sexta-feira, 9 de maio de 2025

A Primeira Guerra Mundial... que acabaria com as guerras (Parte III), Margaret MacMillan

Editora: Globo Livros

ISBN: 978-85-2505-790-7

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 760

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Sinopse: Ver Parte I



“Era o dia vinte e oito de junho de 1914, um domingo ensolarado e quente. (...) Enquanto aproveitava o dia com seus convidados no camarote presidencial, Poincaré recebeu um telegrama da agência francesa de notícias Havas. O Arquiduque Franz Ferdinand e sua esposa morganática Sophie acabavam de ser assassinados em Sarajevo, capital da província da Bósnia, recentemente anexada pela Áustria-Hungria. Poincaré imediatamente mostrou a notícia ao embaixador austríaco, que empalideceu e partiu às pressas para sua embaixada. Enquanto as corridas prosseguiam, a notícia se espalhou entre os convidados. Para a maior parte deles, o fato pouca diferença faria para a Europa, mas o embaixador romeno mostrou grande pessimismo. Achou que agora a Áustria-Hungria teria o pretexto de que precisava para atacar a Sérvia.[1]

Nas cinco semanas seguintes, a Europa passou da paz para uma guerra em larga escala envolvendo todas as grandes potências, exceto, inicialmente, a Itália e o Império Otomano. O público, que havia décadas fazia sua parte pressionando seus líderes rumo à paz ou rumo à guerra, agora observava de fora enquanto um punhado de homens em cada uma das principais capitais europeias avaliava as decisões fatais que precisavam tomar. Produtos dos ambientes e tempos em que viveram, com crenças profundamente enraizadas em prestígio e honra (e tais termos seriam frequentemente utilizados naqueles dias agitados), baseavam suas decisões em premissas que nem sempre tinham admitido, mesmo para si mesmos. Também estavam a mercê do que lembravam de triunfos e derrotas do passado e de seus medos e esperanças para o futuro. (...)

Ao espalhar-se rapidamente pela Europa, a notícia foi recebida com o mesmo misto de indiferença e apreensão que encontrara no camarote de Poincaré. Em Viena, onde o Arquiduque não fora muito amado, os passeios e divertimentos no popular parque Prater continuaram abertos. Na classe alta, porém, surgiu preocupação com o futuro de uma monarquia que seguidamente perdia seus herdeiros e reforçou a aversão aos sérvios que, segundo a opinião geral, eram os responsáveis pelo assassinato. Na universidade alemã de Freiburg, a maioria dos cidadãos, segundo seus diários, pensava em seus próprios interesses, a situação da colheita no verão e as férias. Talvez por ser historiador, Friedrich Meinecke teve reação diferente: “Imediatamente as coisas ficaram negras ante meus olhos. Isso é guerra, disse a mim mesmo.”[2] Quando a notícia chegou em Kiel, as autoridades mandaram uma lancha ao iate do Kaiser. Wilhelm, que considerava Franz Ferdinand um amigo, espantou-se. “Não seria melhor abandonar a regata?” – alvitrou. E decidiu voltar para Berlim imediatamente para assumir a situação e fazer com que soubessem que estava disposto a atuar pela paz, embora durante os dias seguintes encontrasse tempo para longas discussões sobre a decoração interna de seu novo iate.[3] Em Kiel, as bandeiras foram logo arriadas para meio mastro, e os eventos sociais restantes cancelados. Uma esquadra inglesa, que cumpria visita de cortesia, partiu em 30 de junho. Os alemães enviaram-lhe a mensagem “Boa viagem,” e os ingleses responderam “Amigos no passado, amigos para sempre.”[4] Um mês e pouco depois, estariam em guerra.

O ato que arrastaria a Europa para a fase final de sua jornada rumo à Grande Guerra foi cometido por nacionalistas eslavos fanáticos, os Jovens Bósnios, e por aqueles que, da Sérvia, os apoiavam dos bastidores. Os assassinos propriamente ditos e seu círculo mais próximo eram principalmente camponeses sérvios e croatas moços que deixaram o interior para estudar e trabalhar em cidades grandes e pequenas na Monarquia Dual e na Sérvia. Embora substituíssem seu traje tradicional por terno e condenassem o conservadorismo dos seus mais velhos, acharam muitas coisas do mundo moderno estonteantes e perturbadoras. É difícil deixar de compará-los com grupos de extremistas fundamentalistas islâmicos como a Al Qaeda um século mais tarde. Como esses fanáticos de nossos dias, os Jovens Bósnios eram em geral radicalmente puritanos, desprezando coisas como álcool e sexo. Odiavam a Áustria-Hungria, em parte por achar que o Império corrompia seus súditos eslavos do sul. Poucos Jovens Bósnios tinham emprego regular. Em geral eram sustentados pela família, com as quais sempre brigavam. Dividiam entre si seus poucos pertences, dormiam uns nas casas dos outros e passavam horas tomando uma simples xícara de café em bares baratos, discutindo vida e política.[5] Eram idealistas e ardorosamente comprometidos com a libertação da Bósnia do jugo estrangeiro e a construção de uma pátria nova e mais justa. Fortemente influenciados pelos grandes revolucionários e anarquistas russos, os Jovens Bósnios acreditavam que só conquistariam seus objetivos pela violência e, se necessário fosse, com o sacrifício da própria vida.[6]

O líder do complô para o assassínio foi um sérvio da Bósnia, Gavrilo Princip, filho franzino, introvertido e impressionável de um esforçado lavrador. Princip, que pensara em ser poeta, passara de uma escola para outra sem chamar atenção. “Aonde quer que fosse, consideravam -me um fracassado,” disse à polícia depois de preso em 28 de junho, “e achavam que eu era uma pessoa fraca, coisa que não sou.”[7] Em 1911, entrara para o mundo clandestino da política revolucionária. Ele e vários de seus amigos que com ele conspiravam, se dedicavam a planejar atos terroristas contra alvos importantes, fosse o próprio velho Imperador, fosse alguém próximo dele. Nas Guerras Balcânicas de 1912 e 1913, as vitórias da Sérvia e o acentuado aumento de seu território os levaram a pensar que o triunfo final dos eslavos do sul não estava longe.[8]

Do interior da Sérvia partia substancial apoio aos Jovens Bósnios e suas atividades. Por uma década ou mais, gente ligada aos governos sérvios vinha estimulando a ação de organizações quase militares voltadas para conspirações em solo dos inimigos da Sérvia, no Império Otomano ou na Áustria-Hungria. O exército provia armas e dinheiro a grupos armados sérvios na Macedônia e contrabandeava armas para o interior da Bósnia, assim como hoje em dia o Irã faz com o Hezbollah no Líbano. Os sérvios também tinham suas sociedades secretas. Em 1903, um grupo constituído principalmente de oficiais assassinara o impopular Rei Alexander Obrenovic e sua mulher, pondo o Rei Peter no trono. Ao longo dos anos seguintes, o novo Rei achou conveniente tolerar as atividades dos conspiradores e continuou exercendo grande influência dentro da Sérvia, estimulando o nacionalismo sérvio em outros países. Entre os conspiradores, a principal figura era o insinuante, rude, sinistro e imensamente forte Dragutin Dimitrijevic, apelidado de “Apis” em referência ao deus egípcio sempre retratado como um touro. Apis estava pronto a sacrificar a própria vida, a de sua família e as de seus amigos pela causa de uma Grande Sérvia. Em 1911, ele e alguns companheiros fundaram a Mão Negra, com o objetivo de unir todos os sérvios, por bem ou por mal.[9] Pasic, o primeiro-ministro, que tentava evitar conflito com os vizinhos da Sérvia, sabia de sua existência e tentava controlar a organização transferindo para a reserva os oficiais nacionalistas do exército mais perigosos. No começo do verão de 1914, seu choque com Apis chegou ao auge. Em 2 de junho, renunciou, mas voltou ao cargo em 11 do mesmo mês e, em 24 de junho, quando o Arquiduque se preparava para a viagem à Bósnia, anunciou a dissolução do parlamento e novas eleições mais tarde, ainda no verão. O Rei Peter também renunciou e fez regente seu filho Alexander. Enquanto os conspiradores bósnios davam os últimos retoques em seus planos para assassinar o Arquiduque em 28 de junho, Pasic, que não queria provocar a Áustria-Hungria, lutava por sua sobrevivência política e ainda não conseguia acabar com a Mão Negra e derrubar Apis.

Conhecido como “Apis” ou “O Touro” por sua compleição física e sua personalidade, o coronel Dragutin Dimitrijevic era chefe da inteligência militar sérvia em 1914. Profundamente envolvido em sociedades secretas nacionalistas sérvias, incentivou o complô para assassinar o Arquiduque austríaco Franz Ferdinand em Sarajevo.

 

A notícia da iminente viagem de Franz Ferdinand fora amplamente divulgada desde a primavera, e os conspiradores, muitos deles então em Belgrado, decidiram assassiná-lo. Um major do exército sérvio solidário com os conspiradores entregou-lhes seis bombas e quatro revólveres do arsenal do exército e, no fim de maio, Princip e dois outros, com suas armas e cápsulas de ácido cianídrico para cometer suicídio após o atentado, atravessaram clandestinamente a fronteira e entraram na Bósnia com a conivência de sérvios que apoiavam sua causa. Pasic soube o que estava acontecendo, mas não foi capaz de tomar alguma providência, ou preferiu nada fazer. Os conspiradores chegaram em segurança a Sarajevo e entraram em ligação com terroristas locais, Nas poucas semanas que se seguiram, alguns começaram a mudar de opinião e defenderam o adiamento do atentado, mas obviamente Princip não estava entre eles. “Não concordei com o adiamento do assassinato,” disse ao juiz em seu julgamento, “porque um desejo mórbido tomara conta de mim.”[10]

Sua tarefa seria facilitada pela incompetência e arrogância dos austro-húngaros. Havia anos circulavam rumores sobre complôs de nacionalistas eslavos do sul contra a Áustria-Hungria e atentados contra a vida de altas autoridades do país, inclusive a do próprio Imperador. Em Viena e em áreas problemáticas na Bósnia e na Croácia, as autoridades mantinham sob vigilância estudantes, sociedades e jornais nacionalistas. Logicamente uma visita do herdeiro dos Habsburgos à Bósnia, com a lembrança da anexação apenas seis anos antes ainda amargurando os sérvios, tinha tudo para inflamar o nacionalismo local. Acresce que a visita tinha por finalidade assistir às manobras das forças da Monarquia Dual que podiam perfeitamente um dia ser empregadas contra Sérvia e Montenegro. A inoportunidade da visita a tornou ainda pior, pois coincidiu com a realização do maior festival nacional sérvio, a comemoração anual de seu patrono São Vitus, quando também lembravam a maior derrota nacional diante dos otomanos em 28 de junho de 1389, na Batalha de Kosovo. A despeito das tensões que cercavam o evento, na melhor das hipóteses a segurança da visita foi tratada com indiferença. O general Potiorek, retrógrado e teimoso governador da Bósnia, ignorou as advertências que chegaram de várias partes alertando que o Arquiduque estaria correndo perigo e se recusou a empregar o exército para patrulhar as ruas de Sarajevo. Esperava mostrar o quanto realizara pacificando e governando a Bósnia, além de se promover junto a Ferdinand dispensando a Sophie todas as honras imperiais que sempre lhe eram negadas na Monarquia Dual. A comissão organizada para cuidar das providências pertinentes à visita passou a maior parte de seu tempo e energia tratando de assuntos como o tipo de vinho que seria servido ao arquiduque ou se ele gostava de música durante as refeições.[11]

Na noite de 23 de junho, Franz Ferdinand e Sophie embarcaram em Viena num trem para Trieste. Consta que comentou com a esposa de um auxiliar antes de partir: “Esta viagem não é muito sigilosa e eu não ficaria surpreso se houvesse algumas balas sérvias esperando por mim!” As luzes de seu vagão se apagaram, e houve a quem ocorresse que as velas que tiveram de usar emprestavam ao local uma aparência de cripta. Na manhã da quarta-feira a comitiva imperial embarcou no encouraçado Viribus Unitis (Forças Unidas) e partiu beirando a costa dálmata rumo à Bósnia. Desembarcaram no dia seguinte na pequena cidade balneária de Ilidze, perto de Sarajevo, onde deviam ficar. De noite, o Arquiduque e a duquesa fizeram uma breve e inesperada visita para conhecer o famoso artesanato de Sarajevo. Provavelmente Princip estava na multidão quando o casal imperial entrou em uma loja de tapetes.

Na sexta-feira e no sábado, o arquiduque presenciou as manobras do exército nas montanhas ao sul de Sarajevo, enquanto a duquesa visitava pontos turísticos. Na noite do sábado os dignitários locais compareceram a um banquete em Ilidze. O Dr. Josip Sunaric, político croata de destaque, um dos que tinham alertado sobre um complô contra o casal imperial, foi apresentado à duquesa. “Veja,” disse ela amavelmente, “o senhor se enganou. As coisas não são bem como o senhor diz. Andamos por todo o interior, sempre no meio da população sérvia e fomos acolhidos com tanta amizade, com tanta sinceridade e entusiasmo irrestrito que estamos realmente felizes.” “Alteza,” retrucou Sunaric, “peço a Deus que – se tiver a honra de voltar a vê-la amanhã à noite, possa repetir essas palavras.”[12] Naquela noite a comitiva imperial discutiu se devia cancelar a planejada viagem a Sarajevo no dia seguinte, mas decidiu prosseguir.

A manhã do domingo 28 de junho estava agradável em Sarajevo, e o casal imperial desceu do trem para ocupar seus lugares num carro aberto, um dos poucos desse tipo na Europa. O Arquiduque estava exuberante com sua túnica azul e o quepe do uniforme de gala de general de cavalaria, e a duquesa toda de branco, com uma faixa vermelha. Os conspiradores, sete ao todo, já estavam em seus postos espalhados no meio da multidão que se postara ao longo do roteiro da visita. Quando o cortejo percorria o Appel Quay, ao lado do rio que atravessa o centro de Sarajevo, Nedeljko Cabrinovic jogou uma bomba no carro do Arquiduque. Como os homens-bomba de hoje em dia, dissera adeus a familiares e amigos e distribuíra seus poucos pertences. O motorista viu a bomba lançada e acelerou, de modo que ela explodiu sob o carro seguinte, e vários passageiros e assistentes ficaram feridos. O Arquiduque mandou um auxiliar ver o que tinha acontecido e deu ordem para que o programa continuasse como previsto. A comitiva, agora abalada e indignada, tomou o caminho da prefeitura da cidade, onde o prefeito esperava para proferir o discurso de boas-vindas, falou com tropeços, e o arquiduque tirou do bolso as anotações para responder. Estavam manchadas do sangue de um dos integrantes de sua comitiva. Discutiu-se rapidamente a situação, e ficou decidido que a comitiva se dirigiria ao hospital militar para visitar os feridos. Quando retornaram pelo Appel Quai, os dois carros da frente com o chefe da segurança e o prefeito de Sarajevo subitamente viraram à direita e entraram por uma rua muito mais estreita. O motorista do arquiduque estava a ponto de segui-los, quando Potiorek, governador de Sarajevo, gritou: “Parem! Estão indo pelo caminho errado.” Quando o motorista pisou no freio, Princip, que estava à espera, desceu da calçada e atirou à queima-roupa no Arquiduque e na duquesa. Ela caiu sobre as pernas do marido, que gritou “Sophie, Sophie, não morra. Viva por meus filhos.” Em seguida ele próprio perdeu a consciência. O casal foi levado para o palácio do governador onde constataram a morte de ambos.[13] Princip, que estava tentando se suicidar, foi preso por espectadores, e seus colegas conspiradores foram caçados pela polícia, que demorou a agir.


 Franz Ferdinand, herdeiro do trono da Áustria-Hungria, e sua mulher Sophie partiram em uma manhã de verão para Sarajevo na sua última viagem. A ocasião não podia ser mais inconveniente, por coincidir com a data nacional dos sérvios. A despeito das advertências sobre complôs terroristas, a segurança foi negligente. Sua morte removeu o único homem próximo ao Imperador capaz de aconselhá-lo contra a guerra.

 

Gavrilo Princip, ardoroso nacionalista sérvio, disparou os tiros que mataram o casal real. Não foi executado porque na época era menor de idade. Morreu tuberculoso em 1918, sem se arrepender da catástrofe europeia que ajudou a desencadear.

 

Quando alguém da corte levou a notícia ao Imperador em sua mansão preferida no pequeno e adorável resort em Ischl, Franz Joseph fechou os olhos e permaneceu em silêncio por alguns instantes. Suas primeiras palavras, murmuradas com profunda emoção, mostraram o quanto o desagradara o casamento de seu herdeiro, que, casando com Sophie, não apenas o desafiara, mas, na opinião do Imperador, manchara a honra dos Habsburgos. “Terrível! O Todo-Poderoso não admite ser desafiado impunemente... Um poder mais alto restaurou a velha ordem que infelizmente não fui capaz de preservar.”[14] Nada mais disse, mas deu ordem para seu regresso a Viena. Não se sabe se pensava em como seu Império se vingaria da Sérvia. No passado preferira a paz, e Franz Ferdinand o apoiara. Agora, com sua morte, fora-se a única pessoa próxima ao Imperador que poderia aconselhá-lo a agir com moderação naquelas derradeiras semanas de paz na Europa. O Imperador, com 83 anos e combalido – estivera muito doente naquela primavera – ficou sozinho para enfrentar os falcões de seu governo e seus militares.

O funeral do Arquiduque e sua mulher em Viena, em 3 de julho, foi realizado com muita discrição. O Kaiser alegou que um ataque de lumbago o impedia de viajar, mas a explicação verdadeira é o fato de ele e seu governo terem ouvido rumores de que também planejavam assassiná-lo. De qualquer modo, a Monarquia Dual pediu que nenhum chefe de estado estrangeiro comparecesse, e sim apenas seus embaixadores em Viena. Mesmo na morte, o rígido cerimonial da corte foi observado, e o caixão do arquiduque era maior e foi colocado em plano mais alto do que o dela. O serviço fúnebre, na capela dos Habsburgos, demorou apenas quinze minutos, e os caixões foram levados por carros funerários para a estação de trem. Como já sabia que sua esposa não poderia repousar a seu lado na cripta dos Habsburgos, o Arquiduque providenciara para que, quando chegasse a hora, ambos fossem sepultados em um de seus castelos favoritos em Artstetten, no sul da Áustria, onde até hoje repousam. Em manifestação espontânea de seu agravo pela forma como as exéquias tinham sido conduzidas, membros das famílias mais importantes do Império acompanharam o féretro a pé até a estação. Contou o embaixador russo que os vienenses comuns acompanharam a passagem do cortejo mais curiosos do que tristes, e os carrosséis no parque Prater continuaram girando alegremente. Os caixões foram colocados sobre pranchas e transportados em uma barcaça no Danúbio, em meio a uma tempestade tão violenta que quase os lançou no rio.[15]

Antes do funeral já se discutia muito o que a Áustria-Hungria devia fazer diante do que, de modo geral, era visto como ultrajante provocação sérvia. Tal como a tragédia de 11 de setembro de 2001 deu aos linhas-duras a oportunidade para exigir a invasão do Iraque e do Afganistão que vinham sempre defendendo junto ao presidente Bush e o primeiro-ministro Blair, o assassinato em Sarajevo escancarou a porta para quem, na Áustria-Hungria, queria acertar as contas com os eslavos do sul de uma vez por todas. Isso significava destruir a Sérvia – a opinião geral no país via esse país por trás do assassínio – como primeiro passo para reafirmar o domínio austro-húngaro nos Balcãs e controlar os eslavos do sul que viviam dentro do Império. A imprensa nacionalista descrevia os sérvios e os eslavos do sul com palavras que colocavam o darwinismo social como eterno inimigo da Áustria-Hungria. “Precisa ficar claro para todos,” escreveu em seu diário, em 28 de junho, Josef Redlich, destacado político e intelectual conservador, “que é impossível chegar à coexistência pacífica entre esta monarquia semigermânica, com sua relação de irmã com a Alemanha, e o nacionalismo balcânico, com sua fanática sede de sangue.”[16] Mesmo aqueles nos círculos dirigentes que lamentavam a morte de Franz Ferdinand falavam em vingança, enquanto seus inimigos sem piedade o acusavam de, em ocasiões anteriores, ter impedido a guerra contra a Sérvia.[17]

[1] Poincaré, Au Service de la France, vol. IV, 173-4.

[2] Geinitz, Kriegsfurcht und Kampfbereitschaft, 50-53.

[3] Cecil, Wilhelm II, 198.

[4] Massie, Dreadnought, 852-3; Cecil, Wilhelm II, 198; Geiss, July 1914, 69.

[5] Smith, One Morning in Sarajevo, 40.

[6] Dedijer, The Road to Sarajevo, 175-8, 208-9, 217 e cap. 10, passim.

[7] Ibid., 197.

[8] Ibid.

[9] Ibid., 373-5; Jelavich, What the Habsburg Government Knew, 134-5.

[10] Dedijer, The Road to Sarajevo, 294--301, 309; Jelavich, What the Habsburg Government Knew, 136.

[11] Leslie, ‘The Antecedents,’ 368; Funder, Vom Gestern ins Heute, 483; Dedijer, The Road to Sarajevo, 405-7, 409-10.

[12] Kronenbitter, Krieg im Frieden, 459; Dedijer, The Road to Sarajevo, 312; Funder, Vom Gestern ins Heute, 484.

[13] Dedijer, The Road to Sarajevo, 11-16, 316.

[14] Margutti, The Emperor Francis Joseph, 138-9.

[15] Smith, One Morning in Sarajevo, 214; Hopman, Das ereignisreiche Leben, 381; Albertini, The Origins of the War, vol. II, 117-19; Hoetzsch, Die internationalen Beziehungen, 106-7.

[16] Stone, ‘Hungary and the July Crisis,’ 159-60.

[17] Kronenbitter, Krieg im Frieden, 460-62.

 

 

Os principais líderes alemães, como Bethmann, podem não ter desencadeado deliberadamente a Grande Guerra, como tantos frequentemente os acusam, entre eles historiadores alemães como Fritz Fischer. Não obstante, admitindo que o conflito era certo e talvez até desejável, entregando à Áustria-Hungria o cheque em branco e insistindo em um plano de operações que tornava inevitável a Alemanha ter que lutar em duas frentes, os líderes alemães permitiram que a guerra acontecesse. Às vezes, durante aquelas semanas crescentemente tensas, pareciam perceber o vulto do que estavam arriscando e se consolavam prevendo os mais improváveis cenários. Se a Áustria-Hungria atuasse rapidamente para resolver o problema com a Sérvia, disse Bethmann a Riezler, a Entente poderia aceitar perfeitamente. Ou se Inglaterra e Alemanha trabalhassem em conjunto – depois de tudo o que tinham conseguido nos Balcãs – para evitar que uma guerra envolvendo a Áustria-Hungria arrastasse outras potências. Jagow classificou esta última hipótese na “categoria de desejo virtuoso.”[51] Além disso, o ministro do Exterior se deixou dominar por uma ilusão, quando, por exemplo, escreveu a Lichnowsky em 18 de julho, dizendo que, fazendo bem as contas, “a Rússia presentemente não está pronta para a guerra.” Quanto aos aliados da Rússia, Inglaterra e França, será que realmente querem ir à guerra a seu lado? Grey sempre quis manter o equilíbrio de poder na Europa, mas se a Rússia destruísse a Áustria-Hungria e derrotasse a Alemanha, a Europa veria um novo poder hegemônico. Talvez a França também não estivesse pronta para a luta. A desagregadora batalha em torno do serviço militar de três anos podia ressurgir no outono, e sabia-se perfeitamente que o exército francês tinha sérias carências em equipamentos e treinamento. Em 13 de julho, revelações feitas no Senado francês acrescentaram pormenores sobre a deficiência da França, por exemplo, em artilharia pesada, encorajando os alemães a pensar que era improvável os franceses desejarem entrar em guerra em futuro próximo e que os russos poderiam concluir que não podiam confiar em seu aliado. Com alguma sorte, a Entente poderia ser desfeita.[52] (...)

O que tornava incerta a disposição dos líderes alemães para insistir na busca da paz era o medo de o país parecer fraco e acovardado, incapaz de defender sua honra e a da Alemanha. “Não quero uma guerra preventiva,” afirmou Jagow, “mas, se formos chamados para a briga, não podemos nos apavorar.[54] O Kaiser, que tinha a palavra final sobre levar ou não o país à guerra, como tantas vezes fizera no passado hesitava entre esperar que a paz fosse preservada e ficar extravasando os mais beligerantes desejos. Por exemplo, em 30 de junho rabiscou em uma de suas notas marginais: “Os sérvios devem ser jogados no lixo, e já!”[55] Como George Bush filho quase um século depois, que culpava o pai de não ter completado a liquidação de Saddam Hussein quando teve a oportunidade, Wilhelm sempre quis se diferenciar do pai, que tinha fama de fraco e indeciso. Embora se orgulhasse de ser o chefe militar supremo da Alemanha, Wilhelm sabia que muitos súditos seus, inclusive oficiais do exército, o consideravam responsável pelo pobre desempenho do país em crises passadas. Ainda que insistisse que trabalhara em prol da paz durante todo seu reinado, o epíteto “Imperador da Paz” o incomodava. Em conversa com um amigo, o industrial Gustav Krupp von Bohlen und Halbach, em 6 de julho, logo depois do cheque em branco que assinou, o Kaiser disse que assumiu esse compromisso sabendo que a Áustria-Hungria tencionava atacar a Sérvia. “Desta vez não vou ceder,” disse três vezes. Como comentou Krupp em carta a um colega, “A repetição da garantia do Imperador de que dessa vez ninguém poderá acusá-lo de indecisão teve um efeito quase cômico.”[56] Bethmann usou uma frase que talvez fosse a mais reveladora de todas, ao afirmar que um recuo da Alemanha diante de seus inimigos seria um ato de autocastração.[57] Tais atitudes derivavam, em parte, da classe social dos líderes alemães e dos tempos que viviam, mas Bismarck, cuja origem era a mesma, teve coragem suficiente para desafiar as convenções quando assim achou conveniente. Nunca permitiu que o forçassem a entrar numa guerra. Foi uma tragédia para a Alemanha e para a Europa seus sucessores não serem como ele.

Já que tinham decidido apoiar o Império Austro-Húngaro, os chefes alemães esperavam que seu aliado agisse rapidamente, enquanto a opinião pública europeia estava chocada e solidária. Por razões internas e como seguidamente os alemães lembravam Viena, era importante providenciar para que a Sérvia fosse vista como vilã. (Na iminência do início das hostilidades, os chefes alemães temiam que as classes trabalhadoras, seus líderes sindicais e o Partido Social Democrata permanecessem fiéis a seus dogmas e se opusessem à guerra.) Um ultimato de Viena para Belgrado, seguido por uma vitória fulminante caso a Sérvia não capitulasse, deixaria as outras grandes potências sem condições para intervir antes que fosse tarde.

Os alemães viram que era impossível apressar seus correspondentes em Viena. Como uma grande medusa com indigestão, a Monarquia Dual se movia à sua maneira habitual, majestosa e complicada. O exército dispensara muitos soldados para a “dispensa da colheita” e só estariam de volta em 25 de julho. “Somos antes de tudo um país agrário,” comentou Conrad com o adido militar alemão sobre a política adotada, “e dependemos do resultado da colheita para vivermos o ano inteiro.” Se tentasse trazer os soldados de volta antes do prazo, causaria um caos nas ferrovias e, pior ainda, alertaria o resto da Europa de que alguma coisa estava acontecendo. Outro argumento para a espera foi o fato de o presidente Poincaré da França e seu primeiro-ministro Viviani estarem realizando visita oficial à Rússia até 23 de julho. Como estavam a bordo de um navio regressando à França, as comunicações eram precárias e isso dificultaria por vários dias a coordenação com a Rússia sobre a resposta a um ultimato. O atraso prejudicou a Áustria-Hungria. Nas quase quatro semanas entre os assassinatos e a apresentação do ultimato, boa parte da solidariedade dos europeus se dissipara e uma iniciativa que poderia ser vista como justa reação agora pareceria uma política de exercício do poder a sangue-frio.[58]

A principal razão para a lentidão da Áustria-Hungria foi Tisza, que ainda não se convencera de que a adoção de uma linha dura com a Sérvia fosse a certa. Temia, como disse ao Imperador em carta de 1º de julho, que uma guerra fosse danosa, não importando o desfecho. Uma derrota poderia significar uma perda de território e o fim da Hungria, enquanto uma vitória poderia resultar na anexação da Sérvia e, assim, no fortalecimento dos eslavos do sul na Monarquia Dual.[59] Em 7 de julho o Conselho Ministerial Comum, único órgão com responsabilidade por todo o Império Austro-Húngaro, se reuniu em Viena. Tisza se viu isolado quando seus colegas passaram a discutir a melhor forma de esmagar a Sérvia e o que deveriam fazer quando terminasse a guerra. Berchtold e Krobatin, ministro da Guerra, descartaram a alegação húngara de que deviam primeiro tentar uma vitória diplomática sobre a Sérvia. Tinham obtido tanto sucesso no passado, afirmou o Chanceler, e nem assim os sérvios tinham mudado sua conduta e continuavam agitando com o objetivo de criar a Grande Sérvia. A única forma de lidar com eles era pela força. Stürgkh, primeiro-ministro austríaco, linha-dura nas crises anteriores nos Balcãs, mencionou “uma solução na ponta da espada.” Embora a decisão fosse unicamente da Áustria-Hungria, ele disse que era muito reconfortante saber que a Alemanha os apoiaria fielmente. Conrad fez parte da reunião, embora não fosse ministro do governo para discutir o que devia acontecer se a Rússia socorresse a Sérvia, algo que ele considerava provável. Todos, exceto Tisza, concordaram com um ultimato em termos tais que, se a Sérvia o rejeitasse, a Áustria-Hungria teria um motivo para a guerra. Tisza aceitou que o ultimato fosse firme, mas pediu para ver os termos antes de ser expedido.[60]

[51] Sösemann, ‘Die Tagebücher Kurt Riezlers,’ 184-5; Lichnowsky and Delmer, Heading for the Abyss, 392.

[52] Mombauer, Helmuth von Moltke, 195n44; Lichnowsky e Delmer, Heading for the Abyss, 381; Sösemann, ‘Die Tagebücher Kurt Riezlers,’ 184.

[54] Lichnowsky e Delmer, Heading for the Abyss, 381.

[55] Turner, ‘Role of the General Staffs,’ 312; Geiss, July 1914, 65.

[56] Fischer, War of Illusions, 478; Cecil, Wilhelm II, 193-6.

[57] Joll, 1914, 8.

[58] Kronenbitter, ‘Die Macht der Illusionen,’ 531; Williamson, Austria-Hungary, 199-200.

[59] Bittner e Ubersberger, Österreich-Ungarns Aussenpolitik, 248.

[60] Geiss, July 1914, 80-87; Sondhaus, Franz Conrad von Hötzendorf, 141; Williamson, Austria-Hungary, 197-9.

 

 

Na Sérvia, onde a notícia dos assassinatos, conforme disse o encarregado de negócios inglês, inicialmente fora recebida com uma “sensação de espanto e não de pesar,” a imprensa nacionalista mais radical rapidamente tentou justificar os assassinos. Pasic, em meio a difícil campanha eleitoral, disse ao ouvir a notícia: “Isso é muito ruim. Significa que haverá guerra.” Ordenou que todos os bares e hotéis fechassem suas portas às dez da noite, em sinal de luto e enviou condolências para Viena. Entretanto, a despeito da pressão austro-húngara, se recusou a fazer uma investigação e concedeu provocadora entrevista a um jornal alemão negando que seu governo estivesse envolvido com o assassinato.[70]

Na Sérvia, porém, aumentava a apreensão quanto às intenções da Áustria-Hungria, alimentada, em 10 de julho, por curioso incidente em Belgrado. Hartwig, o influente embaixador russo que ao longo dos anos tanto estimulara as ambições sérvias, naquela noite procurou seu correspondente austro-húngaro, o barão Wladimir Giesl von Gieslingen. O russo, muito gordo, bufava com o esforço que fazia. Recusou o café que lhe foi oferecido, mas continuou fumando seu cigarro russo favorito. Queria esclarecer, assim disse, o infeliz rumor de que patrocinara um jogo de bridge na noite do assassinato e se negara a colocar a bandeira de sua embaixada a meio mastro. Giesl retrucou que considerava esse caso superado. Então, Hartwig abordou o objetivo principal de sua visita. “Peço,” disse, “que, considerando nossa sincera amizade, me diga, com toda clareza, se puder: o que a Áustria-Hungria fará com a Sérvia e o que já foi decidido em Viena?” Giesl seguiu a linha do governo: “Posso lhe assegurar que a soberania da Sérvia não será violada e que, com a boa vontade do governo sérvio, é possível encontrar uma solução para a crise que satisfaça a ambas as partes.” Hartwig agradeceu profusamente, se afastou cambaleando, subitamente caiu desmaiado e morreu momentos depois. Sua família imediatamente acusou Giesl de tê-lo envenenado, e fortes boatos se espalharam por Belgrado, dizendo que os austríacos tinham trazido de Viena uma cadeira elétrica especial que podia matar sem deixar indícios. O incidente serviu para azedar ainda mais as relações entre Áustria-Hungria e Rússia, que já estavam em fase de deterioração. Ainda mais relevante, a morte de Hartwig afastou o único homem que poderia convencer o governo sérvio a aceitar até mesmo as ultrajantes exigências do ultimato.[71]

Embora naquele momento estivesse muito mais preocupado com o que estava para acontecer, em 18 de julho Pasic enviou mensagem para todas as embaixadas sérvias para informar que o país resistiria a todas as exigências da Áustria-Hungria que violassem a soberania da Sérvia.[72]

Suas preocupações ficariam ainda mais agudas se soubesse da reunião secreta realizada em Viena no dia seguinte. Após chegarem em carros sem identificação à casa de Berchtold, os homens mais poderosos da Áustria-Hungria tomaram uma decisão que, sabiam muito bem, resultaria em uma guerra europeia generalizada. Berchtold distribuiu uma cópia do ultimato elaborado por ele e seus assessores do Ministério do Exterior. Consta que, mais tarde, naquele mesmo ano, quando a maior parte da Europa já estava em guerra, a mulher de Berchtold disse a uma amiga: “O pobre Leopold não conseguiu dormir na noite em que redigiu o ultimato para os sérvios, tal era sua preocupação com a possibilidade de ser rejeitado. Várias vezes durante a noite ele se levantou e mudou ou acrescentou alguma cláusula, pensando em reduzir o risco.”[73] Os presentes à reunião supunham que a Sérvia não aceitaria os termos e a maior parte da discussão abordou a mobilização austro-húngara e outras medidas militares necessárias. Conrad lembrou que quanto mais cedo fosse a ação, melhor seria e não mostrou a mínima preocupação com uma intervenção russa. Como já fizera antes, Tisza insistiu para que não houvesse anexação de território sérvio. Os participantes concordaram, mas Conrad cinicamente disse para Krobatin, ministro da Guerra, ao saírem, “Veremos.”[74] Logo depois Tisza escreveu para sua sobrinha que ainda tinha esperança de que a guerra fosse evitada, mas agora deixava tudo nas mãos de Deus. Seu estado de espírito, disse a ela, era “de seriedade, mas não de ansiedade ou intranquilidade, pois sou como o homem da esquina que a qualquer momento pode receber uma pancada na cabeça, mas que estará sempre pronto para fazer a grande jornada.”[75]

Em 20 de julho, dia seguinte ao da reunião, Berchtold enviou cópias do ultimato com uma nota de encaminhamento para suas embaixadas em toda a Europa. O embaixador em Belgrado devia apresentar sua cópia ao governo sérvio na noite de 23 de julho, quinta-feira, enquanto as cópias restantes só seriam entregues na manhã do dia 24. Os alemães ficaram irritados porque sua aliada só em 22 de julho lhes mostrou uma cópia do ultimato.[76] Apesar disso, continuaram dispostos a dar o apoio prometido. Em 19 de julho, o Nord-Deutsche Allgermeine Zeitung, de modo geral visto como representante das opiniões do governo, publicou breve notícia para explicar o desejo da Áustria-Hungria de querer acertar suas relações com a Sérvia. Os sérvios, explicou, deviam ceder e as outras potências europeias deviam se manter fora do conflito entre os dois antagonistas para assegurar que ele permanecesse em âmbito local. Em 21 de julho, Bethmann enviou telegrama a seus embaixadores em Londres, Paris e São Petersburgo recomendando que usassem o mesmo argumento com os governos que os recebiam. No dia seguinte, Jules Cambon, embaixador francês em Berlim, pediu a Jagow detalhes do conteúdo do ultimato. Jagow respondeu que não tinha ideia. “Fiquei muito espantado com essa resposta,” informou ironicamente Cambon para Paris, “porque a Alemanha está a ponto de se alinhar ao lado da Áustria com especial vigor.”[77]

Berchtold ainda dependia da aprovação formal do velho Imperador e, para tanto, na manhã de 20 de julho, em companhia de Hoyos, foi a Ischl. Franz Joseph leu com atenção o documento e comentou que algumas das condições eram muito severas. Estava certo. O ultimato acusava o governo sérvio de tolerar atividades criminosas em seu solo e exigia que fossem tomadas providências imediatas para liquidá-las, incluindo a demissão de militares e civis que a Áustria-Hungria indicasse, que fechasse jornais nacionalistas e reformasse os currículos escolares para se livrar de tudo que significasse propaganda contra a Áustria-Hungria. Pior que isso, o ultimato violava a soberania sérvia. Em duas cláusulas, que acabariam sendo os pontos críticos para a Sérvia, determinava que fosse acatada a participação da Monarquia Dual na repressão à subversão dentro das fronteiras sérvias e na investigação e julgamento de quaisquer conspiradores sérvios responsáveis pelos assassinatos. O governo sérvio teria 48 horas para responder. O Imperador aprovou o ultimato tal como estava. Berchtold e Hoyos ficaram para o almoço e voltaram a Viena de noite.[78]

Em 23 de julho, Giesl, embaixador austro-húngaro em Belgrado, conseguiu marcar uma visita ao Ministério do Exterior no fim da tarde. Pasic estava fora em campanha, de modo que foi recebido por Laza Pacu, ministro das Finanças, que fumava sem parar. Giesl começou a ler o ultimato, mas o sérvio o interrompeu após a primeira frase, declarando que não tinha autoridade para receber tal documento na ausência de Pasic. Giesl não cedeu. A Sérvia tinha até 25 de julho para responder. Deixou o ultimato sobre uma mesa e se retirou. Houve um silêncio mortal enquanto o sérvio tomava conhecimento do conteúdo do documento. Por fim, disse o ministro do Interior: “Não teremos outra escolha, a não ser lutar.” Pacu rapidamente saiu atrás do encarregado de negócios russo para lhe implorar o apoio russo. O Príncipe-Regente Alexandre disse que a Áustria-Hungria enfrentaria um “punho de ferro” se atacasse a Sérvia, e o ministro da Defesa sérvio adotou medidas preliminares a fim de preparar o país para a guerra. Contudo, apesar de toda a retórica desafiadora, a Sérvia estava em péssimas condições para entrar em combate. Ainda se recuperava das guerras dos Balcãs e grande parte de seu exército estava no sul, submetendo novos territórios que tinha conquistado e estavam fora de controle. Durante os dois dias seguintes, seus dirigentes procuraram desesperadamente escapar do destino trágico que rondava a Sérvia. Já enfrentara a fúria austro-húngara por ocasião da crise bósnia e na Primeira e na Segunda Guerras Balcânicas, mas mesmo assim conseguira sobreviver combinando concessões com pressão do Concerto da Europa sobre a Áustria-Hungria.[79]

Pasic retornou a Belgrado às cinco da manhã seguinte, “muito aflito e abatido,” segundo o encarregado de negócios inglês. Já estavam sendo elaborados planos para o governo deixar a capital e minar as pontes sobre o Sava na fronteira com a Áustria-Hungria. O embaixador russo informou que os fundos do tesouro nacional e os arquivos do governo estavam sendo removidos e o exército sérvio começara a ser mobilizado. Em 24 de julho, o Gabinete sérvio se reuniu por várias horas tentando redigir um esboço de resposta ao ultimato. Por fim, decidiu pela aceitação de todas as exigências, exceto as duas que davam à Áustria-Hungria o direito de interferir nos assuntos internos do país. Os sérvios tentaram ganhar tempo, pedindo a Viena para estender o prazo, mas Berchtold respondeu friamente ao embaixador sérvio que esperava uma resposta satisfatória... e nada mais. Pasic também dirigiu apelos urgentes a capitais europeias em busca de apoio. Ao que parece esperava que outras grandes potências, como França, Inglaterra, Itália, Rússia e, possivelmente, até a Alemanha, se juntassem como já tinham feito em outras crises nos Balcãs e impusessem um acordo. As respostas, as poucas que chegaram, foram desencorajadoras. As vizinhas mais próximas da Sérvia, a Grécia e a Romênia, deixaram claro que dificilmente a socorreriam em caso de guerra com a Áustria-Hungria, enquanto Montenegro, como de hábito, fez promessa vagas em que não se podia confiar. Inglaterra, Itália e França aconselharam a Sérvia a tentar de todas as formas um acordo e naqueles primeiros dias se mostraram pouco inclinadas a intermediar.

A única potência que se dispôs a fazer algo mais sólido foi a Rússia e, mesmo assim, a mensagem que enviou era dúbia. Em 24 de julho, Sazonov disse ao embaixador sérvio em São Petersburgo que achara o ultimato lamentável e prometeu o apoio russo, mas lembrando que teria de consultar o Czar e a França antes de garantir algo concreto. Se a Sérvia decidisse ir à guerra, acrescentou o ministro do Exterior russo querendo se mostrar útil, seria prudente adotar uma postura defensiva e retrair para o sul. Em 25 de julho, aproximando-se a data-limite, Sazonov enviou uma mensagem um pouco mais incisiva para o embaixador. Os ministros mais importantes da Rússia tinham se reunido com o Czar e decidido, pelo menos foi isso que o embaixador relatou para Belgrado, “fazer tudo o que pudesse em defesa da Sérvia.” Embora ainda não fosse uma promessa definitiva de apoio militar, serviu para encorajar o governo sérvio enquanto preparava sua resposta final para a Áustria-Hungria. Aquele dia em Belgrado estava muito quente e a cidade reverberava sob o rufar dos tambores conclamando os conscritos.[80]

Entre as nações da Entente, cujos líderes até então não se mostravam muito interessados na crise que progredia nos Balcãs, a reação ao ultimato foi de espanto e desânimo, e mergulharam no trabalho para definir suas posições. Poincaré e seu primeiro-ministro Viviani naquele momento estavam a bordo de um navio no Báltico, com dificuldade para se comunicar com Paris e com seus aliados. Cada um por seu lado, Grey em Londres e Sazonov na Rússia, pediram à Áustria-Hungria para estender o prazo. Berchtold se negou a ceder.

As reações foram diferentes na Alemanha e na Áustria-Hungria, onde os nacionalistas e os círculos militares receberam a notícia com entusiasmo. O adido militar alemão em Viena relatou: “Hoje o entusiasmo tomou conta do Ministério da Guerra. Finalmente um sinal de que a monarquia recuperou a energia, ainda que, por enquanto, apenas no papel.” O maior medo era de que, mais uma vez, a Sérvia escapasse de seu castigo. De Sarajevo, no dia em que expirava o prazo concedido pelo ultimato, o comandante militar austríaco escreveu a um amigo: “Com prazer e alegria sacrificaria meus velhos ossos e minha vida se isso humilhar o estado-assassino e puser um fim nesse antro de homicidas. Deus permita que nos mantenhamos decididos e que hoje às seis da tarde, em Belgrado, os dados rolem a nosso favor!”[81]

A resposta sérvia, que Pasic entregou a Giesl antes da hora-limite, satisfez seu desejo. Embora em tom conciliatório, o governo sérvio se recusou a ceder nos pontos cruciais da interferência austro-húngara nos assuntos internos da Sérvia. Dizendo “depositamos nossa esperança na lealdade e no cavalheirismo de um general austríaco,” Pasic apertou a mão de Giesl e se retirou. O embaixador, que já supunha que a resposta seria insatisfatória, deu uma olhada rápida no documento. A orientação recebida de Berchtold era bem clara: se a Sérvia não aceitar todas as condições, devemos romper as relações diplomáticas e de fato ele já preparara uma nota para concretizar essa atitude. Enquanto um mensageiro a levava para Pasic, Giesl incinerava os livros de códigos da embaixada em seu jardim. Ele, a mulher e seus assessores, cada um apenas com uma pequena bagagem, se dirigiram de carro para a estação ferroviária passando pelas ruas cheias de gente. Grande parte do corpo diplomático compareceu para se despedir deles. Militares sérvios vigiavam o trem, e um deles, quando a locomotiva começou a resfolegar, gritou para o adido militar que partia: “Au revoir à Budapest.” Na primeira parada na Áustria-Hungria, Giesl foi chamado à plataforma para atender um telefonema de Tisza. “Teria realmente que terminar assim?” – perguntou o húngaro. “Sim,” replicou Giesl. Em Ischl, no norte distante, Franz Joseph e Berchtold aguardavam ansiosamente as novidades. Logo após as seis horas da tarde, o Ministério da Guerra em Viena telefonou para dizer que tinham sido cortadas as relações com a Sérvia. A primeira reação do Imperador foi “Então, finalmente!” mas depois de um silêncio de reflexão, lembrou que o rompimento das relações não significava necessariamente que haveria guerra. Berchtold também se agarrou por alguns instantes a essa tábua de salvação, mas já desencadeara forças que não teria energia nem coragem para conter.[82]

Conrad, que liderara os falcões, de repente pediu que a declaração formal de guerra pela Áustria-Hungria fosse protelada até a segunda semana de agosto, quando suas tropas estariam prontas. Berchtold, temendo que qualquer adiamento desse tempo para outras potências insistirem em negociações e também sentindo-se pressionado pela Alemanha para agir com rapidez, recusou o pedido e, em 28 de julho, a Áustria-Hungria declarou guerra à Sérvia, embora os primeiros combates sérios começassem somente na segunda semana de agosto. Áustria-Hungria e Alemanha, com a ajuda da Sérvia, tinham levado a Europa a esse ponto perigoso. Agora, muita coisa dependia de como as demais potências procederiam, Na semana seguinte, a Europa ficou oscilando entre a paz e a guerra.”

[70] BD, vol. XI, 27, pgs. 19-20; 45, pg. 37; Albertini, The Origins of the War, vol. II, 272-5.

[71] Gieslingen, Zwei Jahrzehnte im Nahen Orient, 257-61; Albertini, The Origins of the War, vol. II, 276-9.

[72] Williamson, Austria-Hungary, 201.

[73] Macartney, The Habsburg Empire, 808n.

[74] Austro-Hungarian Gemeinsamer Ministerrat, Protokolle des Gemeinsamen Ministerrates, 150-54; Williamson, Austria-Hungary, 203.

[75] Vermes, Istv’an Tisza, 232-3.

[76] Albertini, The Origins of the War, vol. II, 265.

[77] Geiss, July 1914, 142, 149-50, 154.

[78] Macartney, The Habsburg Empire, 808n; Hantsch, Leopold Graf Berchtold, 602-3. Texto completo em Albertini, The Origins of the War, vol. II, 286-9.

[79] Gieslingen, Zwei Jahrzehnte im Nahen Orient, 267-8; Albertini, The Origins of the War, vol. II, 346; Bittner e Ubersberger, Österreich-Ungarns Aussenpolitik, 659-63; Cornwall, ‘Serbia,’ 72-4.

[80] BD, vol. XI, 92, pg. 74; 107, pg. 85; Stokes, ‘Serbian Documents from 1914,’ 71-4; Cornwall, ‘Serbia,’ 75-9,

[81] Kronenbitter, ‘Die Macht der Illusionen,’ 536; Kronenbitter, ‘“Nur los lassen”,’ 159.

[82] Albertini, The Origins of the War, vol. II, 373-5; Gieslingen, Zwei Jahrzehnte im Nahen Orient, 268-72.

 

 

“A crise de julho de 1914 começou com a temeridade sérvia, o desejo de vingança da Áustria-Hungria e o cheque em branco da Alemanha. Agora, era a hora de os países da Entente fazer o que pudessem para evitar a guerra, ou, se fosse inevitável, conseguir ficar em posição favorável. Embora muitos estudos históricos focalizem a questão atribuindo a culpa pela guerra à Alemanha, ou à Áustria-Hungria, ou mesmo à Sérvia, outros apontam a Tríplice Entente como culpada, seja a França por adotar uma política revanchista contra a Alemanha, seja a Rússia pela aliança com a França e por apoiar a Sérvia, ou mesmo a Inglaterra, por não reconhecer as legítimas aspirações alemãs de um lugar ao sol e uma fatia maior das colônias mundo afora, além de não deixar claro, desde o início da crise, se interviria ao lado da França e da Rússia. Mesmo se esses debates fascinaram – e continuarão fascinando – historiadores e cientistas políticos, talvez tenhamos de aceitar que nunca haverá uma resposta definitiva, porque para cada argumento existe uma resposta compatível. Estaria a França realmente querendo vingança? Mesmo o nacionalista Poincaré se resignara com a perda da Alsácia-Lorena e não estava disposto a correr o risco de uma guerra para recuperar as duas províncias. De fato, o tratado da França com a Rússia levou a Alemanha a se sentir cercada, mas do ponto de vista da França e da Rússia o tratado era defensivo, a vigorar apenas se a Alemanha atacasse. (Como tantas vezes ocorre em relações internacionais, o que é defensivo para uns pode parecer uma ameaça para outros e foi exatamente dessa forma que a Alemanha interpretou o tratado.) E qual a responsabilidade da Rússia por estimular o nacionalismo sérvio? Sazonov devia ter se esforçado mais para controlar o embaixador Hartwig, mas com toda a retórica pan-eslavista dos círculos nacionalistas, nem todos os líderes russos queriam sair em defesa da Sérvia se isso significasse o risco de um conflito mais amplo, logo depois da derrota catastrófica na Guerra Russo-Japonesa. Quanto à Inglaterra, talvez uma declaração imediata afirmando que lutaria sem hesitação ao lado da França fosse capaz de servir como fator de dissuasão sobre a Alemanha, mas essa disposição não ficou suficientemente clara. Os militares alemães consideravam a Força Expedicionária Britânica desprezível e esperavam vencer a França bem antes de entrar em ação o poder naval. De qualquer modo, a Inglaterra não poderia fazer tal declaração sem aprovação do Gabinete, que, durante as últimas semanas antes da eclosão da guerra, estava profundamente dividido sobre o que fazer.”

A Primeira Guerra Mundial... que acabaria com as guerras (Parte II), Margaret MacMillan

Editora: Globo Livros

ISBN: 978-85-2505-790-7

Opinião: ★★☆☆☆

Páginas: 760

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Sinopse: Ver Parte I


Em 1879 a Áustria-Hungria já mostrara quanto seria leal no longo prazo ao assinar uma aliança com a Alemanha, cujo principal objetivo era conter a Rússia. Os dois signatários se comprometiam a se ajudar mutuamente se a Rússia atacasse um ou outro. Permaneceriam neutros, “benevolentemente,” se um terceiro país atacasse um deles, a menos que esse terceiro fosse apoiado pela Rússia. Nesse caso, interviria. O tratado, renovado de tempos em tempos, durou até o fim da Grande Guerra. O outro pacto importante celebrado pela Áustria-Hungria foi a Tríplice Aliança com Alemanha e Itália, assinado pela primeira vez em 1882 e que sobreviveu até a eclosão da guerra em 1914. Os signatários se comprometiam a ajudar a Alemanha e a Itália se um dos dois países fosse atacado pela França e se socorreriam mutuamente se um fosse atacado por duas ou mais potências.

Embora o preâmbulo descrevesse a Tríplice Aliança como “essencialmente conservadora e defensiva,” o acordo contribuiu para a divisão da Europa tanto quanto, anos mais tarde, a Tríplice Entente. Alianças, como armas, podem ser classificadas como defensivas, mas na prática podem ser usadas em caráter ofensivo. A Tríplice Aliança, como a Tríplice Entente, estimulou seus membros a trabalhar em conjunto no cenário internacional e ao longo de incontáveis crises. Estabeleceu laços de amizade e cooperação e criou a expectativa de apoio mútuo no futuro. Além disso, criou condições para a execução de planejamentos e estratégias comuns, particularmente no caso da Alemanha e Áustria-Hungria. Em 1914, os acordos sobre segurança pressionaram os membros a honrar seus compromissos, permitindo que conflitos locais se generalizassem. A Itália, a mais fraca das potências europeias, no fim foi a única disposta a ficar de fora em 1914.

A Itália aderiu à Tríplice Aliança em parte porque seu monarca, o Rei Umberto, via com bons olhos o apoio conservador numa época em que seu país enfrentava levantes sociais e políticos que muito lembravam revoluções e, por outro lado, para se proteger da França. Os italianos não perdoavam os franceses por terem se apossado do porto de Túnis que havia muito tempo era de seu interesse e por terem exigido território italiano como compensação por seu apoio nas guerras pela unificação da Itália. Além disso, integrar uma aliança com a Alemanha, poder dominante no continente, satisfazia a antiga ambição da Itália de ser vista entre as grandes potências.

No entanto, a Tríplice Aliança juntou a Itália e a Áustria-Hungria, parceria que nunca daria certo. Os dois lados sabiam perfeitamente que havia potencial para um conflito ao longo de suas fronteiras. A Áustria-Hungria, que já perdera as ricas províncias da Lombardia e Veneza para a Itália, suspeitava profundamente das ambições italianas sobre seu território, que incluíam áreas no sul do Tirol onde se falava italiano; o porto de Trieste no Adriático, que já pertencera a Veneza, no extremo norte do Mar Adriático; a costa dálmata da Áustria-Hungria; e também a região que os italianos consideravam “fronteiras naturais,” que se estendiam até os mais altos picos dos Alpes. O declínio do Império Otomano abriu novas possibilidades para a expansão italiana ao longo do Adriático. A Albânia otomana e o estado independente de Montenegro dispunham do que a Itália, como potência naval, precisava desesperadamente – portos. A natureza, como os italianos costumavam reclamar, fizera a costa ocidental do Adriático com águas rasas e turvas, poucos portos e sem defesas naturais, enquanto a oriental era profunda, de águas claras e com bons ancoradouros naturais. Os austríacos não gostaram quando a Itália autorizou a realização de um Congresso Nacional Albanês em Nápoles, em 1903, quando o herdeiro do Rei Umberto casou com uma das muitas filhas do Rei de Montenegro e quando o inventor italiano Guglielmo Marconi lá instalou a primeira estação telegráfica.[47] Por seu lado, os italianos viam a Áustria-Hungria como o inimigo que bloqueara a unificação e continuava criando obstáculos para o prosseguimento do projeto nacional italiano, além de se opor às ambições da Itália nos Balcãs. Alguns políticos italianos sustentavam que, apesar disso, a Tríplice Aliança podia ser útil como instrumento de pressão sobre a Áustria-Hungria para que cedesse mais territórios. Como disse alguém em 1910: “Devemos unir esforços para preservar a aliança austríaca até o dia em que estivermos prontos para a guerra. Esse dia ainda está muito longe.”[48] Estava mais perto do que se imaginava.

Para a Áustria-Hungria, o relacionamento com a Alemanha era fundamental. O tempo servira para atenuar a lembrança da derrota diante da Prússia na década de 1860, particularmente porque Bismarck sabiamente oferecera generosos termos de paz. Nos dois lados a opinião pública mudara substancialmente e agora defendia um relacionamento mais amistoso. Depois de 1905, à medida que crescia o poder da Rússia, mais forte ficava o sentimento de que os teutônicos precisavam se unir contra os eslavos. Nas camadas superiores da sociedade, a burocracia e o corpo de oficiais eram dominados pelos de fala alemã, que tendiam a ter afinidade com a Alemanha, e não com a Rússia. Franz Joseph e Franz Ferdinand ambos davam-se bem com Wilhelm, e o último era particularmente grato ao Kaiser por dispensar todas as honras à sua esposa Sophie. O velho Imperador gostara de Wilhelm desde o começo porque demitira o detestado Bismarck, mas Wilhelm também passou a considerá-lo como amigo, algo cada vez mais raro em sua vida. Wilhelm ganhava pontos visitando Franz Joseph frequentemente – todos os anos antes da Grande Guerra – e o monarca mais jovem era respeitoso e atencioso. Wilhelm fez reiteradas declarações reafirmando sua amizade pela Áustria-Hungria. “Seja qual for a razão para decretar mobilização,” assegurou a Franz Joseph e a seu Chefe de Estado-Maior em 1889, “o dia de sua mobilização também será o dia em que mobilizarei meu exército e os chanceleres poderão dizer o que quiserem.” Os austríacos ficaram maravilhados, especialmente porque esperavam que os alemães reafirmassem suas promessas em futuras crises. Franz Joseph às vezes se preocupava com a impulsividade de Wilhelm, mas, como disse à filha após uma visita em 1906, confiava em suas intenções pacíficas: “Fez-me bem apertar mais uma vez a mão do Imperador. Nos dias atuais, pacíficos na superfície mas internamente tempestuosos, não podemos nos reunir com muita frequência, olhos nos olhos, para nos assegurarmos mutuamente que ambos desejamos a paz, somente a paz. Para tanto, realmente podemos confiar na lealdade recíproca. Ele não pensa em me abandonar, tanto quanto eu não pretendo deixá-lo desamparado.”[49]

Inevitavelmente, ao longo dos anos houve tensões. Embora a Alemanha fosse o maior parceiro comercial da Áustria-Hungria, as tarifas alemãs – por exemplo, as que protegiam seus agricultores – prejudicavam os produtores do Império. Acresce que a economia alemã era simplesmente mais expansiva e dinâmica; nos Balcãs, onde a Áustria-Hungria se acostumara a ser a potência econômica predominante, a concorrência alemã era cada vez mais acirrada. Quando jornais alemães atacavam os tchecos, ou quando o governo prussiano tratava mal a minoria polonesa, cresciam as repercussões em toda a fronteira na Áustria-Hungria. A forma como a Alemanha conduzia sua política exterior também preocupava seu aliado. Goluchwski revelou a visão predominante ao escrever, em 1903, ao embaixador austro–húngaro em Berlim:

De modo geral, a forma como vem sendo conduzida a política alemã realmente causa grande preocupação. A arrogância cada vez mais acentuada, o desejo de bancar o professor em toda parte e a falta de consideração tantas vezes demonstrada por Berlim são coisas que criam um ambiente muito desconfortável nas relações exteriores. Embora na prática isso venha acontecendo, não podemos conviver com repercussões que prejudiquem nosso relacionamento com a Alemanha a longo prazo.[50]

A longo prazo as relações continuaram sólidas porque cada um precisava do outro, e, com o agravamento das divisões na Europa, cada vez mais seus líderes perceberam que não havia alternativa.

Embora a Áustria-Hungria continuasse a procurar a Rússia, membro da Tríplice Entente, permitia que suas boas relações com a França e a Inglaterra atenuassem o fato. Como disse um jovem diplomata, era como se uma boa esposa fosse tão fiel a ponto de não sair para ver velhas amigas sem aprovação do marido. Para ser justo, as velhas amigas nem sempre eram acolhedoras. A França e a Áustria-Hungria tinham seguido caminhos politicamente diferentes desde que fora instalada a Terceira República, em 1871. O regime em Viena, monárquico e aristocrata, além de católico, não ficava satisfeito ao ver uma França dominada por anticlericais, maçons e radicais. Em relações exteriores, a França estava ligada à Rússia e nada faria que pudesse perturbar sua vital aliança. Por conseguinte, o mercado financeiro francês estava fechado para a Áustria-Hungria. Nos Balcãs, diplomatas da França tentavam aliciar a Sérvia e a Romênia para integrarem a Tríplice Entente, enquanto os investimentos e os negócios franceses murchavam nos mercados austro-húngaros. Para citar um exemplo, Schneider, a empresa francesa de armamentos, na primeira década do século XX estava fechando novos contratos nos Balcãs, enquanto empresas da Áustria-Hungria os perdiam. De tempos em tempos, estadistas franceses, como Delcassé, manifestavam-se apreensivos com a possibilidade de um futuro colapso da Áustria-Hungria e o surgimento de um vasto estado alemão no coração da Europa, mas nada faziam para melhorar as relações.[51]

Ao longo dos anos, as relações da Áustria-Hungria com a Inglaterra tinham sido mais próximas e cordiais do que com a França. Embora a Inglaterra tivesse suas próprias tradições radicais, era vista por Viena como uma sociedade mais estável e conservadora do que a França e onde havia uma aristocracia que, convenientemente, ainda dominava a política e o serviço público. A nomeação do conde Albert Mensdorff para embaixador austro-húngaro, em 1904, foi encarada como uma iniciativa inteligente, por ser muito bem relacionado com a família real inglesa e bem-vindo nos círculos aristocratas ingleses. Ademais, não havia rivalidades em questões de colônias, como, por exemplo, as existentes entre Inglaterra e Rússia, que fossem capazes de separar ingleses e austro-húngaros. Mesmo no Mediterrâneo, onde os dois países eram potências navais, compartilhavam o interesse em preservar a calma na região, especialmente na extremidade oriental. Para ambos, o outro era um contrapeso conveniente contra a Rússia. Durante a Guerra dos Bôeres, a Áustria-Hungria foi um dos poucos países que apoiou a Inglaterra. “Dans cette guerre je suis complètement anglais,” disse Franz Joseph em 1900 ao embaixador inglês ao alcance do ouvido dos embaixadores francês e russo.[52]

Não obstante, aos poucos as relações foram esfriando. Os acordos destinados a manter o statu quo no Mediterrâneo, em parte para bloquear o controle russo sobre os Estreitos entre o Mar Negro e o Mediterrâneo, de fato já não vigoravam em 1903, quando as duas nações já tinham adotado medidas de aproximação com a Rússia. Em Londres, a Áustria-Hungria era cada vez mais vista como se estivesse sob o domínio alemão. Quando a corrida naval esquentou, os ingleses temeram que cada navio construído pela Áustria-Hungria fosse simplesmente acrescentado ao poder naval alemão. Em 1907, uma vez alcançado um entendimento com a Rússia, a Inglaterra se esforçou para evitar qualquer iniciativa, como, por exemplo, apoiar os austro-húngaros nos Balcãs ou no Mediterrâneo, que pudesse comprometer um importante relacionamento. À medida que as relações da Áustria-Hungria com a Rússia ficavam desgastadas, suas relações com a Inglaterra esfriavam ainda mais.[53]

Com o progressivo afastamento entre Alemanha e Rússia, ficava cada vez mais difícil para a Áustria-Hungria manter boas relações com esses dois países. Embora Franz Joseph e seus ministros do Exterior lamentassem essa tendência, a Áustria-Hungria percebia que suas relações com a Rússia estavam mais difíceis do que com a Alemanha. O despertar do nacionalismo eslavo no Império Austro-Húngaro estimulou o interesse e a simpatia dos russos, mas, para o Império, serviu apenas para aumentar a complexidade de seus problemas internos. Mesmo que a Rússia não se intitulasse protetora dos eslavos da Europa, sua existência era suficiente para que seu vizinho ficasse atento a suas intenções.

As mudanças nos Balcãs trouxeram novas preocupações para a Áustria-Hungria. Com a retirada, contra sua vontade, do Império Otomano da Europa, os novos estados – Grécia, Sérvia, Montenegro, Bulgária e Romênia – passaram a ser vistos como amigos potenciais da Rússia. Tratava-se predominantemente de populações eslavas (embora romenos e gregos insistissem em afirmar que eram diferentes) que em grande parte compartilhavam com a Rússia a religião ortodoxa. E quanto aos territórios do Império Otomano que restavam na Europa, como Albânia, Macedônia e Trácia? Seriam alvo de intrigas, rivalidades e guerras? Em 1877, o ministro do Exterior da Monarquia Dual, Julius Andrassy comentou que Áustria e Rússia “são vizinhos próximos e devem caminhar juntos, seja na paz, seja na guerra. Uma guerra entre os dois impérios (...) possivelmente só terminaria com a destruição ou o colapso de um dos beligerantes.”[54]

No fim do século XIX a Rússia também percebeu os perigos da desintegração do Império Otomano. Como já não podia contar com a amizade da Alemanha diante da não renovação do Tratado de Ressegurança e estava voltando sua atenção para o Extremo Oriente, seus dirigentes viam com bons olhos uma détente com a Áustria-Hungria nos Balcãs. Em abril de 1897, Franz Joseph e Goluchowski, seu ministro do Exterior, foram calorosamente recebidos em São Petersburgo. Enquanto bandas militares tocavam o hino austríaco e a bandeira preta e amarela da Áustria e a vermelha, branca e verde da Hungria tremulavam ao sabor da brisa primaveril ao lado da russa, o Czar e seus convidados desfilavam em carruagens abertas ao longo da Nevsky Prospekt. Naquela noite, os dois imperadores trocaram calorosos brindes em um banquete oficial e manifestaram suas esperanças de paz. Em conversas subsequentes, os dois lados concordaram em trabalhar juntos para assegurar a integridade do Império Otomano e deixaram claro que as nações independentes dos Balcãs não mais poderiam jogar uma contra a outra. Como provavelmente os otomanos perderiam o controle que exerciam no que restava de seu território nos Balcãs, Rússia e Áustria-Hungria trabalhariam em conjunto na divisão dos Balcãs, apresentando-se diante das outras potências como uma frente única. A Rússia conseguiu a promessa de que, acontecesse o que acontecesse, os Estreitos permaneceriam fechados para a passagem de navios de guerra estrangeiros rumo ao Mar Negro. Já a Áustria-Hungria conseguiu – ou julgava ter conseguido – um entendimento de que, em data futura, poderia anexar o território da Bósnia e Herzegovina que fora ocupado por suas forças desde 1878. Todavia, depois os russos enviaram uma nota dizendo que a anexação “levantaria uma questão mais ampla que poderia requerer um escrutínio especial, em local e momento convenientes.”[55] De fato a questão foi levantada em 1908 e de forma bastante prejudicial.

Nos anos seguintes, porém, as relações entre Rússia e Áustria-Hungria permaneceram em nível relativamente bom. No outono de 1903, o Czar visitou Franz Joseph em um de seus pavilhões de caça, e os dois discutiram a situação que se deteriorava na Macedônia, onde a população cristã se revoltara abertamente contra os dirigentes otomanos (ocupando-se também em matar uns aos outros quando professavam correntes diferentes do cristianismo). Concordaram em formar uma frente única para propor ao governo otomano em Constantinopla as reformas necessárias. No ano seguinte, Áustria-Hungria e Rússia assinaram um Tratado de Neutralidade, e foram realizadas negociações para reviver a Liga dos Três Imperadores com a Alemanha, mas deram em nada.

Todavia, nem tudo estava bem nas relações. Nenhum lado confiava inteiramente no outro, especialmente no pertinente aos Balcãs. Se o Império Otomano tivesse que desaparecer, e isso era cada vez mais provável, cada país queria assegurar a proteção de seus interesses. A Áustria-Hungria queria que emergisse uma Albânia forte, capaz de bloquear o acesso dos eslavos do sul ao Adriático (por sorte, os albaneses não eram eslavos), mas a Rússia se opunha. Serena e às vezes ostensivamente, os dois competiam pela esfera de influência na Sérvia, em Montenegro e na Bulgária. Após a derrota na Guerra Russo-Japonesa, quando a Rússia voltou suas atenções para o Ocidente, a possibilidade de um confronto nos Balcãs cresceu acentuadamente. Ademais, uma vez acertadas em 1907 suas relações com a Inglaterra, a Rússia já não precisava tanto confiar no apoio do Império Austro-Húngaro no Mediterrâneo e nas conversas com o Império Otomano. Além disso, em 1906 ocorrera crucial mudança na liderança da Monarquia Dual. Conrad se tornara Chefe do Estado-Maior, e Aehrenthal, mais do que Goluchowski, a favor de uma política exterior mais proativa, passou a ser primeiro-ministro. Enquanto a Europa mergulhava em uma série de crises, as duas grandes potências conservadoras se afastavam cada vez mais, perigosamente divergentes nos conturbados Balcãs espremidos entre elas.”

[47] Bridge, F.R., From Sadowa to Sarajevo: The Foreign Policy of Austria-Hungary, 1866-1914 (Londres, 1972), 267.

[48] Bosworth, R., Italy and the Approach of the First World War (Londres, 1983), 55-7.

[49] Herwig, H., ‘Disjointed Allies: Coalition Warfare in Berlin and Vienna, 1914,’ Journal of Military History, vol. 54, nº 3 (1990), 265-80, p. 271; Angelow, J., ‘Der Zweibund zwischen Politischer auf-und militärischer Abwertung,’ Mitteilungen des Österreichischen Staatsarchivs, vol. 44 (1996), 25-74, p. 34; Margutti, A., The Emperor Francis Joseph and His Times (Londres, 1921), 220-28; Williamson, S.R.J., Austria-Hungary and the Origins of the First World War (Basingstoke, 1991), 36.

[50] Bridge, From Sadowa to Sarajevo, 254-5, 427-8; Margutti, The Emperor Francis Joseph, 127, 228.

[51] Musulin, Das Haus am Ballplatz, 80; Stevenson, Armaments, 38-9; Williamson, Austria-Hungary, 114.

[52] Bridge, ‘Austria-Hungary and the Boer War,’ 79.

[53] Bridge, From Sadowa to Sarajevo, 260; Steiner, Z., The Foreign Office and Foreign Policy, 1898-1914 (Cambridge, 1969), 182-3; Williamson, Austria-Hungary, 112.

[54] Wank, ‘Foreign Policy and the Nationality Problem in Austria-Hungary,’ 45.

[55] Bridge, From Sadowa to Sarajevo, 232-4; Jelavich, B., Russia’s Balkan Entanglements 1806-1914 (Cambridge, 1991), 212-13.

 

 

“O que Kessler também apanhou em seu diário foi a compreensão que dominava os artistas, intelectuais e a elite política de que a Europa se transformava rapidamente e nem sempre seguia o caminho que desejavam. Muitas vezes os líderes europeus sentiam certo desconforto com sua própria sociedade. Industrialização, revoluções tecnológicas, surgimento de novas ideias e atitudes estavam abalando as sociedades em toda a Europa, pondo em xeque antigas práticas e valores estabelecidos havia muito tempo. A Europa era um continente ao mesmo tempo poderoso e atormentado. Todas as principais potências enfrentaram longas e graves crises políticas antes da guerra, como a questão irlandesa na Inglaterra, o caso Dreyfus na França, o impasse entre a Coroa e o Parlamento na Alemanha, os conflitos nacionalistas na Áustria-Hungria ou a quase revolução na Rússia. Às vezes, a guerra era vista como forma de superar divisões e antagonismos, e talvez realmente fosse. Em 1914, em todas as nações beligerantes se falava em nação em armas, união sagrada, santa união, em que divisões de classe, regionais, étnicas e religiosas eram esquecidas e a nação se aglutinava, movida pelo espírito de união e sacrifício.”

 

 

O crescente interesse na paz também refletia uma mudança no que se pensava sobre relações internacionais a partir do século XVIII. Não era mais um jogo em que um ganha e o outro perde. No século XIX se falava em uma ordem internacional em que todos podiam se beneficiar da paz, e a história desse século vinha demonstrando que estava emergindo uma ordem nova e melhor. Desde o fim das Guerras Napoleônicas em 1815, a Europa, com breves interrupções, desfrutou longo período de paz e extraordinário progresso. Logicamente esses dois elementos estavam ligados. Além disso, cada vez havia maior concordância e aceitação de padrões internacionais de comportamento dos estados. Sem dúvida, no devido tempo um conjunto de leis e novas instituições internacionais deveriam surgir, na mesma medida em que isso ocorria internamente nas nações. O crescente uso de arbitragem para solucionar disputas entre nações e as frequentes ocasiões ao longo do século em que as grandes potências europeias se juntaram para enfrentar, por exemplo, crises como a do Império Otomano, levavam a crer que, passo a passo, estavam sendo lançados os fundamentos de uma nova e mais eficiente maneira de administrar as questões mundiais. A guerra era uma forma ineficiente e custosa demais de resolver divergências.

Mais uma prova de que a guerra estava ficando obsoleta no mundo civilizado era o momento vivido na Europa. Os países europeus agora estavam de todo entrelaçados economicamente, e o comércio e os investimentos extrapolavam as alianças. O comércio entre a Inglaterra e a Alemanha crescia ano a ano antes da Grande Guerra. Entre 1890 e 1913, as importações inglesas de produtos alemães triplicaram, enquanto suas exportações para a Alemanha dobraram.[5] A França importava da Alemanha quase tanto quanto da Inglaterra, enquanto a Alemanha, por seu lado, dependia de importações de minério de ferro da França para suprir suas siderúrgicas. (Meio século mais tarde, após duas guerras mundiais, França e Alemanha criariam a Comunidade Europeia de Ferro e Aço, que foi a base para a formação da União Europeia.) A Inglaterra era o centro financeiro mundial, e boa parte dos investimentos que entravam e saíam da Europa era realizado por intermédio de Londres.

Portanto, de modo geral os especialistas supunham, antes de 1914, que uma guerra entre as potências levaria a um colapso nos mercados internacionais de capitais e à cessação de comércio, que prejudicaria a todos e, na verdade, tornaria impossível estender uma guerra por mais de algumas semanas. Os governos não conseguiriam créditos, e seus povos ficariam impacientes à medida que faltassem alimentos. Mesmo em tempo de paz, com a corrida armamentista cada vez mais acelerada, os governos se endividariam ou elevariam impostos – ou ambas as hipóteses – o que, por sua vez, geraria intranquilidade pública. Países que tinham se tornado potências mais recentemente, sobretudo Japão e Estados Unidos, que não enfrentavam os mesmos problemas e cuja carga tributária era menor, ficariam muito mais competitivos. Haveria sério risco, como alertaram destacados especialistas em relações internacionais, de a Europa perder terreno e até mesmo sua liderança mundial.[6]

[5] Kennedy, Rise of the Anglo-German Antagonism, 293.

[6] Rotte, ‘Global Warfare,’ 483-5.

 

 

Se havia uns poucos que, como Conrad, antes de 1914 desejavam a guerra, por outro lado a grande maioria reconhecia na guerra um instrumento que podia ser empregado, mas a ser mantido sob controle. À medida que a Europa sofreu uma sucessão de crises na década anterior a 1914 e as alianças se fortaleceram, seus líderes e os respectivos povos se acostumaram à ideia de que a guerra podia ocorrer a qualquer momento. Os membros da Tríplice Entente – França, Rússia e Inglaterra – e os da Tríplice Aliança – Alemanha, Áustria-Hungria e Itália – ficaram na expectativa do surgimento de um conflito entre duas potências, provavelmente arrastaria seus parceiros. Dentro do sistema de alianças, surgiam as promessas, visitas recíprocas eram realizadas, e planos eram elaborados. Assim, eram criadas expectativas difíceis de ser desapontadas em um momento de crise. Já se começava a pensar em uma guerra geral travada no coração da Europa. O impacto das crises ajudou tanto o militarismo quanto o nacionalismo a preparar psicologicamente os europeus para a Grande Guerra.

Em sua maior parte, acreditavam estar a defender-se de forças que os destruiriam. Na Alemanha temiam o cerco, na Áustria-Hungria tratava-se de se prevenir contra o nacionalismo eslavo, na França o temor era a Alemanha, a Rússia temia seus vizinhos Áustria-Hungria e Alemanha, e na Inglaterra o medo era da Alemanha. Os sistemas de aliança e cada uma delas só exigiam apoio no caso de ataque a um parceiro. Em uma época em que a solidariedade da opinião pública era importante, os líderes civis e militares se preocupavam em ter certeza de que seus países fossem vistos como partes inocentes em qualquer eclosão de hostilidades.

Não obstante, quando a guerra acontecesse, as potências queriam estar preparadas para atacar em defesa própria. Quase todos os planos militares elaborados pelos estados-maiores europeus antes de 1914 eram ofensivos, levando a guerra ao território inimigo e procurando obter uma vitória rápida e esmagadora. Por outro lado, as crises cada vez mais frequentes induziam os tomadores de decisões a ir à guerra e agir com rapidez para contar com a vantagem da iniciativa. Segundo o plano de guerra alemão de 1914, era indispensável lançar forças no interior de Luxemburgo e da Bélgica antes da declaração de guerra, e isso realmente aconteceu.[53] Os próprios planos contribuíram para a tensão internacional ao obrigarem as tropas a se manterem em condições de pronto emprego e estimular a corrida armamentista. O que parecia ser uma forma razoável de autodefesa pode ser vista sob ângulo bem diferente do outro lado da fronteira.”

[53] Mombauer, ‘German War Plans,’ 59.

 

 

Em 18 de outubro, o Império Austro-Húngaro expediu um ultimato à Sérvia e deu oito dias para que anuísse. Entre as grandes potências, apenas a Itália e a Alemanha foram previamente informadas, mais um sinal de que o Concerto da Europa findava. Nos meses seguintes, a Tríplice Entente e a Tríplice Aliança passaram cada vez mais a operar separadamente a respeito de assuntos balcânicos.[104] Nenhum de seus aliados se opôs à iniciativa austro-húngara e a Alemanha foi mais além, assegurando-lhe firme apoio. O Kaiser foi particularmente veemente: “Agora ou nunca!” – escreveu em carta de agradecimento a Berchtold. “Em algum momento, nova paz e nova ordem devem ser implantadas lá.”[105] Em 25 de outubro, a Sérvia capitulou e retirou suas tropas da Albânia. No dia seguinte, o Kaiser, que estava visitando Viena, tomou chá com Berchtold e disse-lhe que a Áustria-Hungria devia continuar agindo com firmeza: “Quando Sua Majestade o Imperador Franz Joseph exige alguma coisa, o governo sérvio deve ceder e, se não o fizer, Belgrado será bombardeada e ocupada até que a vontade de Sua Majestade seja satisfeita.” Fazendo um gesto de empunhar o sabre, Wilhelm prometeu que a Alemanha estaria sempre pronta para apoiar seu aliado.[106]

O ano de crise nos Balcãs terminou pacificamente, mas deixou para trás o rastro de uma nova safra de ressentimentos e lições perigosas. A Sérvia claramente fora a vencedora e, em 7 de novembro, adquiriu mais território quando assinou um acordo com Montenegro dividindo o Sanjak de Novi Bazar. Mesmo assim, o projeto nacional da Sérvia estava incompleto. Falava-se em uma união com Montenegro e na formação de nova Liga Balcânica.[107] O governo sérvio era incapaz e na verdade não desejava reinar se sobrepondo às diversas organizações nacionalistas a promover dentro do país agitações entre os eslavos do sul que viviam na Áustria-Hungria. Na primavera de 1914, durante a celebração da Páscoa, sempre uma grande festa na Igreja Ortodoxa, a imprensa sérvia estava coberta de referências à ressureição do país. Seus camaradas sérvios, disse um jornal famoso, definhavam dentro do Império Austro-Húngaro, aspirando à liberdade que somente as baionetas da Sérvia poderiam lhes assegurar. “Portanto, vamos nos unir ainda mais e ajudar aqueles que não podem compartilhar nossa alegria nesta festa anual da ressureição.”[108] Os dirigentes russos estavam preocupados com seus obstinados aliados, mas não se mostravam propensos a contê-los.

Na Áustria-Hungria, todos ficaram satisfeitos por finalmente o governo ter agido contra a Sérvia. Berchtold assim se pronunciou ao escrever para Franz Ferdinand logo após a Sérvia atender ao ultimato: “A Europa hoje reconhece que nós, sem sermos tutelados por ninguém, podemos agir com independência quando nossos interesses são ameaçados e nossos aliados permanecem firmes a nosso lado.”[109] O embaixador alemão em Viena notou, porém, “o sentimento de vergonha, de raiva contida, de estar sendo feito de bobo pela Rússia e por seus próprios amigos.”[110] Houve alívio quando se constatou que a Alemanha finalmente permanecia fiel à aliança, mas também ressentimento pela crescente dependência austro-húngara. Conrad reclamou: “Hoje em dia, não passamos de satélite da Alemanha.”[111] No sul, uma Sérvia independente e agora mais poderosa que nunca fazia lembrar os fracassos do Império Austro-Húngaro nos Balcãs. Berchtold foi muito criticado por sua fraqueza pelos representantes políticos da Áustria e da Hungria, e também pela imprensa. Quando ofereceu sua renúncia no fim de 1913, Franz Joseph não concordou: “Não há razão, não faz sentido capitular por causa de um pequeno grupo de delegados e de um jornal. Além disso, você não tem um sucessor.”[112] (...)

No ano decorrido entre a eclosão da Primeira Guerra dos Balcãs e o outono de 1913, em várias ocasiões Rússia e Áustria-Hungria estiveram perto de uma guerra e a sombra de um conflito generalizado cobriu toda a Europa, enquanto seus aliados permaneciam nas coxias. Embora finalmente as potências tivessem aprendido a gerenciar crises, seus povos e líderes tinham se acostumado com a ideia da guerra como algo que aconteceria mais cedo ou mais tarde. Quando Conrad ameaçou renunciar por achar que estava sendo desprestigiado por Franz Ferdinand, Moltke implorou-lhe para reconsiderar a decisão: “Agora que rumamos para um conflito, você não pode sair.”[116] Rússia e Áustria-Hungria tinham se preparado para a guerra com o objetivo de dissuadir, especialmente pela mobilização, mas também para pressionar o oponente e, no caso do Império Austro-Húngaro, a Sérvia. Nessa oportunidade as ameaças surtiram efeito, porque nenhum dos três países estava disposto a pagar para ver e porque, por fim, as vozes que defendiam a paz se mostraram mais fortes do que as da guerra. O que constituía perigo para o futuro era o fato de tanto a Áustria-Hungria quanto a Rússia acharem que tais ameaças podiam funcionar outra vez. Ou – algo igualmente perigoso – resolverem que na próxima vez não recuariam.

As grandes potências se sentiram até certo ponto aliviadas por terem mais uma vez conseguido alcançar seus objetivos. Durante os últimos oito anos, a primeira e a segunda crise do Marrocos, a da Bósnia e, agora, as duas Guerras Balcânicas tinham ameaçado provocar uma guerra geral, mas a diplomacia sempre a evitara. Nos meses mais recentes de tensão, o Concerto da Europa de alguma maneira sobrevivera, e a Inglaterra e a Alemanha tinham trabalhado em conjunto para chegar a acordos e conter seus parceiros de aliança. Quando, no verão de 1914, ocorreu a crise seguinte nos Balcãs, Grey esperava que, no mínimo, acontecesse o mesmo.[117]”

[104] Crampton, ‘The Decline,’ 417-19.

[105] Albertini, The Origins of the War, vol. I, 483-4.

[106] Helmreich, The Diplomacy, 428.

[107] Bridge, From Sadowa to Sarajevo, 366-7.

[108] Ibid., 442.

[109] Williamson, Austria-Hungary, 154-5.

[110] Afflerbach, Der Dreibund, 748.

[111] Sondhaus, Franz Conrad von Hötzendorf, 129.

[112] Hantsch, Leopold Graf Berchtold, 513.

[116] Albertini, The Origins of the War, vol. I, 483-4.

[117] Crampton, The Hollow Detente, 172.

 

 

No fim daquele período de paz a Europa ainda tinha escolhas. É verdade que havia muitos problemas afetando os países em 1913: medo de perder território, medo de ser superado pelos vizinhos em efetivos militares e armamentos, medo de intranquilidade interna e de revolução e medo dos efeitos de uma guerra. Tais temores podiam ser aproveitados de outra forma, tornando as nações mais cautelosas e dispostas a barganhar com a possibilidade de uma guerra. Porém, embora pudessem optar contra a guerra, os líderes europeus cada vez mais tendiam a agir ao contrário. A competição naval entre Inglaterra e Alemanha, a rivalidade entre Áustria-Hungria e Rússia nos Balcãs, as divergências entre Rússia e Alemanha e a apreensão dos franceses quanto às intenções dos alemães tinham separado nações com muito a ganhar trabalhando em harmonia. Em cerca de doze anos anteriores tinham acumulado desconfianças, e as lembranças pesavam muito na mente dos que tomavam as decisões e de seus povos. Fosse a derrota e o isolamento pela Alemanha para a França; a Guerra dos Bôeres para a Inglaterra; as crises do Marrocos para a Alemanha; a Guerra Russo-Japonesa e a Bósnia para a Rússia; e as guerras dos Balcãs para a Áustria-Hungria, cada potência tivera sua fatia de experiências amargas, que nenhuma delas queria repetir. Mostrar que é uma grande potência e evitar humilhações são forças poderosas em relações internacionais, tal como acontece hoje para os Estados Unidos, a Rússia e a China, e ocorreu com as potências europeias um século atrás. Se a Alemanha e a Itália aspiravam a um lugar ao sol, a Inglaterra esperava evitar a decadência de seu gigantesco Império e preservá-lo. Rússia e França queriam recuperar a estatura que julgavam merecer, enquanto a Áustria-Hungria lutava para sobreviver. Força militar era uma opção que todos os países consideravam, mas, apesar de todas as tensões, de alguma forma a Europa sempre conseguira recuar em tempo. Em 1905, 1908, 1911, 1912 e 1913 o Concerto da Europa, embora bastante enfraquecido, funcionara. Entretanto, momentos perigosos se aproximavam e, em 1914, no mundo que ficara perigosamente acostumado a crises, os líderes europeus mais uma vez teriam de optar entre guerra e paz.”

 

 

“Felizmente para a Europa, o problema foi contornado. Russos e alemães não queriam forçar uma confrontação, e os Jovens Turcos, assustados com a repercussão do assunto, também, queriam que se chegasse a um acordo. Em janeiro, em manobra salvadora, Liman foi promovido e agora era antigo demais para comandar um corpo-de-exército. (Permaneceria no Império Otomano até sua derrota em 1918. Uma de suas heranças duradouras foi impulsionar a carreira de um promissor oficial turco, Mustafa Kemal Ataturk.) A questão serviu para aumentar ainda mais as suspeitas da Entente em relação à Alemanha e aprofundar a separação entre a Alemanha e a Rússia. O governo russo, especialmente após a queda de Kokovtsov em janeiro de 1914, passou a aceitar a ideia de que a Alemanha planejava uma guerra. Em entrevista naquele mês com Delcassé, Nicholas conversou calmamente com o embaixador francês sobre o conflito que se aproximava. “Não vamos deixar que nos atropelem e, desta vez, não será como na guerra no Extremo Oriente. A vontade nacional nos apoiará.”[79] Em fevereiro de 1914, o Estado-Maior russo mostrou ao governo dois memorandos secretos interceptados por espiões em que os alemães mencionavam uma guerra em duas frentes e como a opinião pública alemã precisava ser antecipadamente preparada. No mesmo mês o Czar aprovou os preparativos para um ataque ao Império Otomano, em caso de guerra geral.[80]

Não obstante, o sucesso na conclusão do caso Liman von Sanders e na administração internacional das crises nos Balcãs em 1912 e 1913 parecia mostrar que a Europa ainda podia preservar a paz e que algo como o velho Concerto da Europa, em que as grandes potências se reuniam para intermediar e impor acordos, ainda podia dar certo. De fato, muitos observadores sentiam que em 1914 o clima na Europa estava melhor do que algum tempo atrás. Churchill, em sua história da Grande Guerra, fala sobre a “excepcional tranquilidade” daqueles últimos meses de paz, e Grey, mais uma vez escrevendo sobre o passado, comentou: “Nos primeiros meses de 1914, o céu internacional parecia mais límpido do que já fora. As nuvens dos Balcãs tinham desaparecido. Após ameaçadores períodos em 1911, 1912 e 1913, havia a probabilidade de um pouco de calma, que na verdade era necessária.”[81] Em junho de 1914, a Universidade de Oxford concedeu títulos honorários ao Príncipe Lichnowsky, embaixador alemão, e ao compositor Richard Strauss.

É verdade que a Europa estava dividida em dois sistemas de aliança e depois da Grande Guerra isso foi visto como uma das causas principais da guerra, considerando que um conflito entre duas potências quaisquer corria o risco de arrastar os aliados. Pode ser alegado, entretanto, que, como era na época e continua sendo hoje, alianças defensivas como as de então agem como instrumento de dissuasão contra agressões e podem se constituir em fator de estabilidade. A OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) e o Pacto de Varsóvia em última análise produziram equilíbrio de forças e preservaram a paz na Europa durante a Guerra Fria. Como disse Grey em tom de aprovação na Câmara dos Comuns, em 1912, as potências estavam divididas em “blocos separados, mas não opostos,” e muitos europeus, entre os quais Poincaré, concordavam com ele. Em suas memórias, escritas depois da Grande Guerra, Grey continuou exaltando o valor das alianças: “Queríamos que a Entente e a Tríplice Aliança da Alemanha convivessem lado a lado, em ambiente amistoso. Era o melhor que se podia fazer.”[82] Enquanto França e Rússia na primeira e Alemanha, Áustria-Hungria e Itália na última tinham assinado os tratados das alianças, a Inglaterra ainda se recusava a fazê-lo a fim de, salientava Grey, manter liberdade de ação. Realmente, em 1911 Arthur Nicolson, então subsecretário permanente do Foreign Office, reclamou que a Inglaterra ainda não se comprometera suficientemente com a Tríplice Entente: “Não creio estarem percebendo que, se pretendemos ajudar na preservação da paz e do statu quo, precisamos assumir nossas responsabilidades e ficar em condições de, em caso de necessidade, de alguma forma proporcionar a nossos amigos e aliados ajuda de natureza material e mais eficiente do que estamos dispostos a fazer presentemente.”[83]

Na verdade, por mais defensivas que as alianças pudessem ser e por mais que a Inglaterra se sentisse livre para seguir seu próprio rumo, ao longo dos anos a divisão da Europa passou a ser considerada fato consumado. Isso se refletia até nas palavras dos estadistas que sempre eram cautelosos em se identificar com muita clareza com um dos lados. Em 1913, Sazonov, que apenas um ano antes dissera ao embaixador alemão em São Petersburgo que se recusava a usar o termo, agora falava em Tríplice Entente. Grey, que compartilhava a relutância de Sazonov, no ano seguinte admitiu que era tão difícil evitar o termo quanto se livrar dos infinitivos. De qualquer modo, argumentava, a Entente convinha à Inglaterra: “As alternativas são uma política de completo isolamento na Europa, ou outra de aliança definida com um dos dois blocos de potências europeias...”[84]

Inevitavelmente as expectativas e os acordos sobre apoio mútuo se acumularam nas duas alianças, e os militares e diplomatas cada vez mais se acostumaram a trabalhar em conjunto. Os parceiros também concluíram que precisavam dar garantias recíprocas ou correr o risco de perder um aliado. Mesmo não tendo interesses vitais nos Balcãs, para a Alemanha ficou cada vez mais difícil deixar de apoiar a Áustria-Hungria nessa região. Para a França, a aliança com a Rússia era crucial para manter seu status de grande potência, embora temesse que, uma vez recuperado todo seu poder, a Rússia novamente deixasse de precisar de seu apoio, o que poderia ocasionar o retorno à aliança mais antiga, com a Alemanha.[85] Isso forçava a França a apoiar os objetivos russos mesmo sentindo que eram perigosos. Aparentemente Poincaré deu à Rússia a impressão de que a França entraria em uma guerra entre Rússia e Áustria--Hungria, mesmo envolvendo a Sérvia. “O ponto essencial,” disse para Izvolsky em Paris, em 1912, “é que tudo deságua no mesmo lugar, isto é, na questão se a Alemanha apoiará ou não a Áustria.”[86] Embora o tratado entre França e Rússia fosse defensivo e só entrasse em vigor se um dos signatários fosse atacado, Poincaré foi além, sugerindo que a França se sentiria na obrigação de entrar na guerra mesmo em caso unicamente de mobilização na Alemanha. Em 1914, as alianças, em vez de agirem como freios para seus membros, muitas vezes pisavam no acelerador.”

[79] McLean, Royalty and Diplomacy, 67-8.

[80] Shatsillo, Ot Portsmutskogo, 272-4; Stevenson, Armaments, 343-9.

[81] Churchill, The World Crisis, vol. I, 178; Grey, Twenty- Five Years, vol. I, 269.

[82] Grey, Twenty-Five Years, vol. I, 195.

[83] Wilson, The Policy of the Entente, 68.

[84] Spring, ‘Russia and the Franco-Russian Alliance,’ 584; Robbins, Sir Edward Grey, 271.

[85] Schmidt, Frankreichs Aussenpolitik, 266-76.

[86] Ibid., 252-3, 258-9.

 

 

O que tornou a divisão da Europa ainda mais perigosa foi a intensificação da corrida armamentista. Embora nenhuma grande potência, com exceção da Itália, tivesse se envolvido em uma guerra entre 1908 e 1914, a soma de suas despesas com defesa subiu em 50%. (Os Estados Unidos também estavam aumentando esses dispêndios, mas em grau muito menor.)[102] Entre 1912 e 1914, as Guerras Balcânicas contribuíram para desencadear nova rodada de despesas à medida que as nações balcânicas e as potências expandiam suas forças armadas, investiam em armas mais perfeiçoadas e em outras novas, como submarinos, metralhadoras e aviões que as maravilhas da ciência e tecnologia da Europa produziam. Entre as grandes potências, Alemanha e Rússia se destacaram. O orçamento de defesa alemão saltou de 88 milhões de libras em 1911 para quase 118 milhões em 1913, enquanto o da Rússia subiu de 74 milhões de libras para quase 111 milhões no mesmo período.[103] Ministros das Finanças e outros membros dos Gabinetes se preocupavam com despesas tão elevadas, que cresciam tão aceleradamente e que não eram sustentáveis, o que acabaria gerando intranquilidade popular. Cada vez mais, porém, sua opinião era descartada por estadistas e generais inquietos, tomados todos de medo crescente de o país ficar para trás num mundo de inimigos empenhados em aumentar suas forças armadas. A inteligência do exército em Viena informou no começo de 1914: “A Grécia está triplicando os gastos com defesa, a Sérvia, dobrando, enquanto Romênia, Bulgária e Montenegro estão igualmente reforçando seus exércitos com despesas significativas.”[104] A Áustria-Hungria reagiu com um novo orçamento para o exército que permitia aumentar seu efetivo (embora muito menos do que Alemanha e Rússia). As leis alemãs para o exército e a marinha, a Lei dos Três Anos francesa, o Grande Programa russo e a crescente despesa naval inglesa eram igualmente reações a ameaças potenciais, mas não vistas dessa forma pelos outros. O que parecia defensivo por uma perspectiva era uma ameaça por outra. Ademais, sempre havia lobbies internos e a imprensa, algumas vezes bancados por industriais, para elevar o fantasma da nação em perigo. Tirpitz, sempre criativo quando se tratava de lutar por mais recursos para sua marinha, apresentou nova justificativa para a nova Lei da Marinha em 1912: a Alemanha não podia desperdiçar os investimentos já realizados. “Sem uma chance adequada de nos defendermos de um ataque inglês, nossa política tem de mostrar sempre que leva em conta a Inglaterra ou todos os sacrifícios que já fizemos seriam em vão.”[105]

Os liberais e a esquerda, como também o movimento pela paz, atacavam a corrida armamentista. Os “mercadores da morte’, naquela época e após a Grande Guerra, foram apontados como um dos principais fatores, talvez o fundamental, para que a catástrofe acontecesse. Foi uma ideia que ganhou ressonância especial nas décadas de 1920 e 1930 nos Estados Unidos, quando cresceu a desilusão sobre a entrada americana na guerra. Em 1934, o senador Gerald Nye, de Dakota do Norte, presidiu uma comissão especial do Senado para investigar o papel dos fabricantes de armas na eclosão da Grande Guerra, prometendo mostrar que “a guerra e seu preparo não são questão de honra e orgulho nacionais, mas mera questão de lucro para uma minoria.” A comissão ouviu dezenas de testemunhas, mas, como era de esperar, nada conseguiu provar. A Grande Guerra não resultou de uma causa isolada, e sim de uma combinação delas, e, por fim, de decisões humanas. O que a corrida armamentista provocou foi a elevação do nível de tensões na Europa e a pressão exercida sobre quem tinha a responsabilidade de decidir para apertar o gatilho antes que o inimigo o fizesse.

Ironicamente, em retrospecto, os decisores daquela época tendiam a ver preparativos militares como fator confiável de dissuasão. Em 1913, o embaixador inglês em Paris teve uma audiência com George V. “Lembro ao Rei que a melhor garantia de paz entre as grandes potências é o medo que têm umas das outras.”[106] Como a dissuasão só funciona se o outro lado achar que você está disposto a usar a força, sempre existe a possibilidade de ir longe demais e começar um conflito acidentalmente – ou de perder a credibilidade não cumprindo uma ameaça. A honra, como as nações diziam então (hoje podemos dizer prestígio) fazia parte desse cálculo. As grandes potências tinham consciência de seu status tanto quanto de seus interesses, e dispor-se a fazer muitas concessões ou parecer tímida poderia ser prejudicial a eles. Os eventos na década anterior a 1914 pareciam mostrar que dissuasão funciona, quer fosse quando Inglaterra e França forçaram a Alemanha a recuar na questão do Marrocos, quer quando a mobilização na Rússia pressionou a Áustria-Hungria a não atacar a Sérvia durante as Guerras Balcânicas. Uma palavra inglesa muito usada naqueles dias entrou para a língua alemã como der Bluff. Mas que fazer quando pagam para ver seu blefe?”

[102] Stevenson, Armaments, 2-9.

[103] Ibid., 4.

[104] Herrmann, The Arming of Europe, 207.

[105] Epkenhans, Tirpitz, versão Kindle, loc. 862.

[106] Kieβling, Gegen den ‘Großen Krieg’?, 67-8.

 

 

“Logo ficou evidente que na verdade os dois lados estavam muito distanciados. Os ingleses queriam o fim da corrida naval; os alemães queriam a garantia de que a Inglaterra permaneceria neutra em qualquer guerra no Continente. Obviamente isso daria à Alemanha liberdade de ação para resolver suas divergências com a Rússia e a França. O máximo que a Alemanha se dispunha a fazer era diminuir o ritmo de construção, desde que tivesse a garantia pedida aos ingleses, enquanto o máximo que estes prometiam era permanecer neutros se a Alemanha fosse atacada e, portanto, fosse a vítima. Wilhelm ficou furioso com o que considerou a insolência britânica: “Devo, como Kaiser, em nome do Império Alemão e na qualidade de comandante em chefe de minhas forças armadas, rejeitar totalmente tal proposta, por julgá-la incompatível com nossa honra.”[120] Embora as negociações prosseguissem depois do retorno de Haldane a Londres, ficou claro que não chegariam a lugar nenhum.[121] Em 12 de março, o Kaiser aprovou a nova lei da marinha depois que a Imperatriz, que odiava radicalmente os ingleses, lhe disse para parar de ser subserviente com a Inglaterra. Tirpitz, que desde o começo se opusera firmemente às negociações, beijou a mão da Imperatriz em nome do povo alemão.[122] Bethmann, que não fora consultado, tentou apresentar sua renúncia, mas Wilhelm aborrecido o acusou de covarde e recusou-se a recebê-lo. Lealmente, Bethmann continuou no cargo. Mais tarde disse com tristeza que teria conseguido um acordo com a Inglaterra, bastando que Wilhelm não ficasse interferindo.[123]”

[120] Cecil, Wilhelm II, 172.

[121] Cecil, Albert Ballin, 182-96.

[122] Hopman, Das ereignisreiche Leben, 209-10.

[123] Cecil, Wilhelm II, 172-3.