sábado, 3 de abril de 2010

O Estado (Parte I), de Georges Burdeau

Editora: Martins Fontes

ISBN: 978-85-3362-189-3

Tradução: Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 184

Sinopse: O Estado, cujo nascimento é determinado por um conjunto de circunstâncias históricas, é acima de tudo uma ideia, um produto da inteligência humana. Móbil, mas também regulador da luta política, ele deve assegurar para si uma base homogênea elevando-se acima dos interesses sociais divergentes. O Estado liberal, o Estado de partido único, o estado pluralista tentam, cada um à sua maneira, corresponder a essa exigência. Hoje os processos da ciência e os desenvolvimentos da técnica, provocam uma metamorfose do Estado. Pensados por indivíduos cuja mentalidade é cercada pelos imperativos da sociedade técnica, ele agora só se justifica pelos serviços que o corpo social espera dele. É realmente Leviatã, mas um Leviatã teleguiado. Um clássico da ciência política.



“Os homens inventaram o Estado para não obedecer aos homens. Fizeram dele a sede e o suporte do poder cuja necessidade e cujo peso sentem todos os dias, mas que, desde que seja imputada ao Estado, permite-lhes curvar-se a uma autoridade que sabem inevitável sem, porém, sentirem-se sujeitos a vontades humanas. O Estado é uma forma de Poder que enobrece a obediência. Sua razão de ser primordial é fornecer ao espírito uma representação do alicerce do Poder que autoriza fundamentar a diferenciação entre governantes e governados sobre uma base que não seja as relações de forças.”

 

 

“Compreende-se então que, concebido para ser a sede impassível do poder, o Estado em geral chegue a ser apenas o álibi dos que governam em seu nome. Eles se enfeitam de seus prestígios, mas na realidade é o humor, as paixões ou os interesses deles que ditam as vontades que lhe são imputadas. O Estado, colonizado pelos que deveriam ser apenas seus servidores, torna-se então, se não o que Marx via nele quando o denunciava como um instrumento de opressão, pelo menos o biombo de uma empreitada de dominação. O mito degenera em mistificação e o Estado, imaginado para purificar o Poder de todas as fraquezas humanas, chega a lhes servir de justificação.”

 

 

“É por causa de uma excessiva generosidade verbal que se qualifica de Estado a organização política que existiu entre os babilônios, os medos ou os persas, ou ainda que se vincula o mesmo título ao poder exercido por um chefe de tribo da Melanésia ou na África equatorial. Por certo, discerne-se em todos esses grupos a existência da coerção: o machado do carrasco é do mesmo metal, quer execute a sentença proferida pelo Estado, quer obedeça à ordem de um sátrapa que concentra em sua pessoa a propriedade e os atributos do Poder. Mas, se é verossímil que o homem cuja cabeça vai ser cortada ficará insensível às diferenças de que tratamos, elas estão longe de serem devidas apenas a uma nuance de terminologia. No Estado o Poder reveste características que não encontramos alhures; seu modo de enraizamento no grupo lhe vale uma originalidade que repercute na situação dos governantes, sua finalidade o livra da arbitrariedade das vontades individuais; seu exercício obedece a regras que lhe limitam o perigo. Isso é suficiente, parece, para impedir confundir o Estado com uma diferenciação qualquer entre chefes e súditos.”

 

 

“Há Poder em todo fenômeno em que se revela a capacidade de um indivíduo obter de outro um comportamento que ele não teria adotado espontaneamente.”

 

 

“É importante compreender, de fato, que é na medida em que a coletividade global se compõe de corpos parciais de essências diferentes que é necessário que se afirme, para além dos objetivos de cada um deles, um valor que lhes seja comum a todos. Esse valor só pode ser a própria existência da sociedade.”

 

 

“Em sua essência profunda, o Poder é a encarnação dessa energia provocada no grupo pela ideia de uma ordem social desejável. É uma força nascida da consciência coletiva e destinada ao mesmo tempo a assegurar a perenidade do grupo, a conduzi-lo na busca do que ele considera seu bem e capaz, se necessário, de impor aos membros a atitude exigida por essa busca.”

 

 

“O conquistador pode acreditar que deve sua sorte à sua espada, o legislador, à sua sabedoria, o condutor de povo, sua influência a uma vocação histórica. É bom que pensem assim, pois essa confiança estimula-lhes o zelo e os protege da imprudência. Mas, na realidade, são apenas o instrumento de uma ideia que encontra neles a ocasião de desenvolver sua potência.”

 

 

“De fato, durante milênios, a necessidade de subsistir foi a única razão de ser dos grupamentos humanos. Ela implicava três obrigações: comer, resistir aos vizinhos, não desagradar aos deuses.”

 

 

“Politicamente, o que caracteriza o sistema feudal é o compromisso da fé, o apego de homem a homem. “Um homem comanda, não uma entidade”*. (...) A autoridade repousa nas relações entre o superior e o inferior. O indivíduo serve ao seu Senhor, não poderia servir a uma ideia; é menos o súdito das leis do que o fiel do rei.”

* J. Calmette, Le monde féodal, 1934, p. 166.

 

 

“Que é uma instituição, de fato, senão um empreendimento a serviço de uma ideia e organizado de tal maneira que, estando a ideia incorporada no empreendimento, este possa dispor de um poder e de uma duração superiores aos dos indivíduos pelos quais ele age? Ora, um empreendimento assim corresponde exatamente ao que se tem direito de esperar de um Poder: o uso do poder a serviço de uma ideia, mas de um poder cujos fins são determinados pela ideia e sobrevivem aos indivíduos que lhe asseguram o serviço. A ideia é a representação da ordem desejável; o organismo é o aparelho do poder público organizado de tal modo que a ideia condicione-lhe a estrutura, o pessoal e os meios. Na instituição o Poder não fica necessariamente enfraquecido, mas é sujeito a realização de um projeto cujo conteúdo não é o único a fixar.”

 

 

“Um instinto ou uma inflexão sentimental os incita a dotar de uma figura a força que os socorre. O homem precisa prender seu amor ou seu ódio a signos, a imagens, a fetiches. Mas, ao lado dessa disposição primitiva, há nele, não mais em sua carne, mas em seu espírito, um movimento que o impulsiona a conceber e a abstrair, uma capacidade intelectual que lhe permite amar sem ver, acreditar sem tocar, obedecer a uma disciplina que dispensa o chicote. E, se não pode evitar ser surrado, pelo menos pretende, como diz Alain, olhar as varas. É nesse nível superior da reflexão que se situa a institucionalização do Poder.”

 

 

“Não haver Estado sem território, sem população e sem autoridade que comanda parece tão evidente que a opinião comum vê nesses dados os elementos do Estado. É um erro, já que podem coexistir todos sem que por isso o Poder deixe de ser individualizado. Mas a verdade é que a maneira de ser deles favorece, em certa medida, a formação da ideia do Estado. Assim é inegável que, embora todas as histórias nacionais sejam dominadas pelo esforço dos governantes para reunir um patrimônio territorial e assegurar sua unificação interna, a política de reunião das terras não é benéfica em si; só é válida se, à unidade física do espaço fechado no interior das fronteiras, corresponde a unidade espiritual do grupo que nele vive. O fracasso das políticas de conquista prova que o combate pelo território só é uma prova salutar se permite à coletividade tomar consciência de si mesma. Ora, essa consciência se fortalece na medida em que, estando delimitadas as fronteiras (não foi por acaso que a noção moderna de fronteira apareceu no século XVI, ou seja, no momento em que se formava o conceito de Estado), o grupo vê no território um patrimônio coletivo e não a propriedade dos chefes. Esse patrimônio precisa de um titular que perdure e não tenha a liberdade de fracioná-lo como bem entender. Essa condição, apenas o Estado pode preenchê-la.”

 

 

“Em todos os países antigos, é a nação que fez o Estado; ele formou-se lentamente nos espíritos e as instituições foram unificadas pelo sentimento nacional. No Estado novo, tal como surge no continente africano, é o Estado que deve fazer a nação. Só que, como o Estado só pode nascer de um esforço nacional, o drama político se fecha num círculo vicioso. O que vemos então? Vemos os chefes, que se pautam por um Estado que ainda não existe e cujos traços eles copiam do modelo efetivamente realizado noutro lugar, empenhar-se em criar em seu país as condições indispensáveis para o estabelecimento de um Poder estatal. Mas, no momento em que invocam o Estado, eles próprios realizam a figura mais perfeita do Poder individualizado. Esse paradoxo é facilmente explicável. A amplitude e as dificuldades da tarefa por realizar exigem da parte daqueles que a empreendem um poder incomum. Ora, onde encontrariam sua fonte senão em seu prestígio pessoal e no apoio que lhes é fornecido pela confiança de seus fiéis? A ideia da obra por realizar ainda é mal percebida pelos grupos, aliás, divididos pelas rivalidades tribais; portanto, ela é incapaz de fornecer aos chefes a energia suscetível de substituir, até mesmo de suplantar, a autoridade própria deles. Por outro lado, e esse não é o aspecto menos dramático da situação, na medida em que, da massa intelectualmente subdesenvolvida, se destaca uma consciência política, esta só aparece no nível das reivindicações coletivas orientadas pelo interesse material imediato. Essa consciência é polarizada pela atualidade. No plano sindical, no plano social, no plano das exigências econômicas, os povos da África caminham na hora do século XX, mas é uma hora importada; ela não é um momento na própria duração deles. Daí resulta um terrível contraste entre a intensidade das exigências presentes cujo objeto apresenta o risco de exceder as possibilidades do Poder e a ausência de tradições comuns que seriam, porém, indispensáveis para fundamentar sua autoridade.”

 

 

“A explicação não exclui, entretanto, a inquietude, pois se, para fazer uma nação, é preciso dar-lhe um passado, é de temer que este seja concebido à imagem de nossas histórias nacionais, com suas guerras, seus conquistadores e suas revoluções. Com certeza o risco fica mínimo se os governantes aceitam contentar-se com lendas. Quando o chefe da República Árabe Unida exalta Saladino ou a batalha de Damieta, o historiador pode sorrir, ainda que não seja possível descobrir nos livros didáticos do Ocidente o equivalente desse embelezamento dado ao fato para fazê-lo adquirir o valor de símbolo nacional. De todo modo, o politicólogo fica tranquilo: essa história imaginada permanece no passado, o sangue com que foi escrito está seco, já não reclama vingança. (...) Mas exemplos desse gênero, embora mostrem como os fundadores dos Estados novos sentem necessidade de enraizá-lo num passado, fazem temer que, à míngua de história efetiva, o futuro seja considerado na perspectiva de uma história por fazer com inimigos hereditários e brigas por terras. Uma vez que é de bom tom condenar o colonialismo, a primeira acusação a inscrever nos autos do processo seria ter inoculado o vírus histórico em povos sem passado, senão sem memória.”

 

 

“(...) E depois, se aceitam de bom grado obedecer, repugnam comprometer-se. É desagradável ser enforcado por ter obedecido ao chefe que não era o certo. Mas como evitar essa desventura se não se sabe quem tem o direito de comandar? Não precisamos voltar muito tempo atrás na história para compreender o desconforto dessa situação. Dever-se-ia ouvir Londres ou Vichy? É claro, uma alma de boa têmpera não hesitará. Mas é contar demais com o caráter dos povos fundar uma sociedade política sobre o heroísmo cotidiano de seus membros. O Poder deve ser um provedor de tranquilidade; sua virtude se revela por campos florescentes, negócios prósperos e consciências tranquilas.”

 

 

““A realeza é um ofício, não é uma herança”, declarava Philippe Pot aos Estados Gerais de 1844. Impunha-se a ideia do Estado, sem contar todas as outras considerações mais relevantes, por sua virtude prática. Ela era, como o dirá mais tarde Schopenhauer, “a focinheira cujo objetivo é deixar inofensivo esse bicho carnívoro, o homem”.”

 

 

“Por outro lado, o espaçamento das relações diretas entre o senhor e o súdito favorece a reflexão sobre os motivos da obediência. Habituam-se a ver na obediência não a submissão para com um homem, mas o respeito por uma regra justificada por seu objeto. Ao mesmo tempo, o indivíduo adquire uma nova visão de sua dignidade pessoal. Compreende que não é submisso a um outro, mas a essa força desencarnada que é o poder público. Perante ele, obedecer não é se humilhar, pois a disciplina estatal é a única que não exige rebaixar-se.”

 

 

“Dessa maneira, fica bem claro que o Estado é de uma essência totalmente diferente daquela do clã ou da tribo, pois, ao passo que estes procedem de uma associação espontânea dos indivíduos, o Estado, ao contrário, para se formar, necessita que cada qual exerça sobre si próprio um controle, reflita nas exigências da ordem jurídica e, finalmente, pense o Estado como instrumento de realização de nosso destino temporal. Nesse sentido o Estado, é acima de tudo, o efeito da vontade agindo contra aspirações, inclinações, indiferenças do indivíduo propenso a deixar-se docilmente arrastar por seu instinto egoísta.”

 

 

“Se o Estado moderno costuma ter um rosto feio, é porque, em larga medida, as sociedades cujo esforço de reunião ele expressa não tem grandeza nem generosidade.” (Fr. Perroux, Capitalisme ET communauté, 1938, p.264)

 

 

“Eis as proposições: primeiro, não existe sociedade sem um objetivo que sele, por uma fidelidade espiritual, a coexistência dos indivíduos por ela reunidos. Sem uma consciência com maior ou menor clareza desse objetivo, há multidão ou ajuntamento, mas não sociedade. Depois, essa percepção de um fim comum determina um consenso que nasce da convergência das representações individuais em direção a uma imagem do futuro coletivo. Com efeito, esse consenso no qual a sociologia contemporânea coloca, com razão, o critério da socialidade, não procede de uma unidade já pronta; ele se forma de uma unidade por fazer ou pelo menos por consolidar. Trata-se, para os membros do grupo, de continuar a viver juntos e, se possível, a viver de uma certa maneira. Há o que eu denominava, no início deste ensaio, uma representação da ordem desejável. Só que, e essa é a terceira proposição, essa representação não é pura contemplação; é acompanhada de uma preocupação de realização que lança mão dos meios de fazer que a imagem se torne realidade. Daí a ideia de um conjunto de regras que, impondo-lhes disciplina, orientarão os comportamentos individuais de tal sorte que se realize o futuro esperado. Essas regras são as regras do direito. É por essa razão que eu qualifico de ideia de direito a representação da ordem desejável que, em dada sociedade, constitui uma linha de força da mentalidade coletiva na qual ela cristaliza o consenso dominante.”

 

 

“Consideremos o princípio de justiça. Por que sou obrigado? Moralmente, é porque a norma indica o que é justo; juridicamente, é porque o objetivo social exige que eu faça o que a regra justa manda.

(...) A regra de direito se mostra tão necessária para a realização do objetivo social que reclama uma inteligência que a precise e a formule, uma vontade que a imponha, uma coerção que a sancione. O Poder é a um só tempo essa inteligência, essa vontade e essa coerção.”

 

 

“O Estado é limitado pelo direito porque seu poder é juridicamente condicionado pela ideia de direito que o legitima. O Estado não se limita; nasce limitado.”

 

 

“Por mais sedutor que seja, esse realismo é ilusório, pois a realidade não nos faz conhecer somente governantes; mostra que, para além dos governantes que passam, há um poder que permanece estável; que, acima da vontade dos governantes, há uma autoridade soberana que os designa e, se necessário, poderia destituí-los. Portanto, é a observação que nos ensina que, no Estado, a totalidade do Poder não está concentrada na pessoa dos governantes. Há um soberano que, mesmo não governando sempre efetivamente, não deixa de desempenhar um papel decisivo; há um poder de Estado que, mesmo tomando emprestadas a inteligência e a vontade aos governantes, não deixa de gozar de uma perfeita autonomia provada por sua estabilidade.”

 

 

“Daí resulta que os governantes não têm nenhum direito subjetivo ao exercício do comando. São investidos de uma competência, ou seja, de uma aptidão legal para realizar certos atos. Ora, quem diz competência subentende o objetivo em virtude do qual ela pode ser regularmente utilizada. A função dos governantes, assim como a dos agentes administrativos, está, pois, subordinada à lei do serviço que o bem público é. Não tem qualificação para agir senão na medida em que servem à instituição. Essa medida é em geral determinada numa constituição formal que constitui então o título concreto de competência deles, mas não é necessário que seja assim. Mesmo na ausência de um estatuto escrito, os governantes só podem exercer uma autoridade que lhes é delegada, aquela cujo titular é a instituição estatal. Antes da institucionalização, eles ainda podiam, em sua atividade, misturar o que era a realização da ideia de direito e o que era serviço de seus interesses pessoais. Desde que sua autoridade estivesse suficientemente estabelecida, seu título de chefe abrangia tudo. Com a existência do Estado, já não é assim; os governantes só podem agora servir à ideia de direito que se encarnou na instituição, pois não tem competência – portanto autoridade – a não ser para isso. Separados dessa ideia, suas ordens e seus atos perdem não só toda legitimidade, mas também toda qualidade jurídica. Então só há pretensão vã ou manifestação de força. Se se tratasse de um agente administrativo, esse modo de agir seria qualificado de ilegal. Tratando-se dos governantes, a sanção poderá ser a resistência à opressão ou a revolução.”

 

 

“Essa explicação reside, em minha opinião, no fato de o conceito de Estado ser, no fundo, apenas a racionalização de uma crença que não poderia ser confessada num meio intelectualmente evoluído. Não mais podendo dar crédito às fábulas, aos prodígios nem à unção sagrada, pede-se a uma construção intelectualmente racional o que, nos séculos antigos, os homens esperavam da lenda ou da mitologia. Digamos mais cruamente que a ideia do Estado veio substituir as forças misteriosas que, no pensamento mágico, subordinam o espírito dos chefes. Em vez de ver neles os agentes de um poder sobrenatural, de admitir que devem seu título a uma prova de iniciação vitoriosamente superada ou de torná-los os depositários das vontades dos deuses, vincularão a autoridade deles a um Poder racionalmente concebido para receber neles figura humana, sem deixar, porém, de ser superior aos homens. O conceito de Estado torna aceitável o Poder, resolvendo a contradição que contém e que provém do fato de ele ser individualmente intolerável e socialmente inevitável. Com isso, a ideia do Estado se aproxima muito da razão de ser do pensamento mágico que, pelo sentido que atribui aos fenômenos que ele explica, subordina os comportamentos individuais.”

 

 

“O Poder é uma maldição; ora, é interessante ver como, na própria situação em que ele os coloca, eles encontraram recursos suficientes para libertar-se da humilhação do subordinado, como conseguiram domesticar o mistério da autoridade para, finalmente, fazer de uma força destinada a curvá-los o instrumento de um destino cujo encargo eles próprios pretendem assumir. Tudo é crença, sem dúvida, mas há algumas que aviltam, outras que enobrecem: a teoria do Estado que proponho é destas. É também uma tentativa de explicação de que não é exagerado dizer que exaltou a estatura humana.”

 

 

“Todo Estado se encontra, por isso, dividido por uma contradição fundamental devida ao fato de que nele o exercício do Poder ocupa menos espaço e mobiliza menos esforço do que requerem sua defesa e a necessidade constante em que está de se justificar.”

 

 

“Assim, o Poder, fiel ao seu papel que é de realizar a imagem que a sociedade tende a dar a si mesma, faz ordem com os movimentos que provocam as tensões sociais. Nesse sentido, toda análise histórica mostra que a figura da ordem foi desenhada por uma multiplicidade de tendências que primeiro se enfrentaram, depois enfraqueceram e se acalmaram para dar origem à disciplina que marca com seu estilo a sociedade existente. Todavia, seria uma explicação por demais simplista ver na dinâmica política um mecanismo que faz a ordem suceder ao movimento. Ela não se analisa somente numa sucessão de tempos fortes e tempos fracos. A ordem não é feita somente com o movimento passado; resulta do movimento presente que ela assimila, pois só se mantém por sua aptidão para integrá-lo.”

 

 

“Por certo, os Poderes de fato não lutam somente entre si, lutam também contra o Poder estatal; mas o objeto do conflito não é o mesmo: entre si, os Poderes de fato procuram, se não se destruir, pelo menos neutralizar-se; o que visam no Estado é o título dos que comandam em seu nome. Seu objetivo não é, pois, destruí-lo, mas apossar-se dele e ocupá-lo. Por seu lado, o Estado não é sistematicamente o adversário dos Poderes de fato, já que é deles, afinal, que tirará a substância de suas decisões; é somente o regulador de suas pretensões, papel que desempenha em nome da sociedade global. É, poder-se-ia dizer, um poder seletivo que escolhe as energias de que fará sua força. E é mesmo porque a arte política consiste em organizar e fazer o Estado agir de tal modo que utilize, para as finalidades de sua própria ação, não uma força política dentre outras, mas a resultante de suas pressões. Portanto, é no Estado e pelo Estado que se resolve a rivalidade dos Poderes de fato. Só que se trata de uma solução sempre provisória; o equilíbrio que a consagra é incessantemente questionado, de forma que o papel do Estado consiste em mantê-lo mediante a constante renovação de seus dados. E compete ao Poder estatal medir a capacidade de absorção da ordem social, tal como é garantida pelo regime político em vigor, a propósito das forças que visam transformá-la. Ele mantém e prevê abrindo a ordem de hoje aos imperativos que presidirão à ordem de amanhã. A saúde não se define de outro modo: um rejuvenescimento das células sem alteração do organismo.”

 

 

“Portanto, é vão imaginar uma espécie de coexistência pacífica entre a classe (classe econômica, classe trabalhadora, ou classe economicamente desfavorecida) e a sociedade global. Não só aquela é refratária a uma penetração por esta, mas ainda tende a eliminá-la. Arraigada numa recusa, a consciência de classe se afirma numa vontade de luta. Pelo próprio fato de a estrutura da sociedade global comportar a existência da classe, seus membros têm o sentimento de serem frustrados dos proveitos da vida comum, de serem colonizados pelos beneficiários da ordem existente. Por conseguinte, se pretendem restaurar sua dignidade humana, parece-lhes que isso só poderá ocorrer numa sociedade cujas bases tanto materiais como espirituais forem renovadas.

Consciência separada, a consciência de classe é uma força de contestação, não só porque nelas expressam reivindicações econômicas, mas porque inclui uma visão do mundo incompatível com a proposta pela sociedade existente.

Poderá o Poder estatal ignorar essa força, deverá combatê-la, recuperá-la, ou acomodar-se a ela?”

 

 

“Essa argumentação pela qual o Estado liberal se proibiu restringir o poder do povo não impediu que, para a história, ele tenha sido o Estado burguês. Sua base foi tal que nele o Poder não parou de ser submetido à influência dos interesses e das visões sociais na burguesia.

Apesar da evidência aparente do fato, não se pode dizer que o Estado liberal foi um Estado de classe. Logo, é uma visão errônea ver nele uma espécie de “par” do Estado comunista em sua primeira fase, enquanto é o instrumento da ditadura do proletariado. A simetria é errada pois, muito longe de valorizar as classes como o faz o marxismo, o Estado liberal as nega. Não desconhece, é claro, a diversidade das categorias sociais, não ignora que há ricos e pobres. Mas esses são dados sociais que, politicamente, para ele não têm nenhum sentido.

O Estado de classe supõe a subordinação da sociedade ao Estado. Nele o exercício do Poder é organizado de forma que os imperativos da classe dominante rejam toda a vida coletiva. O regime político deve, pois, ser autoritário para prevenir as divergências devidas às diferenciações sociais. O Estado liberal repousa, ao contrário, na autonomia da sociedade com relação ao Estado. Não é o Poder que impõe uma estrutura à sociedade, é ela que, espontaneamente, instila sua ordem que o papel do Poder se limita a garantir. A iniciativa é social, não é política.

Por outro lado, se o Estado liberal tivesse sido um Estado de classe, teria cristalizado a classe burguesa, encerrada numa armadura rígida que teria paralisado sua evolução. Teria sido circunscrita em seu recrutamento, unificada em sua expressão por um partido único. Ora, a ideologia liberal exclui qualquer predestinação social; admite uma classe dominante apenas com a condição que ela rejuvenesça sem parar; postula a mobilidade social. É mais do que certo que entra uma parte de farisaísmo na generosidade com que o liberalismo pretende manter a sociedade aberta, pois, se ele oferece a todos a possibilidade de uma promoção, não proporciona os meios de aproveitá-la. A verdade é que essa sociedade aberta, constantemente enriquecida de forças novas, não é propícia à fossilização dos estratos sociais e não realiza as condições de estabelecimento de um poder político de classe.”

 

 

“É que, de fato, o povo não conseguiu integrar-se nessa sociedade que o desconhecia e na qual parece, entretanto, que suas forças poderiam ter-se introduzido facilmente. Lutando com imperícia, incerto dos objetivos por atingir, divididos por brigas de seitas, assim como por rivalidades de interesses, hesitante entre a ação revolucionária e a utilização de procedimentos legais, o povo permaneceu à margem de uma sociedade que seus ataques assustaram sem realmente abalar.

Essa impotência só pode ser explicada pela ausência de uma consciência suficientemente clara para servir de suporte a um poder capaz de interpretar suas exigências. As massas operárias, repentinamente chamadas à vida pelas transformações econômicas, sentem confusamente que são uma força. Sabem que são a maioria e bem veem que o sucesso da civilização industrial que está se elaborando diante de seus olhos é subordinado à sua ajuda. Mas trata-se de reações elementares, mal coordenadas e impróprias para fomentar uma disciplina de ação. O espírito ainda não habita essa potência terrível, próxima, por sua falta de jeito, dos monstros antideluvianos. Privada de consciência, a enorme força contida nas massas não pode produzir um Poder que lhe seja próprio. Não é nelas, por certo, que repousa o poder estatal existente, mas elas são incapazes de lhe suscitar um rival.

Assim, durante cerca de três quartos de século, os trabalhadores das fábricas serão emigrantes no país de seu nascimento, impotentes tanto para reformular a sociedade sobre uma base mais acolhedora para eles como para nela ganhar direito de cidadania pelos meios regulares que o regime estabelecido põe à disposição de todos. Só que esse estrangeiro é o povo enquanto classe; nenhum ostracismo atinge o trabalhador ut singuli; cada qual participa do ser nacional sem sofrer discriminação alguma proveniente de sua origem, de seu meio ou de seu trabalho. Cortado da sociedade por todas as particularidades de sua existência, é-lhe vinculado pelo laço político. E é da solidez desse laço que dependerá, em última análise, a estabilidade do Estado liberal.”

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