidente*. Aquele assassinato remexeu as fibras mais íntimas de Pedro Livio e o impulsionou, daquele 25 de novembro de 1960, a juntar-se à conspiração que armava seu amigo Antonio de la Maza. Só conhecia as Mirabal de ouvir falar. Mas, como a muitos dominicanos, a tragédia daquelas garotas de Salcedo transtornou-o. Agora também se assassinavam mulheres indefesas, sem que ninguém fizesse nada! A esses extremos de ignomínia tínhamos chegado na República Dominicana? Já não havia colhões neste país, porra! Ouvindo Antonio Imbert falar tão comovido — ele, sempre parco em exteriorizar seus sentimentos — sobre Minerva Mirabal, teve, na frente dos seus amigos, aquele pranto, o único na sua vida de adulto. Sim, ainda havia homens com colhões na República Dominicana. A prova, esse cadáver que sacolejava na mala.”

* Três irmãs fundadoras do grupo oposicionista à ditadura de Trujillo chamado Movimento Revolucionário de 14 de Junho (em homenagem a opositores do governo que foram torturados e mortos em 14 de junho de 1959). Por sua atividade política, as irmãs Mirabal foram, a mando do ditador, presas e torturadas inúmeras vezes. Embora tivessem sido libertadas em razão da intervenção da Comissão de Paz da Organização dos Estados Americanos (OEA), Trujillo articulou um plano para eliminá-las: determinou a transferência dos respectivos maridos, então detidos em Santo Domingo, para a prisão de Puerto Plata, situada a duas horas de distância da residência familiar, forçando-as a realizar viagens frequentes para visitá-los. Durante uma dessas viagens, as irmãs Mirabal, que tinham respectivamente 36, 34 e 24 anos de idade, foram capturadas em uma emboscada, torturadas e assassinadas, juntamente com o motorista, Rufino de La Cruz. Seus corpos foram posteriormente colocados de volta no veículo e arremessados em um precipício, com o objetivo de simular um acidente.

Este assassinato, obviamente orquestrado a mando do ditador, tocou fundo na alma dominicana e fez com que Trujillo também tivesse sua já chamuscada imagem internacional deteriorada de vez.

O sacrifício e a coragem das irmãs Mirabal se tornaram um símbolo da luta contra a opressão e da resistência ao autoritarismo, sendo lembradas anualmente no “Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra a Mulher”, em 25 de novembro, data da morte delas.

 

 

“— Espero que me faça bem contar essa história truculenta. Agora, esqueçam. Já passou. Passou e não tem mais jeito. Outra pessoa poderia ter superado, talvez. Eu não quis, e nem pude.”

domingo, 22 de dezembro de 2024

Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez

Editora: Record

Opinião: ★★★★★

Tradução: Eric Nepomuceno

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ISBN: 978-85-01-11036-7

Páginas: 432

Sinopse: Em Cem anos de solidão, um dos maiores clássicos da literatura, o prestigiado autor narra a incrível e triste história dos Buendía — a estirpe de solitários para a qual não será dada “uma segunda oportunidade sobre a terra” e apresenta o maravilhoso universo da fictícia Macondo, onde se passa o romance. É lá que acompanhamos diversas gerações dessa família, assim como a ascensão e a queda do vilarejo. Para além dos artifícios técnicos e das influências literárias que transbordam do livro, ainda vemos em suas páginas o que por muitos é considerado uma autêntica enciclopédia do imaginário, num estilo que consagrou o colombiano como um dos maiores autores do século XX.

Em nenhum outro livro García Márquez empenhou-se tanto para alcançar o tom com que sua avó materna lhe contava os episódios mais fantásticos sem alterar um só traço do rosto. Assim, ao mesmo tempo em que a incrível e triste história dos Buendía pode ser entendida como uma autêntica enciclopédia do imaginário, ela é narrada de modo a parecer que tudo faz parte da mais banal das realidades.

Gabo, apelido de Gabriel García Márquez, costumava dizer que todo grande escritor está sempre escrevendo o mesmo livro. “E qual seria o seu?”, perguntaram-lhe. “O livro da solidão”, foi a resposta. Apesar disso, ele não considerava Cem anos sua melhor obra (gostava demais de O outono do patriarca). O que importa? O certo é que nenhum outro romance resume tão completamente o formidável talento deste contador de histórias de solitários — que se espalham e se espalharão por muito mais de cem anos pelas Macondos de todo o mundo.

Cem anos de solidão é uma obra grandiosa e atemporal, sobre a qual é possível construir diversos paralelos com a nossa própria existência.



“Esta manhã, quando me trouxeram, tive a impressão de que já havia passado por tudo isso.” Na verdade, enquanto a multidão trovejava ao seu passo, ele estava concentrado em seus pensamentos, assombrado pela forma como todo mundo havia envelhecido em um ano. As amendoeiras tinham as folhas avermelhadas. As casas pintadas de azul, pintadas depois de vermelho e depois pintadas de azul outra vez, tinham adquirido uma coloração indefinível.

— E o que você esperava? — suspirou Úrsula. — O tempo passa.

— Pois é — admitiu Aureliano —, mas não tanto.”

 

 

Na verdade, não se atreviam a executar a sentença. A rebeldia do povo fez os militares pensarem que o fuzilamento do coronel Aureliano Buendía teria graves consequências políticas não apenas em Macondo, mas em toda a região do pantanal, e decidiram consultar as autoridades da capital provincial. Na noite do sábado, enquanto esperavam pela resposta, o capitão Roque Carnicero foi com outros oficiais até a taberna de Catarino. Uma única mulher, quase pressionada pelas ameaças, atreveu-se a levá-lo para o quarto. “Elas não querem ir para a cama com um homem que sabem que vai morrer”, confessou ela. “Ninguém sabe como vai ser, mas todo mundo anda dizendo que o oficial que fuzilar o coronel Aureliano Buendía, e todos os soldados do pelotão, um por um, serão assassinados sem remédio, mais cedo ou mais tarde, nem que se escondam no fim do mundo.” O capitão Roque Carnicero comentou essa história com os outros oficiais, que comentaram com seus superiores. No domingo, embora ninguém houvesse revelado com franqueza, embora nenhum ato militar tivesse turvado a calma tensa daqueles dias, o povoado inteiro sabia que os oficiais estavam dispostos a evitar com tudo que é tipo de pretexto a responsabilidade da execução. No correio da segunda-feira chegou a ordem oficial: a execução teria de ser cumprida num prazo de vinte e quatro horas. Naquela noite os oficiais puseram num quepe sete papeizinhos com seus nomes, e o inclemente destino do capitão Roque Carnicero apontou-o com o papel premiado. “O meu azar não perde ocasião”, disse ele com profunda amargura. “Nasci filho da puta e filho da puta morro”.”

 

 

“Naquela noite, no jantar, o suposto Aureliano Segundo despedaçou o pão com a mão direita e tomou a sopa com a esquerda. Seu irmão gêmeo, o suposto José Arcádio Segundo, despedaçou o pão com a mão esquerda e tomou a sopa com a direita. Era tão precisa a coordenação de seus movimentos que não pareciam dois irmãos sentados um na frente do outro, mas um artifício de espelhos. O espetáculo que os gêmeos haviam concebido desde que tiveram consciência de serem iguais foi repetido em homenagem ao recém-chegado. Mas o coronel Aureliano Buendía não percebeu nada. Parecia tão alheio a tudo que nem mesmo reparou em Remédios, a Bela, que passou nua para o dormitório. Úrsula foi a única que se atreveu a perturbar sua abstração.

— Se é para ir embora outra vez — disse a ele no meio do jantar —, pelo menos trate de recordar como éramos esta noite.

Então o coronel Aureliano Buendía percebeu, e não sem assombro, que Úrsula era o único ser humano que havia conseguido desentranhar sua miséria, e pela primeira vez em muitos anos se atreveu a olhar seu rosto. Tinha a pele curtida, os dentes carcomidos, os cabelos murchos e sem cor, e o olhar atônito. Comparou-a com a lembrança mais antiga que tinha dela, na tarde em que ele teve o presságio de que uma caçarola de caldo fervendo ia cair da mesa, e a encontrou despedaçada. Num instante descobriu os arranhões, os vergões, as chagas, as úlceras e cicatrizes que mais de meio século de vida cotidiana havia deixado nela, e comprovou que esses estragos não suscitavam nele nem mesmo um sentimento de piedade. Fez então um último esforço para buscar em seu coração o lugar onde os afetos tinham apodrecido, e não conseguiu encontrá-lo. Em outro tempo, pelo menos sentia um confuso sentimento de vergonha quando surpreendia em sua própria pele o cheiro de Úrsula, e em mais de uma ocasião sentiu seus pensamentos interferidos pelo pensamento dela. Mas tudo isso havia sido arrasado pela guerra. A própria Remédios, sua esposa, era naquele momento a imagem enevoada de alguém que podia ter sido sua filha. As incontáveis mulheres que conheceu no deserto do amor, e que dispersaram sua semente por todo o litoral, não haviam deixado rastro algum em seus sentimentos. A maioria delas entrava no quarto no escuro e ia embora antes do alvorecer, e no dia seguinte eram apenas um pouco de tédio na memória corporal. O único afeto que prevalecia contra o tempo e a guerra foi o que ele sentiu por seu irmão José Arcádio, quando os dois eram crianças, e não estava baseado no amor, e sim na cumplicidade.

— Perdão — desculpou-se diante do pedido de Úrsula. — É que a guerra acabou com tudo.”

 

 

“Ninguém ficou sabendo em que momento começou a tocar os sinos do campanário da torre e a ajudar o padre Antônio Isabel, sucessor do Filhote, na missa, e a cuidar dos galos de briga no quintal da casa paroquial. Quando o coronel Gerineldo Márquez soube, repreendeu-o duramente por estar aprendendo ofícios repudiados pelos liberais. “A questão — respondeu ele — é que eu acho que saí conservador.” Acreditava nisso como se fosse uma determinação da fatalidade. O coronel Gerineldo Márquez, escandalizado, contou para Úrsula.

— Melhor assim — ela aprovou. — Tomara que vire padre, para que Deus enfim entre nesta casa.

Num minuto ficaram sabendo que o padre Antônio Isabel estava preparando José Arcádio Segundo para a primeira comunhão. Ensinava o catecismo a ele enquanto pelava o pescoço dos galos a navalha. Explicava com exemplos simples, enquanto punham em seus ninhos as galinhas chocas, como Deus teve a ideia no segundo dia da criação de que os frangos se formassem dentro dos ovos. Desde aquela época o pároco manifestava os primeiros sintomas do delírio senil que o levou a dizer, anos mais tarde, que o diabo provavelmente havia ganho a rebelião contra Deus, e era quem estava sentado no trono celestial, sem revelar sua verdadeira identidade para pegar os incautos. Estimulado pela intrepidez de seu preceptor, José Arcádio Segundo chegou em poucos meses a ser tão sábio nas artimanhas teológicas a ponto de ser capaz de confundir o demônio, e ao mesmo tempo se fez perito nos truques da rinha de galos.”

 

 

“Taciturno, silencioso, insensível ao novo sopro de vitalidade que estremeceu a casa, o coronel Aureliano Buendía quase conseguiu compreender que o segredo de uma boa velhice não é mais que um pacto honrado com a solidão.”

 

 

Certa manhã encontrou Úrsula chorando debaixo da castanheira, nos joelhos do marido morto. O coronel Aureliano Buendía era o único habitante da casa que continuava não vendo o potente ancião consumido por meio século de intempérie. “Cumprimente seu pai”, disse Úrsula. Ele se deteve um instante na frente da castanheira, e uma vez mais comprovou que aquele espaço vazio tampouco suscitava nele qualquer afeto.

— O que ele está dizendo? — perguntou.

— Está muito triste — respondeu Úrsula — porque acha que você vai morrer.

— Diga a ele — sorriu o coronel — que a gente não morre quando deve, mas quando pode.”

 

 

“Foi por essa época que ouviram o coronel dizer: “A única diferença atual entre liberais e conservadores é que os liberais vão à missa das cinco e os conservadores vão à missa das oito”.”

 

 

Assim foi passando o tempo, entre o Colosso de Rodes e os encantadores de serpentes, até que sua esposa anunciou que não restavam mais do que seis quilos de carne-seca e um saco de arroz na despensa.

— E o que você quer que eu faça agora? — ele perguntou.

— Eu não sei — respondeu Fernanda. — Isso é assunto de homem.

— Bom — disse Aureliano Segundo —, alguma coisa a gente vai fazer quando parar de chover.

Continuou mais interessado na enciclopédia que no problema doméstico, mesmo quando teve de se contentar com uma pelanca ressecada e um pouco de arroz no almoço. “Agora é impossível fazer qualquer coisa”, dizia. “Não vai chover a vida inteira.” E quanto mais voltas adiava as urgências da despensa, mais intensa ia se fazendo a indignação de Fernanda, até que seus protestos eventuais, seus desabafos pouco frequentes, transbordaram numa torrente desembestada, desatada, que começou certa manhã como o monótono bordão de um violão, e que à medida que o dia avançava foi subindo de tom, cada vez mais rico, mais esplêndido. Aureliano Segundo não teve consciência da ladainha até o dia seguinte, depois do café da manhã, quando sentiu-se atordoado por um zumbido que era mais fluido e mais alto que o rumor da chuva, e era Fernanda que passeava pela casa inteira lamentando ter sido educada como uma rainha para acabar como mucama numa casa de loucos, com um marido folgazão, idólatra, libertino, que se deitava de barriga para cima esperando que chovessem pães do céu, enquanto ela destroncava os rins tratando de manter flutuando um lar que só se mantinha de pé com alfinetes, onde havia tanta coisa a ser feita, tanta a ser suportada e corrigida desde que Deus amanhecia até a hora de dormir, e que chegava na cama com os olhos cheios de pó de vidro, e no entanto ninguém nunca tinha lhe dado um bom-dia, Fernanda, como passou a noite, Fernanda?, nem perguntado a ela, nem que fosse só por cortesia, por que estava tão pálida nem por que despertava com essas olheiras cor de violeta, apesar de ela não esperar, é claro, que aquilo saísse do resto de uma família que, afinal de contas, sempre a teve como um estorvo, como o trapinho de segurar panela, como um boneco pintado na parede, e que sempre andavam fazendo futrica contra ela pelos cantos, chamando-a de santarrona, chamando-a de fariseia, chamando-a de boa bisca, e até Amaranta, que em paz descanse, havia dito a viva voz que ela era das que confundiam o cu com as têmporas, bendito seja Deus, que palavras, e ela havia aguentado tudo com resignação em nome do Santo Padre, mas não havia conseguido suportar mais quando o malvado do José Arcádio Segundo disse que a perdição da família tinha sido abrir as portas para uma janotinha pedante, imagine só, uma janotinha mandona, valha-me Deus, uma filha de má saliva, da mesma índole dos pedantões que o governo mandou para matar trabalhadores, veja se é possível, e se referia a ninguém menos que ela, ela, a afilhada do Duque de Alba, uma dama com tanta estirpe que revolvia o fígado das esposas dos presidentes, uma filhod’alga de sangue como ela, que tinha direito de assinar onze sobrenomes peninsulares, e que era o único mortal naquela aldeia de bastardos que não se sentia atarantada diante de dezesseis talheres, para que depois o adúltero do seu marido dissesse, morrendo de rir, que tantas colheres e garfos, e tantas facas e colherinhas não eram coisa de cristãos e sim de centopeias, e a única que podia determinar de olhos fechados quando se servia o vinho branco, e de que lado e em que taça, e quando se servia o vinho tinto, e não como a troglodita da Amaranta, que em paz descanse, que achava que o vinho branco devia ser servido de dia e o tinto de noite, e a única em todo o litoral que podia se vangloriar de não ter feito nada do corpo que não fosse em peniquinhos de ouro, para que depois viesse o coronel Aureliano Buendía, que em paz descanse, e tivesse o atrevimento de perguntar com seu humor de fel de maçom de onde ela tinha merecido aquele privilégio, e se ela cagava merda ou bromélias celestiais, imaginem só, com essas palavras, e para que Renata, sua própria filha, que por indiscrição havia visto seus excrementos no quarto, respondesse que na verdade o peniquinho era de muito ouro e muita heráldica, mas que o que tinha dentro era pura merda, merda física, e pior ainda que as outras porque era merda metida a besta, imaginem só, sua própria filha, de maneira que nunca tinha se deixado iludir com o resto da família, mas fosse como fosse tinha direito de esperar um pouco mais de consideração da parte do esposo, já que bem ou mal era seu cônjuge pelo próprio sacramento, seu autor, seu violador por direito e dever, que tinha jogado sobre si próprio e por livre e soberana vontade a grave responsabilidade de tirá-la do solar paterno, onde nunca se privou do que fosse nem sofreu por coisa alguma, onde tecia coroas fúnebres porque gostava de se distrair, posto que seu padrinho havia mandado uma carta com a assinatura de próprio punho e o selo de seu anel impresso no lacre, só para dizer que as mãos de sua afilhada não tinham sido feitas para afazeres deste mundo, a não ser tocar o clavicórdio, e ainda assim o insensato de seu marido a tinha tirado de sua casa com todas as admoestações e advertências para levá-la para aquele caldeirão do Diabo onde não se podia nem respirar de tanto calor, e antes que ela acabasse de guardar suas abstinências de Pentecostes já tinha ido embora com seus baús andarilhos e sua sanfona de perdulário para madracear em adultério com uma pobre coitada de quem bastava olhar as nádegas, bom, já que disse o que disse, a quem bastava ver remexer as nádegas de potranca para adivinhar que era uma, que era uma..., ao contrário dela, que era uma dama no palácio ou na pocilga, na mesa ou na cama, uma dama com berço, temente a Deus, obediente às suas leis e submissa aos seus desígnios, e com quem não se podia fazer, é claro, as piruetas e safadezas de mulher à toa que fazia com a outra, que é claro que se prestava a tudo, como as matronas francesas, e pensando bem, pior ainda, porque elas pelo menos tinham a honradez de pôr uma lâmpada vermelha na porta, semelhantes porcarias, imagine só, e só faltava essa, com a filha única e bem-amada de dona Renata Argote e dom Fernando del Carpio, principalmente ele, é claro, um santo varão, um cristão dos grandes, Cavalheiro da Ordem do Santo Sepulcro, desses que recebem diretamente de Deus o privilégio de se conservarem intactos na tumba, com a pele tersa feito cetim de noiva e os olhos vivos e diáfanos como as esmeraldas.

— Isto sim, que não é verdade — interrompeu Aureliano Segundo —, quando o trouxeram aqui, já estava fedendo.”

sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

Bukharin: uma biografia política (1888-1938) (Parte III), de Stephen Cohen

Editora: Paz & Terra

ISBN: 978-85-2190-551-6

Tradução: Maria Inês Rolim

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 572

Sinopse: Ver Parte I



“O foco das desavenças de política internacional foram as avaliações conflitantes acerca do vigor do capitalismo ocidental e da provável iminência de situações revolucionárias. Daí nasceram controvérsias sobre a natureza do “terceiro período”, cujo advento fora oficialmente anunciado e definido de várias maneiras em 1927. Segundo os stalinistas, eram eminentes profundas crises internas e levantes revolucionários nas sociedades capitalistas avançadas, desde a Alemanha até os Estados Unidos. Por isso, impunham-se três exigências táticas. Primeiro, os partidos comunistas dos outros países tinham de se preparar para tempos tempestuosos, e para tanto traçar rumos absolutamente independentes, recusar toda colaboração de socialdemocratas e — sobretudo — criar seus próprios sindicatos rivais — em suma, cindir o movimento operário europeu. Segundo, os partidos comunistas deveriam anular neste processo a influência reformista sobre a classe operária, atacando os partidos socialdemocratas. Na opinião dos stalinistas, estes últimos estavam abandonando o pretenso reformismo em prol do “social-fascismo” e tornavam-se o inimigo principal do movimento operário. E por fim, todos os partidos comunistas deviam preparar-se para a luta revolucionária, expulsando de suas fileiras qualquer dissidente, em especial os “desviacionistas de direita” que as novas circunstâncias haviam transformado no maior perigo interno.99 (...)

Como principal inimigo, foram apontados os partidos socialistas — ou melhor, os reformistas em geral —, considerados inapelavelmente “fascistas”. O expurgo dos moderados do Comintern assumiu proporções mais amplas, e os partidos comunistas foram instruídos a romper todos os laços com os movimentos socialdemocratas, denunciar-lhes o caráter de “social-fascismo”, e criar sindicatos que se opusessem a eles — em suma, cindir o movimento operário europeu.257 Deste modo começou a malfadada trajetória do Comintern para o extremismo. Ela terminaria em desastre cinco anos depois, tendo contribuído para a destruição do antes poderoso movimento operário alemão, tanto do Partido Comunista quanto do Partido Socialista, e assim propiciando a ascensão de Hitler ao poder. (...)

Tudo isto representava um violento repúdio à política de Bukharin para o Comintern. Como vimos, a concepção bukharinista dos sistemas capitalistas avançados — atualizada e reafirmada em 1926-27 e novamente no VI congresso do Comintern — vinha de sua teoria do “capitalismo de Estado”, anterior à guerra. Segundo Bukharin, no “terceiro período” do capitalismo não haveria colapsos internos, e sim uma estabilização maior, em nível tecnológico e organizacional mais elevado. Seriam inevitáveis levantes revolucionários; mas no Ocidente tais levantes nasceriam de “contradições externas” trazidas pela guerra imperialista, e não de crises internas isoladas. Logo, para Bukharin e seus seguidores, a assertiva de que o capitalismo ocidental estaria à beira do colapso revolucionário era “radicalmente errada, taticamente nociva e cruelmente equivocada do ponto de vista teórico”; aceitar tal assertiva seria “perder contato com as relações reais”100. O constante desenvolvimento dos sistemas de capitalismo de Estado pedia a união da classe operária, e não aventuras sectárias quixotescas, que só poderiam levar ao “isolamento” dos partidos comunistas e à “tragédia” da classe operária.101

99. O problema é examinado em Letter of an Old Bolshevik: The Key to the Moscow Trials (New York, 1937), pp. 48-50, da qual Bukharin foi autor ou então a principal fonte.

257 Quanto aos trabalhos do pleno, ver Inprecor, IX (1929), nº 35, 40-1, 44-9, 51, 53, 55, 57, 59. A nova linha foi enunciada por Molotov, Kuusinen e Manuilski. Stalin não falou durante o pleno, mas já mostrara os novos rumos em dois discursos proferidos em maio. STALIN, I. O pravykh fraktsionerakh v amerikanskoi Kompartii (Moscou, 1930).

100. Ibid., p. 55. No Décimo-Sétimo Congresso do Partido, chama Stalin de “glorioso marechal das forças proletárias”, denominação pouco comum no contexto bolchevique, como demonstrou o próprio Bukharin dois meses depois, ao elogiar o presidente soviético, Kalinin, por “não ser o marechal Hindenburg”. XVII s’’ezd, p. 129; Kalinich’. Izvestiia, 30 Mar. 1934, p. 2. Em ocasiões importantes, não fez qualquer menção a Stalin, omissão também pouco comum. Ver, por exemplo, seu artigo de 1º de maio, Pochemu my pobedim? Izvestiia, 1º maio 1934, p. 3. Em outras ocasiões, referiu-se a Lenin em termos que na época só eram empregados em relação a Stalin. Ver o artigo “Our Leader, Our Teacher, our Father, Izvestiia, 21 jan. 1936, p. 2. Só mais tarde, quando já corria sério risco, aderiu com menos restrições ao culto a Stalin. Ver o artigo Piramida velikikh del, Izvestiia, 15 de maio, 1936, p. 3.

101. Vtoroi vsesoiuznyi s’’ezd kolkhoznikov-udarnikov 11-17 fevralia 1935 goda - stenograficheskii otchet (Moscou, 1935), pp. 145-53; Bukharin, 'Nujna li nam marksistskaia istoricheskaia nauka?, Izvestiia, 27 jan., 1936, pp. 3-4.

 

 

“Bukharin também cita uma carta inédita escrita por Lênin a ele e a Zinoviev no início dos anos 20: “Se descartarmos todas as pessoas inteligentes, ainda que não muito obedientes, e mantivermos apenas os tolos que sempre obedecem, com absoluta certeza destruiremos o partido.110

110. Daniels, Conscience of the Revolution: Communist Opposition in Soviet Russia (Cambridge, 1960), pp. 336-7. Quanto às observações de Bukharin e à respectiva resolução, ver VI kongress Kominterna, I, pp. 58-60, 610-14, e II, p. 80.

 

 

“Falando a um congresso de ateus, em junho de 1930, Bukharin protestou sutilmente contra o clima de crescente intolerância e contra a exigência do stalinista de se obedecer ao partido sem formular qualquer crítica. O Marxismo, como argumentou Bukharin, era pensamento crítico, não dogma ou fórmula sem vida; e a divisa preferida de Marx, como reafirmou, era “Duvidar de tudo”263.”

263. Pravda, 12 jun., 1929, p. 3.

 

 

“Para entender os últimos oito anos de vida de Bukharin, é preciso entender a natureza da “revolução pelo alto”, promovida por Stalin, e todo o seu impacto. Considerada em termos globais, a revolução durou dez anos — de 1929, início da coletivização forçada, a 1939, quando o sangrento expurgo stalinista começou a atenuar-se. Segundo todos os critérios de mudança social, a revolução foi um processo importantíssimo, que alterou radicalmente não apenas as bases econômicas e sociais da sociedade soviética, mas também a natureza de seu sistema político. Nos anos 30, ao longo desse processo, delineia-se a União Soviética atual, com seu grande poderio militar-industrial, e se estabelece o stalinismo, novo fenômeno político.

Entre 1929 e 1936, período de implantação do primeiro e do segundo plano quinquenais, a “grande mudança” stalinista foi basicamente uma revolução econômica, misto de coação brutal, heroísmo notável, catastrófica loucura e fatos memoráveis. Poucas metas do primeiro plano foram cumpridas no prazo previsto. Mas suas conquistas efetivas, consolidadas e expandidas a uma taxa anual de 13-14% durante o segundo plano, mais modesto e pragmático, lançaram os fundamentos de uma sociedade industrial e urbana. Em 1937, a indústria pesada produzia de três a seis vezes mais que em 1928, dependendo dos índices de avaliação utilizados; a produção siderúrgica quadruplicara, a produção de carvão e cimento aumentara mais de 300%, a produção de petróleo mais de 100%; a produção elétrica crescera 700%, a produção de implementos mecânicos era 20 vezes maior. Velhas fábricas foram ampliadas e reaparelhadas, surgiram novas cidades, novas indústrias e centrais elétricas, muitas delas em áreas até então atrasadas. Duplicaram a mão-de-obra industrial e a população urbana. O número de estudantes passou de 12 milhões para mais de 31 milhões em 1939, fora ter-se erradicado o analfabetismo entre a população com menos de cinquenta anos.1

Igualmente espetaculares foram os custos deste salto para a modernidade econômica. Para uma minoria dedicada — quase toda formada por membros do partido, mas onde se incluíam também pessoas do povo — este foi um período de entusiasmo genuíno, atividade febril e sacrifício voluntário.2 Para a maioria da população, inclusive os milhões de indivíduos deportados, confinados em campos de trabalho ou pura e simplesmente eliminados, foi um período de repressão e miséria. Durante muito tempo se fez sentir na vida soviética o impacto devastador da concentração de recursos na indústria pesada, da extinção da atividade manufatureira e do comércio privados, do virtual colapso da agricultura nos anos de coletivização, dos desperdícios decorrentes da má administração, fracassos crônicos, mau uso de equipamentos danificados e não habilitação da mão-de-obra. Nas cidades, menos afetadas, declinou acentuadamente o espaço habitacional, e em 1932 o consumo per capita de carne, gordura e aves era apenas um terço do que fora em 1928. Os operários das fábricas já não tinham direito de mudar de emprego sem permissão oficial, e sofriam pesadas penalidades por faltarem ao trabalho; por outro lado, os salários reais caíram cerca de 50% no início dos anos 30.3 Filas e racionamento se tornaram rotina; bens de consumo e serviços praticamente desapareceram.

Durante os quatro anos da coletivização, que foi na verdade uma guerra civil, problemas ainda mais sérios afligiram as áreas rurais. Quase sempre as grandes revoluções sacrificam uma determinada classe social; no caso, as vítimas foram 25 milhões de famílias camponesas. A maioria delas não queria abandonar suas terras, seus implementos e seus animais a fim de ingressar nas fazendas coletivas. Mas foram forçadas a isto pelo partido-Estado, que, além da coação fiscal e administrativa, recorreu por muito tempo ao confisco, a prisões em massa e deportações, para não mencionar os ataques dos quadros partidários rurais, das brigadas rurais e até de destacamentos do exército. Os camponeses resistiam e contra-atacavam, geralmente em verdadeiros combates, vez por outra mediante sublevações de massas, mas sobretudo à maneira camponesa tradicional, ou seja, destruindo as safras e matando o gado.4

A natureza do conflito ficou clara em janeiro-fevereiro de 1930. Segundo as ameaçadoras diretrizes de Stalin e procedendo ao expurgo dos “direitistas”, as autoridades locais desencadearam um império de terror contra os kulaks recalcitrantes e contra os camponeses pobres e médios. Em março, estavam coletivizados mais de dez milhões de famílias, o que representava 50% das propriedades familiares. No entanto, o holocausto obrigou Stalin a interromper por algum tempo o processo, fato anunciado num singular artigo que atribuía aos funcionários locais a culpa pelos “excessos”, por terem “enlouquecido com o êxito”. Houve então um êxodo maciço das fazendas coletivas, e o percentual de propriedades familiares coletivizadas caiu de 57,6% em março para 23,6% em junho.5 Mas o recuo chegara tarde demais para evitar a catástrofe. Segundo cifras anunciadas em 1934, já haviam morrido mais da metade dos cavalos das áreas rurais, 70 milhões de reses, 26 milhões de porcos e dois terços do rebanho ovino e caprino, de 146 milhões de cabeças. E isto ocorreu principalmente em janeiro-fevereiro de 1930, período que a história oficial chama pejorativamente de “a marcha da cavalaria”6. Dificilmente catástrofe maior poderia se abater sobre uma sociedade agrária. Vinte e cinco anos mais tarde, os rebanhos ainda não tinham voltado aos níveis de 1928.

O Estado retomou a ofensiva ainda em 1930, de modo mais deliberado, porém em nível quase igual de coação. Em 1933, as áreas rurais ainda sofriam repressões “em escala extraordinária”.7 Em 1931, haviam sido recoletivizadas 50% das propriedades familiares, percentual que em 1934 já se elevara para 70%; o restante seria coletivizado em pouco tempo. O fim da resistência camponesa, que encerrou uma guerra desigual, foi determinado pela fome criada deliberadamente em 1932-33, uma das piores da história russa. O Estado apoderou-se da pequena safra de 1932 e não distribuiu os cereais nas áreas rurais. Relatos da época dão conta de aldeias abandonadas, casas queimadas, deportados conduzidos para o norte em carroças de transporte de gado, hordas errantes de mendigos, camponeses famintos, casos de canibalismo, cadáveres insepultos de homens, mulheres e crianças; em suma, as áreas rurais foram devastadas, inteiramente vencidas.8 Em consequência direta da coletivização, morreram pelo menos dez milhões de camponeses — talvez bem mais —, metade deles durante a fome de 1932-33.9

Quando tudo acabou, 25 milhões de empresas privadas haviam sido substituídas por 250 mil fazendas coletivas, controladas pelo Estado e obrigadas a entregar percentagens de suas reduzidíssimas safras a preços muito baixos. A coletivização forçada, instrumento básico da revolução econômica stalinista, foi também sua singular inovação. Jamais qualquer bolchevique propusera algo remotamente semelhante ao que ocorreu em 1929-33. A coletivização sempre fora encarada como uma forma de agricultura mecanizada e muito produtiva, a ser atingida num estágio superior de industrialização; jamais fora concebida como meio de requisição ou instrumento primitivo de uma exasperada industrialização.10 (Só na tradição czarista seria possível encontrar algum precedente semelhante, como chega a sugerir o próprio Stalin, que sabidamente admirava Pedro, o Grande.) Qualquer outro programa agrícola provavelmente teria sido mais produtivo e bem menos destrutivo. Contudo, não se pode negar que Stalin conseguiu um feito: o controle do Estado sobre o campesinato, parcela majoritária da população, anteriormente autônoma; este controle possibilitou uma espécie de “exploração feudal-militar”. As estatísticas de 1933 dizem tudo: a safra de grãos foi inferior à de 1928 em cinco milhões de toneladas, mas as requisições estatais duplicaram.11

Em 1934, os piores extremismos da industrialização e da coletivização já tinham passado, e seguiram-se dois anos de relativo abrandamento e de progresso econômico. Além disso, no início dos anos 30 houve mudanças políticas significativas, que recordam o aforismo de Kliuchevski acerca da história czarista: “O Estado avolumou-se; o povo empobreceu”.12 Num contexto de violência social e militarização, proliferavam as burocracias centralizadas cuja função era administrar a economia estatal em expansão, policiar a população cada vez maior dos campos de trabalho, controlar as atividades e os movimentos dos cidadãos (nessa época voltaram a ser adotados os passaportes internos) e regulamentar a vida cultural e intelectual. Começara também a metamorfose da ideologia e das políticas sociais do partido-Estado. Em fins dos anos 30, uma vez concluída essa metamorfose, foram oficialmente repudiados o experimentalismo revolucionário, a legislação progressista e o igualitarismo na educação, no direito, na vida familiar, nas rendas e no comportamento social em geral — ou seja, tudo quanto prevalecera no período 1917-29. Adotaram-se normas tradicionais, autoritárias, que prefiguravam o resultado paradoxal da revolução stalinista: o advento de uma sociedade rigidamente conservadora e muito estratificada. Surgiam ainda outros aspectos do stalinismo maduro, como o culto a Stalin e a falsificação da história do partido, o renascer oficial do nacionalismo russo, a reabilitação da história czarista e a rejeição de algumas importantes perspectivas marxistas.13

Mas, apesar de tudo, ainda não houvera qualquer mudança política comparável à revolução econômica de 1929-33. O centro do sistema continuava sendo o Partido Bolchevique, seus principais órgãos e tradições; permaneciam atuantes suas figuras de maior destaque (várias delas rebaixadas, mas ainda exercendo cargos de responsabilidade), suas elites e seus quadros basicamente pré-stalinistas. Sob este aspecto, o sangrento expurgo realizado por Stalin em 1936-39 representou o segundo estágio — aquele propriamente político — da revolução pelo alto. A sociedade soviética foi tiranizada por três anos de terror, de prisões e execuções em massa orientados por Stalin e seus assessores mais próximos, que agiam através da polícia secreta, a NKVD. De sete a oito milhões de pessoas, no mínimo, foram presas; cerca de três milhões foram executadas ou morreram em consequências de maus-tratos. Em fins de 1939, havia nove milhões de prisioneiros nos cárceres e nos remotos campos de concentração (em 1928, este número era de trinta mil, e no período de 1933-35, de cinco milhões). Uma em cada duas famílias perdeu algum de seus membros. Foram dizimadas todas as elites dominantes — políticas, econômicas, militares, intelectuais e culturais.14

O próprio partido foi o mais atingido. Em 1934, contava com 2 milhões e 800 mil membros efetivos ou aspirantes; destes, pelos menos um milhão — stalinistas e anti-stalinistas — foram presos, e depois foram executados. A liderança mais antiga foi destruída, da base à cúpula: desapareceram comitês locais, regionais e republicanos; dos 1.966 delegados presentes ao XVII Congresso do Partido, em 1934, 1.108 foram presos, e em sua maioria fuzilados; foram executados ou levados ao suicídio 110 dos 139 membros efetivos ou suplentes do Comitê Central em 1934. Depois de Trotsky ter sido assassinado no México, em 1940, Stalin passou a ser o único membro ainda vivo do grupo dirigente leniniano. O terror apresentava uma explicação oficial: visava aos “inimigos do povo” que participavam de uma vasta conspiração de sabotagem, traição e assassinatos contra o Estado soviético. Todas as acusações criminais eram falsas, embora apresentadas com abundância de detalhes nos três julgamentos exemplares de velhos bolcheviques, realizados em 1936, 1937 e 1938 — dos quais o mais importante foi o último, o de Bukharin.

O sangrento expurgo stalinista foi uma revolução — embora menos aparente — “tão absoluta quanto qualquer outra transformação anteriormente ocorrida na Rússia”. O Partido Bolchevique estava destruído e criara-se um novo partido, com membros e ethos diferentes. Só 3% dos delegados presentes ao congresso de 1934 — o último antes do expurgo — compareceram ao congresso de 1939, 70% dos membros haviam ingressado no partido após 1929, ou seja, já no período stalinista; apenas 3% dos membros estavam no partido desde antes de 1917. Em fins dos anos 30, o sistema político soviético já não representava, sob aspecto algum, uma ditadura ou governo de partido. Mantinha-se a fachada de continuidade institucional e a ficção oficial, mas Stalin se tornara autocrático e fizera do partido um dos vários instrumentos de sua ditadura pessoal. Após 1939, foram raras as reuniões dos órgãos deliberativos partidários, do Congresso, do Comitê Central e até mesmo do Politburo. Na verdade, até a morte do ditador, em 1953, o partido teve menos poder que a polícia, e mereceu menos consideração oficial que o Estado.19

1. Sovetskaia istoricbeskaia entsiklopediia. Vol. VI (Moscou, 1965), pp. 25-34; Nove, Economic History, caps. VIII-IX.

2. Eugene Lyons, Assigmnent in Utopia, New York, 1937, p. 196; JUKOV, Iuri. Liudi 30-kh godov (Moscou, 1966).

3. Moshkov, Zernovaia problema v gody sploshnoi kollektivizatsii sei’skogo khoziaistva SSSR (1929-1932 gg.). Moscow, 1966, p. 136; Nove. Economic History, pp. 209, 249-51, 260.

4. A história da coletivização encontra-se em M. Lewin, Russian Peasants and Soviet Power: A Study of Collectivization (Evanston, Illinois, 1968), pp. 482-519; Nove, Economic History, cap. VII; e Fainsod, Smolensk, cap. XII.

5. Lewin, Russian Peasants, cap. XVII; BOGDENKO, M. L. Kolkhoznoe stroitel’stvo vesnoi i letom 1930 g. Istoricheskie zapiski, nº 76 (1965), p. 31.

6. Nove, Economic History, p. 186; Nemakov, Kommunisticheskaia partiia, pp. 257-9; Ocberki istorii kommunisticheskoi partii Ukrainy, p. 401.

7. Segundo circular oficial citada por Fainsod, em Merle Fainsod, Smolensk Under Soviet Rule (Cambridge, 1958), pp. 185-6.

8. Ver, por exemplo, CHAMBERLIN, William Henry. Russia’s Iron Age (New York, 1935), pp. 82-8, 367-9; Arthur Koestler, The Yogi and the Comissar (New York, 1965), p. 128; William Reswick, I Dreamt Revolution (Chicago, 1951), cap. XXV; e Roy A. Medvedev, Let History Judge: The Origins and Consequences of Stalinism (New York, 1971), pp. 94-6.

9. As estimativas variam de pouco menos de 10 milhões até bem acima. Mais tarde, Stalin falou a Churchill numa cifra de 10 milhões. Ver The Hinge of Fate, New York, 1950, p. 498.

10. Como salientou Preobrajenski XVII s’’ezd, p. 238.

11. Nove, Economic History, pp. 180, 186. Uma comparação de todos os produtos agrícolas e as requisições estatais entre 1926-1929 e 1930-39 revela um padrão semelhante. Ver Medvedev, Let History Judge, pp. 90-2.

12. Citado in TUCKER, Robert C (revised ed.; New York, 1971), Soviet Political Mind, p. 124.

13. Sobre o assunto, ver TIMASHEFF, Nicholas S. The Great Retreat (New York, 1946); e também DANIELS, Robert V. Soviet Thought in the Nineteen-Thirties: an Interpretative Sketch. In GINSBURG, Michael e SHAW, Joseph Thomas. Indiana Slavic Studies. Bloomington, Ind., 1956, Vol. I, pp. 97-135.

14. O melhor relato do terror encontra-se em CONQUEST, Robert. The Great Terror: Stalin’s Purge of the Thirties (New York, 1968). As estatísticas são aproximadas, como não poderiam deixar de ser, mas não se dispõe de outras mais fidedignas.

15. Ibid., caps. VIII, XIII; CONQUEST, Robert. The Great Terror Revised. Survey, nº 78 (1971), pp. 92-3; ver também MEDVEDEV, Let History Judge, cap. VI.

16. Como reconheceu o governo soviético após a morte de Stalin. Quanto às acusações feitas a Bukharin, ver Lenin, Soch., XXVII, pp. 379-82; Vsesoiuznoe sovesbcbanie o merakh uluchsbeniia podgotovki nauclmo-pedagogicbeskikh kadrov po istoricheskim naukam: 18-21 dekabria 1962 g. (Moscow, 1964), p. 298.

17. Conquest, Great Terror, p. 251.

18. Ibid., p. 471; Istoriia kommunisticheskoi partii sovetskogo soiuza, Vol. I, Livro 1 (Moscou, 1970), p. 7.

19. Para uma análise, ver TUCKER, Soviet Political Mind, cap. I. Alguns historiadores soviéticos reconhecem tacitamente que o partido não governou entre 1939 e 1953. Ver ANDREEV, P. P. (org.). Materialy k lektsiiam po kursu istorii KPSS: temy 11-13. Moscou, 1964, pp. 43-4.

 

 

“Numa óbvia alusão a si mesmo, Bukharin citou as palavras de Engels acerca do dilema enfrentado por Goethe: “ter de existir num contexto que não podia deixar de desprezar, e estar acorrentado a este contexto, uma vez que era o único onde poderia atuar...”67.”

67. BUKHARIN, N. Etiudy, Moscou and Leningrad, 1932, p. 151.

 

 

“Já durante a guerra civil Bukharin chamara a atenção para um aspecto básico e muito importante da personalidade de Stalin: “Stalin só consegue viver se tiver o que os outros têm. É algo que não consegue perdoar”; “sente um ciúme insuperável de quem quer que saiba mais que ele, ou seja melhor que ele”. Os demais oponentes do secretário-geral cometeram, quase todos, o erro de considerá-lo “um mero político provinciano”, ou “a mediocridade mais notável do partido”. Bukharin parece ter concluído que um demônio interior alimentava a ambição pessoal de Stalin.136 (...)

Tal como em 1928, Bukharin percebia que estava em processo uma compulsão insaciável, tanto psicológica quanto política. Conforme a explicativa, Stalin “está desesperado porque não consegue convencer a todos, nem mesmo a si próprio, de que é superior a todo mundo. (...) Seu desespero leva-o a vingar-se nas pessoas, em todas as pessoas, sobretudo naquelas que são de alguma forma superiores a ele ou melhores que ele...”137.”

136. Citado por Trotski em My Life (New York, 1960), pp. 433, 450. Para as outras opiniões, ver ibid., p. 512, e Trotski, Stalin, New York, 1941, p. 393. Em círculos privados, Stalin já demonstrava considerar-se “a pessoa que chefia o Estado”. Citado por Medvedev em Let History Judge, p. 325.

137 DAN, L. Bukharin o Staline. Novyi jornal, 75 (1964), p. 181. Há testemunhos de que, ao ser ovacionado no congresso de escritores em 1934, Bukharin disse que estava sendo “assinada minha sentença de morte”. Joseph, Berger, Nothing but the truth (New York, 1971), p. 107.

 

 

“Sabendo que sua prisão era iminente, ao voltar para casa após a sessão do Comitê Central, Bukharin escreveu à futura geração de líderes do partido uma última carta, que pediu à esposa que decorasse.

“Percebo meu desamparo”, começava, “ante uma máquina infernal que (...) passou a deter um poder gigantesco, fabrica difamações organizadas, age com ousadia e confiança (...).” A polícia de Stalin, continuava Bukharin, era

“uma organização degenerada de burocratas sem ideias, corruptos, bem pagos, que utilizam a antiga autoridade da Tcheka para satisfazer a desconfiança mórbida de Stalin.(...) Qualquer membro do Comitê Central, qualquer membro do partido pode ser aniquilado, transformado em traidor, em terrorista, em desviacionista, em espião, por esses ‘órgãos que operam prodígios’”.

Declarando-se inocente de qualquer crime, Bukharin escreve que acusá-lo de ser inimigo da revolução e agente capitalista era o mesmo que descobrir que o último czar “dedicara sua vida inteira à luta contra o capitalismo e a monarquia, à luta em favor (...) da revolução proletária”. Dirige-se aos futuros líderes do partido,

que terão a missão histórica de dissipar a monstruosa nuvem de crimes que se torna cada vez mais imensa nestes tempos assustadores, incendiando-se como uma chama e sufocando o partido. (...) Agora, nestes dias que serão provavelmente os últimos de minha vida, tenho confiança de que mais cedo ou mais tarde o filtro da história inevitavelmente retirará a vileza que pesa sobre minha cabeça. (...) Peço que uma geração jovem e honesta de líderes do partido leia minha carta ante um pleno do partido, a fim de me absolver. (...) Saibam, camaradas, que nesse estandarte que vocês conduzirão na marcha vitoriosa para o comunismo, há também uma gota do meu sangue”.165

Quando o Comitê Central volta a reunir-se, Bukharin lê uma declaração irada e emocionada onde defendia a si mesmo e a Rykov. Segundo um relato que circulou em Moscou, basicamente confirmado por outras fontes, reconhece estar em marcha “uma conspiração monstruosa” — liderada por Stalin e Yejov, que pretendiam estabelecer uma ditadura pessoal baseada no poder da polícia “sobre o partido e o país. (...) Por isto precisamos ser eliminados”. Depois, voltando-se para Stalin, faz a seguinte acusação:

Recorrendo ao terrorismo político e a atos de tortura em escala até agora inaudita, você forçou velhos membros do Partido a apresentarem ‘depoimentos’. (...) Você tem à disposição uma multidão de informantes pagos. (...) Pode usar o sangue de Bukharin e Rykov para levar avante o coup d’état que vem preparando há muito tempo...”.

Ressaltando mais uma vez que não estava em jogo seu próprio destino, mas o destino do país, Bukharin implora ao Comitê Central “que retorne às tradições de Lênin e chame à ordem os conspiradores policiais que se escondem sob a autoridade do Partido. Hoje, quem governa o país é a NKVD, e não o Partido. Quem está preparando um coup d’état é a NKVD, não os partidários de Bukharin”.166

 

Quando Bukharin pediu que fossem investigadas as práticas da polícia, Stalin interrompeu-o dizendo: “Muito bem, vou mandá-lo até lá e você mesmo poderá ver”.167

Depois de a opção ter ficado bem clara, um membro suplente do Politburo, Postyshev, falou em nome dos que se opunham ao expurgo: “Pessoalmente, não creio que (...) um membro honesto do partido, que percorreu o longo caminho da luta incansável contra os inimigos, pelo partido e pelo socialismo, esteja agora em campo inimigo. Não acredito nisto...”. Diz-se que neste momento uma intervenção ameaçadora de Stalin abalou a determinação de Postyshev. Ele e outros oradores que pensavam da mesma forma começaram a recuar e a calar suas dúvidas, embora evidentemente não todas. Vendo que levava vantagem, Stalin recorre a uma tática bem conhecida. Fingindo neutralidade, deixa os ataques a Bukharin e Rykov a cargo de seus prepostos do terror, e designa uma comissão — onde predominavam estes mesmos prepostos — para decidir os destinos de ambos.168

No dia 27 de fevereiro, a comissão apresenta seu veredito: “Prisão, julgamento, execução”. Recebe o endosso da maioria do Comitê Central, de cujos membros 70% morreriam nos meses seguintes. Bukharin e Rykov foram presos nos próprios lugares que ocupavam e transferidos para Lubianka, a maior prisão política do país. Treze meses depois, voltariam a ser vistos, já como réus do último e mais importante dos julgamentos do expurgo de Moscou.”

165. Reeditado in MEDVEDEV, Let History Judge, pp. 182-4. As circunstâncias da redação do documento encontram-se em uma carta da esposa de Bukharin, Larina, escrita em 1961 ou 1962. O Dr. Peter Reddaway me deu uma cópia da carta, pertencente ao acervo da fundação Alexander Herzen.

166. URALOV, Alexander (Abdurakhman Avtorkhanov), The Reign of Stalin. London, 1953, pp. 45-6. O relato de Uralov tem sido posto em questão porque ele dá uma data errada para a plenária, no outono de 1936. Mas sua versão das declarações de Bukharin, em aspectos importantes, é comprovada por outras fontes. Ver MEDVEDEV, Let History Judge, p. 174; Writings of Leon Trotsky (1937-38), New York, 1970, pp. 1 28-9; e Conquest, Great Terror, p. 195. A exposição de Uralov revela também grande semelhança, em espírito e termos, com a última carta de Bukharin, já citada. Além disso, a atitude desafiadora de Bukharin na plenária foi oficialmente relatada na época. Ver Khrushchev no Pravda, 17 mar., 1937, p. 2.

167. Citado por MEDVEDEV, Let History Judge, p. 174.

168. Conquest, GREAT TERROR, pp. 193-5; e ibid.

 

 

É impossível considerar o stalinismo como o marxismo-leninismo ou o comunismo de três décadas. O stalinismo são as perversões que Stalin introduziu na teoria e na prática do movimento comunista. Trata-se de um fenômeno absolutamente estranho ao marxismo-leninismo, trata-se de pseudocomunismo e de pseudosocialismo...

O processo de purificação do movimento comunista, de eliminação de todos os resquícios da imundície stalinista, ainda não terminou. É preciso levá-lo até o fim.” (Roy A. Medvedev)