segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Crise infinita, de Geoff Johns

Desenhistas: Phil Gimenez, George Pérez, Jerry Ordway, Ivan Reis

Editora: Eaglemoss

Opinião: ★★★☆☆

ISBN: 978-85-8057-902-4

Tradução: Jotapê Martins e Fábio Denardin; Eduardo Tanaka e Fernando Bertacchini

Páginas: 368

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Sinopse: É o dia mais sombrio do Universo DC. Os robôs OMAC estão causando destruição, a magia está morrendo, vilões estão se unindo e uma guerra é travada no espaço. Em meio a tudo isso, os três maiores heróis da Terra – Superman, Batman e Mulher-Maravilha – permanecem divididos. No entanto, heróis do passado há muito perdidos voltaram para endireitar as coisas no universo. A qualquer preço. Heróis viverão, heróis morrerão, e o Universo DC nunca mais será o mesmo.

 

* Crise infinita é um romance gráfico, e como às vezes acontece em livros assim, não foi selecionada nenhuma passagem particularmente notável.

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

O privilégio da servidão (Parte III), de Ricardo Antunes

Subtítulo: o novo proletariado de serviços na era digital

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-629-6

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 328

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“O sindicalismo brasileiro recente (ou “novo sindicalismo”, como se consagrou na bibliografia especializada) vem se transformando de modo acentuado; inaugurado pelas greves de 1978, bem como pelas primeiras articulações sindicais que se desenvolveram desde meados daquela década, o novo sindicalismo promoveu mudanças significativas na cultura sindical e política brasileira ao instituir novas práticas, mecanismos e instituições. Gradativamente, entretanto, ao longo de mais de três décadas, suas práticas cotidianas de acentuada (ainda que não exclusivamente) tendência confrontacionista foram sendo substituídas por uma nova pragmática sindical predominantemente negocial, em que o confronto cedeu espaço para parcerias, negociações e incentivo aos pactos sindicais etc.[2]

O desdobramento dessa mutação vem consolidando uma prática sindical que, além de fetichizar a negociação, transforma os dirigentes em novos gestores que encontram na estrutura sindical mecanismos e espaços de realização, tais como operar com fundos de pensão, planos de pensão e de saúde, além das inúmeras vantagens intrínsecas ao aparato burocrático típico do sindicalismo de Estado vigente no Brasil desde a década de 1930. Isso mudou o perfil das lideranças e das práticas sindicais adotadas até então. Tais mudanças alteraram também o destinatário do discurso sindical, cujo ideário vai paulatinamente se deslocando de um sindicalismo de classe para um sindicalismo cidadão[3].”

[2] Ricardo Antunes, Os sentidos do trabalho, cit.; Ricardo Antunes e Marco Aurélio Santana, “Para onde foi o novo sindicalismo? Caminhos e descaminhos de uma prática sindical”, em Daniel Aarão Reis, Marcelo Ridenti e Rodrigo Patto Sá Motta (orgs.), A ditadura que mudou o Brasil (Rio de Janeiro, Zahar, 2014), e “The Dilemmas of the New Unionism in Brazil: Breaks and Continuities”, Latin American Perspectives, Califórnia, v. 41, n. 5, 2014; disponível em: <http://journals.sagepub.com/doi/full/10.1177/0094582X14541228>; acesso em 25 dez. 2017; Jair Batista da Silva, Racismo e sindicalismo: reconhecimento, redistribuição e ação política das centrais sindicais acerca do racismo no Brasil (1983-2002) (tese de doutorado em Ciências Sociais, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 2008), e “Ação sindical, racismo e cidadania no Brasil”, em Ricardo Antunes (org.), Riqueza e miséria do trabalho no Brasil, v. 2, cit.

[3] Jair Batista da Silva, Racismo e sindicalismo, cit.; Ricardo Antunes, O novo sindicalismo no Brasil, (Campinas, Pontes, 1995); Iram Jácome Rodrigues, Sindicalismo e política: a trajetória da CUT (São Paulo, Scritta, 1997); Leôncio Martins Rodrigues e Adalberto Moreira Cardoso, Força Sindical: uma análise sociopolítica (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1993).

 

 

No que concerne à liderança política, Lula a exercitou de forma exemplar ao manter relação “direta” com as massas, de fortes traços arbitrais e, frequentemente, messiânicos. Em uma quadra histórica em que as frações dominantes não puderam garantir a sucessão presidencial nem em 2002 nem em 2006, Lula se tornou expressão de um governo excepcionalmente favorável a elas, uma vez que conseguiu articular interlocução com os pobres, vivência das benesses do poder e garantia de boa vida dos grandes capitais. Encarnou, dessa forma, uma espécie de semi-Bonaparte, recatado, cordial, célere diante da hegemonia financeira e hábil no manuseio de sua base social. Sua nova forma de ser provocou uma consciência invertida de seu passado e o deslumbramento em relação ao presente.

Como consequência desse transformismo, seu governo demonstrou enorme competência em dividir os trabalhadores privados dos trabalhadores públicos. O mais importante partido de classe das últimas décadas, que tantas esperanças criou no Brasil e no mundo, exauriu-se como partido de esquerda transformador da ordem para se qualificar como potente gestor dos grandes interesses dominantes no país. Converteu-se em um partido que sonha, enfim, “humanizar o capitalismo”, combinando, quando no poder central, uma política de parcerias com o grande capital – evidenciando um traço privatizante que procurou esconder de todo modo – e de incentivo amplo à transnacionalização dúplice do Brasil (de fora para dentro e vice-versa), fazendo uso também da força do Estado para incentivar seu desenvolvimento e expansão e buscando minorar, por meio de políticas sociais, o pauperismo existente.

O governo Lula, que poderia ter iniciado o desmonte efetivo do neoliberalismo no Brasil, acabou se tornando, a princípio, seu prisioneiro e, depois, seu lépido agente, ainda que sob a forma do social-liberalismo, incapaz de principiar a desestruturação dos pilares da dominação burguesa. O desmoronamento do projeto de governo do PT era questão de tempo. Esse tempo chegou quando a crise atingiu o Brasil em profundidade.”

 

 

Os movimentos sociais, por exemplo, encontram sua vitalidade nas fortes conexões que os enlaçam à vida cotidiana, mas por vezes podem ter dificuldades para se tornar longevos, duradouros. Nem sempre é fácil para eles vislumbrar um outro desenho societal que lhes permita uma fina calibragem entre vida cotidiana e um novo modo de vida em sentido amplo e radical.

Os sindicatos, mais próximos dos interesses imediatos da classe trabalhadora, embora imprescindíveis, por vezes se perdem em seu imediatismo, em suas batalhas cotidianas, quando não em seu burocratismo, sem compreender bem a totalidade e o sentido de pertencimento de classe ampliado (e não corporativo) que deve plasmar as suas ações. Isso quando não sofrem disputas políticas que encontram o desinteresse e o distanciamento real de suas bases.

Os partidos de esquerda, por sua vez, desenham seus projetos de futuro, praticam suas ações anticapitalistas, mas com frequência se desconectam efetivamente da vida cotidiana, do dia a dia dos homens e mulheres que vivem de seu trabalho e os quais pretendem representar. Não raro, se tornam prisioneiros dos espaços institucionais conquistados, o que os distancia ainda mais do ser social que querem efetivamente representar. Devem procurar compreender melhor as novas dimensões das lutas sociais, as questões vitais presentes na vida cotidiana que muitas vezes são desconsideradas pelas ações partidárias tradicionais.

Não é difícil perceber que, menos do que nas hierarquizações prévias, os desafios estão em soldar laços de maior organicidade entre essas três ferramentas que o mundo do trabalho ainda dispõe hoje, de modo que suas ações não sejam ainda mais pulverizadas ou exauridas nessa fase de profunda ação destrutiva do capital em relação ao trabalho e à humanidade, em escala global.

Se nossas indicações procuram apontar os riscos das hierarquizações prévias, e não daquelas efetivamente conquistadas nas ações concretas, elas pretendem também sugerir que nossas ações, lutas e batalhas passam igualmente por esses espaços, ainda que na direção de uma nova organicidade das forças sociais do trabalho, para a qual as nossas esquerdas, sociais, sindicais e políticas, poderão autenticamente contribuir, sempre que estiverem de fato enraizadas em experiências concretas e façam parte efetiva das lutas sociais de nosso tempo.”

 

 

Creio que estamos vivendo um período excepcional da nossa história. O início do século XX também foi um período de grande relevância, tendo começado com uma grande guerra mundial, quase simultaneamente à Revolução Russa, seguidas pela iminência de revoluções socialistas na Hungria e na Alemanha, que não se consubstanciaram em vitórias. Em seguida, tivemos o advento do fascismo na Itália e, depois, do nazismo na Alemanha, assim como dos governos de extrema direita na Espanha e em Portugal. Em suma, os anos 1910, 1920 e 1930 consistiram em um período historicamente muito relevante.

O século XXI começou também bastante tenso. Fazendo um paralelo com os movimentos da natureza, as placas tectônicas da história e da sociedade estão se movendo, friccionando-se. Diante desse quadro, o que podemos e devemos fazer como intelectuais que não abandonaram a luta pela superação do capitalismo e que, por isso, estão comprometidos com “um outro mundo”?

Em primeiro lugar, é necessário desvelar a realidade concreta de que o capitalismo não é e nunca foi, em ponto algum, uma alternativa para a humanidade.

A questão ambiental não pode mais ser encarada como um tema para os próximos anos ou décadas, mas deve ser analisada e assumida como uma questão vital hoje.

A questão da propriedade intelectual também precisa ser discutida e reavaliada, pois é inadmissível que esse ativo esteja tão concentrado, como está, nas mãos de grandes grupos transnacionais – a exemplo dos medicamentos, que são controlados pelos interesses privados e especulativos.

Se olharmos a destruição do trabalho em escala global, veremos como a Europa vivenciou altos níveis de desemprego nas últimas quatro décadas. Até os trabalhos mais precários – outrora destinados apenas aos imigrantes – são disputados agora pelos próprios trabalhadores europeus de forma ferrenha.

Os Estados Unidos também vêm, ainda mais intensamente desde 2008, no mesmo caminho. A cidade de Detroit, apenas para dar um exemplo, que havia cinquenta anos era o símbolo norte-americano, pediu recentemente falência, segundo informaram os jornais. Trata-se de toda uma cidade (e não só uma ou algumas empresas) que não tem mais condições de pagar sequer o salário de bombeiros e policiais.

Os intelectuais críticos, comprometidos com outro modo de vida, devem fazer uma análise profunda do mundo atual, compreender esses movimentos, as suas tendências, diferenças, dificuldades, mutações. É necessário, especialmente para os intelectuais socialistas, entender como é possível reinventar um socialismo para o século XXI que não seja a tragédia daquele do século XX, que feneceu, com honrosas exceções.

Contudo, a transformação do mundo não é obra de intelectuais, apesar do seu papel crítico: a ação decisiva e central está na classe trabalhadora (ou mesmo nas classes trabalhadoras), nas lutas e nos movimentos sociais, que mantêm uma dimensão inter-relacional muito profunda entre trabalho, geração, gênero, etnia, a questão também vital da natureza etc.

Esse é o desafio que temos pela frente.

O século XXI tem sido um laboratório social especial, uma vez que estamos vivendo um momento em que é preciso utilizar todas as energias de análise, de reflexão, de pensamento crítico e de ação, para que possamos visualizar, em oposição ao que vivemos nos dias atuais, um novo século dotado de humanidade.”

 

 

O ano de 1968 foi o que balançou o mundo: os levantes em Paris e em vários países da Europa; a invasão russa à Tchecoslováquia; as greves e manifestações de rua no Brasil; o massacre dos estudantes no México; as greves do autunno caldo (outono quente) na Itália no ano seguinte, em 1969, mesmo ano do cordobazo na Argentina, para citar alguns exemplos emblemáticos. Nos anos 1960, adentramos em uma era de rebeliões que se expandiram por quase todos os cantos do mundo. Na década seguinte, em um quadro de profunda crise estrutural, o sistema de dominação do capital, constatada sua crise profunda em todos os níveis, econômico, social, político, ideológico, valorativo, foi obrigado a desenhar uma nova engenharia da dominação.

Vieram, numa sucessão concatenada, a reestruturação produtiva dos capitais, a financeirização ampliada do mundo e a barbárie neoliberal, e essa trípode da destruição foi responsável pelo advento da contrarrevolução burguesa de amplitude global, para recordar a expressão frequentemente usada pelo sociólogo brasileiro Octavio Ianni.

Uma contrarrevolução burguesa poderosa, cujo objetivo primeiro foi destruir toda a organização da classe trabalhadora, do movimento socialista e anticapitalista. Essa reação foi, então, a resposta às lutas empreendidas pelos polos mais avançados do movimento operário europeu e dos movimentos sociais que combateram pela emancipação em 1968-1969, que almejavam nada menos que o controle social da produção, desvencilhado tanto do enquadramento social-democrático quanto do chamado “modelo soviético”.

Essa contrarrevolução burguesa descarregou sua profunda verve antissocial em escala planetária: impulsionou a barbárie neoliberal ainda dominante e deflagrou uma grandiosa reestruturação produtiva do capital, que alterou, em muitos elementos, a engenharia produtiva do capital. Essa ação bifronte esteve sempre sob a hegemonia do capital financeiro. Dela resultou uma gigantesca ampliação tanto da (super)exploração do trabalho quanto do mundo especulativo e de seu capital fictício.

Mas é bom recordar que o capital financeiro não é só o capital fictício que circula e generaliza as especulações e os saques: o capital fictício é uma parte prolongada do capital financeiro e este é, como sabemos há muito tempo, uma fusão complexa entre o capital bancário e o capital industrial (como nos ensinaram Lênin, Hilferding, Rosa Luxemburgo, entre outros).

Ao contrário do que prega certa leitura frágil defendida por muitos economistas pouco críticos, o capital financeiro não é uma alternativa separada e oposta ao mundo produtivo, mas o controla em grande parte, e só uma fração dele – o capital fictício – se descola da produção. Em seus núcleos centrais, o capital financeiro atua na própria esfera produtiva (e a controla). Basta lembrar que, quando compramos um produto financiado, estamos na verdade oferecendo um duplo ganho para os capitais: tanto na compra quanto no financiamento das mercadorias.

Esse é o lastro material existente, sem o qual o capital financeiro não pode dominar “eternamente”. Capital fictício sem algum lastro produtivo é uma impossibilidade quando se pensa em dominação de longo período. Não é por outro motivo que, na lógica do capital financeiro, o saque, a exploração e a intensificação do uso da força de trabalho têm de ser levados cada vez mais ao limite no capitalismo de nosso tempo. É também por isso que os padecimentos, constrangimentos e níveis de (super)exploração da força de trabalho atingem níveis de intensidade jamais vistos em fases anteriores, no Sul e no Norte do mundo global. (...)

Como sabemos, a pragmática neoliberal significou maior concentração de riqueza e da propriedade da terra, avanço dos lucros e ganhos do capital, intenso processo de privatização das empresas públicas, desregulamentação dos direitos sociais e do trabalho, liberdade plena para os capitais, dos quais resultaram o aumento da pauperização dos assalariados, a expansão dos bolsões de precarizados e dos desempregados, entre tantas outras consequências socialmente nefastas.

No mundo financeiro latino-americano, basta recordar que muitos bancos estrangeiros compensaram sua situação quase falimentar nos países de origem com a ampliação de seus lucros no Brasil, no Chile e em diversos outros países latino-americanos. O caso do Santander é exemplar. O Brasil, que até poucas décadas atrás tinha um sistema financeiro majoritariamente nacional e estatal, hoje tem esse setor fortemente transnacionalizado.”

 

 

“Depois de um período aparentemente estável do pós-guerra, o ano de 1968 chacoalhou a “calmaria” que parecia vigorar no mundo do welfare State: os levantes em Paris, que se espalharam por tantas partes do globo, estampavam o novo fracasso do capitalismo. Os operários, os estudantes, as mulheres, a juventude, os negros, os ambientalistas, as periferias, as comunidades indígenas chamavam a atenção para um novo e duplo fracasso.

De um lado, cansaram de se exaurir no trabalho, sonhando com um paraíso que nunca encontravam. O capitalismo do Norte ocidental procurava fazê-los “esquecer” a luta por um mundo novo, alardeando um aqui e agora que lhes escapava dia após dia.

Por outro, o chamado “bloco socialista”, originado em uma revolução socialista que abriu novos horizontes em 1917, havia se convertido, desde a contrarrevolução do camarada Stálin, em uma ditadura do terror, especialmente contra a classe operária, que, em vez de se emancipar, se exauria em um emprego infernal em que o sonho cotidiano principal era praticar o absenteísmo no trabalho.

O ano que abalou o mundo foi duramente derrotado pelas poderosas forças repressivas que sempre se aglutinam quando a ditadura do capital é questionada. Das revoltas na França ao massacre dos estudantes no México e à repressão às greves do Brasil. Do autunno caldo da Itália ao cordobazo na Argentina, os aparatos repressivos da ordem conseguiram estancar a era das rebeliões, impedindo-a de se converter em uma época de revoluções. Adentrávamos, então, na década de 1970, em uma profunda crise estrutural: o sistema de dominação do capital chafurdava em todos os níveis: econômico, social, político, ideológico, valorativo, o que o obrigou a desenhar uma nova engenharia da dominação.

Foi nessa contextualidade que começou a se gestar uma trípode profundamente destrutiva. Esparramaram-se, como praga da pior espécie, a pragmática neoliberal e a reestruturação produtiva global, ambas sob o comando hegemônico do mundo das finanças. É bom recordar que essa hegemonia significou não somente a expansão do capital fictício, mas uma complexa simbiose entre o capital diretamente produtivo e o bancário, com o qual se funde de início, criando um monstrengo de novo tipo, uma espécie de Frankenstein horripilante e desprovido de qualquer sentimento minimamente anímico.

As principais resultantes desse processo foram desde logo evidenciadas: deu-se uma ampliação descomunal de novas (e velhas) modalidades de (super)exploração do trabalho, desigualmente impostas e globalmente combinadas pela nova divisão internacional do trabalho na era dos impérios. Para tanto, foi preciso que a contrarrevolução burguesa de amplitude global exercitasse sua outra finalidade precípua, qual seja, a de tentar destruir a medula da classe trabalhadora, seus laços de solidariedade e consciência de classe, procurando recompor sua nova dominação em todas as esferas da vida societal. (...)

Na contraface desse ideário apologético e mistificador, afloraram as consequências reais no mundo do trabalho: terceirização nos mais diversos setores; informalidade crescente; flexibilidade ampla (que arrebenta as jornadas de trabalho, as férias, os salários); precarização, subemprego, desemprego estrutural, assédios, acidentes, mortes e suicídios. Exemplos se sucedem em todos os espaços, como nos serviços commoditizados ou mercadorizados. Um novo precariado desponta nos trabalhos de call-center, telemarketing, hipermercados, hotéis, restaurantes, fast-food etc., onde vicejam alta rotatividade, menor qualificação e pior remuneração.

Turbinada pela lógica das finanças, em que técnica, tempo e espaço se convulsionaram, a corrosão dos direitos do trabalho se tornou a exigência inegociável das grandes corporações, apesar de seus ideários apregoarem mistificadoramente “responsabilidade social”, “sustentabilidade ambiental” (a Samarco e a Vale que o digam), “colaboração”, “parceria” etc.

Na esfera basal da produção, prolifera o vilipêndio social e, no topo, domina o mundo financeiro. Capital fictício na ponta do sistema e uma miríade interminável de formas precárias de trabalho que se esparramam nas cadeias globais produtivas de valor. Dos Estados Unidos à Índia, da Europa “unida” ao México, da China à África do Sul, em todos os cantos do mundo se expande essa pragmática letal ao trabalho e seus direitos. Esse vilipêndio só é estancado quando há resistência sindical, luta social e rebelião popular, como na França de hoje e no Chile de ontem.”

 

 

Sabemos que a Consolidação das Leis do Trabalho se originou em uma conjuntura especial, intimamente vinculada à chamada “Revolução de 1930”, que foi mais do que um golpe e menos do que uma revolução. Rearranjo necessário entre nossas classes dominantes – cuja fração cafeeira começava a perder seu acentuado espaço no poder. E o movimento político-militar que levou Vargas à Presidência da República recompôs o equilíbrio entre as distintas frações da oligarquia, cujo resultado mais expressivo, entretanto, foi o desenvolvimento de um projeto industrializante, nacionalista e com forte presença estatal. Vargas sabia que a montagem desse novo projeto não poderia se efetivar sem o envolvimento da classe trabalhadora, que não encontrava espaço no liberalismo excludente da chamada República do Café.

O enigma da incorporação da classe trabalhadora por Vargas pode ser desvendado pelos múltiplos significados presentes quando da decretação da CLT. Desde logo ela consolidava a totalidade da legislação social (e sindical) do trabalho iniciada em 1930. Mas faz-se premente enfatizar que houve um movimento dúplice nessa história: o operariado brasileiro lutava, desde meados do século XIX, por direitos trabalhistas básicos, mediante greves. Esse movimento se expandiu ao longo das primeiras décadas do século XX – de que foi exemplo, entre tantos, a grande Greve Geral de 1917 –, quando os trabalhadores e as trabalhadoras reivindicaram, entre outras bandeiras, melhores condições de salário e de trabalho, regulamentação da jornada, direito de férias e descanso semanal etc.

Aqui o mito encontrou sua origem e densidade: Vargas “converteu” autênticas demandas operárias em “doações do Estado”, realizadas quase sempre em atos de Primeiro de Maio oficialistas, nos quais se assumia como responsável pelo Estado benefactor, para recordar Werneck Vianna[1].

Àquilo que a classe operária defendia em suas lutas concretas – na primeira metade dos anos 1930 houve a eclosão de inúmeras greves no Brasil – Vargas respondia como sendo seu antecipador e criador[2]. Foi assim, oscilando entre luta e outorga, que chegamos à decretação da CLT, em 1943, e à criação do mito do “Pai dos Pobres”.

Do lado varguista, construía-se a clara percepção de que o projeto industrial carecia de regulamentação e controle do trabalho. Do lado dos assalariados, um exame das pautas das greves permitia constatar que os direitos trabalhistas estavam entre suas principais reivindicações. A título de exemplo: se para a classe trabalhadora a criação do salário mínimo nacional era imprescindível para garantir sua reprodução e sobrevivência, para o projeto industrializante de Vargas era imperioso regulamentar a mercadoria força de trabalho e, desse modo, consolidar o mercado interno com a implementação de um salário mínimo basal.”

[1] Luiz Werneck Vianna, Liberalismo e sindicato no Brasil (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976).

[2] Ricardo Antunes, Classe operária, sindicatos e partido no Brasil: da Revolução de 30 até a Aliança Nacional Libertadora (São Paulo, Cortez, 1988).

 

 

Por um novo modo de vida

O empreendimento socialista não poderá efetivar outro modo de vida se não conferir ao trabalho algo radicalmente distinto tanto da subordinação estrutural em relação ao capital quanto de seu sentido heterônomo, subordinado a um sistema de mando e hierarquia, como se deu durante a vigência do sistema soviético e nos países do chamado “bloco socialista” ou do “socialismo real”, eufemismo para esconder as mazelas que impediam a autonomia efetiva e verdadeira do trabalho.

Com isso, entramos em outro ponto crucial, quando se trata de entender o verdadeiro significado do trabalho no socialismo e sua profunda diferença em relação à forma social do trabalho sob o sistema de capital. Conforme desenvolvemos no livro Os sentidos do trabalho, uma vida cheia de sentido fora do trabalho supõe uma vida dotada de sentido dentro do trabalho. Não é possível compatibilizar trabalho assalariado, fetichizado e estranhado com tempo verdadeiramente livre. Uma vida desprovida de sentido no trabalho é incompatível com uma vida cheia de sentido fora do trabalho. Em alguma medida, a esfera fora do trabalho estará maculada pela desefetivação que se dá no interior da vida laborativa.

Como o sistema global do capital, nos dias atuais, abrange intensamente também as esferas da vida fora do trabalho, a desfetichização da sociedade do consumo tem como corolário imprescindível a desfetichização no modo de produção das coisas. O que torna a desfetichização da vida muito mais difícil, se não se inter-relacionar decisivamente a ação pelo tempo livre confrontado abertamente à lógica do capital e à vigência do trabalho abstrato.

Se o fundamento da ação coletiva for voltado radicalmente contra as formas de dominação do capital, com suas alienações e seus estranhamentos, a luta imediata pela redução da jornada ou do tempo de trabalho se torna também importante e inteiramente compatível com o direito ao trabalho. Desse modo, a luta contemporânea pela redução da jornada (ou do tempo) de trabalho e a luta pelo direito ao trabalho, ao invés de serem excludentes, se tornam necessariamente complementares.

O empreendimento societal por um trabalho cheio de sentido e pela vida autêntica fora do trabalho, por um tempo disponível para o trabalho e por um tempo verdadeiramente livre e autônomo fora do trabalho – ambos, portanto, desassociados do controle e do comando opressivos do capital –, se converte em elemento essencial na construção de uma sociedade socialista não mais regulada pelo sistema de metabolismo social do capital e seus mecanismos de subordinação, não mais voltada para a destruição da natureza, mas sim para uma autêntica preservação ambiental, compatível tanto em relação às reais necessidades humanas quanto à imperiosa e imprescindível preservação da ecologia.

A invenção societal de uma nova vida, autêntica e dotada de sentido, recoloca, portanto, neste início do século XXI, a necessidade premente de construção de um novo sistema de metabolismo social, de um novo modo de produção fundado na atividade autodeterminada. Atividade baseada no tempo disponível para produzir valores de uso socialmente necessários, contra a produção heterodeterminada, que caracterizou o capitalismo, baseada no tempo excedente para a produção exclusiva de valores de troca para o mercado e para a reprodução do capital.

Durante a vigência do capitalismo (e, de modo mais abrangente, do próprio sistema do capital), o valor de uso dos bens socialmente necessários subordinou-se ao seu valor de troca, que passou a comandar a lógica do sistema de produção do capital. As funções produtivas básicas, bem como o controle do seu processo, foram radicalmente separadas entre aqueles que produzem (os trabalhadores) e aqueles que controlam (os capitalistas e seus gestores). Como diz Marx, o capital operou a separação entre trabalhadores e meio de produção, entre “o caracol e sua concha”[6], aprofundando a distância entre a produção voltada para o atendimento das necessidades humano-sociais e aquela direcionada às necessidades de autorreprodução do capital.

Tendo sido o primeiro modo de produção a criar uma lógica que não leva em conta prioritariamente as reais necessidades societais, e que também por isso se diferenciou de maneira radical de todos os sistemas anteriores de controle do metabolismo social existentes (que produziam visando suprir, ainda que de modo bastante desigual, as necessidades de autorreprodução humana, e não o lucro), o capital instaurou um sistema voltado para a sua autovalorização que independe das reais necessidades autorreprodutivas da humanidade[7].

O novo princípio societal imprescindível é, então, conceber o trabalho como atividade vital[8], como autoatividade. O que significa dizer que a nova forma societal socialista deve recusar o funcionamento com base na separação dicotômica entre tempo de trabalho necessário para a reprodução social e tempo de trabalho excedente para a reprodução do capital. Isso porque o tempo disponível[9] será aquele dispêndio de atividade laborativa autodeterminada, livre, voltado “para atividades autônomas, externas à relação dinheiro-mercadoria”[10], e por isso capaz de se contrapor à relação totalizante dada pela forma-mercadoria e pelo capital. Para além da divisão hierárquica que subordina o trabalho ao capital hoje vigente.

Se o mundo atual nos oferece como horizonte imediato o privilégio da servidão, seu combate e seu impedimento efetivos, então, só serão possíveis se a humanidade conseguir recuperar o desafio da emancipação.”

[6] Karl Marx, O capital: crítica da economia política, Livro I: O processo de produção do capital (São Paulo, Boitempo, 2013), p. 433.

[7] István Mészaros, Para além do capital: rumo a uma teoria da transição (São Paulo, Boitempo, 2002).

[8] Karl Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, cit.; O capital, Livro I, cit.

[9] Karl Marx, Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858 – esboços da crítica da economia política (São Paulo, Boitempo, 2011), p. 590.

[10] Robert Kurz, O colapso da modernização, cit.

O privilégio da servidão (Parte II), de Ricardo Antunes

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Opinião: ★★★☆☆

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Laços solidários rompidos: individualização e solidão no local de trabalho

A origem desses processos de adoecimento tem também como pano de fundo, entre outros, o crescente processo de individualização do trabalho e a ruptura do tecido de solidariedade antes presente entre os trabalhadores[18]. É essa quebra dos laços de solidariedade e, por conseguinte, da capacidade do acionamento das estratégias coletivas de defesa entre os trabalhadores que se encontra na base do aumento dos processos de adoecimento psíquico e de sua expressão mais contundente, o suicídio no local de trabalho[19].

A presença dos laços de solidariedade, hoje rompidos, estaria na raiz da baixa incidência de suicídios nos locais de trabalho no período que antecede os anos 1980, pontuam Dejours e Bègue[20]. Naquele período, a capacidade gestada na coletividade de converter situações de sofrimento em um jogo de chacotas e escárnio acabava por criar condições capazes de mascarar situações desfavoráveis e tecer entre os integrantes do grupo pactos de apoio subjetivo mútuo. Em situações mais extremadas, quando o trabalhador não conseguia dissimular seu sofrimento, os próprios laços de solidariedade constituídos acabavam, não raras vezes, sendo acionados de forma a protegê-lo ou confortá-lo. O desmonte dessas condições tem contribuído, conforme os autores, para o aumento da incidência de suicídios nos locais de trabalho. São o resultado extremado de um processo de sofrimento psíquico, mas já destituído de apoio e solidariedade dos demais.

Para os autores citados, que pesquisaram a incidência desses episódios na França durante os anos 2000, um suicídio, como toda conduta humana, é uma mensagem endereçada à comunidade da qual seu sujeito faz ou fazia parte. Trata-se, conforme os autores, de uma “mensagem brutal”, que versa sobre a solidão que emerge das novas formas de organização e gestão do trabalho.

Que um suicídio possa ocorrer no local de trabalho indica que todas essas condutas de ajuda mútua e solidariedade – que não eram nem mais nem menos que uma simples prevenção das descompensações, assumidas pelo coletivo de trabalho – foram banidas dos costumes e da rotina da vida de trabalho. Em seu lugar instalou-se a nova fórmula do cada um por si, e a solidão de todos tornou-se regra. Agora, um colega afoga-se e não se lhe estende mais a mão. Em outros termos, um único suicídio no local de trabalho – ou manifestamente em relação ao trabalho – revela a desestruturação profunda da ajuda mútua e da solidariedade.[21]

O suicídio é a expressão radicalizada da deterioração das condições de trabalho sob a vigência da gestão flexível. Ele e todo o sofrimento que o cerca encontram espaço para se desenvolver na medida em que a classe trabalhadora se vê diante de uma organização do trabalho voltada para o controle acentuado de sua atividade, sob condições em que as margens para a autonomia e o improviso, mesmo que já bastante limitadas na fase anterior do capitalismo, tenham sido gradativamente eliminadas. Uma organização do trabalho que oscila o tempo todo entre o discurso de valorização e o controle físico e mental extremados[22].

Esses ambientes, marcados pela lógica da gestão flexível, tendem a fragilizar “o conjunto de instâncias e forças” outrora existentes, “que presidem à mobilização dos indivíduos na defesa de sua saúde física e mental – defesa que se dá em um mundo compartilhado”, já distante do vivenciado em dias atuais[23].

Convém destacar que parte dessas instâncias que favoreciam a existência desse sentimento de coletividade, de pertencimento, manifestava-se na capacidade de mobilização coletiva e na presença de entidades sindicais politicamente fortalecidas, o que sem dúvida também contribuía para o amparo ao sofrimento dos trabalhadores dentro e fora do local de trabalho. A ofensiva do capital sobre o trabalho, ao submetê-lo à sua lógica destrutiva, promovendo a individualização e o isolamento, é, nesse sentido, uma ação que busca desmontar de forma cotidiana sua manifestação de classe historicamente antagônica aos interesses da ordem capitalista.”

[18] Ver, entre outros, os estudos desenvolvidos por Danièle Linhart, A desmedida do capital (São Paulo, Boitempo, 2007); Christophe Dejours, “A avaliação do trabalho submetida à prova do real”, em Laerte Idal Sznelwar e Fausto Leopoldo Mascia (orgs.), Cadernos TTO (São Paulo, Blucher, 2008); Christophe Dejours e Florence Bègue, Suicídio e trabalho: o que fazer? (Brasília, Paralelo 15, 2010); Vincent de Gaulejac, Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social (Aparecida, Ideias e Letras, 2007); Edith Seligmann-Silva, “Psicopatologia no trabalho: aspectos contemporâneos”, Anais do Congresso Internacional sobre Saúde Mental no Trabalho, Goiânia, CIR, 2007, e Trabalho e desgaste mental: o direito de ser dono de si mesmo (São Paulo, Cortez, 2011).

[19] Christophe Dejours e Florence Bègue, Suicídio e trabalho, cit.

[20] Idem.

[21] Ibidem, p. 21.

[22] Luci Praun, Não sois máquina! Reestruturação produtiva e adoecimento na General Motors do Brasil (tese de doutorado em Sociologia, Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp, 2014), sob orientação do professor Ricardo Antunes.

[23] Philippe Davezies, citado em Edith Seligmann-Silva, Trabalho e desgaste mental, cit., p. 467.

 

 

Resgatar o sentido de pertencimento de classe

Em sua lógica destrutiva, o capital não reconhece nenhuma barreira para a precarização do trabalho. A exploração sem limites da força de trabalho é em si expressão das contradições estruturais de dada forma de sociabilidade, que, ao mesmo tempo que não pode prescindir do trabalho vivo para sua reprodução, necessita explorá-lo ao extremo, impondo-lhe o sentido mais profundo de sua mercantilização: a abreviação de seu tempo de uso como resultado do aprofundamento, pelo adoecimento, de sua característica de mercadoria de alta descartabilidade.

As mudanças ocorridas no mundo do trabalho nas últimas décadas resultaram na constituição de um exército de trabalhadores mutilados, lesionados, adoecidos física e mentalmente, muitos deles incapacitados de forma definitiva para o trabalho. Em outras palavras, trata-se de um modelo de gestão que simultaneamente se organiza visando o envolvimento da subjetividade inautêntica[38], o controle da subjetividade[39] dos trabalhadores, mecanismo necessário para a obtenção de altos índices de produtividade, e se configura cada vez mais como incapaz, pela própria intensidade concorrencial e instabilidade do mercado, de garantir condições de trabalho minimamente adequadas à saúde física e mental dos trabalhadores.

Não se trata, portanto, de mera casualidade que a maior incidência de casos de LER/Dort e de transtornos mentais ocorra simultaneamente à disseminação em escala global dos processos de reorganização do trabalho e da produção e, de maneira articulada, à expansão das diferentes formas de precarização do trabalho, entre elas a terceirização.

É diante desse cenário que novos desafios se impõem aos sindicatos. De nossa parte, cremos que a ferramenta sindicato ainda é imprescindível, enquanto perdurar a sociedade do capital, com sua exploração do trabalho, suas precarizações, seus adoecimentos e seus padecimentos corpóreos físicos, psíquicos etc. Mas é preciso dizer que há inúmeros desafios a serem enfrentados.

Impõe-se a necessidade de adoção de estratégias de organização e luta que considerem a nova morfologia assumida pelo trabalho no capitalismo contemporâneo. É urgente que as entidades representativas dos trabalhadores rompam com a enorme barreira social que separa os trabalhadores “estáveis”, em franco processo de redução, daqueles submetidos às jornadas de tempo parcial, precarizados, subproletarizados, em significativa expansão no atual cenário mundial. Há também o desafio de articular uma efetiva dimensão de classe, no sentido amplo de classe trabalhadora, em sua nova morfologia, articulando-a com outras dimensões decisivas, como a de gênero, a geracional e a étnica[40].

Essa é condição essencial para fazer frente, do ponto de vista imediato, às constantes tentativas de desmonte dos direitos e flexibilização do trabalho. O eufemismo “flexibilizar”, expresso nos discursos que propõem o fim da CLT, é a forma branda encontrada pelas forças do capital para desconstruir os direitos do trabalho, arduamente conquistados em tantas décadas de embates e batalhas. Basta olhar o que se passa hoje na Europa e constatar que lá também o receituário é flexibilizar, acentuando ainda mais o desmonte dos direitos trabalhistas. (...)

Do ponto de vista estratégico, se forem capazes de unir os laços de solidariedade e o sentido de pertencimento de classe, conjugando suas ações, as entidades representativas dos trabalhadores poderão, mais do que qualquer outra força social, demolir efetivamente o sistema de metabolismo societal do capital e sua lógica destrutiva e, assim, também começar a desenhar um novo modo de vida. E os sindicatos de classe ainda poderão ter um papel de destaque nesse processo, se forem capazes de entender o século XXI e, em especial, a nova morfologia do trabalho.”

[38] Ricardo Antunes, Os sentidos do trabalho (São Paulo, Boitempo, 2013).

[39] Danièle Linhart, A desmedida do capital, cit.

[40] Ricardo Antunes, Os sentidos do trabalho, cit., e Adeus ao Trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho (São Paulo, Cortez, 2015).

 

 

O capitalismo no plano mundial, nas últimas quatro décadas, transformou-se sob a égide da acumulação flexível, trazendo uma ruptura com o padrão fordista e gerando um modo de trabalho e de vida pautados na flexibilização e na precarização do trabalho. São mudanças impostas pelo processo de financeirização e mundialização da economia num grau nunca antes alcançado, pois o capital financeiro passou a dirigir todos os demais empreendimentos do capital, subordinando a esfera produtiva e contaminando todas as suas práticas e os modos de gestão do trabalho. O Estado passou a desempenhar cada vez mais um papel de “gestor dos negócios da burguesia financeira”, cujos governos, em sua imensa maioria, pautam-se pela desregulamentação dos mercados, principalmente o financeiro e o de trabalho.

Trata-se de uma hegemonia da “lógica financeira” que, para além de sua dimensão econômica, atinge todos os âmbitos da vida social, dando um novo conteúdo aos modos de trabalho e de vida, sustentados na volatilidade, na efemeridade e na descartabilidade sem limites. É a lógica do curto prazo, que incentiva a “permanente inovação” no campo da tecnologia, dos novos produtos financeiros e da força de trabalho, tornando obsoletos e descartáveis os homens e mulheres que trabalham. São tempos de desemprego estrutural, de trabalhadores e trabalhadoras empregáveis no curto prazo, por meio das (novas e) precárias formas de contrato[2], em que terceirização, informalidade, precarização, materialidade e imaterialidade são mecanismos vitais, tanto para a preservação quanto para a ampliação da sua lógica.”

[2] Graça Druck, “Trabalho, precarização e resistências”, cit.; Graça Druck e Tânia Franco, “Terceirização e precarização”: o binômio antissocial em indústrias”, em Graça Druck e Tânia Franco (orgs.)

 

 

Em seus traços mais gerais, é possível dizer que o padrão de acumulação flexível articula um conjunto de elementos de continuidade e de descontinuidade que acabam por conformar algo relativamente novo e bastante distinto do padrão taylorista/fordista de acumulação. De modo sintético, podemos dizer que o toyotismo e a empresa flexível se diferenciam do fordismo basicamente nos seguintes traços[4]:

1.      é uma produção diretamente vinculada à demanda, diferenciando-se da produção em série e de massa do taylorismo/fordismo;

2.     depende do trabalho em equipe, com multivariedade de funções, rompendo com o caráter parcelar típico do fordismo;

3.     estrutura-se num processo produtivo flexível, que possibilita ao trabalhador operar simultaneamente várias máquinas, diferentemente da relação homem-máquina na qual se baseava o taylorismo/fordismo;

4.    têm como princípio o just-in-time, isto é, a produção deve ser efetivada no menor tempo possível;

5.     desenvolve-se o sistema de kanban, senhas de comando para reposição de peças e de estoque, uma vez que no toyotismo os estoques são os menores possíveis, em comparação ao fordismo;

6.    as empresas do complexo produtivo toyotista têm uma estrutura horizontalizada, ao contrário da verticalidade fordista. Enquanto na fábrica fordista aproximadamente 75% da produção era realizada no seu interior, a fábrica toyotista é responsável por apenas 25%, e a terceirização/subcontratação passa a ser central na estratégia patronal. Essa horizontalização se estende às subcontratadas, às firmas “terceirizadas”, acarretando a expansão dos métodos e procedimentos para toda a rede de subcontratação. Tal tendência vem se intensificando ainda mais nos dias atuais, quando a empresa flexível defende e implementa a terceirização não só das atividades-meio, como também das atividades-fim;

7.     desenvolve-se a criação de círculos de controle de qualidade (CCQs), visando a melhoria da produtividade das empresas e permitindo que elas se apropriem do savoir faire intelectual e cognitivo do trabalho, que o fordismo desprezava.

Desse modo, flexibilização, terceirização, subcontratação, círculo de controle de qualidade total, kanban, just-in-time, kaizen, team work, eliminação do desperdício, “gerência participativa”, sindicalismo de empresa, entre tantos outros pontos, tornaram-se dominantes no universo empresarial.”

[4] Ver, sobre o toyotismo, Ricardo Antunes, Os sentidos do trabalho, cit., e Adeus ao trabalho?, cit.; Graça Druck, Terceirização: (des)fordizando a fábrica – um estudo do complexo petroquímico (São Paulo, Boitempo, 1999); Thomas Gounet, Fordismo e toyotismo na civilização do automóvel (São Paulo, Boitempo, 1999); Koichi Shimizu, “Kaizen et gestion du travail: chez Toyota motor et Toyota motor kyushu-un problème dans la trajectorie de Toyota”, Actes du Gerpisa: Réseau Internationale, Paris, 1994; disponível em: <http://gerpisa.org/ancien-gerpisa/actes/13/13-2.pdf>; acesso em: 26 dez. 2017; Muto Ichiyo, Toyotismo: lucha de classes e innovación tecnológica en Japón (Buenos Aires, Antídoto, 1995); Benjamin Coriat, Penser à l’envers, travail et organization dans l’enterprise japonaise (Paris, Christian Bourgeois, 1991); Andrew Sayer, “New Developments in Manufacturing: the Just-in-Time System”, Capital & Class, Londres, n. 30, 1986; e Satoshi Kamata, Japan in the Passing Lane: an Insider’s Account of Life in a Japanese Auto Factory (Nova York, Pantheon, 1982).

 

 

Sabemos que o capitalismo, desde o início da década de 1970, vem apresentando um movimento tendencial em que a informalidade e a precarização se tornaram mecanismos recorrentes para a ampliação do lucro das empresas, sejam elas globais – as transnacionais –, sejam elas microcósmicas – as pequenas e as médias empresas. E a terceirização, por sua vez, vem se consolidando, em tantas partes do mundo, como uma ferramenta, uma verdadeira praga propulsora dessa razão instrumental profundamente destrutiva em relação ao trabalho[2].

Em meio ao furacão da mais recente crise mundial, a partir de 2008, esse quadro se intensificou ainda mais, aprofundando a derrelição do trabalho contratado e regulamentado, taylorista e fordista, cujos mecanismos de regulação e contratação social vêm sendo corroídos em profundidade, em amplitude global, pela desregulamentação que de fato ocorre com a expansão da terceirização, da informalidade e da precarização (fenômenos distintos, mas interligados e aparentados), da qual o principal objetivo é o de incrementar os mecanismos e formas de extração do sobretrabalho, de sujeição e divisão dos trabalhadores e das trabalhadoras a essa pragmática perversa que se expande tanto na indústria quanto na agricultura e nos serviços, todos eles praticantes da lógica financeirizada que os conduz.

Assim, impulsionados no topo pela lógica destrutiva do capital financeiro, que acelera o tempo e modifica o espaço a cada segundo, o vilipêndio do trabalho e a sua corrosão constituem-se em instrumental imprescindível. Capital financeiro no cume e trabalho desregulado nas cadeias produtivas de valor. As formas contemporâneas de trabalho escravo, semiescravo, precarizado, informalizado, terceirizado, flexibilizado, dando contemporaneidade às formas pretéritas do outsourcing, do putting out etc., contemplam um universo compósito e heterogêneo, para lembrar uma expressão que Florestan Fernandes tanto gostava de mencionar.

É nesse cenário, nesse mundo produtivo, que a informalidade deixa de ser a exceção para tendencialmente se tornar a regra. O aumento da precarização se transforma no principal resultado desse capitalismo dito flexível, da lean production, da empresa liofilizada, em especial nos espaços em que não se encontram formas vigorosas de contraposição (social, sindical, política, jurídica, valorativa) a esse movimento tendencial destrutivo em relação à classe-que-vive-do-trabalho. Na contrapartida, ampliar todos os modos e formas de confrontação a esse grave ataque ao mundo do trabalho se torna imperativo vital.”

[2] Ricardo Antunes, Os sentidos do trabalho, cit.; Ricardo Antunes e Graça Druck, “A epidemia da terceirização”, em Ricardo Antunes (org.), cit. Ver também o excelente livro de José Dari Krein, As relações de trabalho na era do neoliberalismo no Brasil (São Paulo, LTr, 2013, Debates Contemporâneos, v. 8). Sobre as consequências dessas transformações no processo de intensificação do trabalho, ver os melhores estudos realizados no Brasil em Sadi Dal Rosso, Mais trabalho! A intensificação do labor na sociedade contemporânea (São Paulo, Boitempo, 2008), e idem, O ardil da flexibilidade, cit.

 

 

Não é sem motivo que, na feliz expressão de Graça Druck, estamos presenciando uma verdadeira epidemia que vem atingindo a indústria, a agricultura, a agroindústria, os serviços e, em particular, também o setor público[7]. Em um cenário de crise estrutural do capital, os capitais exigem a terceirização não só para as chamadas atividades-meio, mas também para as atividades-fim.

Criando trabalhadores e trabalhadoras de “primeira e segunda categorias”, fatiando-os e diferenciando-os entre contratados diretamente e “terceirizados”, ampliam-se ainda mais as heterogeneizações e fragmentações no corpo produtivo. A título de exemplo: nas jornadas mais extensas; na intensificação do trabalho; na maior rotatividade; nos salários menores; nos cursos e treinamentos (que em geral são menos frequentes para os terceirizados); no acesso limitado às instalações da empresa (a exemplo de refeitórios e vestiários diferenciados); nas revistas na entrada e na saída da empresa; nas mais arriscadas condições de (in)segurança do trabalho; tudo isso acarretando graves problemas na saúde dos/as trabalhadores/as, tanto no aumento dos acidentes quanto nas estatísticas decorrentes de mortes e suicídios no trabalho[8].

No que concerne em particular às condições de saúde, os estudos revelam um quadro alarmante, em particular na energia elétrica, na extração e no refino de petróleo e na siderurgia, mas esse quadro se estende também para os professores, trabalhadores de call-center e telemarketing. Proliferam as LERs, o assédio moral (essa nova forma de controle e dominação dissimulada), o adoecimento e os padecimentos de todo tipo no corpo produtivo, físico, psíquico, mental[9]. As mortes e os suicídios no trabalho se intensificam sob o silêncio midiático e a surdez institucional. Se tudo isso já não bastasse, a terceirização fragmenta ainda mais as possibilidades de ação e de consciência coletivas, incentiva a nefasta individualização das relações de trabalho, faz crescer a concorrência derivada do sistema de metas e competências, criando o cenário ideal para as empresas dificultarem ao máximo a atividade sindical em defesa dos direitos sociais do trabalho. Vale lembrar que a terceirização impõe também uma pulverização dos sindicatos, ocorrendo muitas vezes de, em uma mesma empresa, os diferentes setores terceirizados se vincularem a sindicatos diferenciados, quando não são proibidos de fato de se filiar e exercer atividades sindicais. Ou seja, além do fosso entre terceirizados e não terceirizados, há também clivagens entre os terceirizados[10].

Assim, a expansão da terceirização nos mais diversos ramos econômicos se efetiva de modo múltiplo: nos tipos de contrato, na remuneração, nas condições de trabalho e de saúde e na representação sindical. As denominadas modalidades atípicas de trabalho, como “empreendedorismo”, “cooperativismo”, “trabalho voluntário” etc., se configuram gradualmente como formas de ocultamento do trabalho assalariado, permitindo aumentar ainda mais as distintas formas de flexibilização salarial, de horário, funcional ou organizativa.

O argumento empresarial, presente no PL 4.330, é pautado pela mais evidente falácia, quando propugna que “a empresa moderna tem de se concentrar em seu negócio principal e na melhoria da qualidade do produto ou da prestação de serviço”. Curioso é que, quando defendia a terceirização das atividades-meio, o empresariado argumentava que ela daria condições de focalizar as atividades da empresa em suas finalidades maiores. Obtida a terceirização das atividades-meio, o ideário do capital agora defende a concentração em seu “negócio principal”. Como se pode depreender, a dilapidação dos direitos trabalhistas, o rebaixamento salarial e tudo que indicamos anteriormente são os reais objetivos do capital nessa fase de crise econômica e intensificação da recessão, de modo a, uma vez mais, fazer com que a classe trabalhadora pague o ônus maior da crise.”

[7] Graça Druck, Terceirização, cit.; “Trabalho, precarização e resistências”, cit.; Graça Druck e Tânia Franco (orgs.), A perda da razão social do trabalho, cit.

[8] Ricardo Antunes e Graça Druck, “A epidemia da terceirização”, cit.

[9] Idem. Ver também Edith Seligmann-Silva, Desgaste mental no trabalho dominado (São Paulo, Cortez, 1994); Graça Druck e Tânia Franco (orgs.), A perda da razão social do trabalho, cit.; e a excelente pesquisa de Luci Praun, Não sois máquina!, cit. Em relação à precarização dos professores ver Aparecida N. Souza, “Professores, modernização e precarização”, em Ricardo Antunes (org.), Riqueza e miséria do trabalho no Brasil, v. 3, (São Paulo, Boitempo, 2014). Em relação à precarização do trabalho na arte, ver Liliana Segnini, “Acordes dissonantes: assalariamento e relações de gênero em orquestras”, em Ricardo Antunes (org.), Riqueza e miséria do trabalho no Brasil, v. 3, cit.

[10] Ricardo Antunes e Graça Druck, “A epidemia da terceirização”, cit.

 

 

Esse momento de ressurgimento do sindicalismo nacional foi caracterizado, em uma de suas dimensões, pela concorrência de projetos políticos e sindicais entre setores da esquerda. Fruto dessa conjuntura, o novo sindicalismo despontava da articulação de variadas posições, fazendo frente a outras. Ele propugnava uma ruptura com o passado, que teria sido de “colaboração de classe”, “reformista”, “conciliador”, “cupulista” etc. Direcionando muitas de suas críticas à estrutura sindical, o novo sindicalismo propunha “romper” com ela, articulando-se por vias alternativas. Caminhando nessa direção, organizou-se a Central Única dos Trabalhadores (CUT), que foi, a um só tempo, fruto e motor do novo sindicalismo. Este, em algumas de suas vertentes, apesar de seu suposto “antipoliticismo” de origem, esteve também na base de fundação do Partido dos Trabalhadores (PT), chegando com ele ao poder nas eleições presidenciais de 2002 por meio de um de seus filhos diletos, Luiz Inácio Lula da Silva.”

 

 

“Se este não é o espaço para aprofundar os movimentos e contramovimentos da era Lula, há pelo menos dois pontos centrais, diretamente vinculados à relação que se estabeleceu entre a cúpula sindical e o Estado, que devem ser mencionados: a proposta de “reforma trabalhista e sindical” e a ampliação do direito de recebimento do imposto sindical pelas centrais.

O campo sindical havia se ampliado e se complexificado sobremaneira ao longo dos governos FHC e do primeiro governo Lula. Foi entre os anos de 2004 e 2005 que ganhou força a proposta de reforma sindical, elaborada pelo órgão tripartite denominado Fórum Nacional do Trabalho (FNT). Se essa proposta foi obstada tanto pelas denúncias do “mensalão”, que atingiram duramente o governo Lula, quanto pela forte oposição que encontrou em diversos setores sindicais, ela indicava alguns pontos que contradiziam diretamente os princípios que nortearam a criação da CUT e a prática do novo sindicalismo. Seria difícil imaginar que, entre outros aspectos, o reforço da verticalização impregnado nessa proposta pudesse contar em sua origem com a adesão da CUT, para quem organização de base, liberdade e autonomia sindicais eram princípios vitais e inegociáveis.

A nova política de controle de setores importantes do novo sindicalismo era primordial para o governo Lula e recuperava, em certo sentido, a política de mão dupla: a cúpula sindical ascenderia a cargos na alta burocracia estatal; as verbas seriam ampliadas via Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e outros fundos estatais, garantindo, desse modo, o apoio das principais centrais sindicais ao governo, num cenário claramente marcado pelo pluralismo das centrais sindicais.

Foi assim que, posteriormente, em 2008, pouco antes de terminar seu governo, Lula, ao mesmo tempo que reconhecia as centrais sindicais, permitia que o imposto sindical também as beneficiasse. Além dos recursos do FAT e dos inúmeros apoios financeiros de ministérios, também o imposto sindical passava a ser usufruído pelas centrais. A velha bandeira da CUT e de tantos sindicatos, qual seja, a luta pela cotização autônoma de seus associados, passava a fazer mais parte da história que do presente.”