terça-feira, 30 de setembro de 2025

A batalha pela memória: reflexões sobre o socialismo e revolução no século XX (Parte II), de Jones Manoel

Editora: Ruptura

ISBN: 978-65-981805-2-2

978-85-60281-49-7

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 304

SinopseVer Parte I



 

“A tática de ação da burguesia e de seus intelectuais é bem simples: potencializar todos os erros e todas as contradições, superdimensionando-os, abstraindo-os de sua historicidade concreta e pautando uma abordagem moralista e demonizadora; aliado a isso, sempre ocultar ou embelezar a situação pré-revolucionária e o mundo capitalista hodierno que cerca o país socialista. Um exemplo clássico: a fome na China socialista. A China foi um país destruído por 100 anos de colonialismo, ao longo dos quais mais de 80 milhões de pessoas foram mortas em decorrência das ações das potências liberal-imperialistas.

Os comunistas, sem experiência na gestão de uma economia nacional, num país destruído pela guerra e pelo colonialismo, cercado, isolado e atacado, precisam construir o socialismo, garantir a autonomia produtiva e melhorar a qualidade de vida do povo trabalhador. Além disso, sofrem bloqueios econômicos, sabotagens e agressões múltiplas. Numa situação de perigo constante, buscam medidas para acelerar o desenvolvimento das forças produtivas, ficando menos vulneráveis ao imperialismo. Essas medidas na China, por uma série de fatores, abarcam equívocos e provocam fome. A partir desse momento, desaparece toda história, política, geopolítica e pressões imperialistas, e a fome é exibida como fruto de um elemento intrínseco da ideologia ou uma simples perversão patológica do líder totalitário34.

Nesse quadro, a ideologia dominante cria uma pressão permanente em duas frentes: uma contra o marxismo e o socialismo no geral e outra contra qualquer simpatia ou apoio a cada experiência socialista concreta – em nosso exemplo, a China maoísta. O intelectual ou organização socialista terão que responder constantemente às caricaturas, calúnias e narrativas simplificadoras do anticomunismo. No entanto, aquele marxista que diz “olha, sou marxista, mas não tenho nada a ver com isso” passa a receber mais espaço, atenção pública e conquista a medalha de honra de “marxista, porém respeitável”.

Cria-se assim um marxismo que apoia todas as revoluções, menos as vitoriosas; defende todos os revolucionários, menos os que exerceram o poder.”

34 Para um balanço desse mecanismo ideológico da classe dominante na apresentação dos problemas e contradições do socialismo, conferir o livro de Domenico Losurdo, Fuga da história? A revolução russa e a revolução chinesa vistas de hoje. Editora Revan, 2009.

 

 

“Se tudo deu errado no século XX, se todas as experiências socialistas se resumem a reinos de terror e à ausência de democracia socialista, não precisamos aprender nada com a história, mas “voltar a Marx”, recuperar a pureza da proposta marxista dada de uma vez para sempre nos escritos e, no máximo, aprender com os marxistas que nunca exerceram o poder e morreram no martírio. Podemos ler e reivindicar Antonio Gramsci, Rosa Luxemburgo, Mariátegui e, até certo ponto, “Che” Guevara, mas não podemos fazer o mesmo com Mao Zedong, Ho Chi Minh, Fidel Castro, Thomas Sankara, Kim Il Sung, Josip Broz Tito etc.

Os que exerceram o poder são considerados bárbaros, dogmáticos, pouco dialéticos, sem refinamento teórico e filosófico. Já outros, respeitados em universidades e até citados positivamente nos aparelhos ideológicos da classe dominante – como é o caso de Antônio Gramsci –, são tomados como uma espécie de antítese total de um passado que deve ser superado. Nessa chave de leitura, Rosa Luxemburgo é apresentada como a negação de tudo que deu errado, um novo começo, o início de um “socialismo democrático”.”

 

 

“Na modernidade burguesa, antes da era do imperialismo, a única tendência teórico-política no “Ocidente”, o centro dinâmico da economia mundial, que tentou negar radicalmente o colonialismo e suas formas ideológicas de justificação – no plano teórico desde seu surgimento, e no plano político imediato no processo de amadurecimento –, foi o materialismo histórico. (...)

Vamos trabalhar a nossa tese em três pontos. Primeiro, Marx e Engels, ao contrário de toda tradição dominante de sua época, negaram qualquer paradigma naturalista e racialista na construção de sua crítica da economia política e teoria social centrada no conflito de classes. A análise marxiana é radicalmente histórica. Quando Marx diz em Trabalho Assalariado e Capital, por exemplo, que um negro é apenas um negro e que ele só se torna escravo em condições históricas determinadas, a afirmação é não uma coisificação do negro, mas uma negação radical de qualquer “racismo científico”63 (ou naturalização racialista da escravidão), chamando atenção para as condições histórico-concretas do desenvolvimento do tráfico de seres humanos escravizados na lógica mercantil64 – Marx e Engels também combateram as explicações psicopatológicas dos processos sociais, tendência em voga nos pensadores do século XIX para “explicar” os processos revolucionários.

Hoje, foi quase banido da história um dado básico da cultura ocidental hegemônica até a primeira metade do século XX. Qual dado? A leitura racial da sociedade não era privilégio da Alemanha Nazista (nunca é demais lembrar que o regime de segregação racial nos Estados Unidos durou oficialmente até 1965), mas sim uma corrente de muita força no “Ocidente”, tendo inclusive servido de espelho para as classes dominantes locais de toda periferia, a ponto de existirem, nos quatro cantos do mundo, regimes de supremacia racial ou Estados com políticas eugenistas. A própria palavra “racismo” não tinha uma conotação negativa: significava a “justa” e “necessária” separação entre as raças para evitar a degradação da “raça branca”, “ariana” etc. Quando, em 1936, a União Soviética criminalizou o racismo e reforçou a política cultural, educacional e científica de igualdade racial, ela estava isolada.

O termo “racismo” só passou a ter uma conotação universalmente negativa ao final da Segunda Guerra Mundial, depois da vitória da União Soviética sobre o nazismo e o início da revolução anticolonial no mundo – acontecimento que também marcou o abandono das teorias sociais chave explicitamente racistas. O materialismo histórico, na época de Marx e Engels, não combatia apenas o idealismo e outras formas filosóficas burguesas. Batia de frente com as teorias racistas. Este trecho clássico de Marx, se lido no seu contexto histórico, revela uma revolução teórico-política:

O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de guia para meus estudos, pode ser formulado, resumidamente, assim: na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual (MARX, Contribuição à crítica da economia política, 2008 [1859], p. 47.

Note a ausência de qualquer paradigma de determinismo racial, climático ou psicopatologizante. Hoje é normal e trivial explicar as relações sociais a partir do estudo de relações sociais construídas historicamente, porém não era no período de Marx e Engels. O materialismo, expresso no trecho anterior, não é apenas o sintoma de uma luta contra o idealismo, mas também contra paradigmas racializantes, como o de um dos pensadores mais prestigiados da Europa no século XIX, o liberal Herbert Spencer (contemporâneo de Marx e Engels e famoso pelo chamado “darwinismo social”).

O segundo aspecto é que Marx e Engels são críticos do colonialismo. Essa crítica ao colonialismo opera em duas dimensões. Eles foram defensores da emancipação nacional da Irlanda e Polônia, os dois principais símbolos europeus da política colonial (importante destacar que, mesmo “brancos” – numa perspectiva biológica –, esses povos eram racializados e tratados como não brancos pelo colonialismo do período). Essa defesa da Polônia e da Irlanda, inclusive, é feita contra membros da Internacional dos Trabalhadores que consideravam, assim como alguns “marxistas” posteriores, que essas lutas nacionais eram desvios da luta de classes.”

63. “Em 1883, o mesmo ano da morte de Marx, vê a luz na Áustria um livro de Ludwig Gumplowicz que, já pelo título (Der Rassenkampf, “A luta de raças”), se contrapõe à tese da luta de classes como chave de leitura da história. Três décadas antes de Gumplowicz, na França, Arthur Gobineau publicou seu Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas, uma obra cujo título também fala por si só. E, nesse mesmo período, na Inglaterra, Benjamin Disraeli argumenta de modo análogo, enunciando a tese de que a raça “a chave da história” e que “tudo é raça e não há outra verdade”, e “é somente uma coisa, o sangue que define e constitui uma raça. O ciclo histórico inteiro, que vai desde a conquista da América até as guerras do ópio e a ascensão e o triunfo do Império Britânico” (LOSURDO, A luta de classes, 2015, p. 45).

64. Ver MARX, Para a crítica da economia política, 1982.

 

 

“O que a África é hoje, como tudo na história, é fruto da luta de classes. O neocolonialismo, aliado das burguesias locais, venceu a luta contra os projetos revolucionários liderados por comunistas e as plataformas nacionalistas que buscavam, ainda que de forma limitada, controlar as riquezas nacionais e combater o “atraso” e a miséria criados e reproduzidos pelo imperialismo. O fato de vários ex-revolucionários terem assumido o papel de gestores da barbárie neocolonial não mostra a incapacidade do socialismo africano, mas o nível de vitória que o capitalismo conseguiu.

Nesse ponto, como antes, preciso perguntar: Você já ouviu falar da história de Thomas Sankara e da Revolução em Burkina Faso ou mesmo do líder de Gana, Kwame Nkrumah, citado anteriormente? Um famoso pensador, muitos anos atrás, escreveu um livro de título chamativo: Como a Europa subdesenvolveu a África? O autor dessa obra, Walter Rodney, provavelmente não discordaria de uma continuidade das suas reflexões que levasse o título “Como o neocolonialismo mantém o subdesenvolvimento na África?

A narrativa anticomunista que apresenta os revolucionários como assassinos, obcecados pelo poder, seres antiéticos e desumanos visa esconder que, na maioria dos países, especialmente na periferia do sistema capitalista, os comunistas lutaram para tornar realidade os mais elementares princípios da dignidade humana. Na luta pela paz, independência nacional, direitos trabalhistas, democracia política, saúde, educação, igualdade para mulheres, reforma agrária, soberania nacional, combate à fome, uso das riquezas naturais em benefício do povo, defesa do meio ambiente e afins, lá estavam os comunistas.

O que é comunismo? É também um projeto político que atuou como agente democrático e tentou garantir a milhões de seres humanos o direito de desfrutar das melhores conquistas da humanidade. Só com o comunismo é que milhões puderam ter acesso à escola pública, estado laico, igualdade jurídica, fim da escravidão e servidão, reconhecimento como cidadão, emprego, comida etc.

O tempo histórico não é homogêneo e uniforme. Em 1930, em Paris, o movimento operário fazia a crítica do direito burguês, mostrando que a igualdade de todos perante a lei significa legitimar e ocultar as desigualdades socioeconômicas do capitalismo. No Vietnã colonizado pela França, os camponeses não tinham igualdade perante a lei, não tinham Estado de direito e não eram considerados seres humanos. Das selvas e centros urbanos do Vietnã, liderados pelos comunistas, esses camponeses gritavam: queremos ser seres humanos, queremos ser cidadãos, queremos conquistar nossa pátria.

A modernidade, a democracia, o Estado de direito, os direitos humanos, em suma, as bandeiras da Revolução Francesa de liberdade, igualdade e fraternidade nunca foram universais. Nunca foram para todos os povos e regiões do globo. O capitalismo, sem desconsiderar toda sua complexidade, sempre teve dois polos centrais: o mundo formado por países coloniais, semicoloniais e dependentes e os países centrais do sistema burguês.

E no primeiro polo do capitalismo, no século XX, os comunistas tiveram um papel democrático, civilizatório, humanista e modernizador fundamental. Quem conta a história dos direitos humanos e da democracia “esquecendo” desse fato está mentindo.”

 

 

“O mito da democracia e da liberdade estadunidense é tão forte que é imune aos fatos. Em novembro de 2019, o site G1⁷⁹, da Rede Globo, noticiou um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) apontando que os Estados Unidos têm mais de 100 mil crianças presas em campos para imigrantes. O mundo tem 330 mil crianças detidas por razões de imigração, estando quase um terço delas, portanto, nos Estados Unidos. Ainda segundo a matéria do G1, esse país é o único do mundo a não ratificar a Convenção dos Direitos da Criança; para completar o quadro, Stephen Miller, assessor sênior da Casa Branca e responsável pela política de imigração do governo Trump, teve e-mails vazados pelo jornal The Guardian80 expondo todo seu racismo e supremacismo branco.

Recapitulando: 100 mil crianças presas em campos para imigrantes em situação degradante, acumulando várias denúncias, inclusive da ONU, de abusos sexuais, maus-tratos e ausência de condições básicas de higiene, resultado de uma política comandada por um notório racista e supremacista branco de um país que é o único do mundo a não assinar a Convenção dos Direitos da Criança. Já pensou se fosse Cuba, Venezuela, China ou Coreia do Norte a fazer o mesmo?”

79. Mais de 100 mil crianças estão retidas pela imigração dos Estados Unidos, diz estudo da ONU, G1, [S.I.], 18 nov. 2019, Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/11/18/mais-de-100-mil-criancas-estao-retidas-pela-imigracao-dos-estados-unidos-diz-estudo-da-onu.ghtml>. Acesso em 30 dez. 2023.

80. MUDDE, Cas. “Stephen Miller is no outlier. White supremacy rules the Republican party”. The Guardian, [S. I.], 16 nov. 2019. Disponível em: <https://www.theguardian.com/us-news/2019/nov/22/stephen-miller-bannon-interview-immigration-america>.

 

 

“A realidade, porém, é bem eloquente: estamos diante de um genocídio, um extermínio que, embora bem mais dilatado no tempo, foi mais sanguinário que a Solução Final de Adolf Hitler para os judeus. Estamos trabalhando com o “dado” de quase 18 milhões de pessoas exterminadas.

O terrível desse genocídio se vê nos números. Em 1620, a população nativa era de 18 milhões, foi reduzida a 600 mil em 1800 e chegou a 250 mil em 1900. Em 2008, o censo demográfico dos Estados Unidos mostrou uma população de aproximadamente 325 milhões de habitantes. Entre esses, 75,1% brancos, oriundos de imigrações europeias, enquanto os nativos representavam 0,13% da população, algo como 2,5 milhões, quando no início do século XVII eram 18 milhões. Os dados revelam tudo, diz o livro sobre o maior genocídio (FILHO, Maior genocídio da Humanidade foi feito por europeus nas Américas, 2019).

Uma gigantesca parcela da população estadunidense não vivia, concretamente, sob um regime constitucional de democracia burguesa, mas sim sob um Estado de exceção permanente, com objetivos e práticas genocidas concretizadas com sucesso. Não se trata apenas de apontar que a população indígena era privada dos direitos políticos, como votar e ser eleito, e dos direitos civis; estamos falando de algo mais grave: eles não eram sequer considerados seres humanos pelo Estado criado pelos pais fundadores.85

Nos Estados Unidos, os peles-vermelhas eram retratados de forma cada vez mais repugnante à medida que o processo de sua aniquilação da face da Terra avançava com maior impiedade. A guerra discriminatória e de aniquilação das populações coloniais, externas ou internas às metrópoles, é justificada com o recurso à sua desumanização (LOSURDO, Revolução de outubro e democracia no mundo**, 2017).

Alguém pode argumentar que esse desejo de extermínio é algo pré-moderno, vigente em todo mundo na época, apelando a um suposto “contexto histórico”. Porém, a ideologia de extermínio dos indígenas é algo de antes da nossa era contemporânea? Theodore Roosevelt, 26º presidente dos Estados Unidos, afirmava que “não chego ao ponto de dizer que índio bom é índio morto, mas creio que seja o caso de nove em cada dez. E não gostaria de indagar muito a fundo sobre o décimo” (LOSURDO, 2017).

Essas palavras foram proferidas por Roosevelt em 1886 e, ainda que tenhamos indícios de uma mudança de posição posterior, são significativas. Thomas Jefferson, o terceiro presidente, falava em “eliminar” os indígenas. Jefferson também catalogava os povos originários dessa forma: “estes selvagens sem piedade, cujo modo bem conhecido de fazer a guerra é massacrar tudo, sem distinção de idade, de sexo, nem de condição” (DUCLOS, O império da cultura do ódio e dos delírios paranoicos, 2003). O general Philip Sheridan, um dos mais famosos da história dos Estados Unidos, defendia, na metade do século XIX, a “aniquilação, obliteração e completa destruição” dos indígenas (ROSS, How American Racism Influenced Hitler, 2018).

O nível de brutalidade na política de extermínio foi tanto que um famoso personagem da história do século XX tomava o extermínio estadunidense como grande exemplo para seu projeto. Esse líder era Adolf Hitler. (...)

O Estado racial estadunidense, como se sabe, não se restringiu a práticas de domínio total contra os indígenas. É fundamental sempre lembrar que existe uma lenda muito popular de que o liberalismo, no Brasil, seria mais autoritário e antidemocrático do que o “verdadeiro liberalismo”, o da Europa Ocidental e dos Estados Unidos. Os que divulgam essa visão, cobrando um “verdadeiro liberalismo” no Brasil ou uma imitação do liberalismo dos países imperialistas, parecem esquecer, ou ignorar propositalmente, que a escravidão não foi extinta com a Revolução Americana. A Constituição Americana sanciona a escravidão, e o regime presidencialista do país esteve organicamente ligado a essa instituição de máxima opressão e exploração: depois da fundação da República estadunidense, por 32 anos, a presidência foi ocupada por proprietários de escravos.

O sentido intrínseco da ligação entre fundação da república, liberalismo e escravidão é bem colocado por Losurdo:

A escravidão não é algo que permaneça não obstante o sucesso das três revoluções liberais; ao contrário, ela conhece o seu máximo desenvolvimento em virtude desde sucesso: ‘o total da população escrava nas Américas somava aproximadamente 330 mil no ano de 1700, chegou a quase três milhões no ano de 1800, até alcançar o pico de mais de 6 milhões nos anos 50 do século XIX’. O que contribui de forma decisiva para o crescimento desse instituto sinônimo do poder absoluto do homem sobre o homem é o mundo liberal (LOSURDO, Contra-história do liberalismo, 2006, p. 47).

Grandes pensadores liberais e admiradores da República americana, como o francês Alexis de Tocqueville, no seu clássico livro A democracia na América, não só legitimavam o extermínio dos indígenas87 como consideravam, sem problemas, a República como democrática, a despeito da escravidão. Tocqueville registra que existe igualdade e liberdade no âmbito da comunidade branca, mas muitos imigrantes, indígenas e negros não desfrutavam dessa liberdade. Emerge como claro: a democracia estadunidense é um regime de base racial, uma democracia para o povo dos senhores, como diria Domenico Losurdo.

Registrar a convivência da democracia burguesa nos Estados Unidos com a escravidão é pouco. É necessário destacar ainda que, no plano das relações internacionais, o império do Norte atuava como uma força de contrarrevolução no nível do continente americano, buscando manter ou restabelecer a escravidão. Em meados do século XIX, a escravidão foi restabelecida no Texas, depois do território ser roubado do México pelos Estados Unidos.88

A antiga colônia francesa de São Domingos, o Haiti, conseguiu realizar sua revolução, acabar com a escravidão, o domínio dos proprietários de escravo e libertar-se do colonialismo francês. O pequeno país proclamou que, a partir daquele momento, todos os seres humanos seriam iguais e ninguém poderia ser propriedade de outrem. Desafiado pela Revolução Haitiana, foi por esse motivo que, em 28 de fevereiro de 1806, o presidente estadunidense Thomas Jefferson proibiu todo e qualquer comércio com o Haiti. A intenção era suprimir essa república de negros livres.89

A escravidão só foi extinta com a guerra civil Americana, conhecida como Guerra de Secessão de 1861-1865. Durante a guerra, o governo de Abraham Lincoln, representando os interesses da burguesia industrial nortista e valendo-se de expedientes de Estado de exceção contra os proprietários de escravos do Sul, proclamou a abolição da escravidão. No período, como mostra Domenico Losurdo90, muitos liberais apoiaram os Confederados do Sul, vendo neles os verdadeiros representantes do liberalismo, da defesa da propriedade privada, contra o “jacobinismo” de Lincoln. Enquanto isso, Marx e Engels se colocaram como firmes apoiadores da luta contra a escravidão e apontavam as vacilações da União na luta contra os latifundiários escravagistas:

Colocando-se abertamente a favor da emancipação dos escravos, Marx e Engels não se eximiram de criticar, através da imprensa, as tendências conciliadoras e tendentes à capitulação existente no próprio campo republicano nortista. Em artigos como ‘A destituição de Frémont’, ‘Crítica dos assuntos americanos’ e ‘Crise na questão escravista’, ‘Tratado contra o comércio de escravos’ e ‘Manifestações abolicionistas na América’, Marx condenava de forma contundente a indecisão e as vacilações dos círculos moderados do Partido Republicano do Norte dos Estados Unidos, sua inclinação para estabelecer compromissos com a oligarquia escravista do Sul e seu Partido Democrata. Subjaz nesses escritos o reconhecimento das limitações sócio-históricas da burguesia estadunidense, que a tornavam incapaz de realizar a ‘democracia americana’ em sua plenitude – decantada anos antes por liberais europeus da estirpe de Alexis de Tocqueville –, concorrendo para a manutenção de uma ‘república contaminada’ (defiled republic) na sociedade e no sistema político estadunidense pela vigência da 'instituição nefanda'. Para Marx e Engels, a maneira consequente e radical de travar a guerra era através da proclamação de seu caráter abolicionista, emancipador e antioligárquico, de modo a mobilizar as massas de condição livre e aqueles que ainda permaneciam escravos para o desenvolvimento de uma guerra popular e revolucionária (FERREIRA, Crítica Marxista, 2017, p. 121).

Durante a Guerra de Secessão, a guarda civil, formada também por pessoas negras, ex-escravos, apoiada pela ditadura “jacobina” do Norte, conseguiu criar um clima de liberdade para a população negra como nunca antes visto. Pela primeira vez na história, os negros e negras dos Estados Unidos passaram a desfrutar de algo próximo de um Estado de direito e direitos civis.91 Com a vitória da União, ocorreu, afinal, a conciliação com os Confederados do Sul. A despeito do caráter de mobilização popular do exército antiescravista, a guerra buscava, essencialmente, dobrar as resistências do latifúndio e afirmar a hegemonia do capital industrial e bancário nortista. Garantida essa hegemonia, a burguesia nortista permitiu o estabelecimento de uma nova forma de domínio sobre a população negra.

Quando termina o período da reconstrução americana e as tropas nortistas deixam totalmente os estados do Sul, em 1877, os proprietários brancos recuperaram seu poder político e acabaram com o pouco de liberdade política até então desfrutada pelos negros. Rapidamente, uma série de leis segregacionistas começaram a tomar corpo entre 1890 e 1910 – inicialmente no Norte e não no Sul –, configurando o regime de segregação racial Jim Crow.92 Esse sistema de apartheid, oficialmente, durou até 1965. Proibia não só direito de votar e ser eleito aos negros em vários estados, como criava um regime de desumanização total e alijamento de direitos básicos, como educação, saúde, transporte e emprego.

É importante destacar que o regime de segregação racial não era apenas uma política estatal. A mitologia liberal gosta de imaginar regimes de exceção como um Estado total, o “Grande Irmão” de George Orwell, que controla toda uma sociedade indefesa; em suma, a velha e gasta oposição liberal entre Estado versus indivíduo ou sociedade. A dominação racial-classista nos Estados Unidos se configura como um complexo orgânico e dinâmico de brutalidade, violência e desumanização que articula Estado e sociedade civil com fronteiras sempre mais turvas, com a interação entre as formas legais e ilegais de opressão, de acordo com a conjuntura histórica. Vejamos alguns aspectos dessa dominação:

Por mais brutais e sangrentos que fossem os distúrbios raciais, ficavam atrás dos linchamentos e das mortes por fogo. Em 1918, 64 negros foram linchados; em 1919, o número subiu para 83. Talvez o ato mais brutal tenha sido o ocorrido em Valdosta, no estado da Geórgia, em 1918. Mary Turner, uma mulher negra grávida, foi enforcada numa árvore, embebida com gasolina e queimada. Quando se balançava na corda, um homem da multidão puxou uma faca e abriu seu ventre. Seu filho caiu. Deu dois gemidos fracos – e recebeu como resposta um pontapé de um valentão, no momento em que a vida era triturada nessa forma tão minúscula (JONES, Racismo e preconceito, 1973, p. 15).

E:

Notícias dos linchamentos eram publicadas em folhetos locais e vagões suplementares eram acrescentados aos trens para espectadores, às vezes milhares, provenientes de localidades a quilômetros de distância. Para assistir ao linchamento, as crianças das escolas podiam ter seu dia livre. O espetáculo podia incluir castração, o esfolamento, a assadura, o enforcamento, os tiros de arma de fogo. As lembranças a serem adquiridas podiam incluir os dedos das mãos e dos pés, os dentes, os ossos e até as genitálias das vítimas, bem como cartões ilustrados do evento (WOODWARD, 2010, p. 317).

Note, os linchamentos eram públicos, anunciados como eventos sociais de fundamental importância, com o conhecimento e a aprovação, oficial ou oficiosa, das autoridades do poder público. Nos Estados Unidos, um negro não deveria apenas temer a polícia, a força repressiva do Estado, mas todo e qualquer branco: o branco podia estuprar uma mulher negra e nada iria acontecer; espancar um negro e nada iria acontecer; matar e torturar com requintes de crueldade um negro e nada iria acontecer. Em caso de reação, em legítima defesa, o negro poderia esperar a prisão, pena de morte ou a morte pura e simples por linchamento. A situação da população negra, em vários estados do Sul e com formas diferentes e um pouco menos brutais no Norte, expressa-se objetivamente como a negação total da condição de ser humano, sujeito de direito e portador de direitos civis.”

84. Domenico Losurdo, Guerra e Revolução, 2017, p. 59.

85. Designação conferida a John e Samuel Adams, George Washington, Thomas Jefferson, George Clymer, Benjamin Franklin, George Tylor e George Rea, signatários da Declaração de Independência ou redatores da Constituição dos Estados Unidos, onze anos mais tarde.

86. “A interpretação hitlerista da Revolução Bolchevique como projeto judaico não era nada exótica. Winston Churchill e Woodrow Wilson entendiam-na da mesma forma, pelo menos no início. O correspondente do Times de Londres via nos judeus a força principal da conspiração bolchevique mundial. Pouco habitual era a conclusão insistente e sistemática de Hitler, segundo o qual a Alemanha poderia ganhar poder global eliminando os judeus da Europa Oriental e derrubando sua suposta fortaleza soviética. [...] Uma segunda América seria criada na Europa, depois que os alemães aprendessem a ver os outros europeus como viam os nativos americanos e os africanos, e a considerar o maior país da Europa como uma frágil colônia judaica” (ibidem, p. 36).

87 “Muito embora o vasto país que acabamos de descrever fosse habitado por numerosas tribos indígenas, podemos dizer com justiça que, na época do descobrimento, ainda não constituía mais que um deserto. Os índios ocupavam-no, mas não o possuíam. É pela agricultura que o homem se apropria do solo, e os primeiros habitantes da América do Norte viviam do produto da caça. Seus preconceitos implacáveis, suas indômitas paixões, seus vícios e, mais ainda talvez, suas virtudes selvagens entregavam-nos a uma destruição inevitável. A ruína desses povos começou no dia em que os europeus abordaram em suas costas; sempre continuou desde então; acaba de se consumar em nossos dias. A Providência, colocando-os no meio das riquezas do novo mundo, parecia ter-lhes concedido destas apenas um curto usufruto; de certa forma, eles só estavam ali entrementes. Aquelas costas, tão bem-preparadas para o comércio e para a indústria, aqueles rios tão profundos, aquele inesgotável vale do Mississippi, aquele continente inteiro aparecia então como o berço ainda vazio de uma grande nação” (Alexis de Tocqueville, A democracia na América. Livro I: leis e costumes, p. 33).

88 Domenico Losurdo (entrevista), “A luta para romper o monopólio da tecnologia é revolucionária“, Revista Opera, 28 jun. 2019.

89 Vijay Prashad, Estrela vermelha sobre o terceiro mundo, p. 29.

90 Losurdo, Contra-história do liberalismo, p. 107-33.

91. Cabe destacar, contudo, que Lincoln, pessoalmente, estava longe de uma posição antirracista ou algo similar a isso. Sua declaração é reveladora: “não sou, nem nunca fui favorável a algo que pudesse provocar, de qualquer forma, a igualdade social e política entre as raças branca e a negra; não sou, nem nunca fui favorável à transformação de negros em eleitores ou jurados, ou à sua aceitação para cargos públicos [...]. A isso acrescentarei que existe uma diferença física entre a raça negra e a branca que, segundo creio, para sempre impedirá que as duas raças vivam em condições de igualdade social e política” (Lincoln apud James M. Jones, Racismo e preconceito, p. 4).

92 “As Leis de Jim Crow foram criadas no Norte, não no Sul. Portanto, a atitude ambivalente dos nortistas com relação aos negros tem sido um pouco obscurecida pela comparação evidentemente favorável com as atitudes sulistas diante dos negros. No entanto, como hoje se vê claramente, os negros do Norte nunca foram admitidos na corrente principal da vida norte-americana” (JONES, 1973, p. 9). O termo tem origem na personagem satírica do ator Thomas Rice, “Jim Crow”, que ridicularizava o povo negro por meio de estereótipos. A expressão tornou-se uma forma pejorativa de se referir às pessoas negras. No final do século XIX, quando os estados do Sul dos Estados Unidos aprovaram leis de segregação racial, estas ficaram conhecidas como Leis Jim Crow.

A batalha pela memória: reflexões sobre o socialismo e revolução no século XX (Parte I), de Jones Manoel

Editora: Ruptura

ISBN: 978-65-981805-2-2

978-85-60281-49-7

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 304

Sinopse: A batalha pela memória – reflexões sobre o socialismo e a revolução no século XX”, do historiador, militante e comunicador Jones Manoel é uma coletânea de artigos, em sua maioria inéditos, que tratam de aspectos centrais do retrato distorcido fornecido pelos “vencedores” do século passado: o papel histórico de Stálin, o revisionismo histórico acerca do pacto de não-agressão germano-soviético, a leitura de Rosa Luxemburgo como uma “socialista democrática”, a importância de Mao Zedong e da Revolução Chinesa na história do socialismo, o papel do leninismo nas lutas anticoloniais, especialmente em África, o papel democrático dos comunistas ao longo do século passado no Brasil e em todo mundo e a contribuição do marxismo na construção dos movimentos antirracistas nos Estados Unidos são todos temas tratados pelo autor, que insiste que “não precisamos de mais autocrítica. Precisamos de uma outra autocrítica. Uma autocrítica que combata a hegemonia liberal forjada pelos vencedores da ‘Guerra Fria’ e coloque a análise do nosso legado comunista em termos marxistas. Para termos chance de futuro, é fundamental disputar o nosso passado.”



“Tive contato com uma literatura marxista que tinha como premissa a ideia de que todas as tentativas de revolução do século passado haviam dado errado, ou seja, foram um festival de repressão, brutalidade, violência, fome, autoritarismo, burocratismo e privilégios para uma elite governante – e coisas do tipo. Tudo que fizemos no século XX foi uma tragédia resumível em poucas palavras: Stalin, stalinismo, gulag, totalitarismo e mais totalitarismo, revolução traída etc., porém vamos tentar tudo de novo e, dessa vez – com a graça de Deus, a “volta a Marx” ou colocando “democracia” e “liberdade” depois do nome socialismo –, vai dar tudo certo.

Basicamente, se você é comunista, precisa ter vergonha de toda história do movimento comunista. Repudiar todo seu passado. Repudiar todas e cada uma das experiências de transição socialista. Só proferir palavras negativas sobre Lenin, Stálin, Mao Zedong, Fidel Castro, Ho Chi Minh, Kim Il-Sung, Marechal Tito e fingir que nunca existiram líderes comunistas na África, América Central e outras regiões. É um tipo de “marxismo” que só gosta de quem morreu em martírio, sem tocar no poder político ou o exercendo por pouco tempo, como Antonio Gramsci, Rosa Luxemburgo, Che Guevara e José Carlos Mariátegui – uma espécie de versão laica do cristianismo, adornado com aparência de marxismo, em que só é bonito e belo a imagem do comunista “pregado na cruz” e sangrando.”

 

 

“Imagine uma revolução socialista no Brasil. Que hoje, enquanto escrevo essa apresentação, o povo trabalhador comece um movimento para tomar o poder. Os latifundiários, mineradores e madeireiros do Brasil iriam assistir calados? Claro que não. E eles estão armados até os dentes. Milícias, facções que são empresas capitalistas, grupos privados de segurança e as forças repressivas do Estado burguês também ficariam parados, aceitando a vontade da maioria da população? Também não. Teríamos, concretamente, um problema objetivo para solucionar: como derrotar uma contrarrevolução armada e violenta?

A esse problema político-militar se somaria outro, que foi uma constante no século XX: como reprimir a contrarrevolução sem ferir de morte a democracia socialista que tenta nascer? Desde sempre, guerras e conflitos militares não estimulam democracia e liberdade, antes o contrário.

Aliado a isso, a contrarrevolução, necessariamente, teria uma dimensão internacional. Como vamos combater a força militar e de espionagem dos Estados Unidos – e outros países imperialistas – presentes, inclusive, em nossas fronteiras? Como fazer florescer a liberdade de expressão e a consciência crítica, indispensáveis na construção socialista, em um contexto de cerco e guerra permanentes do imperialismo, como vive Cuba?

Certamente, também sofreríamos com bloqueios e sanções econômicas. Dependemos de outros países para garantir insumos agrícolas, trigo, remédios, máquinas e equipamentos, combustível, eletroeletrônicos e afins. Como vamos garantir uma política centralizada, planejada e de curto prazo – baseada em intensa mobilização popular – para aumentar a produtividade, realizar substituição de importações e adequar o aparato produtivo para reduzir os efeitos das sanções e, ao mesmo tempo, estimular a autogestão operária e a democracia socialista nos locais de produção?

Como vamos saber diferenciar, no calor das batalhas de vida ou morte, o que são críticas e insatisfações corretas ou insuflamentos artificiais de descontentamento movidos pelo aparato de propaganda do imperialismo e da classe dominante interna? Como vamos tratar movimentos separatistas, que cresceriam muito a partir do financiamento dos Estados Unidos (lembrando que, antes do golpe de 1964, os EUA financiavam movimentos separatistas no Brasil)?

Como vamos garantir a segurança de cada represa, estação de tratamento de água, metrô, aeroporto, estação de distribuição elétrica, fazenda, porto, fábrica e afins, sujeitos à sabotagem de órgãos do imperialismo como a CIA? Se 20% das polícias e do Exército aderirem à contrarrevolução, teremos milhares de homens e mulheres armados, com treinamento militar e bom conhecimento do território. O que fazer para enfrentar isso?

Falar que a democracia é “um valor universal”, soltar palavras de condenação abstrata contra a violência, criticar o “modelo” de planejamento soviético ou maldizer o “culto à personalidade” em torno de Mao Zedong e Stálin não resolve nenhuma dessas questões. Nunca é demais lembrar que frente a um governo reformista e bem limitado, como o de João Goulart, empresários e latifundiários já estavam prontos para uma guerra civil, e os Estados Unidos posicionaram uma esquadra na costa brasileira, prontos para uma invasão terrestre.

Essas são algumas das questões concretas que devem servir de norte para pensar a transição socialista no século passado e hoje. O socialismo e a guerra se entrelaçam. Não por escolha dos marxistas, mas da burguesia dos países onde aconteceu a revolução e do imperialismo, que nunca aceitou pacificamente a criação de um poder operário-popular. Exemplo paradigmático disso é o Chile de Salvador Allende. De nada adiantou o líder socialista defender, com unhas e dentes, uma “revolução” pacífica seguindo a moldura constitucional chilena. No final, o Palácio de La Moneda foi bombardeado do mesmo jeito – só que com o povo trabalhador desarmado e sem capacidade técnico-militar de resistir.”

 

 

“O trotskismo, assim como outras tendências teórico-políticas como o anarquismo e a socialdemocracia, vê-se diante de um aparente paradoxo. Com a crise do movimento comunista, muitos esperavam ser a sua vez de ter a direção – ou exercê-la de forma absoluta, como a socialdemocracia – no movimento operário e popular. Tudo podia acontecer, mas, no fim, nada aconteceu em relação a essas esperanças. A classe trabalhadora amarga uma época contrarrevolucionária em que é possível registrar em vários países 30 anos seguidos de perdas salariais, fechamento dos espaços democráticos, ampliação do aparato penal-burguês, crescimento do neofascismo etc.

Onde ocorreu uma relativa reorganização política, teórica e sindical-partidária da classe trabalhadora – a exemplo de Venezuela, Bolívia, Equador e até certo ponto Grécia, Espanha e Estados Unidos –, o trotskismo está bem longe de ser a força hegemônica. Muitos seguidores do fundador do Exército Vermelho tentaram se colar a experiências do dito “socialismo democrático”, algo profundamente estranho ao pensamento de Trótski, para buscar maior influência de massas. As experiências até agora com o Syriza (Grécia), Podemos (Espanha) e os Socialistas Democráticos da América (Estados Unidos – grupo interno do Partido Democrata), para ficar nos exemplos mais significativos, não são animadoras, para dizer o mínimo.

Ficou claro algo que muitos pensadores já tinham observado: o trotskismo se configurou como uma tradição política em negativo, existia por contraste e crítica ao movimento comunista hegemonizado pelo marxismo soviético. Ser uma alternativa interna de crítica e disputa aos rumos da URSS e posteriormente do chamado “campo socialista” era o principal ativo dos continuadores de Trótski. É notório, contudo, que outras alternativas internas, como o maoísmo e o foquismo-castrismo, apresentaram-se frente ao marxismo soviético e tiveram uma audiência de massas bem maior que os partidários da teoria da revolução permanente. Todavia, o trotskismo tinha uma vantagem: não exercia poder, consequentemente não estava sujeito às contradições de governar, por isso poderia apresentar sempre uma crítica de princípios que, diante do existente, era sedutora.

Essa dinâmica de “parasitar” frente ao “campo socialista” e ao movimento comunista, ganhando notoriedade com a perda de prestígio desses atores políticos, foi captada anos atrás por Louis Althusser:

O que explica, diga-se de passagem, não poucos fenômenos de aparência paradoxal como, por exemplo, 50 depois da Revolução de Outubro e 20 anos depois da Revolução Chinesa, o fortalecimento de Organizações que subsistem há 40 anos sem terem obtido nenhuma vitória histórica (pois, ao contrário dos ‘esquerdismos’ atuais, elas são organizações e têm uma teoria): as organizações trotskistas (Althusser, Posições I, 1978, p. 56).

Esse efeito de prestígio por contraste e tradição em nega tivo se manteve nos anos seguintes à contrarrevolução no leste europeu. Poucos marxistas podiam dizer que nunca tiveram simpatias pela URSS, China Popular, Iugoslávia, algum país do Leste Europeu, Coreia Popular, Albânia ou Cuba. Quando reverbera o discurso liberal de que “Mao Zedong matou 70 milhões”, por exemplo, ao contrário de muitos marxistas que tiveram seus anos de amores com o maoísmo, os trotskistas podiam dizer: “É verdade! E nós desde sempre denunciamos esse ‘autoritarismo’”.

Sem dúvida, esse era um ativo importante nos anos 90 e primeira década dos anos 2000.

Essa possibilidade de viver em negativo, porém, está acabando e, em alguns países, está totalmente terminada. Os motivos são bem simples. Onde a luta de classes conhece um altíssimo grau de acirramento, como a Venezuela, a crítica ao “stalinismo” ou o repúdio ao “socialismo autoritário” do século passado não é a questão central. Para completar, Cuba, com todas as suas dificuldades, mantém-se como um ponto de resistência socialista fundamental na América Latina, e, frente às nossas misérias, as “três coisas que funcionam” em Cuba – saúde, educação e segurança (como disse um liberal) – parecem muito luminosas.

O novo papel geopolítico da China e as mudanças na sua política interna, notadamente desde 2013 com a liderança de Xi Jinping, além do “redescobrimento” do Vietnã, países governados por partidos que reivindicam o marxismo-leninismo, reacendem em alguns círculos intelectuais e políticos um novo “olhar” sobre a história e o legado do movimento comunista. Não deixa de ser curioso que o citado historiador Perry Anderson, tão empolgado com o trotskismo e crítico ao maoísmo em 1976, hoje tenha uma visão muito positiva da experiência chinesa em curso16.”

16. Em termos taxonômicos, a RPC [China] do século XXI é um novum histórico-mundial: a combinação daquilo que, segundo qualquer critério convencional, apresenta-se por ora uma economia predominantemente capitalista, com aquilo que, segundo qualquer critério convencional, ainda é incontestavelmente um Estado comunista – cada qual o mais dinâmico já visto em seu gênero. Politicamente, os efeitos dessa contradição deixam marcas em toda a organização social, na qual eles se fundem ou se mesclam. Nunca tantos saíram tão rapidamente da pobreza absoluta. Nunca as indústrias modernas e infraestrutura moderníssima foram implantadas em escala tão colossal e em tão pouco tempo; nunca também uma classe média florescente emergiu tão rapidamente junto com elas. Nunca a hierarquia das potências foi alterada tão dramaticamente, alimentando o orgulho popular de modo tão espontâneo (ANDERSON, Considerações sobre o marxismo ocidental, 2018, p. 68). Um complemento para ficar claro: Anderson não é apenas elogios a China, mas os elogios de hoje são mais significativos do que as críticas, considerando sua trajetória como marxista.

 

 

“Mesmo com todos os problemas que existiam nas experiências passadas, os trabalhadores tinham a certeza de que teriam um emprego, casa, educação, esporte, cultura e saúde, tanto para eles quanto para suas famílias, e de que na velhice poderiam contar com uma aposentadoria. A sensação de ter certeza de que seu filho teria, no mínimo, acesso às mesmas, ou a melhores, condições que você – sem o risco de cair na miséria – é poderosa frente à precariedade, à pobreza, à miséria e à instabilidade econômica do neoliberalismo. Longe de combinar a segurança econômica do socialismo com o padrão de consumo do capitalismo europeu e estadunidense, o que o povo trabalhador recebeu com a contrarrevolução de 1989-91 foi desemprego estrutural, intensificação sempre constante dos ritmos de trabalho, velhice desamparada, ausência de saúde, privatização da cultura, educação e oportunidades.

Essa síntese sobre a União Soviética, em contraste com o que existe hoje, é ilustrativa:

[...] O sociólogo americano Albert Szymanski passou em revista uma série de estudos ocidentais sobre a distribuição de rendimentos e o nível de vida soviético. Apurou que as pessoas mais bem pagas da União Soviética eram artistas proeminentes, escritores, professores universitários, administradores, cientistas, que auferiam quantias entre 1200 e os 1500 rublos; os diretores empresariais entre 190 a 400 rublos mensais; os trabalhadores cerca de 150 rublos mensais. Consequentemente, os rendimentos mais elevados correspondiam a apenas 10 vezes o salário do trabalhador médio; ao passo que nos Estados Unidos as mais altas chefias empresariais recebiam 115 vezes o salário de um trabalhador. Os privilégios associados a altos cargos do Estado, como lojas especiais e automóveis oficiais, permaneciam baixos e limitados e não contrariavam uma tendência contínua de quarenta anos no sentido de um maior igualitarismo. [...] Szymanski concluiu: ‘embora a estrutura social soviética não possa corresponder ao ideal comunista ou socialista, é ao mesmo tempo qualitativamente diferente e mais igualitária que a dos países capitalistas ocidentais. O socialismo representou uma diferença radical em favor da classe trabalhadora’ (Keeran; Kenny, O socialismo traído, 2008, p. 13-14, grifos nossos).

O jovem precarizado, terceirizado, desempregado, sem dinheiro para pagar a faculdade e sem muita perspectiva de futuro, escuta seu pai/mãe ou avô/avó falando de outra época em que, dentre outras coisas, o emprego era garantido e as oportunidades educacionais eram gratuitas ou de baixíssimo custo. Alguns podem falar que isso é uma distorção política da memória ditada pelas condições conjunturais, gritando com escândalo o quão absurdo é relativizar a Stasi, os expurgos da era stalinista ou os tanques soviéticos entrando em Praga e na Hungria. O problema, nesse caso, é que toda memória é uma construção política (inclusive a memória de negação total do socialismo dos anos de 1990) e o repúdio moral não vai mudar o sentimento de massa em vários setores dos trabalhadores e da juventude. Gostando-se ou não, o fenômeno existe – e precisa ser mais bem estudado e compreendido.”

 

 

“É nessa situação sociopolítica que a obra losurdiana ganha força e impacto social. Mas por que Losurdo, e não outro autor, causa todo esse barulho? É bem simples. O filósofo italiano, como falamos, busca pensar uma contra-história da modernidade destacando a questão colonial como central.

Muitos setores do marxismo, profundamente eurocêntricos, não podem aceitar essa contra-história. Como falamos anteriormente, ao citar Vijay Prashad, o trotskismo passou ao largo de qualquer protagonismo nas guerras de libertação nacional e revoluções socialistas na periferia. Os liberais também não podem permitir esse debate sobre a questão colonial. Com a questão colonial – e, acrescento, racial – em jogo, fica impossível, por exemplo, sustentar o mito do totalitarismo e ocultar a ligação de continuidade entre liberalismo e nazifascismo. É sempre importante lembrar uma clássica reflexão de Aimé Césaire sobre Ocidente e nazifascismo (que Losurdo dá continuidade e adensa): 

Sim, valeria a pena estudar, clinicamente, em detalhes, os passos de um Hitler e do hitlerismo e revelar ao burguês muito distinto, muito humanista e muito cristão do século XX que ele carrega consigo um Hitler sem saber, que Hitler vive nele, que Hitler é seu demônio, que ele o vitupera, é por falta de lógica e, no fundo, o que ele não perdoa em Hitler não é o crime em si, o crime contra o homem, não é a humilhação do homem em si, é o crime contra o homem branco, é a humilhação do homem branco, é de haver aplicado à Europa os procedimentos colonialistas que atingiram até então apenas os árabes da Argélia, os coolies da Índia e os negros da África (Césaire, [1950], 2020, Discurso sobre o colonialismo, p. 18).

Combinado a isso, Losurdo é o autor, como também já dito, da contra-história do liberalismo. Poucos autores, mesmo no marxismo, são capazes de desenvolver uma crítica ao liberalismo como o italiano. E desse pensamento também emerge – friso esse ponto – um novo balanço crítico das experiências socialistas. Para quem se sustenta afirmando uma negativa total das experiências socialistas, reivindicando e defendendo no máximo a Comuna de Paris e os primeiros cinco ou seis anos da Revolução Russa, esse novo balanço é disfuncional para sua legitimidade política.

Essa disfuncionalidade se explica pelo “culto da derrota”. Chamo de culto da derrota a visão cultural, histórica e política que predica que todas as experiências históricas de construção do socialismo são uma tragédia, mas que o marxismo continua sendo o caminho, porém um caminho não contaminado por essas experiências. O culto da derrota em sua dimensão total gera como subproduto um autoelogio. É como se o sujeito falasse, “sim, Cuba, China, Coreia, URSS, Iugoslávia e afins foram uma tragédia, mas eu não tenho nada com isso; o meu marxismo é limpo”. É bem estranho que uma “filosofia da práxis“ – como Antonio Gramsci chamava o marxismo – tenha como um dos seus principais ativos nunca ter se “contaminado” pela práxis de tentar construir o socialismo.”

 

 

“A União Soviética não representava “apenas” a primeira tentativa de construção do socialismo. A URSS combateu firmemente as teorias do “racismo científico”, foi o primeiro país do mundo a criminalizar o racismo (na Constituição Soviética de 1936), manteve em todos os âmbitos de sua produção cultural, educacional e artística uma ampla propaganda antirracista e anticolonialista, apoiou a luta dos povos colonizados de diversas formas, e as seções nacionais da III Internacional eram obrigadas a combater de fato o colonialismo e o chauvinismo – nenhuma conciliação era tolerada. A União Soviética representava a tentativa de ruptura com o capitalismo e, talvez até com mais sucesso, com toda tradição colonial-racista da modernidade europeia e os elementos atualizados na fase colonial-imperialista19. (...)

Podemos caminhar para uma conclusão nesse ponto. Enquanto o projeto nazifascista representava uma radicalização do projeto colonial-imperialista por parte de países de desenvolvimento capitalista retardatário que buscavam alterar a partilha do mundo, reatualizando todos os métodos bárbaros do colonialismo-imperialista (terror sistêmico, extermínio em massa, campos de concentração, subjugação político-militar, estupros coletivos, destruição das economias locais etc.), o projeto soviético convocava os povos das colônias, as minorias nacionais oprimidas e o proletariado de todo o mundo a quebrar suas correntes e a construir um novo mundo sem exploração e opressão racial e nacional. E, ainda que se possa dizer que na prática o projeto soviético não se materializou como o programa previa no plano político-ideológico, não pode ser desprezada a diferença programática de projeto e objetivo.”

19. Sobre o tema, conferir os dois primeiros volumes da Coleção Quebrando as Correntes: Revolução Africana: uma antologia do pensamento marxista (Autonomia Literária, 2019) e Raça, classe e revolução: a luta pelo poder popular nos Estados Unidos (Autonomia Literária, 2020), ambos organizados por Jones Manoel e Gabriel Landi.

 

 

“Marx não discordava do procedimento de Lenin e Engels de defender sempre, mas em particular nos momentos de derrota e reorganização, a memória e a história do movimento operário. Esse procedimento parte da compreensão de que a ação política humana não é determinada por uma relação de identidade imediata entre necessidade e ação. É possível que alguém tenha fome e considere que a culpa disso é do imigrante; ou que alguém esteja desempregado e culpe, por sua situação, a mulher ou o negro ao seu lado. Não existe uma relação de transparência, de sentido claro e cristalino, entre as relações sociais, suas causas, encadeamentos, estruturas e dinâmicas. A forma como a classe trabalhadora encara as relações de exploração e opressão do capitalismo é mediada pela política e por seus processos de subjetivação e formação de consciência.

A classe trabalhadora, no capitalismo, tem interesses comuns como classe em si, uma vez que ela se confronta com os proprietários dos meios de produção enquanto portadora apenas de sua força de trabalho, vendida temporariamente em troca de um salário. Toda ação coletiva no sentido de lutar por melhores salários, condições de trabalho, direitos sociais, econômicos e democráticos e, em última instância, pela conquista do poder e pela construção do socialismo, é objetivamente do interesse de toda a classe trabalhadora. Ao mesmo tempo, essa classe também é composta de indivíduos “livres como pássaros”, que só têm como fonte de sustento a venda da sua força de trabalho no mercado capitalista, confrontando-se com outros indivíduos na mesma condição, em uma relação de concorrência.

Essa relação de concorrência permanente é parte própria da dinâmica do capitalismo, mas é potencializada pela ação político-ideológica da classe dominante. Individualizar, isolar e quebrar os vínculos associativos da classe é parte essencial da luta de classes da burguesia contra o proletariado. Fornecendo base material para tanto, a concorrência no seio da classe trabalhadora se estrutura de acordo com os marcadores histórico-estruturais da classe, como as determinações de gênero, raciais, linguísticas, nacionais, ético-culturais, sexuais e religiosas. A classe, que é em si uma, em sua existência econômico-formal sob o modo de produção capitalista, revela, sob uma apreensão histórico-concreta, toda a sua diversidade. E essa diversidade pode ser um elemento de potencialização da concorrência e individualização no interior da classe.

A passagem do proletariado de uma classe em si para uma classe para si é um processo político historicamente específico, que pode avançar ou retroceder a depender da luta de classes. Esse processo é mediado pela ação política do movimento socialista, que busca disseminar as ideias proletárias revolucionárias e organizar a classe em sindicatos, partidos, movimentos populares, em suma, sob as diversas formas históricas de ação organizada da classe trabalhadora29. Contudo, nem mesmo nessa atividade organizativa existe, novamente, uma relação de igualdade imediata entre interesse e ação; essa relação é sempre mediada pela cultura, pelo imaginário, pelo simbolismo, pela compreensão teórica do mundo, pela memória histórica. A forma como a classe (cada um dos indivíduos que a compõem concretamente) se vê e vê o mundo potencializa (ou não) formas de ação de classe.

Quando Lenin, na sua obra máxima sobre o problema da organização revolucionária, o clássico Que fazer?, atribuiu – seguindo Engels – o mesmo peso tático-estratégico30 às três formas da luta de classes (econômica, política e teórica), o líder bolchevique expressou a compreensão de que não basta afirmar ao proletariado sua exploração, mas é preciso submergi-lo em toda uma compreensão teórica de mundo (que envolve também uma conformação específica de afetos, memórias, solidariedade de classe e subjetividade) que o convença da existência da exploração, que ofereça uma explicação dessa realidade, que revele sua historicidade e a possibilidade de superar esse estado de coisas.

Pensar o próprio hoje como algo em construção e disputa, mediante a ação política, negando qualquer essência humana a-histórica e naturalização das relações sociais, passa também pela conformação de um tipo de memória histórica. Compreendemos como memória histórica o conjunto de relações materiais e simbólicas que dão sentido de tempo e pertencimento histórico a determinado grupo social, povo ou classe, e que pode se materializar através de tradições orais, folclore, festas, monumentos, datas comemorativas, indústria cultural, ensino oficial de história e afins. A memória histórica, como tudo na sociedade capitalista, existe atravessada pela luta de classes. É contraditória, conflitiva e está em constante disputa.”

29. “A classe molda o comportamento político de indivíduos tão-somente se os que são operários foram organizados politicamente como tal. Se os partidos políticos não mobilizam as pessoas como operários, e sim como ‘as massas’, ‘o povo’, ‘consumidores’, ‘contribuintes’, ou simplesmente ‘cidadãos’, os operários tornam-se menos propensos a identificar-se como membros da classe” (Przeworski, Capitalismo e socialdemocracia, 1991, p. 42).

30. “Citaremos as observações feitas por Engels em 1874 acerca da relevância da teoria para o movimento socialdemocrata. Engels reconhece na grande luta da socialdemocracia não duas formas (a política e a econômica) – como se dá entre nós – mas três, colocando ao lado a luta teórica” (Lenin, Que fazer?, 2015, p. 72).