Este blog destina-se a dividir com os companheiros de estrada as impressões e alguns belos trechos deste fantástico universo que é a literatura.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015
Antologia de Textos (Os Pensadores) – Epicuro
terça-feira, 4 de agosto de 2015
Ética a Nicômaco / Poética (Os Pensadores) - Aristóteles
Editora: Nova Cultural
ISBN: 978-85-1300-232-2
Tradução (Ética a Nicômaco): Leonel Vallandro e Gerd Bornheim
Tradução, comentários e índices analítico e onomástico
(Poética): Eudoro de Souza.
Opinião: Ética a Nicômaco: ★★★☆☆ / Poética: ★★☆☆☆
Páginas: 288
Sinopses:
Ética a Nicômaco: Aplicando à análise do agir humano seus postulados
metafísicos, Aristóteles discute conceitos éticos fundamentais, como felicidade
e virtude, detendo-se na apreciação de várias virtudes particulares.
Poética: O que é a poesia, suas diferentes espécies,
suas origens, a comédia e a tragédia, poesia e história são alguns dos temas dessa
obra de Aristóteles que marcou profundamente os estudos posteriores sobre a arte
literária.
Ética a Nicômaco
“Admite-se geralmente
que toda arte e toda investigação, assim como toda ação e toda escolha, têm em mira
um bem qualquer; e por isso foi dito, com muito acerto, que o bem é aquilo a que
todas as coisas tendem.”
“Ótimo é aquele que
de si mesmo conhece todas as coisas. Bom, o que escuta os conselhos dos homens judiciosos.
Mas o que por si não pensa, nem acolhe a sabedoria alheia, esse é, em verdade uma
criatura inútil.” (Hesíodo – Trabalhos e Dias)
“Inegavelmente, o que
a visão é para o corpo a razão é para a alma.”
“Se existe uma finalidade
para tudo que fazemos, essa será o bem realizável mediante a ação; e, se há mais
de uma, serão os bens realizáveis através dela.”
“Definimos a autossuficiência
como sendo aquilo que, em si mesmo, torna a vida desejável e carente de nada. E
como tal entendemos a felicidade, considerando-a, além disso, a mais desejável de
todas as coisas, sem contá-la como um bem entre outros. Se assim fizéssemos, é evidente
que ela se tornaria mais desejável pela adição do menor bem que fosse, pois o que
é acrescentado se torna um excesso de bens, e dos bens é sempre o maior o mais desejável.
A felicidade é, portanto, algo absoluto e autossuficiente, sendo também a finalidade
da ação.”
“Diz-se, com efeito,
que o começo é mais que metade do todo, e muitas das questões que formulamos são
aclaradas por ele.”
“Parece absurdo que
os deuses sejam aferidos pelos nossos padrões.”
“Se é assim, pois,
que cada arte realiza bem o seu trabalho — tendo diante dos olhos o meio-termo e
julgando suas obras por esse padrão; e por isso dizemos muitas vezes que às boas
obras de arte não é possível tirar nem acrescentar nada, subentendendo que o excesso
e a falta destroem a excelência dessas obras, enquanto o meio-termo a preserva;
e para este, como dissemos, se voltam os artistas no seu trabalho —, e se, ademais
disso, a virtude é mais exata e melhor que qualquer arte, como também o é a natureza,
segue-se que a virtude deve ter o atributo de visar ao meio-termo. Refiro-me à virtude
moral, pois é ela que diz respeito às paixões e ações, nas quais existe excesso,
carência e um meio-termo.
Por exemplo, tanto
o medo como a confiança, o apetite, a ira, a compaixão, e em geral o prazer e a
dor, podem ser sentidos em excesso ou em grau insuficiente; e, num caso como no
outro, isso é um mal. Mas senti-los na ocasião apropriada, com referência aos objetos
apropriados, para com as pessoas apropriadas, pelo motivo e da maneira conveniente,
nisso consistem o meio-termo e a excelência característicos da virtude.
Analogamente, no que
tange às ações também existe excesso, carência e um meio-termo. Ora, a virtude diz
respeito às paixões e ações em que o excesso é uma forma de erro, assim como a carência,
ao passo que o meio-termo é uma forma de acerto digna de louvor; e acertar e ser
louvada são características da virtude. Em conclusão, a virtude é uma espécie de
mediania, já que, como vimos, ela põe a sua mira no meio-termo.
Por outro lado, é possível
errar de muitos modos (pois o mal pertence à classe do ilimitado e o bem à do limitado,
como supuseram os pitagóricos), mas só há um modo de acertar. Por isso, o primeiro
é fácil e o segundo difícil — fácil errar a mira, difícil atingir o alvo. Pelas
mesmas razões, o excesso e a falta são característicos do vício, e a mediania da
virtude: Pois os homens são bons de um modo só, e maus de muitos modos.
A virtude é, pois,
uma disposição de caráter relacionada com a escolha e consistente numa mediania,
isto é, a mediania relativa a nós, a qual é determinada por um princípio racional
próprio do homem dotado de sabedoria prática. E é um meio-termo entre dois vícios,
um por excesso e outro por falta; pois que, enquanto os vícios ou vão muito longe
ou ficam aquém do que é conveniente no tocante às ações e paixões, a virtude encontra
e escolhe o meio-termo. E assim, no que toca à sua substância e à definição que
lhe estabelece a essência, a virtude é uma mediania; com referência ao sumo bem
e ao mais justo, é, porém, um extremo.”
“A dor transtorna e
destrói a natureza da pessoa que a sente, ao passo que o prazer não tem tais efeitos.”
“Aí está por que não
permitimos que um homem governe, mas o princípio racional, pois que
um homem o faz no seu próprio interesse e converte-se num tirano. O magistrado,
por outro lado, é um protetor da justiça e, por conseguinte, também da igualdade.
E, visto supor-se que ele não possua mais do que a sua parte, se é justo (porque
não atribui a si mesmo mais daquilo que é bom em si, a menos que tal quinhão: seja
proporcional aos seus méritos — de modo que é para outros que trabalha, e por essa
razão os homens, como mencionamos anteriormente, dizem ser a justiça “o bem de um
outro”), ele deve, portanto, ser recompensado, e sua recompensa é a honra e o privilégio;
mas aqueles que não se contentam com essas coisas tornam-se tiranos.”
“A virtude de uma coisa
é relativa ao seu funcionamento apropriado. Ora, na alma existem três coisas que
controlam a ação e a verdade: sensação, razão e desejo.
Destas três, a sensação
não é princípio de nenhuma ação: bem o mostra o fato de os animais inferiores possuírem
sensação, mas não participarem da ação.
A afirmação e a negação
no raciocínio correspondem, no desejo, ao buscar e ao fugir; de modo que, sendo
a virtude moral uma disposição de caráter relacionada com a escolha, e sendo a escolha
um desejo deliberado, tanto deve ser verdadeiro o raciocínio como reto o desejo
para que a escolha seja acertada, e o segundo deve buscar exatamente o que afirma
o primeiro.
Ora, esta espécie de
intelecto e de verdade é prática. Quanto ao intelecto contemplativo, e não prático
nem produtivo, o bom e o mau estado são, respectivamente, a verdade e a falsidade
(pois essa é a obra de toda a parte racional); mas da parte prática e intelectual
o bom estado é a concordância da verdade com o reto desejo.
A origem da ação —
sua causa eficiente, não final — é a escolha, e a da escolha é o desejo e o raciocínio
com um fim em vista. Eis aí por que a escolha não pode existir nem sem razão e intelecto,
nem sem uma disposição moral; pois a boa ação e o seu contrário não podem existir
sem uma combinação de intelecto e de caráter. O intelecto em si mesmo, porém, não
move coisa alguma; só pode fazê-lo o intelecto prático que visa a um fim qualquer.
E isto vale também para o intelecto produtivo, já que todo aquele que produz alguma
coisa o faz com um fim em vista; e a coisa produzida não é um fim no sentido absoluto,
mas apenas um fim dentro de uma relação particular, e o fim de uma operação particular.
Só o que se pratica é um fim irrestrito; pois a boa ação é um fim ao qual
visa o desejo.
Portanto, a escolha
ou é raciocínio desiderativo ou desejo raciocinativo, e a origem de uma ação dessa
espécie é um homem. Deve-se observar que nenhuma coisa passada é objeto de escolha;
por exemplo, ninguém escolhe ter saqueado Tróia, porque ninguém delibera
a respeito do passado, mas só a respeito do que está para acontecer e pode ser de
outra forma, enquanto o que é passado não pode deixar de haver ocorrido; por isso
Agatão tinha razão em dizer:
Pois somente isto é ao próprio Deus vedado: O
fazer não sucedido o que uma vez aconteceu.
Como acabamos de ver,
a obra de ambas as partes intelectuais é a verdade. Logo, as virtudes de ambas serão
aquelas disposições segundo as quais cada uma delas alcançará a verdade em sumo
grau.”
“A amizade é sumamente
necessária à vida. Porque sem amigos ninguém escolheria viver, ainda que possuísse
todos os outros bens.”
“A amizade também parece
manter unidos os Estados, e dir-se-ia que os legisladores têm mais amor à amizade
do que à justiça, pois aquilo a que visam acima de tudo é à unanimidade, que tem
pontos de semelhança com a amizade; e repelem o facciosismo como se fosse o seu
maior inimigo. E quando os homens são amigos não necessitam de justiça, ao passo
que os justos necessitam também da amizade; e considera-se que a mais genuína forma
de justiça é uma espécie de amizade.”
“Os homens não podem
conhecer-se mutuamente enquanto não houverem “provado sal juntos”.”
“A distância não rompe
a amizade em absoluto, mas apenas a sua atividade. Todavia, se a ausência dura muito
tempo, parece realmente fazer com que os homens esqueçam a sua amizade; daí o provérbio
“longe dos olhos, longe do coração”.”
“A maioria das pessoas
parecem, devido à ambição, preferir ser amada a amar. E é por isso que os homens,
em geral, amam a lisonja.”
“Entre marido e mulher
a amizade parece existir por natureza, pois a espécie humana se inclina naturalmente
a formar casais — mais do que a formar cidades, já que a família é anterior à cidade
e mais necessária do que esta, e a reprodução é comum ao homem e aos animais. Entre
os outros animais a união vai apenas até esse ponto, mas os seres humanos vivem
juntos não só para reproduzir-se, senão também para os vários propósitos da vida.
E desde o começo são divididas as funções, diferindo entre si as do homem e as da
mulher, e ajudam eles um ao outro fazendo capital comum de seus dotes individuais.
Por tais motivos, tanto a utilidade como o prazer parecem ser encontrados nessa
espécie de amizade. Pode ela, no entanto, basear-se também na virtude, se as partes
são boas; pois cada uma possui a sua virtude própria, e ambas se deleitam nisso.
E os filhos constituem um laço de união (motivo pelo qual os casais sem filhos separam-se
mais facilmente); porquanto os filhos são um bem comum a ambos, e o que ambos possuem
em comum os conserva unidos.”
“Todos os homens ou
a maioria deles desejam o que é nobre, mas escolhem o que é vantajoso.”
“Não parece lícito
a um homem repudiar seu pai (embora o pai possa repudiar o filho). Como devedor
que é, deve pagar, mas nada do que um filho possa fazer equivalerá ao que recebeu,
de modo que ele continua sempre em dívida. Mas, assim como os credores podem perdoar
uma dívida, também um pai pode fazê-lo. E, por outro lado, pensa-se que ninguém
repudiaria um filho que não fosse profundamente perverso; porque, além da amizade
natural entre pai e filho, é próprio da natureza humana não enjeitar a ajuda de
um filho. Mas este, se de fato é perverso, evitará ajudar o pai ou não fará muita
questão disso; porquanto a maioria deseja receber benefícios mas evita fazê-los,
como coisa que não compensa.”
“A companhia dos bons
também nos oferece certo adestramento na virtude, como disse Teógnis antes de nós.”
“Mas no que toca aos
bons amigos, devemos tê-los tanto quanto possível, ou há um limite? O número
apropriado não é provavelmente uma quantidade fixa, mas qualquer que se situe entre
dois pontos fixos. De modo que para os amigos também existe um número fixo — talvez
o maior número com que se pode conviver (pois essa, segundo verificamos, é considerada
como a própria característica da amizade); e é evidente que não se pode conviver
com muitas pessoas e dividir-se entre elas. Acresce que essas pessoas também devem
ser amigas umas das outras, se têm de passar a vida juntas; e dificilmente tal condição
será preenchida com um número elevado de indivíduos. E tampouco é fácil compartilhar
as alegrias e os pesares íntimos de muita gente, pois isso importaria em sentir-se
feliz com um amigo e em contristar-se com outro, simultaneamente.
Parece, pois, que convém
não procurar ter o maior número possível de amigos, mas apenas tantos quantos forem
suficientes para os fins do convívio, pois ser um grande amigo de muitas pessoas
é coisa que se afigura impossível. Por essa mesma razão, não podemos amar várias
pessoas ao mesmo tempo. O ideal do amor é ser como que um excesso de amizade, e
isso só se pode sentir por uma pessoa, donde se segue que também só podemos sentir
uma grande amizade por poucas pessoas.
Isto parece encontrar
confirmação na prática, pois são muito raros os casos de um grande número de pessoas
que sejam amigas umas das outras no sentido da amizade-camaradagem, e as amizades
famosas dessa espécie são sempre entre duas pessoas. Os que têm muitos amigos e
mantêm intimidade com eles passam por não ser amigos de ninguém, salvo dentro dos
limites apropriados a concidadãos; e tais pessoas são também chamadas obsequiosas.
Dentro dos limites apropriados a concidadãos, em verdade, é possível ser amigo de
muitos sem contudo ser obsequioso, mas um homem genuinamente bom. Por outro lado,
não se pode manter com muitas pessoas a espécie de amizade que se baseia na virtude
e no caráter de nossos amigos, e devemos dar-nos por felizes se encontrarmos uns
poucos dessa espécie.”
“Tudo que escolhemos,
escolhemo-lo com a mira em outra coisa — salvo a felicidade, que é um fim em si.”
“O que é próprio de
cada coisa é, por natureza, o que há de melhor e de aprazível para ela; e assim,
para o homem a vida conforme à razão é a melhor e a mais aprazível, já que a razão,
mais que qualquer outra coisa, é o homem. Donde se conclui que essa vida é também
a mais feliz.”
Poética
“O imitar é congênito
no homem (e nisso difere dos outros viventes, pois, de todos, é ele o mais imitador,
e, por imitação, aprende as primeiras noções), e os homens se comprazem no imitado.”
“Não convém à mulher
ser viril ou terrível.”
“Homero, que por muitos
outros motivos é digno de louvor, também o é porque, entre os demais, só ele não
ignora qual seja propriamente o mister do poeta. Porque o poeta deveria falar o
menos possível por conta própria, pois, assim procedendo, não é imitador. Os outros
poetas, pelo contrário, intervém em pessoa na declamação, e pouco e poucas vezes
imitam, ao passo que Homero, após breve introito, subitamente apresenta varão ou
mulher, ou outra personagem caracterizada — nenhuma sem caráter, todas as que o
têm.”
sexta-feira, 31 de julho de 2015
Viagens na Minha Terra - Almeida Garrett
Editora: Martin Claret
ISBN: 978-85-7232-595-0
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 268
Sinopse: Viagens na minha terra é o relato romanceado
de uma viagem verídica empreendida pelo autor de Lisboa a Santarém na década de
1830. Numa prosa fluida, espontânea e aparentemente despretensiosa, que constantemente
busca cooptar o leitor, fazendo uso de vocativos, Almeida Garrett comenta os lugares
por onde passa e, entre uma reflexão e outra, critica o atraso tecnológico do país,
a literatura que falseia a realidade, as más condições das estradas e hospedarias;
a maneira dos homens públicos de governar; enfim, divaga sobre diversos temas, fazendo
uso ligeiro e bem humorado de ironias.
“A virtude é o galardão de si mesma, disse um filósofo antigo.”
“Plantai batatas, ó geração de vapor e de pó de pedra, macadamizai
estradas, fazeis caminhos de ferro, construí passarolas de Ícaro, para andar a qual
mais depressa, estas horas contadas de uma vida toda material, maçuda e grossa como
tendes feito esta que Deus nos deu tão diferente do que a que hoje vivemos. Andai,
ganha-pães, andai; reduzi tudo a cifras, todas as considerações deste mundo a equações
de interesse corporal, comprai, vendei, agiotai. No fim de tudo isto, o que lucrou
a espécie humana? Que há mais umas poucas dúzias de homens ricos. E eu pergunto
aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos
que é forçoso condenar a miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização,
à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para
produzir um rico? Cada homem rico, abastado, custa centos de infelizes, de miseráveis.”
“Por mim, não conheço objeto mais lindo em toda a natureza,
mais feiticeiro, mais capaz de arrebatar o espírito e inflamar o coração do que
é uma jovem donzela quando a modéstia lhe faz subir o rubor às faces e o pejo lhe
carrega brandamente nas pálpebras...”
“O italiano tinha fé em Deus, o alemão no cepticismo, o português
na sua pátria. É preciso crer em alguma coisa para ser grande — não só poeta — grande
seja no que for.”
“O inglês não canta senão quando bebe... aliás quando está
BEBIDO.”
“Este é o único privilégio dos poetas: que até morrer podem
estar namorados.”
“O coração humano é como o estômago humano, não pode estar
vazio, precisa de alimento sempre: são e generoso só as afeições lho podem dar;
o ódio, a inveja e toda a outra paixão má é estímulo que só irrita mas não sustenta.
Se a razão e a moral nos mandam abster destas paixões, se as quimeras filosóficas,
ou outras, nos vedarem aquelas, que alimento dareis ao coração, que há de ele fazer?
Gastar-se sobre si mesmo, consumir-se... Altera-se a vida, apressa-se a dissolução
moral da existência, a saúde da alma é impossível.
O que pode viver assim, vive para fazer mal ou para não fazer
nada.
Ora o que não ama, que não ama apaixonadamente, seu filho
se o tem, sua mãe se a conserva, ou a mulher que prefere a todas, esse homem é o
tal, e Deus me livre dele.
Sobretudo que não escreva: há de ser um maçador terrível.
Talvez seja este o motivo da indefinida permissão que é dada aos poetas de andarem
namorados sempre. O romancista goza do mesmo foro e tem as mesmas obrigações.”
“– Não sei o que é, mas quando não trabalho eu, trabalha não
sei o que em mim que me cansa ainda mais. Bem dizem que a ociosidade é o pior lavor.”
“Sei que me não namoro de paradoxos, nem sou destes espíritos
de contradição desinquieta que suspiram sempre pelo que foi, e nunca estão contentes
com o que é.”
“– Vencedores ou vencidos, toda a comunhão, toda a possibilidade
de união acabou entre nós e estes homens. Nós temos obrigação de os destruir, eles
o seu único desejo é exterminar-nos.
– Meu Deus! meu Deus! pois a isto somos chegados? Pois já
não há misericórdia no céu nem na terra!
– A misericórdia de Deus cansou-se; a da terra não sei onde
está nem onde esteve nunca. Os fracos dão sacrilegamente este nome à sua relaxação.
– Pois é relaxação desejar a paz, querer a união, suplicar
a indulgência? Não nos manda Deus perdoar todas as nossa dívidas, amar os nossos
inimigos?
– Os nossos sim, os d’Ele não.
– Pois tão perdidos, tão abandonados da mão de Deus são eles
todos... todos?
– Todos. E que cuida, irmã? que são melhores os nossos, esses
que se dizem nossos? que há mais fé na sua crença, mais verdade na sua religião?
Ó santo Deus!
– Faz-me tremer, padre!
– E para tremer é. A impiedade e a cobiça entraram em todos
os corações. Duvidar é o único princípio, enriquecer o único objeto
de toda essa gente. Liberais e realistas, nenhum tem fé: os liberais ainda têm esperança;
não lhe há de durar muito. Deixem-nos vencer e verão.
– E hão de vencer eles?
– Decerto.
– Ninguém mais diz isso.
– Digo-o eu.
– Tantos mil soldados que o governo tem por si!
– E tantos milhões de pecados contra. Não pode ser, não pode
ser: a misericórdia divina está exausta, e o dia desejado dos ímpios vai chegar.
A sua missão é fácil e pronta; não sabem, não podem senão destruir. Edificar não
é para eles, não têm com quê, não creem em nada. O símbolo cristão não é só uma
verdade religiosa, é um princípio eterno e universal. Fé, esperança e caridade.
Sem crer, sem esperar...
– E sem amar!
– Mulher, mulher! o amor é a última virtude...
– Mas por ela, por ela se chega às outras.”
“O chamado liberalismo, esse entendia frei Dinis: “Reduz-se,
dizia, a duas coisas, duvidar e destruir por princípio, adquirir
e enriquecer por fim; é uma seita toda material em que a carne domina
e o espírito serve; tem muita força para o mal; bem verdadeiro, real e perdurável,
não o pode fazer. Curar com uma revolução liberal um país estragado, como são todos
os da Europa, é sangrar um tísico: a falta de sangue diminui as ânsias do pulmão
por algum tempo, mas as forças vão-se e a morte é a mais certa”.”
“Formou Deus o homem, e o pôs num paraíso de delícias; tornou
a formá-lo a sociedade, e o pôs num inferno de tolices.
O homem — não o homem que Deus fez, mas o homem que a sociedade
tem contrafeito, apertando e forçando em seus moldes de ferro aquela pasta de limo
que no paraíso terreal se afeiçoara à imagem da divindade — o homem assim aleijado
como nós o conhecemos, é o animal mais absurdo, o mais disparatado e incongruente
que habita na terra.
Rei nascido de todo o criado, perdeu a realeza: príncipe deserdado
e proscrito, hoje vaga foragido no meio de seus antigos estados, altivo ainda e
soberbo com as recordações do passado, baixo, vil e miserável pela desgraça do presente.
Destas duas tão opostas atuações constantes, que já per si
sós o tornariam ridículo, formou a sociedade, em sua vã sabedoria, um sistema quimérico,
desarrazoado e impossível, complicado de regras a qual mais desvairada, encontrado
de repugnâncias a qual mais oposta. E vazado este perfeito modelo de sua arte pretensiosa,
meteu dentro dele o homem, desfigurou-o, contorceu-o, fê-lo o tal ente absurdo e
disparatado, doente, fraco, raquítico; colocou-o no meio do Éden fantástico de sua
criação — verdadeiro inferno de tolices — e disse-lhe, invertendo com blasfemo arremedo
as palavras de Deus Criador:
“De nenhuma árvore da horta comendo comerás:
Porém da árvore da ciência do bem e do mal dela só comerás
se quiseres viver.”
Indigestão de ciência que não comutou seu mau estômago, presunção
e vaidade que dela se originaram — tal foi o resultado daquele preceito a que o
homem não desobedeceu como ao outro: tal é o seu estado habitual.
E quando as memórias da primeira existência lhe fazem nascer
o desejo de sair desta outra, lhe influem alguma aspiração de voltar à natureza
e a Deus, a sociedade, armada de suas barras de ferro, vem sobre ele, e o prende,
e o esmaga, e o contorce de novo, e o aperta no ecúleo doloroso de suas formas.
Ou há de morrer ou ficar monstruoso e aleijão.
Poucos filhos do Adão social tinham tantas reminiscências
da outra pátria mais antiga, e tendiam tanto a aproximar-se do primitivo tipo que
saíra das mãos do Eterno, forcejavam tanto por sacudir de si o pesado aperto das
constrições sociais, e regenerar-se na santa liberdade da natureza, como era o nosso
Carlos.
Mas o melhor e o mais generoso dos homens segundo a sociedade,
é ainda mais fraco, falso e acanhado.
Demais, cada tentativa nobre, cada aspiração elevada de sua
alma lhe tinha custado duros castigos, severas e injustas condenações desse grande
juiz hipócrita, mentiroso e venal... o mundo.
Carlos estava quase como os mais homens... ainda era bom e
verdadeiro no primeiro impulso de sua natureza excepcional; mas a reflexão descia-o
à vulgaridade da fraqueza, da hipocrisia, da mentira comum.
Dos melhores era, mas era homem.”
“Quem tem uma ideia fixa, em tudo a mete.”
“Detesto a filosofia, detesto a razão; e sinceramente creio
que num mundo tão desconchavado como este, numa sociedade tão falsa, numa vida tão
absurda como a que nos fazem as leis, os costumes, as instituições, as conveniências
dela, afetar nas palavras a exatidão, a lógica, a retidão que não há nas coisas,
é a maior e mais perniciosa de todas incoerências.”
“Em Portugal não há religião de nenhuma espécie. Até a sua
falsa sombra, que é a hipocrisia, desapareceu. Ficou o materialismo estúpido, alvar,
ignorante, devasso e desfaçado, a fazer gala de sua hedionda nudez cínica no meio
das ruínas profanadas de tudo o que elevava o espírito...
Uma nação grande ainda poderá ir vivendo e esperar por melhor
tempo, apesar desta paralisia que lhe pasma a vida da alma na mais nobre parte de
seu corpo. Mas uma nação pequena, é impossível; há de morrer.
Mais dez anos de barões e de regime da matéria, e infalivelmente
nos foge deste corpo agonizante de Portugal o derradeiro suspiro do espírito.
Creio isto firmemente.
Mas ainda espero melhor todavia, porque o povo, o povo povo,
esta são; os corruptos somos nós, os que cuidamos saber e ignoramos tudo.
Nós, que somos a prosa vil da nação, nós não entendemos a
poesia do povo; nós, que só compreendemos o tangível dos sentidos, nós somos estranhos
às aspirações sublimes do senso íntimo, que despreza as nossas teorias presunçosas,
porque todas vêm de uma acanhada análise que procede curta e mesquinha dos dados
materiais, insignificantes e imperfeitos; — enquanto ele, aquele senso íntimo do
povo, vem da Razão divina, e procede da síntese transcendente, superior, e inspirada
pelas grandes e eternas verdades que se não demonstram porque se sentem.
E eu que descrevo isto serei eu demagogo? Não sou.
Serei fanático, jesuíta, hipócrita? Não sou.
Que sou eu, então?
Quem não entender o que eu sou, não vale a pena que lho diga...
Perdoa-me, leitor amigo, uma reflexão última no fim deste
capítulo já tão secante, e prometo não refletir nunca mais.
Jesus Cristo, que foi o modelo da paciência, da tolerância,
o verdadeiro e único fundador da liberdade e da igualdade entre os homens, Jesus
Cristo sofreu com resignação e humildade quantas injustiças, quantos insultos lhe
fizeram a ele e à sua missão divina; perdoou ao matador, a adúltera, ao blasfemo,
ao ímpio. Mas quando viu os barões a agiotar dentro do templo, não se pode conter,
pegou num azorrague e zurziu-os sem dor.”