sexta-feira, 14 de novembro de 2025

O privilégio da servidão (Parte II), de Ricardo Antunes

Subtítulo: o novo proletariado de serviços na era digital

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-629-6

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 328

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Laços solidários rompidos: individualização e solidão no local de trabalho

A origem desses processos de adoecimento tem também como pano de fundo, entre outros, o crescente processo de individualização do trabalho e a ruptura do tecido de solidariedade antes presente entre os trabalhadores[18]. É essa quebra dos laços de solidariedade e, por conseguinte, da capacidade do acionamento das estratégias coletivas de defesa entre os trabalhadores que se encontra na base do aumento dos processos de adoecimento psíquico e de sua expressão mais contundente, o suicídio no local de trabalho[19].

A presença dos laços de solidariedade, hoje rompidos, estaria na raiz da baixa incidência de suicídios nos locais de trabalho no período que antecede os anos 1980, pontuam Dejours e Bègue[20]. Naquele período, a capacidade gestada na coletividade de converter situações de sofrimento em um jogo de chacotas e escárnio acabava por criar condições capazes de mascarar situações desfavoráveis e tecer entre os integrantes do grupo pactos de apoio subjetivo mútuo. Em situações mais extremadas, quando o trabalhador não conseguia dissimular seu sofrimento, os próprios laços de solidariedade constituídos acabavam, não raras vezes, sendo acionados de forma a protegê-lo ou confortá-lo. O desmonte dessas condições tem contribuído, conforme os autores, para o aumento da incidência de suicídios nos locais de trabalho. São o resultado extremado de um processo de sofrimento psíquico, mas já destituído de apoio e solidariedade dos demais.

Para os autores citados, que pesquisaram a incidência desses episódios na França durante os anos 2000, um suicídio, como toda conduta humana, é uma mensagem endereçada à comunidade da qual seu sujeito faz ou fazia parte. Trata-se, conforme os autores, de uma “mensagem brutal”, que versa sobre a solidão que emerge das novas formas de organização e gestão do trabalho.

Que um suicídio possa ocorrer no local de trabalho indica que todas essas condutas de ajuda mútua e solidariedade – que não eram nem mais nem menos que uma simples prevenção das descompensações, assumidas pelo coletivo de trabalho – foram banidas dos costumes e da rotina da vida de trabalho. Em seu lugar instalou-se a nova fórmula do cada um por si, e a solidão de todos tornou-se regra. Agora, um colega afoga-se e não se lhe estende mais a mão. Em outros termos, um único suicídio no local de trabalho – ou manifestamente em relação ao trabalho – revela a desestruturação profunda da ajuda mútua e da solidariedade.[21]

O suicídio é a expressão radicalizada da deterioração das condições de trabalho sob a vigência da gestão flexível. Ele e todo o sofrimento que o cerca encontram espaço para se desenvolver na medida em que a classe trabalhadora se vê diante de uma organização do trabalho voltada para o controle acentuado de sua atividade, sob condições em que as margens para a autonomia e o improviso, mesmo que já bastante limitadas na fase anterior do capitalismo, tenham sido gradativamente eliminadas. Uma organização do trabalho que oscila o tempo todo entre o discurso de valorização e o controle físico e mental extremados[22].

Esses ambientes, marcados pela lógica da gestão flexível, tendem a fragilizar “o conjunto de instâncias e forças” outrora existentes, “que presidem à mobilização dos indivíduos na defesa de sua saúde física e mental – defesa que se dá em um mundo compartilhado”, já distante do vivenciado em dias atuais[23].

Convém destacar que parte dessas instâncias que favoreciam a existência desse sentimento de coletividade, de pertencimento, manifestava-se na capacidade de mobilização coletiva e na presença de entidades sindicais politicamente fortalecidas, o que sem dúvida também contribuía para o amparo ao sofrimento dos trabalhadores dentro e fora do local de trabalho. A ofensiva do capital sobre o trabalho, ao submetê-lo à sua lógica destrutiva, promovendo a individualização e o isolamento, é, nesse sentido, uma ação que busca desmontar de forma cotidiana sua manifestação de classe historicamente antagônica aos interesses da ordem capitalista.”

[18] Ver, entre outros, os estudos desenvolvidos por Danièle Linhart, A desmedida do capital (São Paulo, Boitempo, 2007); Christophe Dejours, “A avaliação do trabalho submetida à prova do real”, em Laerte Idal Sznelwar e Fausto Leopoldo Mascia (orgs.), Cadernos TTO (São Paulo, Blucher, 2008); Christophe Dejours e Florence Bègue, Suicídio e trabalho: o que fazer? (Brasília, Paralelo 15, 2010); Vincent de Gaulejac, Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social (Aparecida, Ideias e Letras, 2007); Edith Seligmann-Silva, “Psicopatologia no trabalho: aspectos contemporâneos”, Anais do Congresso Internacional sobre Saúde Mental no Trabalho, Goiânia, CIR, 2007, e Trabalho e desgaste mental: o direito de ser dono de si mesmo (São Paulo, Cortez, 2011).

[19] Christophe Dejours e Florence Bègue, Suicídio e trabalho, cit.

[20] Idem.

[21] Ibidem, p. 21.

[22] Luci Praun, Não sois máquina! Reestruturação produtiva e adoecimento na General Motors do Brasil (tese de doutorado em Sociologia, Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp, 2014), sob orientação do professor Ricardo Antunes.

[23] Philippe Davezies, citado em Edith Seligmann-Silva, Trabalho e desgaste mental, cit., p. 467.

 

 

Resgatar o sentido de pertencimento de classe

Em sua lógica destrutiva, o capital não reconhece nenhuma barreira para a precarização do trabalho. A exploração sem limites da força de trabalho é em si expressão das contradições estruturais de dada forma de sociabilidade, que, ao mesmo tempo que não pode prescindir do trabalho vivo para sua reprodução, necessita explorá-lo ao extremo, impondo-lhe o sentido mais profundo de sua mercantilização: a abreviação de seu tempo de uso como resultado do aprofundamento, pelo adoecimento, de sua característica de mercadoria de alta descartabilidade.

As mudanças ocorridas no mundo do trabalho nas últimas décadas resultaram na constituição de um exército de trabalhadores mutilados, lesionados, adoecidos física e mentalmente, muitos deles incapacitados de forma definitiva para o trabalho. Em outras palavras, trata-se de um modelo de gestão que simultaneamente se organiza visando o envolvimento da subjetividade inautêntica[38], o controle da subjetividade[39] dos trabalhadores, mecanismo necessário para a obtenção de altos índices de produtividade, e se configura cada vez mais como incapaz, pela própria intensidade concorrencial e instabilidade do mercado, de garantir condições de trabalho minimamente adequadas à saúde física e mental dos trabalhadores.

Não se trata, portanto, de mera casualidade que a maior incidência de casos de LER/Dort e de transtornos mentais ocorra simultaneamente à disseminação em escala global dos processos de reorganização do trabalho e da produção e, de maneira articulada, à expansão das diferentes formas de precarização do trabalho, entre elas a terceirização.

É diante desse cenário que novos desafios se impõem aos sindicatos. De nossa parte, cremos que a ferramenta sindicato ainda é imprescindível, enquanto perdurar a sociedade do capital, com sua exploração do trabalho, suas precarizações, seus adoecimentos e seus padecimentos corpóreos físicos, psíquicos etc. Mas é preciso dizer que há inúmeros desafios a serem enfrentados.

Impõe-se a necessidade de adoção de estratégias de organização e luta que considerem a nova morfologia assumida pelo trabalho no capitalismo contemporâneo. É urgente que as entidades representativas dos trabalhadores rompam com a enorme barreira social que separa os trabalhadores “estáveis”, em franco processo de redução, daqueles submetidos às jornadas de tempo parcial, precarizados, subproletarizados, em significativa expansão no atual cenário mundial. Há também o desafio de articular uma efetiva dimensão de classe, no sentido amplo de classe trabalhadora, em sua nova morfologia, articulando-a com outras dimensões decisivas, como a de gênero, a geracional e a étnica[40].

Essa é condição essencial para fazer frente, do ponto de vista imediato, às constantes tentativas de desmonte dos direitos e flexibilização do trabalho. O eufemismo “flexibilizar”, expresso nos discursos que propõem o fim da CLT, é a forma branda encontrada pelas forças do capital para desconstruir os direitos do trabalho, arduamente conquistados em tantas décadas de embates e batalhas. Basta olhar o que se passa hoje na Europa e constatar que lá também o receituário é flexibilizar, acentuando ainda mais o desmonte dos direitos trabalhistas. (...)

Do ponto de vista estratégico, se forem capazes de unir os laços de solidariedade e o sentido de pertencimento de classe, conjugando suas ações, as entidades representativas dos trabalhadores poderão, mais do que qualquer outra força social, demolir efetivamente o sistema de metabolismo societal do capital e sua lógica destrutiva e, assim, também começar a desenhar um novo modo de vida. E os sindicatos de classe ainda poderão ter um papel de destaque nesse processo, se forem capazes de entender o século XXI e, em especial, a nova morfologia do trabalho.”

[38] Ricardo Antunes, Os sentidos do trabalho (São Paulo, Boitempo, 2013).

[39] Danièle Linhart, A desmedida do capital, cit.

[40] Ricardo Antunes, Os sentidos do trabalho, cit., e Adeus ao Trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho (São Paulo, Cortez, 2015).

 

 

O capitalismo no plano mundial, nas últimas quatro décadas, transformou-se sob a égide da acumulação flexível, trazendo uma ruptura com o padrão fordista e gerando um modo de trabalho e de vida pautados na flexibilização e na precarização do trabalho. São mudanças impostas pelo processo de financeirização e mundialização da economia num grau nunca antes alcançado, pois o capital financeiro passou a dirigir todos os demais empreendimentos do capital, subordinando a esfera produtiva e contaminando todas as suas práticas e os modos de gestão do trabalho. O Estado passou a desempenhar cada vez mais um papel de “gestor dos negócios da burguesia financeira”, cujos governos, em sua imensa maioria, pautam-se pela desregulamentação dos mercados, principalmente o financeiro e o de trabalho.

Trata-se de uma hegemonia da “lógica financeira” que, para além de sua dimensão econômica, atinge todos os âmbitos da vida social, dando um novo conteúdo aos modos de trabalho e de vida, sustentados na volatilidade, na efemeridade e na descartabilidade sem limites. É a lógica do curto prazo, que incentiva a “permanente inovação” no campo da tecnologia, dos novos produtos financeiros e da força de trabalho, tornando obsoletos e descartáveis os homens e mulheres que trabalham. São tempos de desemprego estrutural, de trabalhadores e trabalhadoras empregáveis no curto prazo, por meio das (novas e) precárias formas de contrato[2], em que terceirização, informalidade, precarização, materialidade e imaterialidade são mecanismos vitais, tanto para a preservação quanto para a ampliação da sua lógica.”

[2] Graça Druck, “Trabalho, precarização e resistências”, cit.; Graça Druck e Tânia Franco, “Terceirização e precarização”: o binômio antissocial em indústrias”, em Graça Druck e Tânia Franco (orgs.)

 

 

Em seus traços mais gerais, é possível dizer que o padrão de acumulação flexível articula um conjunto de elementos de continuidade e de descontinuidade que acabam por conformar algo relativamente novo e bastante distinto do padrão taylorista/fordista de acumulação. De modo sintético, podemos dizer que o toyotismo e a empresa flexível se diferenciam do fordismo basicamente nos seguintes traços[4]:

1.      é uma produção diretamente vinculada à demanda, diferenciando-se da produção em série e de massa do taylorismo/fordismo;

2.     depende do trabalho em equipe, com multivariedade de funções, rompendo com o caráter parcelar típico do fordismo;

3.     estrutura-se num processo produtivo flexível, que possibilita ao trabalhador operar simultaneamente várias máquinas, diferentemente da relação homem-máquina na qual se baseava o taylorismo/fordismo;

4.    têm como princípio o just-in-time, isto é, a produção deve ser efetivada no menor tempo possível;

5.     desenvolve-se o sistema de kanban, senhas de comando para reposição de peças e de estoque, uma vez que no toyotismo os estoques são os menores possíveis, em comparação ao fordismo;

6.    as empresas do complexo produtivo toyotista têm uma estrutura horizontalizada, ao contrário da verticalidade fordista. Enquanto na fábrica fordista aproximadamente 75% da produção era realizada no seu interior, a fábrica toyotista é responsável por apenas 25%, e a terceirização/subcontratação passa a ser central na estratégia patronal. Essa horizontalização se estende às subcontratadas, às firmas “terceirizadas”, acarretando a expansão dos métodos e procedimentos para toda a rede de subcontratação. Tal tendência vem se intensificando ainda mais nos dias atuais, quando a empresa flexível defende e implementa a terceirização não só das atividades-meio, como também das atividades-fim;

7.     desenvolve-se a criação de círculos de controle de qualidade (CCQs), visando a melhoria da produtividade das empresas e permitindo que elas se apropriem do savoir faire intelectual e cognitivo do trabalho, que o fordismo desprezava.

Desse modo, flexibilização, terceirização, subcontratação, círculo de controle de qualidade total, kanban, just-in-time, kaizen, team work, eliminação do desperdício, “gerência participativa”, sindicalismo de empresa, entre tantos outros pontos, tornaram-se dominantes no universo empresarial.”

[4] Ver, sobre o toyotismo, Ricardo Antunes, Os sentidos do trabalho, cit., e Adeus ao trabalho?, cit.; Graça Druck, Terceirização: (des)fordizando a fábrica – um estudo do complexo petroquímico (São Paulo, Boitempo, 1999); Thomas Gounet, Fordismo e toyotismo na civilização do automóvel (São Paulo, Boitempo, 1999); Koichi Shimizu, “Kaizen et gestion du travail: chez Toyota motor et Toyota motor kyushu-un problème dans la trajectorie de Toyota”, Actes du Gerpisa: Réseau Internationale, Paris, 1994; disponível em: <http://gerpisa.org/ancien-gerpisa/actes/13/13-2.pdf>; acesso em: 26 dez. 2017; Muto Ichiyo, Toyotismo: lucha de classes e innovación tecnológica en Japón (Buenos Aires, Antídoto, 1995); Benjamin Coriat, Penser à l’envers, travail et organization dans l’enterprise japonaise (Paris, Christian Bourgeois, 1991); Andrew Sayer, “New Developments in Manufacturing: the Just-in-Time System”, Capital & Class, Londres, n. 30, 1986; e Satoshi Kamata, Japan in the Passing Lane: an Insider’s Account of Life in a Japanese Auto Factory (Nova York, Pantheon, 1982).

 

 

Sabemos que o capitalismo, desde o início da década de 1970, vem apresentando um movimento tendencial em que a informalidade e a precarização se tornaram mecanismos recorrentes para a ampliação do lucro das empresas, sejam elas globais – as transnacionais –, sejam elas microcósmicas – as pequenas e as médias empresas. E a terceirização, por sua vez, vem se consolidando, em tantas partes do mundo, como uma ferramenta, uma verdadeira praga propulsora dessa razão instrumental profundamente destrutiva em relação ao trabalho[2].

Em meio ao furacão da mais recente crise mundial, a partir de 2008, esse quadro se intensificou ainda mais, aprofundando a derrelição do trabalho contratado e regulamentado, taylorista e fordista, cujos mecanismos de regulação e contratação social vêm sendo corroídos em profundidade, em amplitude global, pela desregulamentação que de fato ocorre com a expansão da terceirização, da informalidade e da precarização (fenômenos distintos, mas interligados e aparentados), da qual o principal objetivo é o de incrementar os mecanismos e formas de extração do sobretrabalho, de sujeição e divisão dos trabalhadores e das trabalhadoras a essa pragmática perversa que se expande tanto na indústria quanto na agricultura e nos serviços, todos eles praticantes da lógica financeirizada que os conduz.

Assim, impulsionados no topo pela lógica destrutiva do capital financeiro, que acelera o tempo e modifica o espaço a cada segundo, o vilipêndio do trabalho e a sua corrosão constituem-se em instrumental imprescindível. Capital financeiro no cume e trabalho desregulado nas cadeias produtivas de valor. As formas contemporâneas de trabalho escravo, semiescravo, precarizado, informalizado, terceirizado, flexibilizado, dando contemporaneidade às formas pretéritas do outsourcing, do putting out etc., contemplam um universo compósito e heterogêneo, para lembrar uma expressão que Florestan Fernandes tanto gostava de mencionar.

É nesse cenário, nesse mundo produtivo, que a informalidade deixa de ser a exceção para tendencialmente se tornar a regra. O aumento da precarização se transforma no principal resultado desse capitalismo dito flexível, da lean production, da empresa liofilizada, em especial nos espaços em que não se encontram formas vigorosas de contraposição (social, sindical, política, jurídica, valorativa) a esse movimento tendencial destrutivo em relação à classe-que-vive-do-trabalho. Na contrapartida, ampliar todos os modos e formas de confrontação a esse grave ataque ao mundo do trabalho se torna imperativo vital.”

[2] Ricardo Antunes, Os sentidos do trabalho, cit.; Ricardo Antunes e Graça Druck, “A epidemia da terceirização”, em Ricardo Antunes (org.), cit. Ver também o excelente livro de José Dari Krein, As relações de trabalho na era do neoliberalismo no Brasil (São Paulo, LTr, 2013, Debates Contemporâneos, v. 8). Sobre as consequências dessas transformações no processo de intensificação do trabalho, ver os melhores estudos realizados no Brasil em Sadi Dal Rosso, Mais trabalho! A intensificação do labor na sociedade contemporânea (São Paulo, Boitempo, 2008), e idem, O ardil da flexibilidade, cit.

 

 

Não é sem motivo que, na feliz expressão de Graça Druck, estamos presenciando uma verdadeira epidemia que vem atingindo a indústria, a agricultura, a agroindústria, os serviços e, em particular, também o setor público[7]. Em um cenário de crise estrutural do capital, os capitais exigem a terceirização não só para as chamadas atividades-meio, mas também para as atividades-fim.

Criando trabalhadores e trabalhadoras de “primeira e segunda categorias”, fatiando-os e diferenciando-os entre contratados diretamente e “terceirizados”, ampliam-se ainda mais as heterogeneizações e fragmentações no corpo produtivo. A título de exemplo: nas jornadas mais extensas; na intensificação do trabalho; na maior rotatividade; nos salários menores; nos cursos e treinamentos (que em geral são menos frequentes para os terceirizados); no acesso limitado às instalações da empresa (a exemplo de refeitórios e vestiários diferenciados); nas revistas na entrada e na saída da empresa; nas mais arriscadas condições de (in)segurança do trabalho; tudo isso acarretando graves problemas na saúde dos/as trabalhadores/as, tanto no aumento dos acidentes quanto nas estatísticas decorrentes de mortes e suicídios no trabalho[8].

No que concerne em particular às condições de saúde, os estudos revelam um quadro alarmante, em particular na energia elétrica, na extração e no refino de petróleo e na siderurgia, mas esse quadro se estende também para os professores, trabalhadores de call-center e telemarketing. Proliferam as LERs, o assédio moral (essa nova forma de controle e dominação dissimulada), o adoecimento e os padecimentos de todo tipo no corpo produtivo, físico, psíquico, mental[9]. As mortes e os suicídios no trabalho se intensificam sob o silêncio midiático e a surdez institucional. Se tudo isso já não bastasse, a terceirização fragmenta ainda mais as possibilidades de ação e de consciência coletivas, incentiva a nefasta individualização das relações de trabalho, faz crescer a concorrência derivada do sistema de metas e competências, criando o cenário ideal para as empresas dificultarem ao máximo a atividade sindical em defesa dos direitos sociais do trabalho. Vale lembrar que a terceirização impõe também uma pulverização dos sindicatos, ocorrendo muitas vezes de, em uma mesma empresa, os diferentes setores terceirizados se vincularem a sindicatos diferenciados, quando não são proibidos de fato de se filiar e exercer atividades sindicais. Ou seja, além do fosso entre terceirizados e não terceirizados, há também clivagens entre os terceirizados[10].

Assim, a expansão da terceirização nos mais diversos ramos econômicos se efetiva de modo múltiplo: nos tipos de contrato, na remuneração, nas condições de trabalho e de saúde e na representação sindical. As denominadas modalidades atípicas de trabalho, como “empreendedorismo”, “cooperativismo”, “trabalho voluntário” etc., se configuram gradualmente como formas de ocultamento do trabalho assalariado, permitindo aumentar ainda mais as distintas formas de flexibilização salarial, de horário, funcional ou organizativa.

O argumento empresarial, presente no PL 4.330, é pautado pela mais evidente falácia, quando propugna que “a empresa moderna tem de se concentrar em seu negócio principal e na melhoria da qualidade do produto ou da prestação de serviço”. Curioso é que, quando defendia a terceirização das atividades-meio, o empresariado argumentava que ela daria condições de focalizar as atividades da empresa em suas finalidades maiores. Obtida a terceirização das atividades-meio, o ideário do capital agora defende a concentração em seu “negócio principal”. Como se pode depreender, a dilapidação dos direitos trabalhistas, o rebaixamento salarial e tudo que indicamos anteriormente são os reais objetivos do capital nessa fase de crise econômica e intensificação da recessão, de modo a, uma vez mais, fazer com que a classe trabalhadora pague o ônus maior da crise.”

[7] Graça Druck, Terceirização, cit.; “Trabalho, precarização e resistências”, cit.; Graça Druck e Tânia Franco (orgs.), A perda da razão social do trabalho, cit.

[8] Ricardo Antunes e Graça Druck, “A epidemia da terceirização”, cit.

[9] Idem. Ver também Edith Seligmann-Silva, Desgaste mental no trabalho dominado (São Paulo, Cortez, 1994); Graça Druck e Tânia Franco (orgs.), A perda da razão social do trabalho, cit.; e a excelente pesquisa de Luci Praun, Não sois máquina!, cit. Em relação à precarização dos professores ver Aparecida N. Souza, “Professores, modernização e precarização”, em Ricardo Antunes (org.), Riqueza e miséria do trabalho no Brasil, v. 3, (São Paulo, Boitempo, 2014). Em relação à precarização do trabalho na arte, ver Liliana Segnini, “Acordes dissonantes: assalariamento e relações de gênero em orquestras”, em Ricardo Antunes (org.), Riqueza e miséria do trabalho no Brasil, v. 3, cit.

[10] Ricardo Antunes e Graça Druck, “A epidemia da terceirização”, cit.

 

 

Esse momento de ressurgimento do sindicalismo nacional foi caracterizado, em uma de suas dimensões, pela concorrência de projetos políticos e sindicais entre setores da esquerda. Fruto dessa conjuntura, o novo sindicalismo despontava da articulação de variadas posições, fazendo frente a outras. Ele propugnava uma ruptura com o passado, que teria sido de “colaboração de classe”, “reformista”, “conciliador”, “cupulista” etc. Direcionando muitas de suas críticas à estrutura sindical, o novo sindicalismo propunha “romper” com ela, articulando-se por vias alternativas. Caminhando nessa direção, organizou-se a Central Única dos Trabalhadores (CUT), que foi, a um só tempo, fruto e motor do novo sindicalismo. Este, em algumas de suas vertentes, apesar de seu suposto “antipoliticismo” de origem, esteve também na base de fundação do Partido dos Trabalhadores (PT), chegando com ele ao poder nas eleições presidenciais de 2002 por meio de um de seus filhos diletos, Luiz Inácio Lula da Silva.”

 

 

“Se este não é o espaço para aprofundar os movimentos e contramovimentos da era Lula, há pelo menos dois pontos centrais, diretamente vinculados à relação que se estabeleceu entre a cúpula sindical e o Estado, que devem ser mencionados: a proposta de “reforma trabalhista e sindical” e a ampliação do direito de recebimento do imposto sindical pelas centrais.

O campo sindical havia se ampliado e se complexificado sobremaneira ao longo dos governos FHC e do primeiro governo Lula. Foi entre os anos de 2004 e 2005 que ganhou força a proposta de reforma sindical, elaborada pelo órgão tripartite denominado Fórum Nacional do Trabalho (FNT). Se essa proposta foi obstada tanto pelas denúncias do “mensalão”, que atingiram duramente o governo Lula, quanto pela forte oposição que encontrou em diversos setores sindicais, ela indicava alguns pontos que contradiziam diretamente os princípios que nortearam a criação da CUT e a prática do novo sindicalismo. Seria difícil imaginar que, entre outros aspectos, o reforço da verticalização impregnado nessa proposta pudesse contar em sua origem com a adesão da CUT, para quem organização de base, liberdade e autonomia sindicais eram princípios vitais e inegociáveis.

A nova política de controle de setores importantes do novo sindicalismo era primordial para o governo Lula e recuperava, em certo sentido, a política de mão dupla: a cúpula sindical ascenderia a cargos na alta burocracia estatal; as verbas seriam ampliadas via Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e outros fundos estatais, garantindo, desse modo, o apoio das principais centrais sindicais ao governo, num cenário claramente marcado pelo pluralismo das centrais sindicais.

Foi assim que, posteriormente, em 2008, pouco antes de terminar seu governo, Lula, ao mesmo tempo que reconhecia as centrais sindicais, permitia que o imposto sindical também as beneficiasse. Além dos recursos do FAT e dos inúmeros apoios financeiros de ministérios, também o imposto sindical passava a ser usufruído pelas centrais. A velha bandeira da CUT e de tantos sindicatos, qual seja, a luta pela cotização autônoma de seus associados, passava a fazer mais parte da história que do presente.”

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